BRICS
Monitor
O embargo da Rússia sobre a carne
brasileira: Barreira não tarifária e
implicações para a relação bilateral
de comércio
Outubro de 2011
Núcleo de Desenvolvimento, Comércio, Finanças e Investimentos
BRICS Policy Center / Centro de Estudos e Pesquisa BRICS
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O embargo da Rússia sobre a carne
brasileira: Barreira não tarifária e
implicações para a relação bilateral
de comércio
Outubro de 2011
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BRICS POLICY CENTER - BRICS MONITOR #2
O embargo da Rússia sobre a carne brasileira: Barreira não tarifária e
implicações para a relação bilateral de comércio
Autor: Leane Cornet Naidin e Manuela Trindade Viana
O embargo da Rússia sobre a carne brasileira: Barreira
não tarifária e implicações para a relação bilateral de comércio
O processo de liberalização comercial
alcançado por meio das rodadas de negociação
multilateral implicou a gradual perda de relevância da proteção tarifária. Processos bilaterais
de aprofundamento das relações comerciais
têm enfrentado a substituição dos antigos instrumentos de proteção por políticas não tarifárias.
Independentemente de qual seja a motivação dos diversos governos para a utilização
dessa política, o fato é que os instrumentos de
proteção não tarifários têm sido cada vez mais
recorrentes nos últimos anos. Inclusive, a proteção não tarifária é mais sutil, de mais difícil percepção pelos demais parceiros comerciais e de
mensuração mais complexa, tornando menos
transparente a adoção de barreiras ao comércio.
Dessa forma, as barreiras técnicas têm
ocupado crescentemente uma posição de destaque nas negociações multilaterais. Seu conceito é bastante amplo, mas working Paper N.
37, a Confederação Nacional da Indústria (CNI)
e o Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (Inmetro) entendem
a definição da Organização Mundial do Comércio (OMC) da seguinte forma: “Barreiras Técnicas
às exportações são barreiras comerciais derivadas da utilização de normas e regulamentos técnicos não transparentes ou que não se baseiam
em normas internacionalmente aceitas ou, ainda, decorrentes da adoção de procedimentos
de avaliação de conformidade não transparen-
tes e/ou demasiadamente dispendiosos, bem
como de inspeções excessivamente rigorosas”.
Outra característica das barreiras técnicas é que elas podem decorrer de razões oficiais
ou voluntárias. As oficiais são conseqüência de
uma lei ou regulamento do governo; já as voluntárias são criadas por iniciativa do setor privado.
Podem existir ainda barreiras inicialmente impostas pelo setor privado, mas posteriormente
incorporadas pela esfera governamental.
Em estudo publicado pelo Inmetro, Oliveira destaca que um aspecto não menos curioso das barreiras técnicas é que estas são “mecanismos que impedem ou dificultam o livre fluxo
de mercadorias entre os países (...) sob uma
alegação técnica”. Ou seja, apesar de se tratar
de uma questão fundamentalmente técnica, o
estímulo para sua utilização não é apenas técnico: o instrumento é cada vez mais utilizado para
alcançar objetivos de política comercial.
Nesse sentido, as barreiras técnicas podem ser “legítimas” ou não. Segundo Oliveira,
para que seja legítima, é preciso que derive de
uma norma, emitida pelo governo do país importador e não vise ao benefício de nenhum
grupo de interesse específico. Além disso, a
norma deve ser transparente e não pode ser
ambígua ou dar margem a diferentes interpretações.
Quanto às barreiras técnicas ilegítimas,
estas podem decorrer de várias razões. Uma
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implicações para a relação bilateral de comércio
razão seria a falta de transparência na norma
governamental, dando margem a dúvidas e
interpretações. Isso pode acarretar que certo
exportador entenda que está dentro da norma
e, ao chegar a seu destino, é questionado. Outros problemas de legitimidade poderiam ser
derivados de tratamento diferenciado da mercadoria importada, implicando discriminação
entre os parceiros comerciais. Por essa razão,
contenciosos bilaterais no tema tem sido alvo
de crescente interesse acerca da natureza de
suas motivações como política comercial – e,
sob este pano de fundo, o embargo da Rússia à
carne brasileira constitui um caso interessante
para análise.
A relação bilateral
Dentre os países da América Latina, o
Brasil lidera o ranking das exportações para a
Rússia. Em 2010, o país respondeu por 72% do
total exportado pela região, segundo o estudo
A evolução recente das relações econômicas
entre a Federação Russa e a América Latina e o
Caribe, publicado recentemente pelo Sistema
Econômico da América Latina e Caribe (SELA).
As exportações brasileiras destinadas à Rússia
têm aumentado: em 2010, o volume exportado
chegou a US$ 7,87 bilhões, o que significa um
incremento de 175% em relação ao ano anterior. Em 2008, antes da crise, as exportações totalizaram US$ 4,65 bilhões.
Apesar da tendência ascendente apontada acima, o caráter pouco diversificado da
pauta de exportação do Brasil para a Rússia
torna essa relação vulnerável. Dados divulgados em julho de 2011 pelo Ministério do De-
senvolvimento, Indústria e Comércio Exterior
(MDIC) revelam que 84,57% da pauta brasileira
são constituídos por apenas duas categorias
de produtos: açúcar de cana (51,42%) e carne
e derivados (33,15%). Diante de tais números,
parece plausível argumentar que variações no
preço ou na preferência comercial da Rússia
afetem substancialmente o desempenho das
relações comerciais entre os dois países. Sob a
perspectiva dos produtores, essa vulnerabilidade apresenta contornos críticos, na medida em
que a Rússia é um dos principais importadores
da carne brasileira.
O quadro delineado acima foi colocado
à prova com a decisão do governo russo, anunciada em 3 de junho, de suspender a importação de carne de 77 frigoríficos brasileiros – além
dos 13 embargados desde abril deste ano. Em
vigor desde 15 de junho, a decisão mais recente
foi justificada sob o argumento de que os carregamentos oriundos dos estados do Mato Grosso, Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina
apresentavam condições sanitárias insatisfatórias. Segundo o porta-voz da Inspeção Sanitária Agrícola da Rússia (ISAR), Alexéi Alexéyenko,
foram detectados parasitas e bactérias em 260
carregamentos de carne brasileira. Ainda, o representante alegou que as empresas punidas
não apresentaram testes de presença de mercúrio e outras substâncias tóxicas na produção.
O impacto do embargo é considerável
diante do volume de carne exportado à Rússia,
que atingiu US$ 2 bilhões em 2010. Os principais alvos da decisão respondem por cerca de
80% das importações russas no setor de carne.
O governo brasileiro recebeu com surpresa a notícia: em nota divulgada logo após o
comunicado feito pela Rússia, o Ministério da
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Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA)
declarou não ter recebido qualquer aviso prévio, tampouco cópia do relatório técnico sobre
as inspeções realizadas sobre os carregamentos;
e pediu que a ISAR reconsiderasse a decisão. A
revisão desta, entretanto, foi sucessivamente
adiada pela agência sanitária russa.
Nesse contexto, o encontro do G-20 realizado em Paris em finais de junho serviu de
oportunidade para que o governo brasileiro definisse junto à delegação russa o envio de uma
missão a Moscou, em 4 de julho. Liderada pelo
secretário de Defesa Agropecuária do MAPA,
Francisco Jardim, a missão apresentou à ISAR
uma lista com 140 frigoríficos brasileiros que
cumpriam todas as condições sanitárias exigidas pela Rússia e que, por esse motivo, estavam
aptos a retomar os embarques imediatamente.
No entanto, os avanços logrados pela
missão brasileira foram modestos. Com relação
à lista de frigoríficos apresentada, os russos argumentaram que 15 unidades não constavam
da relação aprovada anteriormente por eles; 21
estavam embargadas por inconformidades em
partidas exportadas; e outras 30 constavam do
rol de produtores contemplados pelo embargo
anunciado em 3 de junho. Diante disso, a ISAR
reiterou as restrições à carne brasileira, até que
tais pendências fossem resolvidas.
Em comunicado enviado em 29 de julho à Secretaria de Defesa Agropecuária (SDA),
a ISAR condicionou o fim das restrições a “maiores esclarecimentos” por parte das autoridades
brasileiras e à apresentação de “documentos
adicionais”, além da tradução para o russo de
textos entregues pela SDA. Ademais, o documento afirma que os resultados insatisfatórios
da inspeção revelam “controle insuficiente so-
bre produtos fornecidos à Federação da Rússia
da parte do serviço veterinário estatal de referidos estados”.
O chefe da ISAR, Sergei Dankvert, lamentou que a situação tenha adquirido conotação política e ressaltou que as exigências
apresentadas pela Rússia seguem a rigor as
disposições do Código Sanitário elaborado pela
Organização Mundial da Saúde (OMS). “Nós esclarecemos junto aos parceiros do Brasil que
fomos obrigados a tomar algumas medidas
preventivas contra alguns frigoríficos do Mato
Grosso, do Paraná e do Rio Grande do Sul porque, na nossa avaliação, eles apresentaram índices negativos de controle veterinário”, afirmou
Dankvert. Já o vice-diretor da ISAR, Yevgeny
Nepoklonov, foi mais contundente em suas
declarações, ao afirmar que o nível de controle
veterinário do Brasil tem “diminuído inaceitavelmente” nos últimos anos.
Para o diretor do Departamento de Inspeção de Produtos de Origem Animal (Dipoa)
do MAPA, Luiz Carlos de Oliveira, os russos descumpriram acordo firmado anteriormente: “[f ]
izemos uma proposta que dividia 88 estabelecimentos para liberação imediata de exportação pois o problema já havia sido resolvido, e
37 que ficariam com restrições temporárias para
que pudéssemos avaliar novamente os frigoríficos. Para nossa surpresa houve a publicação da
lista dos 37, não dos 88”.
Embora a Rússia tenha liberado a conclusão das exportações dos 37 frigoríficos
mencionados acima – sob a condição de que
estivessem concluídas entre 6 de julho e 1º de
agosto –, o embargo persiste, e as negociações
permanecem sem avanços. Em 19 de agosto,
o atrito entre os dois países tomou novo fôle-
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implicações para a relação bilateral de comércio
go, quando o governo russo incorporou outros
três produtores brasileiros ao embargo. A ISAR
considerou necessária a prorrogação do monitoramento laboratorial dos produtos de origem animal exportados pelo Brasil. Segundo a
agência russa, “a contaminação microbiológica
detectada durante o monitoramento dos produtos alimentícios produzidos no Brasil é uma
violação das normas e exigências veterinárias e
sanitárias da Aliança Alfandegária e da Rússia”.
Harmonização ou protecionismo?
O embargo sobre a carne brasileira evidencia alguns desafios no que diz respeito à coordenação com a Rússia. Ao longo da disputa,
foram recorrentes as declarações de falha na
comunicação entre os representantes dos dois
países. Como exemplo, é possível destacar a ausência de notificação prévia do governo russo
sobre a decisão de estender o embargo; o idioma em que deveriam ser elaborados os documentos trocados entre as agências dos países;
e o mal entendido, logo após a visita da missão
brasileira a Moscou, quanto ao período dentro
do qual as exportações de alguns produtores
passariam a ser suspensas – o que exigiu posterior retificação por parte do governo russo.
Para além de evidenciar certo desalinhamento na coordenação entre Brasil e Rússia,
tais eventos levantam questões sobre a transparência na relação bilateral de comércio, bem
como sobre a possível existência de interesses
ocultos à negociação. É nesse contexto que se
enquadra a declaração do presidente da Associação Brasileira da Indústria Produtora e Exportadora de Carne Suína (Abipecs), Pedro Ca-
margo Neto, de que “ninguém sabe realmente
o que está ocorrendo”. A notícia recentemente
divulgada de que a produção russa de carne e
processados de carne aumentou 3,7% nos sete
primeiros meses deste ano agrega elementos
de controvérsia à relação comercial dos dois países.
Outro elemento digno de nota está relacionado à necessidade de adequação do setor
de carnes brasileiro a padrões sanitários mais rigorosos. Com efeito, não é a primeira vez que o
setor é objeto de barreiras sanitárias: em 2009,
a União Europeia (UE) passou a exigir rastreabilidade da carne bovina brasileira, decisão que
reduziu o número de estabelecimentos habilitados para exportação em mais de 70%.
Buscando tratar desse problema, o ministro da Agricultura, Wagner Rossi, anunciou
recentemente que o Brasil planeja investir R$
50 milhões na modernização dos laboratórios
oficiais de análise de alimentos. De acordo com
Rossi, tal medida visa a adequar os laboratórios
brasileiros aos padrões internacionais: “[p]recisamos ter condições de atender às exigências
dos nossos clientes. No caso da Rússia, estamos
falando de um mercado de bilhões de dólares”,
enfatizou.
O embargo à carne brasileira persiste
e encontra-se entre os tópicos prioritários da
agenda do MAPA, motivo pelo qual os desafios
mencionados acima permanecerão no horizonte das próximas medidas adotadas por Brasil e/
ou Rússia. No âmbito das relações intra-BRICS,
o embargo russo expõe não somente o debate
sobre o uso das barreiras não tarifárias com viés
protecionista, mas também sobre a harmonização de padrões sanitários entre Estados cujas
sociedades apresentam níveis de exigência e de
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O embargo da Rússia sobre a carne brasileira: Barreira não tarifária e
implicações para a relação bilateral de comércio
controle de qualidade diferenciados.
Disponível em: www.inmetro.gov.br/barreirastecnicas. Acesso em: 02 set. 2011.
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consulta contra barreiras não tarifárias. Vol. 04, No.
13, jul. 2009. Disponível em: http://ictsd.org/i/news/
pontesquinzenal/50831/. Acesso em: 04 set. 2011.
Agência Brasil. Rússia suspende importação de
carne bovina e de aves de 3 frigoríficos brasileiros.
(18/08/2011). Disponível em: http://agenciabrasil.
ebc.com.br/noticia/2011-08-18/russia-suspende-importacao-de-carne-bovina-e-de-aves-de-tres-frigorificos-brasileiros-depois-de-detec. Acesso em:
02 set. 2011.
CNI, INMETRO (2002). Barreiras Técnicas às Exportações: o que são e como superá-las. 2002.
Jornal do Brasil. Rússia critica serviço de controle veterinário brasileiro. (17/08/2011). Disponível em: http://
www.jb.com.br/internacional/noticias/2011/08/17/
russia-critica-servico-de-controle-veterinario-brasileiro/. Acesso em: 02 set. 2011.
Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Brasil envia nova missão à Rússia na semana que
vem. (29/06/2011). Disponível em: http://www.agricultura.gov.br/internacional/noticias/2011/06/brasil-envia-nova-missao-a-russia-na-semana-que-vem.
Acesso em: 02 set. 2011.
Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.
Suspensão de exportação de carne brasileira para
Rússia. (02/06/2011). Disponível em: http://www.
agricultura.gov.br/portal/page/portal/Internet-MAPA/pagina-inicial/comunicacao/noticias/noticia-aberta?noticiaId=31879. Acesso em: 02 set. 2011.
O Globo. Rússia aceita receber carnes já embarcadas
de frigoríficos impedidos de exportar. (12/08/2011).
Disponível em: http://oglobo.globo.com/economia/
mat/2011/08/12/russia-aceita-receber-carnes-ja-embarcadas-de-frigorificos-impedidos-de-exportar-925121106.asp. Acesso em: 02 set. 2011.
Sistema Econômico da América Latina e Caribe. A
evolução recente das relações econômicas entre a
Federação Russa e a América Latina e o Caribe: mecanismos de cooperação para o seu fortalecimento.
SELA, SP/Di No. 14-11, Ago. 2011. Disponível em:
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Acesso em: 02 set. 2011.
Valor Econômico. Produção de carne sobe 3,7% na
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Oliveira, N. B. Barreiras Técnicas ao Comércio. 2004.
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