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Meios de Comunicação e Subjetividade: Elementos para uma Metodologia de Análise1
Márcio Souza Gonçalves – Professor da FCS - UERJ2
Ericson Telles Saint Clair – Pesquisador da FCS – UERJ
Marcelle da Costa Santos – Aluna da FCS – UERJ
Felipe Sholl Machado – Aluno da FCS - UERJ
Resumo
O presente artigo pretende contribuir para a discussão a respeito das formas de
subjetividade ligadas às novas tecnologias de comunicação, notadamente à Internet,
esboçando uma metodologia de análise da relação entre subjetividade e meio de
comunicação. A metodologia esboçada trabalha a partir de uma perspectiva histórica,
através da análise de trajetórias biográficas, e procura compreender de que modo os
contextos sócio-culturais e os meios de comunicação se agenciam na produção de formas
subjetivas.
Palavras-chave: subjetividade; novas tecnologias; meios de comunicação.
Um tipo particular de história são as biografias: estas são histórias as mais
especiais. Em vista do fim mencionado, vale dizer, o conhecimento da essência
verdadeira da humanidade, tenho de reconhecer que as biografias, sobretudo as
autobiografias, possuem um valor mais elevado que a história propriamente dita,
pelo menos como esta é comumente tratada. Em geral, para esse fim, cada história é
tanto mais útil quanto mais específica for; e a biografia é a forma mais específica.
(SCHOPENHAUER, 2003, p. 208)
A articulação entre comunicação e subjetividade e, mais especificamente, entre meios
de comunicação e subjetividade é um tema central em nossa sociedade marcada por fortes
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Trabalho apresentado ao N P 08 - Tecnologias da informação e da Comunicação, do IV Encontro dos Núcleos de
Pesquisa da Intercom.
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Márcio Souza Gonçalves é Doutor pela ECO-UFRJ e Professor do Programa de Pós Graduação da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]
Ericson Telles Saint Clair é bacharel em Comunicação Social pela Uerj, participante dos grupos de pesquisa Novas
Tecnologias de Comunicação: Subjetividade e Sociedade (sob orientação do Prof. Márcio Gonçalves na FCS-UERJ) e
Comunicação e Tecnocultura: meios e imaginários (FCS-UERJ). Bolsista Pibic/UERJ na pesquisa A Internet e seus efeitos
sobre a subjetividade, orientada pelo Prof. Márcio Gonçalves (de 2002 a 2004). E-mail: [email protected]
Marcelle da Costa Santos é aluna da Faculdade de Comunicação Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e
participante dos grupos de pesquisa Novas Tecnologias de Comunicação: Subjetividade e Sociedade (sob orientação do
Prof. Márcio Gonçalves na FCS-UERJ) e Comunicação e Tecnocultura: meios e imaginários (FCS-UERJ). Pesquisadora
de Iniciação Científica na pesquisa A Internet e seus efeitos sobre a subjetividade, orientada pelo Prof. Márcio Gonçalves
(de 2002 a 2004). E-mail: [email protected]
Felipe Sholl Machado é aluno da Faculdade de Comunicação Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e
participante dos grupos de pesquisa Novas Tecnologias de Comunicação: Subjetividade e Sociedade (sob orientação do
Prof. Márcio Gonçalves na FCS-UERJ) e Comunicação e Tecnocultura: meios e imaginários (FCS-UERJ). Pesquisador de
Iniciação Científica na pesquisa A Internet e seus efeitos sobre a subjetividade, orientada pelo Prof. Márcio Gonçalves (de
2002 a 2004). E-mail: [email protected] .
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alterações no modo como nos comunicamos e por uma aceleração geral na circulação de
informação.
O recrudescimento da atuação das novas tecnologias de comunicação na cultura
mundial, especialmente da Internet, tem provocado uma série de modificações estruturais
nos mais diversos campos da sociedade. De maneira veloz, a informação se difunde
globalmente por meio da rede digital produzindo efeitos os mais variados, especialmente
ligados à compressão do espaço-tempo.
A evidência dessas e de outras transformações advindas com a Internet propicia,
dentro do campo dos estudos de comunicação, a profusão de uma série de teorias que
pretendem
compreender
as
complexas
relações
envolvendo
a
rede
mundial
de
computadores e a subjetividade humana.
Subjetividade moderna X subjetividade pós-moderna
Diversos autores têm abordado a questão da subjetividade ligada às novas tecnologias
(por exemplo, TURKLE, 1997; HALL, 2002; SILVA, 2000) e, de modo geral, essa abordagem
toma a forma de uma oposição entre uma subjetividade dita moderna e outra dita pós-moderna,
esta segunda sendo fortemente dependente das novas tecnologias de comunicação, destacandose a Internet.
Paradigmaticamente, teríamos de um lado o sujeito moderno, centrado, racional
reflexivo, unitário, unívoco e de outro o pós-moderno, fragmentado, acentrado, plural,
plurívoco. As novas tecnologias de comunicação desempenhariam um papel importante na
passagem de um tipo de subjetividade a outra, juntamente com os acelerados processos de
urbanização e de mundialização do capitalismo. Trata-se da descentração do sujeito:
Um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades modernas no
final do século XX. Isso está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero,
sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido sólidas
localizações como indivíduos sociais. Estas transformações estão também mudando
nossas identidades pessoais, abalando a idéia que temos de nós próprios como sujeitos
integrados. Esta perda de um “sentido de si” estável é chamada, algumas vezes, de
deslocamento ou descentração do sujeito. Esse duplo deslocamento – descentração dos
indivíduos tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos –
constitui uma “crise de identidade” para o indivíduo. (HALL, 2002, p. 9)
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Na pós-modernidade, a subjetividade humana teria sido fortemente fragmentada, tendo a
Internet contribuído bastante para este processo de deslocamento. Neste sentido, a experiência
dos diálogos on-line nas salas de discussão da rede, os chats, seria ao mesmo tempo um grande
operador e um exemplo do surgimento dessas novas formas de subjetividade: poderíamos
inventar identidades múltiplas absolutamente independentes umas das outras e também de
nosso corpo próprio, identidades que convivem no ciberespaço num aqui e agora em que sou ao
mesmo tempo todos os nicknames (apelidos escolhidos para participação nos diálogos) através
dos quais me apresento. Em suma: no chat sou um sujeito pós-moderno com todos os curiosos
epítetos que a ele vêm associados.
Desta maneira, uma parcela considerável das teorias contemporâneas relacionadas ao
tema da subjetividade no campo da comunicação constrói-se a partir de uma base de
pensamento binarista: estaríamos presenciando um grande período de revolução da
subjetividade humana, em que o sujeito moderno (centrado, unívoco, unitário etc) teria dado
lugar ao sujeito pós-moderno (fragmentado, plurívoco, plural etc), tendo os meios de
comunicação grande influência nesta transformação.
Já discutimos em diversos trabalhos (GONÇALVES, 2003, 2004) a inadequação dessa
simples oposição entre duas formas opostas de subjetividade para dar conta da complexidade
das articulações entre meios de comunicação e subjetividade. É necessário que se aborde o
tema de modo crítico e sem oposições binárias tão simplificadoras quanto inadequadas para se
pensar os processos em jogo.
A construção de uma perspectiva crítica em relação ao nosso assunto é bastante delicada.
Mesmo autores críticos do modelo moderno/pós-moderno eventualmente trabalham com
generalizações tão amplas acerca da questão da subjetividade que terminam por repetir
problemas do próprio modelo de compreensão que criticam.
Um dos autores mais interessantes na crítica da simples oposição entre moderno e pósmoderno na compreensão dos efeitos das novas tecnologias de comunicação sobre a
subjetividade sustenta que na realidade a suposta pluralização das experiências identitárias nos
chats, por exemplo, longe de favorecer uma fragmentação do sujeito, ao contrário, reforça a
experiência do sujeito como núcleo duro que permanece fixo sob as diversas transformações
aparentes que sofre:
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Na verdade, caberia pensar além e perguntar se, ainda que esse seja o caso, o crescente
parcelamento da alma promovido pelas novas tecnologias virtualmente não conduz os
indivíduos a uma maior conscientização desse eu: se a manipulação de papéis por elas
estimulada, ao invés de criar um novo conceito de pessoa, não aprofunda o processo de
abstração social do sujeito que está na base no niilismo contemporâneo; se, enfim, o
ciberespaço, ao invés de um espaço de construção do sujeito relacional, não é, enquanto
nova frente de lazer industrial, um elemento de potencialização da sociedade de
comediantes da qual falava com tanta ambigüidade Nietzsche n’A Gaia Ciência
(RÜDIGER, 2002, p. 114)
Pode-se pensar, assim, que o pós-moderno seria uma radicalização do moderno.
O mesmo autor, ao se referir ao sujeito pré-moderno, sustenta que:
Nas sociedades pré-modernas, a subjetividade está, por assim dizer, fundida com os
sentimentos, experiências e impressões externas da coletividade. A existência é
geralmente vivida como espera ou motivo de contemplação. O fracionamento da alma e
o sentimento de vazio interior são praticamente nulos, porque ela é preenchida com os
conteúdos da cultura como uma unidade. A consciência de si não se separa dos papéis
que lhe confere a coletividade, e as expressões individuais se restringem à maximização
das possibilidades contidas nesses papéis. A desintegração das estruturas holísticas
significa, ao contrário, a possibilidade de o eu aparecer à consciência como ponto fixo e
abstrato em relação ao qual se sucedem os acontecimentos; constitui uma condição
histórica para o desenvolvimento da consciência transcendental porque (...) [segue-se
aqui uma citação de Simmel] (RÜDIGER, 2002, P. 111)
Tomemos esta questão do pré-moderno: nos parece que a atribuição de tais traços à
subjetividade pré-moderna, e em última instância aos homens e mulheres que viveram antes do
renascimento, é excessivamente ampla e pode conduzir a equívocos.
O caminho que embasa essa atribuição é claro: da caracterização da sociedade prémoderna como holista (DUMONT, 1985) ou coletivista passa-se à idéia de que os homens
seriam
subjetivamente
“coletivizados”, sem espaço de manobra individual e sem
singularidade subjetiva. O mesmo raciocínio poderia ser feito em relação à subjetividade
moderna: individualismo social, logo sujeito como ponto individual livre em relação ao
meio sócio-cultural circundante. Dá-se um salto de uma certa forma de estruturação social
para uma certa forma de estruturação subjetiva como se se tratasse de estruturas homólogas
e semelhantes. Ora, essas duas coisas não são a mesma e as diferenças devem ser levadas
em conta: por mais pressões neste ou naquele sentido que o social exerça sobre os humanos
concretos, há sempre algum espaço de manobra, mesmo que diminuto, que permite a cada
ser humano ser diferente de seus pares. Mesmo nos regimes mais totalitários é abusivo dizer
que subjetivamente há homogeneidade: a subjetividade deve sempre ser pensada em sua
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singularidade, cada caso sendo um caso diferente de todos os outros casos. Como diz um
fabuloso escritor, se referindo ao tema da identidade: “Minha identidade é o que faz com que
eu não seja idêntico a nenhuma outra pessoa” (MAALOUF, 1998, p. 18).
Além disso, uma análise histórica um pouco mais aprofundada dissolve rapidamente
essas grandes caracterizações da subjetividade. Assim, por exemplo, um importante
historiador, examinando uma pequena aldeia medieval francesa, revela a diversidade de
configurações subjetivas que encontramos: na pequena Montaillou, a subjetividade do cura
Pierre Clergue é radicalmente diferente da do pastor Pierre Maury, que é radicalmente
diferente da da Dama Béatrice de Planissoles e assim sucessivamente (LE ROY LADURIE,
1997). Dizer, de modo excessivamente amplo, que o coletivo determina o subjetivo e que o
individual está aderido ao social não é uma descrição adequada da diversidade em jogo.
Em outros termos: saltar de uma certa caracterização do espaço social para uma
caracterização análoga de subjetividade é problemático.
Nota-se assim que o paradigma de análise que contrapõe o sujeito moderno ao pósmoderno (e ao pré-moderno), na medida em que descuida da especificidade da
subjetividade e simplesmente rebate o subjetivo sobre o social, se mostra insuficiente para
dar conta da articulação entre meios de comunicação e subjetividade.
Conceito de sujeito e práticas de subjetivação
Esse modo de explicar que opõe o sujeito moderno ao pós-moderno, além disso,
parece confundir conceitos e categorias cujos campos de aplicação são heterogêneos.
Tomemos como exemplo um caso descrito por Stuart Hall em seu livro “Identidades PósModernas”. Nele, o autor descreve a forma pela qual uma acusação de assédio sexual
dirigida a um juiz negro por sua ex-colega, também negra, repercutiu dentro dos diversos
segmentos que compõem a sociedade americana. Dentre eles, destaca-se o das mulheres
negras, que oscilaram entre apoiar o juiz, por uma questão racial, e atacá-lo, considerando o
fato de também serem mulheres. Hall também comenta a reação dos homens brancos, que
se dividiram entre suas inclinações políticas (afinal, o juiz era um conservador) e suas
posições com relação ao racismo e ao sexismo.
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O autor procurou ilustrar que o sujeito pós-moderno, destituído de uma identidade
“mestra”, única e centrada – que ele associa à modernidade – seria formado por identidades
múltiplas, que se cruzam e se modificam de acordo com o contexto.
O problema é que a experiência concreta desses indivíduos estudados por Hall é
comparada por ele ao conjunto de características atribuídas aos sujeitos criados pela
filosofia na modernidade. Comparam-se abstrações e especulações filosóficas modernas (e,
por que não, idealizações filosóficas) com experiências concretas de seres humanos
encarnados contemporâneos. O deslize está em supor que o conceito de sujeito criado pela
filosofia moderna apresenta um retrato fiel do indivíduo tal como ele se comporta em sua
vida prática, o que permitiria uma comparação com a vida prática de nossos
contemporâneos. Trata-se de uma comparação indevida entre conceitos de sujeito e
práticas de subjetivação (cf. GONÇALVES, 2003).
Enquanto o conceito de sujeito remete para a esfera da abstração filosófica e portanto
às questões específicas que ocupam os pensadores em questão (éticas, estéticas, ontológicas
e gnosiológicas), as práticas de subjetivação se referem à produção de subjetividade e
identidade no dia-a-dia, isto é, na ação concreta de agenciar elementos diversos oferecidos
pelo contexto cultural e pelo ambiente para que se produza uma identidade. Comparar por
exemplo o sujeito cartesiano, que responde à necessidade de Descartes de encontrar uma
base sólida para uma filosofia verdadeira, com a experiência de um adolescente na Internet
(para quem a verdade filosófica não é um problema interessante, para dizer pouco) é
comparar elementos heterogêneos e incorrer em perigo de falha de compreensão.
A distinção entre conceito de sujeito e práticas de subjetivação pode ajudar a evitar
essas confusões. Deve-se, assim, ter em mente essa distinção sempre que buscamos
investigar a subjetividade contemporânea. Ela implica claramente que não podemos
comparar o homem atual com um conceito abstrato de sujeito proposto pela filosofia, mas
sim com o indivíduo comum descrito em sua relação com o contexto cultural e os meios de
comunicação de outras épocas.
Análise de trajetórias de vida
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A partir de tudo o que foi dito acima, afirmamos que para pensar a questão da relação
entre o subjetivo e as tecnologias de comunicação devemos levar em conta minimamente
dois fatores.
Em primeiro lugar, deve-se considerar o fato de que não se pode reduzir a
subjetividade ao social (fato óbvio, mas freqüentemente esquecido). A impossibilidade
dessa redução implica ao mesmo tempo que o subjetivo não é apenas o que dita o social e
que a tecnologia de comunicação não tem sobre a subjetividade uma relação direta de
determinismo (determinismo tecnológico). É importante que se atente, dado um contexto
social, para como os sujeitos, nesse contexto, operam com os elementos disponibilizados
pelo social para construir suas vidas singulares; do mesmo modo, dado um meio de
comunicação, precisamos investigar de que modo sujeitos concretos dele se apropriam,
usando-o diferentemente em suas vidas.
Em segundo lugar, ao definirmos e operarmos comparações entre subjetividades de
diferentes épocas, devemos comparar o comparável, a saber, no que interessa, práticas de
subjetivação atuais com as práticas de subjetivação de outros momentos.
É a partir deste quadro que tentamos aqui propor uma metodologia de análise da
relação entre um dado contexto cultural e seus meios de comunicação e a subjetividade dos
humanos concretos existentes nesse meio.
Nossa proposta passa por uma análise da vida concreta, por uma análise das
trajetórias de vida de sujeitos concretos.
A proposta é que se concentre o estudo nas trajetórias de vida de pessoas
determinadas na esperança de que assim se tenha acesso ao modo como no caso específico
o contexto sócio-cultural e os meios de comunicação são apropriados pelos indivíduos na
construção de suas subjetividades. Esse estudo pode se fazer através de material presente
em biografias, autobiografias, e monografias de historiadores e, tendo como objeto
indivíduos específicos (e não a mentalidade de uma época) forneceria elementos detalhados
para a compreensão dos efeitos das tecnologias de comunicação (quaisquer que sejam) na
subjetividade. Tal análise poderá permitir estudos comparativos acerca das articulações
entre práticas de subjetivação e meios de comunicação em diferentes momentos históricos.
Usemos um exemplo para ilustrar a importância do estudo das trajetórias de vida: ao
estudar o contexto sócio-cultural europeu do século XVI, fica evidente a importância que a
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disseminação da imprensa teve na vida social. Esse fenômeno foi acompanhado de outro,
não menos importante: a popularização da alfabetização. Podemos afirmar com segurança
que a Reforma Protestante teria um destino bem diferente se não fosse por essas novas
tecnologias de comunicação. Do momento fundador do luteranismo – quando Lutero prega
as suas teses na porta de uma igreja – até a prática inovadora dos protestantes de estimular a
leitura da bíblia para desenvolver uma relação mais pessoal com Deus, a Reforma está
profundamente ligada à imprensa e à escrita.
Ora, como compreender os efeitos subjetivos concretos dessa nova tecnologia de
comunicação? O caminho que propomos seria o de seguir a trajetória de alguém que tivesse
vivido naquele momento. O exemplo não foi escolhido ao acaso (trata-se de um estudo que
estamos desenvolvendo): o historiador Ginzburg reconstruiu “o cotidiano e as idéias” do
moleiro Menocchio, perseguido pela Inquisição no século XVI (GINZBURG, 1987). Uma
análise mostra de modo vivo as complexidades da subjetividade de um simples moleiro e as
relações complexas que mantinha com as tecnologias de comunicação de seu tempo,
especialmente os livros (lembre-se que nosso moleiro vive num momento histórico que
sucede de perto a invenção da prensa de tipos móveis). Essa complexidade subjetiva
passaria desapercebida por parte das grandes categorizações do tipo subjetividade moderna.
A metodologia comparativa que ora propomos parte da premissa exposta no
exemplo acima. A idéia é selecionar alguns sujeitos concretos de diferentes contextos
histórico-culturais e tentar apreender, através da análise da trajetória da vida desses sujeitos,
de que modo os meios de comunicação então operantes participam na construção da
subjetividade. Como o objetivo final de tal metodologia é criar uma base de comparação
para com a contemporaneidade, é essencial selecionar sujeitos que viveram antes do
momento atual, seja no que se denomina Modernidade, seja no que se denomina Idade
Média.
Apesar da ênfase estar no estudo de trajetórias de vida individuais, uma parte
importante da metodologia reside no estudo do contexto sócio-cultural no qual os
indivíduos se inserem, com ênfase nos meios de comunicação. A análise de tal contexto
deve levar em conta diversos e heterogêneos elementos: configurações de espaço-tempo
(organização geográfica, distinções entre espaços público e privado etc.), religião,
economia / produção, política e relações sociais de poder, formas de vinculação social
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(organização das relações sociais e afetivas entre os indivíduos), comportamentos e práticas
de si, aspectos culturais amplos englobados na tríade filosofia, ciência e arte, imaginário
social. Esse mapeamento geral do contexto deve servir de base para a compreensão do
modo com o sujeito estudado agenciou esses diversos elementos na produção de sua
própria subjetividade.
É evidente que deve ser feita também uma analise detalhada dos diversos meios de
comunicação presentes no contexto do sujeito cuja trajetória de vida se analisa, tomando
meios de comunicação num sentido geral que contempla todos os meios que façam circular
informação, o que pode incluir, por exemplo, no caso da Idade Média, vitrais.
O estudo das trajetórias de vida aqui proposto deve então percorrer o seguinte caminho:
em primeiro lugar, uma análise do contexto em que os sujeitos selecionados viveram, com
especial atenção para os traços gerais acima destacados. Em seguida, um estudo dos meios de
comunicação presentes no contexto de vida dos sujeitos selecionados. Por fim, uma análise
detalhada das trajetórias de vida dos sujeitos no sentido de se determinar de que modo o
contexto cultural e os meios de comunicação presentes são agenciados, amalgamados pelos
sujeitos constituindo sua subjetividade. Tal análise poderá se valer, como indicamos, de
autobiografias, biografias, diários, monografias de historiadores etc.
Um estudo como o que estamos propondo deve ser feito com uma série de cuidados que
não discutiremos aqui. Destacamos apenas a questão do cuidado na escolha dos sujeitos a
serem analisados, já que uma boa escolha de sujeitos é essencial para o sucesso da pesquisa. A
seleção dos sujeitos analisados deve levar minimamente em conta: o interesse do contexto
cultural (o século XVI europeu, por exemplo, dada a invenção da imprensa e seus primeiros
efeitos, é um contexto relevante do ponto de vista da comunicação); a representatividade do
sujeito em relação ao conjunto da população (procuramos sujeitos “médios” e não visionários
ou sujeitos excepcionais); a disponibilidade de material que possibilite a reconstrução da
trajetória de vida e uma compreensão da subjetividade em jogo (biografias, autobiografias,
monografias de historiadores etc.).
Conclusão
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A análise de trajetórias de vida poderá servir de base para uma crítica da idéia de uma
homogênea subjetividade moderna/pós-moderna e também de uma homogênea subjetividade
pré-moderna. Critica-se, conseqüentemente, a oposição entre essas diferentes formas de
subjetividade como paradigma adequado para a compreensão das complexas relações entre
tecnologia de comunicação e subjetividade.
O trabalho com trajetórias de vida evita, além disso, o rebatimento direto da estrutura
social sobre as formas subjetivas. Tal rebatimento, no que despreza a distância que existe entre
a subjetividade e o contexto sócio-cultural, inviabiliza uma boa compreensão dos processos em
ação.
Num momento em que a questão da materialidade da comunicação é retomada, a análise
das trajetórias de vida pode ajudar a contextualizar toda a temática do determinismo
tecnológico, mostrando que se deve sempre levar em conta o modo como a tecnologias (de
comunicação, no caso) são apropriadas pelos sujeitos concretos.
Uma dificuldade que pode surgir ao longo de um estudo como o aqui proposto é a de
propor generalizações com base na análise de biografias individuais. Ora, a simples constatação
da impossibilidade de generalizações nesse campo já seria um resultado importante, apontando
para a irredutibilidade do subjetivo ao contexto e portanto para a ineficácia das grandes
caracterizações epocais nos estudos da subjetividade.
Finalmente, a metodologia proposta neste artigo possibilita o estabelecimento de uma
ponte entre os estudos de comunicação e os de história, na esperança de que o campo da
comunicação, num momento em que os textos se marcam por um caráter cada vez mais
ensaístico (o que por vezes, no tempo em que vivemos, pode ser negativo), possa se beneficiar
e obter um ganho em termos de dados palpáveis e que possam ser discutidos mais
objetivamente. Acreditamos que, operando com a base empírica das trajetórias de vida, temos
um solo consistente que nos afasta de uma tendência de abstração excessiva que por vezes leva
a textos por demais imaginativos.
Peter Burke e Asa Briggs, falando de um livro sobre história da mídia, assim se
expressam: “O objetivo deste livro – sobre tema vasto e em contínua expansão – é mostrar a
importância do passado em relação ao presente, trazendo a história para o interior dos estudos
de mídia, e a mídia para dentro da história” (2004, p. 11). Trabalhamos no mesmo sentido.
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Referências Bibliográficas
BURKE, Peter e BRIGGS, Asa. Uma história social da mídia: de Gutenberg à Internet. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. O cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela
Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987
GONÇALVES, Márcio Souza. Comunicação, Cultura e Subjetividade. Paper apresentado no congresso
COMPOS, da Associação dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação, GT Comunicação e
Cultura, 2003
_______________________. Elementos para uma análise da articulação entre comunicação, cultura e
subjetividade. Paper já aceito para apresentação no congresso COMPOS, da Associação dos Programas
de Pós-Graduação em Comunicação, GT Comunicação e Cultura, em 2004
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2002
MAALOUF, Amin. Les identités meurtirères. Paris: Grasset, 1998
RÜDIGER, Francisco. Elementos para a crítica da cibercultura – sujeito, objeto e interação na era das
novas tecnologias de comunicação. São Paulo: Hacker Editores, 2002
SCHOPENHAUER, Arthur. Metafísica do Belo. São Paulo: Editora UNESP, 2003
SILVA, Tomaz Tadeu da (org). Antropologia do ciborgue. Belo Horizonte: Autêntica, 2000
TURKLE, S. A Vida no Ecrã. A Identidade na era da internet. Lisboa: Relógio d’Água, 1997
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