A PARÓDIA COMO RECURSO SATÍRICO EM DOIS ROMANCES
DE MÁRCIO SOUZA
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Jôse Alves de Jesus ; Maria Jardenia de O. Silva Bastos 2 ; Rejane Cristina Rocha 3
RESUMO
Neste artigo, tivemos como objeto de estudo duas obras do escritor amazonense Márcio
Souza, Galvez, imperador do Acre e A resístivel ascensão do Boto Tucuxi. Nosso estudo foi
realizado tendo como embasamento teórico alguns críticos da sátira. Percebe-se como o
projeto anti- utópico da sátira se revela, na construção e na economia narrativa. A ficção
retoma a história e os fatos passados tendo como recurso a comicidade e suas ramificações,
tais como a sátira, a ironia, a paródia, a carnavalização, a caricaturização e o rebaixamento. O
objetivo satírico presente nas obras é questionar o que poderia ser, é tentar corrigir os defeitos,
tendo em vista a norma que, se cumprida levaria ao melhor.
PALAVRAS CHAVES: romance, sátira, ficção.
INTRODUÇÃO
Ao elaborarmos este artigo sobre a sátira e suas configurações nos romances Galvez
imperador do Acre e A resistível ascensão do Boto Tucuxi de Márcio Souza, decidimos fazer
uma breve apresentação sobre os recursos cômicos utilizados pelo autor na construção das
narrativas.
A sátira, a ironia, a caricatura e a paródia são ramificações da comicidade, as quais
foram empregadas na construção das obras acima citadas. O termo sátira é complexo, pois
segundo Fantinati (1999, p. 205), no Brasil os estudos satíricos são limitados, para não dizer
“desconhecidos”, visto que “no Ocidente a crítica e a pesquisa literária sobre o assunto é
recente”.
Fantinati (1999) afirma que a sátira é rejeitada literariamente pelo fato de comportar
temas-tabus, que são excluídos “pelos gêneros artísticos tidos como elevados”, já que tem um
vocabulário que choca, podendo até mesmo chegar ao obsceno, o que a afasta dos três gêneros
tradicionais (épico, lírico e dramático).
Nas obras, pode-se perceber que o autor utilizou os três elementos inseparáveis que a
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Bolsista PBIC/UEG (Curso de Letras Unidade Universitária de São Luís de Montes Belos – UEG)
Bolsista PBIC/UEG (Curso de Letras Unidade Universitária de São Luís de Montes Belos – UEG)
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Pesquisadora/Orientadora (Curso de Letras Unidade Universitária de São Luís de Montes Belos – UEG)
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sátira exige para se constituir e que, segundo Fantinati (1999, p. 206-207) são: o ataque
agressivo, a norma e a indireta. O ataque agressivo ocorre como resultado “da irritação, ódio,
raiva ou agressividade” despertados no sujeito através da “hipocrisia, do vício, da falsidade”
que corrompem o indivíduo e a sociedade.
Quanto à norma, esta tem a função de corrigir, de modificar os costumes, e para que
isso aconteça é necessário que se conheçam as normas vigentes e históricas da sociedade que
o autor retoma para satirizar.
E, finalmente, o terceiro e último elemento, a indireta, que é utilizada pelo satirista
para fazer a sua crítica, recorrendo ao discurso ficcional impregnado de comicidade.
A paródia é o principal recurso utilizado pelo autor Márcio Souza para a construção
das narrativas, pois as obras foram escritas a partir de fatos históricos tidos como
“verdadeiros”. Segundo Propp, (1992, p. 85), “a paródia representa um meio de
desvendamento da inconsistência interior do que é parodiado”. Esse desvendamento a que
Propp se refere está explicitado na Pós- modernidade, pois a história é recontada de outro
modo, não como os historiadores a escreveram, já que há aí uma subversão do que já foi dito.
De acordo com Linda Hutcheon (1991, p. 147), “a ficção pós-moderna sugere que
reescrever ou reapresentar o passado na ficção e na história é - em ambos os casos – revelá- lo
ao presente, impedi- lo de ser conclusivo e teleológico”. Assim, Márcio Souza, ao escrever as
duas obras citadas acima, reapresenta o passado dentro da ficção, de forma que o mesmo não
fique como único meio histórico e conclusivo dos fatos apresentados, mas possa ter sua
legitimidade questionada pelo leitor.
1 – A presença da paródia na obra Galvez, o imperador do Acre.
A ficção retoma a história e a reconstrói de forma que o discurso oficial passa a ser
questionado podendo ficar à margem da “verdade”. Verdade esta que, segundo Linda
Hutcheon (1991 p. 146), deve ser questionada, pois “a ficção e a história são narrativas que se
distinguem por suas estruturas (ver B. H. Smith 1978), estruturas que a metaficção
historiográfica começa por estabelecer e depois contraria, pressupondo os contratos genéricos
da ficção e da história”. Ficção e história se mesclam com o intuito de levar ao conhecimento
do leitor o outro lado da história. Dessa forma, o autor lança mão de uma arma poderosa que é
a literatura, para recontar a história, observando de todos os ângulos o que poderia ter
acontecido e não foi divulgado, tendo também como recurso cômico, a paródia.
O autor apresenta a obra como sendo “um livro de ficção onde figuras da história se
entrelaçam numa síntese dos delírios do extrativismo” (SOUZA, s/d, contra-capa). Márcio
Souza em um depoimento biográfico expõe o seu pensamento sobre a produção do livro, e
deixa claro que a intenção do autor é “retirar a história das mãos da ideologia oficial”, isto é,
transformar a história em ficção, como forma de denúncia sócio-econômica no que se refere
ao extrativismo.
A história que a ficção retoma refere-se à independência do Acre e ao extrativismo de
borracha das seringueiras do Amazonas. Esta tem personagens avalizadas pela historiografia,
como o governador do Amazonas, Ramalho Júnior, um dos maiores interessados na conquista
do território acreano, que incentivou e financiou a Revolução liderada por Galvez, usando-o
como testa-de-ferro.
A ficção retoma a obra Formação histórica do Acre (1979), documentada por Leandro
Tocantins e a reconstrói utilizando elementos satíricos como arma de destruição dos valores
elementares da sociedade e da política. Nela, o historiador relata os acontecimentos sobre a
“verdadeira” história da Independência do Acre. Nesta obra, Galvez, a personalidade, é
considerada a personagem central do caso do Alto Acre.
Em Galvez, imperador do Acre (SOUZA, s/d), Márcio Souza satiriza a personalidade
fazendo a inversão de figuras: se Galvez personalidade é heroicizado, Galvez personagem é o
seu “avesso”, é o pervertido e depravado que só se preocupa com sua satisfação pessoal.
Dessa forma, a reconstrução da narrativa tem como objetivo desvelar os fatos
ocorridos, não só com o intuito de provocar o riso, mas também de corrigir, de mudar a norma
vigente, afinal este é um dos objetivos da sátira.
O principal recurso cômico utilizado pelo autor para escrever a obra é a paródia, pois
ela retoma o tema histórico para perverter e desconstruir o que já havia sido dito pelo discurso
oficial. A história é recontada de forma irônica e satírica. O autor usa elementos satíricos para
descrever o percurso de Galvez antes de chegar ao Brasil e durante sua estadia aqui. A
compreensão da paródia exige um conhecimento profundo do leitor a respeito dos temas
analisados. Afinal, a paródia é a reconstrução de uma forma literária que está em crise, está
ultrapassada.
Um exemplo típico de paródia é a personagem Joana que é baseada na história de
Joana D’arc. No capítulo intitulado “Política de Montesquieu”, Joana é retratada mais uma
vez como uma figura alegórica do projeto ideológico da busca utópica por um mundo melhor.
Ela se envolve de tal maneira com as pessoas daquele lugar que se esquece de si mesma.
Joana era a líder guerrilheira de que Galvez precisava, ela se antepunha à frente da batalha
para impedir a deposição do Imperador Galvez.
A heroína do século XIX” Joana “D’arc” foi eliminada tentando salvar o Império.
Figura única que acreditava na possibilidade e na existência de um mundo melhor,
seu projeto utópico não passou de uma utopia, visto que Galvez “lamentou e
glorificou seu gesto inútil (GALVEZ, s/d, p. 218).
O exército de Galvez era composto por “estudantes eternos, vagabundos crônicos,
poetas inéditos, ovelhas-negras de boas famílias, advogados chicanistas”(GALVEZ, s/d, p.
144). Uma espécie de exército que não venceria nenhuma revolução, pois como disse o
próprio Galvez, “se minha tropa fosse obrigada a usar arma de fogo, não saberia por qual
extremidade do fuzil a bala iria sair”(GALVEZ, s/d, p. 144).
Nessa passagem existe uma inversão cômica do que deveria ser um exército de
verdade, o autor desconstrói o discurso formado a respeito de uma organização militar através
da paródia. Os soldados de Galvez são a escória da sociedade, pessoas que não têm a menor
capacidade de vencer uma batalha, muito menos uma guerra. Há aí a presença da
desconstrução da narrativa tida como oficial. A única coisa que exército de Galvez conseguirá
provocar nas pessoas, será o riso.
2 – A presença da paródia na obra A resistivel ascensão do Boto Tucuxi.
Márcio Souza aproveita-se do texto alemão A resistível ascensão de Arturo Ui, de
Bertolt Brecht, publicado em 1941, para fazer uma nova leitura da passagem da ditadura
militar em Manaus, procurando recuperar a ascensão do populismo na Amazônia. Portanto
amparado no texto de Brecht, Márcio introduz a lenda do Boto Tucuxi. A apropriação da
lenda no texto brasileiro apresenta o protagonista, Boto Tucuxi, em dois planos. No plano
político a ascensão é objeto de contestação, no plano sobrenatural, marca de sua trajetória
mítica, seus encantos parecem mesmo irresistíveis.
A paródia, disseminada em toda a obra, apresenta-se, algumas vezes, de forma mais
pontual e mais declaradamente ridicularizadora, como ocorre com a Carta-testamento de
Getúlio Vargas, que é retomada pelo narrador para compor uma outra Carta-testamento,
escrita pelo prefeito Cabeleira, no intuito de explicar o motivo de sua renuncia.
A carta-testamento de Cabeleira dizia o seguinte:
Infames sacripantas. Mais uma vez as forças e os interesses contra o povo
coordenaram-se para desencadear um assalto ao que tenho de mais sagrado. Não me
acusam, purgam-me. Não me combatem, me empurram sem meios de defesa para o
sanitário. Sufocam a minha voz com poderosas convulsões nos meus intestinos, para
que eu não possa defender, como sempre, o direito dos trabalhadores humildes. Mas
a infâmia que atinge a fauna do meu cólon não impedirá a minha ação. Ah!
Bandidos de uma figa! Não querem que os trabalhadores sejam livres, mas é por eles
que nesse momento sacrifico o meu esfíncter. Quando a fome bater em vossa porta,
sentireis meu duodeno sofrendo ao vosso lado. E cada desastrosa flatulência e
manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo com as minhas
cólicas. E aos que pensam que me derrotaram respondo com esta agonia inglória.
Fui escravo dos trabalhadores e hoje definho para a vida eterna. Mas os
trabalhadores de quem fui escravo não serão mais purgante de”. ninguém. Lutei
bravamente até o fim e enfrentarei ousadamente o frio suor que se apossou de minha
testa. Eu vos dei a minha vida e agora vos dou o primeiro passo para dentro do
sanitário e saio da cama para entrar no banheiro (SOUZA, 1982, p. 104).
Após ler a carta-testamento de Cabeleira, veja alguns trechos da carta-testamento de
Getúlio Vargas à sociedade brasileira em meados de 1964.
Mais uma vez, as forças e os interesses contra o povo coordenaram-se novamente e
se desencadeiam sobre mim. Não me acusam, insultam; não me combatem,
caluniam e não me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir
a minha ação, para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e
principalmente os humildes. Sigo o destino que me é imposto...Fiz-me chefe de
uma revolução e venci. Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de
liberdade social. Tive de renunciar. Voltei ao governo nos braços do povo... Quis
criar liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobrás.
Não querem que o trabalhador seja livre. Não querem que o trabalhador seja
independente...tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma
pressão constante, tudo suportando em silêncio para defender o povo que agora se
queda desamparado. Nada mais vos posso dar não ser meu sangue. Se as aves
querem o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida. Escolho este meio
de estar sempre ao vosso lado.. Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será
a vossa bandeira de luta. Cada gota do meu sangue será uma chama imortal na vossa
consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo com
o perdão...e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse de quem fui escravo não
mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu
sangue terá o preço do seu resgate.
Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado
de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calunia não abateram meu ânimo. Eu vos dei
a minha vida. Agora ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o
primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História.
É possível notar que há uma relação intertextual da Carta-testamento de Cabeleira com
o texto parodiado, que é a Carta-testamento de Getúlio Vargas, ou seja, há uma inversão no
sentido do texto. Veja como Getúlio Vargas se despede no final de sua carta: “Serenamente
dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na historia”; agora
observe como Cabeleira termina a sua carta: “Eu vos dei a minha vida agora vos dou o
primeiro passo para dentro do sanitário e saio da cama para entrar no banheiro”. É possível
notar como Márcio Souza brinca com as palavras e com o significado das mesmas, o autor
utiliza as palavras de Getúlio para poder construir a sua carta, ou seja, o que há é uma
apropriação do discurso de Getúlio.
Além da carta-testamento há falas de Getúlio parodiadas na narrativa, essas são
utilizadas em alguns momentos em que o Boto Tucuxi dá seu discurso, apresentando-se ao
povo como o pai dos pobres, aquele que acabara com a pobreza. Ainda é importante falar que
o autor Márcio Souza, além do que já foi dito, paródia as situações, fatos e acontecimentos de
diferentes contextos históricos.
CONCLUSÃO
Para a sátira, a paródia é um dos recursos indispensáveis, pois é uma forma eficaz para
distorção e inversão, seja do seu alvo de crítica ou do texto parodiado. Além disso, ela sempre
aponta para aquilo que quer negar. A paródia tem o poder de aniquilar e destruir a unicidade
de qualquer coisa. Ela sugere sempre uma renovação e reflexão do que já foi produzido ou
dito, de modo que seja feita uma abertura para o futuro. Portanto, a paródia é resultado da
transgressão e da ruptura com o já estabelecido e com a produção do passado, sendo a
abertura para a produção futura, o seu fruto.
Com efeito, Márcio Souza mostra a preocupação política que percorre seu fazer
literário, ele se empenha em revelar a falsidade da história oficial e elabora, através da criação
artística, uma crítica a esta sociedade hipócrita que permite a ascensão de homens
inescrupulosos ao poder.
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Acessado 22/09/2005
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