TERROR, IMAGEM
E SUBJETIVAÇÃO
Jô Gondar*
• Através dos reality shows ou das imagens de violência a mídia promete
a visibilidade completa, como experiência direta do real. Esta experiência
é associada ao trauma e aos imperativos totalizantes, imperativos que
predominam hoje no campo político e/ou subjetivo. O artigo trabalha a
relação entre trauma, fascínio e hipnose, bem como a possibilidade de
resistir, pela via da imagem, à destituição do olhar que a visibilidade total
promove.
> Imagem - Espetáculo - Terror - Trauma - Subjetividade - Olhar
A análise da sociedade do espetáculo, realizada por Guy Debord
há trinta anos, ganha hoje novos matizes. Na mídia, o espetáculo
aparece principalmente sob duas formas que só aparen­temente são
contraditórias: cultiva-se, por um lado, o catastrófico, o evento único,
inesperado e assustador como maneira de despertar nosso interesse
ou sensibilidade – terrorismo, violência, trans­gressão, excesso; por
outro, promove-se a banalidade sem glamour dos reality shows e da
miséria cotidiana, através de imagens que nos mostram justamente
aquilo que não se destaca como único, que não se singulariza. Que
elemento comum haveria entre essas duas formas de espetáculo?
Seriam elas expressão de uma mesma von­tade? Em caso afirmativo,
que formas de subjetivação esta vontade produz? E de que maneira
elas se constituem?
Há, decerto, uma ligação íntima entre as imagens de violência ou de catástrofe e aquelas que são veiculadas num reality show.
Ambas expressam aquilo que Badiou identificou como a vontade
1 principal do século XX: a paixão pelo real . Em contraposição ao
*Professora Adjunta do Depto. Filosofia e Ciências Sociais e do Mestrado em
Memória Social (UNIRIO). Psicanalista.
Lumina - Juiz de Fora - Facom/UFJF - v.6, n.1/2, p. 15-30, jan./dez. 2003
ISSN 1516-0785
15
Jô Gondar
século XIX, movido por ideais científicos, utopias políticas, projetos de eman­cipação de toda ordem, o século XX teria se desfeito dos
enganos que envolviam esses projetos para buscar o núcleo mais duro
da existência, identificado com a verdade nua e crua. O olhar não mais
investiria a realidade socialmente construída, mas estaria siderado pela
experiência direta do real. No que diz respeito à sexualidade, a paixão
pelo real é claramente visível: as imagens com as quais somos acossados
não realçam os jogos de sedução e as fantasias eróticas, mas expõem
o real do corpo, mostrado agora sem jogos ou véus. Há quase cem
anos, Artaud havia dito que para se chegar ao osso era preciso arriscar
perder a carne. Não imaginou que sua proposta trágica pudesse se
transformar em palavra de ordem, o osso não mais sendo visto como
figura da densidade vital, mas como dureza da violência pura, da vida
nua e desqualificada ou da banalidade corpórea de todos nós.
A pós-modernidade não se fartou de denunciar e desconstruir
aquilo que se convencionou chamar de realidade. Hoje todos sabem
que a realidade é uma construção subjetiva – individual ou coletiva
– que ela é tecida por representações imaginárias e/ou simbólicas, que
essas representações são contingentes e apoiadas em crenças. O registro
imaginário foi apontado como campo de ilusões enganosas e as autoridades simbólicas – que até então sustentavam a estru­turação social e
subjetiva, garantindo a existência de uma lei e uma verdade universais
– foram expostas em sua face derrisória. Mas se a pós-modernidade
denunciou a dimensão ficcional de toda realidade, ela não se desfez
do anseio por uma garantia, por uma verdade que não fosse ficcional.
A garantia perdida estaria hoje sendo buscada na experiência imediata
do real, um real sem sentido, mas considerado ainda um terreno firme, último reduto da verdade. Como se ainda pudéssemos manter,
mesmo que pelo avesso, a idéia de uma verdade universal, escondida
por sob as camadas enganadoras da realidade. Chegaríamos, então,
ao osso das coisas – ou à coisa em si – pela violência, pela catástrofe,
pelo excesso, tal como aqueles indivíduos que se cortam ou se ferem
numa tentativa de recuperar o sentimento de existência real.
Ora, poderia se argumentar, se esta espetacularização do real se
dá por meio de imagens, sejam elas catastróficas ou banais, é ainda
16
Lumina - Juiz de Fora - Facom/UFJF - v.6, n.1/2, p. 15-30, jan./dez. 2003
ISSN 1516-0785
Terror, Imagem e Subjetivação
de uma mediação que se trata; a mídia não nos ofereceria um real
imediato, mas uma perspectiva imagética da realidade. Todavia, há
nessas imagens um anseio pela literalidade extrema: são imagens
desprovidas de imaginário, ou melhor, imagens que não convocam
o imaginário de quem as vê. Seja por sua banalidade árida, seja por
seu caráter violento e excessivo, aquele que vê não é capaz de integrar essas imagens em sua própria realidade, a elas conferindo um
sentido. É nessa linha que Zizek escreve, a respeito das imagens da
explosão do World Trade Center: “Não foi a realidade que invadiu a
nossa imagem: foi a imagem que invadiu e destruiu a nossa realidade
(ou seja, as coordenadas simbólicas que determinam o que sentimos
2 como realidade)” . Entretanto a banalidade também é violenta: cercado por imagens destituídas de singularidade, o sujeito vê impedida
a sua própria possibilidade de singularização, o que resulta em um
sentimento de irrealidade ou de inutilidade. As imagens nas quais
o sujeito não encontra lugar para o seu próprio imaginário, devido
à sua violência extrema ou à invasão de clichês, conduzem ao que
Benjamin denominou perda da experiência, e que Deleuze chama
de fechamento dos possíveis.
Pela aridez ou pelo excesso, a paixão pelo real associa-se a uma
falha brutal na possibilidade de criar crenças ou possíveis. Não acreditamos mais no possível e perdemos o gosto de inventá-lo. Tampouco
acreditamos no que nos acontece, já que nada parece poder acontecer.
3
Aqui poderíamos parafrasear o ditado: “Ver para não crer” .
De fato, a produção maciça de imagens que buscam a literalidade
ou o extremo “realismo” termina por dessensibilizar os espectadores,
reduzindo a dinâmica subjetiva, individual ou coletiva, à imobilidade.
Um sujeito exposto a este excesso de realidade, a essa violência onipresente, vê-se obrigado a mobilizar todo o seu aparato psíquico para
dela defender-se. Nesse momento, o psiquismo paralisa a sua atividade
associativa e criativa, capaz de transformar o vivido em experiência:
toda energia que poderia alimentar o jogo entre imagem e produção
de imaginário é despendida na tentativa de manter, em algum nível,
a sobrevivência subjetiva diante da catástrofe.
A subjetivação traumática
Lumina - Juiz de Fora - Facom/UFJF - v.6, n.1/2, p. 15-30, jan./dez. 2003
ISSN 1516-0785
17
Jô Gondar
Na teoria psicanalítica, o evento catastrófico é aquele que provoca
um trauma, definido por Freud como “uma experiência que, em um
curto período de tempo, aporta à mente um acréscimo de estímulo
4
excessivamente poderoso para ser manejado ou elaborado (...)” .
Trata-se de um problema de economia psíquica; o tom afetivo da
experiência excede a tolerância de um sujeito que vê-se, assim, incapaz de elaborar psiquicamente os estímulos, fornecendo-lhe um
sentido. É durante a Primeira Guerra que Freud se depara com a
disseminação do fenômeno: os soldados retornam fixados em algo
que vivenciaram, mas que não conseguem integrar subjetivamente.
São lembranças que não se inscrevem no conjunto da memória, imagens literais e congeladas que não se inserem numa cadeia asso­ciativa,
impossibilitando os sujeitos de falarem sobre o que lhes ocorreu.
É desse modo que Freud vê configurar-se uma neurose traumática, denominação que não foi por ele inventada, mas repen­sada a
partir da psicanálise. Até então, a neurose traumática era considerada
como decorrente de acidentes, em geral sofridos nas ferrovias ou
nas fábricas. Com a guerra esta patologia se propaga, e Freud observa que sua causa não reside nos acidentes ou aconte­cimentos em
si mesmos, mas no modo pelo qual o psiquismo é afetado quando
um limiar de excitação ultrapassa a sua possibilidade de dominá-lo.
Chama sua atenção os sonhos recorrentes dos indivíduos acometidos
de neurose traumática; ao invés de realizar desejos ou buscar prazer,
esses sonhos buscam repetir a vivência do trauma. A partir disso,
Freud teoriza uma compulsão à repetição que funciona para além do
princípio do prazer: ainda que desprazerosa, a repetição compulsiva é
uma tentativa de enfrentar mais uma vez a situação traumática visando
elaborá-la e integrá-la ao psiquismo. Ao modo de Sísifo, busca-se dar
sentido ao que não tem sentido.
Contudo, o que Freud pôde perceber nos soldados austríacos
que retornavam da Primeira Guerra iria se radicalizar na Segunda,
entre os sobreviventes dos campos de extermínio. Como fornecer
sentido a uma vivência de terror que aniquila a condição de sujeito?
Uma situação narrada por Appelfeld é, a este respeito, exemplar.
Conversava ele com um homem que havia sido, ainda adolescente,
18
Lumina - Juiz de Fora - Facom/UFJF - v.6, n.1/2, p. 15-30, jan./dez. 2003
ISSN 1516-0785
Terror, Imagem e Subjetivação
estuprado pelos soldados nazistas. Você se lembra dessa cena com
freqüência?, pergunta-lhe Appelfeld. Há quarenta e cinco anos, lhe
5 diz o homem, eu não me lembro de outra coisa . Esta imagem conge­
lada, lembrança enquistada na memória, seria acompanhada de uma
inibição generalizada da atividade criativa do indivíduo, como se ele
se encontrasse ainda sob o efeito do afeto paralisante que o trauma
lhe provocou.
É neste afeto – o terror (Schreck) – que Freud verá o fator
deter­minante da neurose traumática. Diferentemente do medo, que
circunscreve o perigo em um objeto preciso; e da angústia, sinal
produzido quando ameaça se repetir uma vivência de perigo, o terror
pode ser definido como efeito de surpresa num indivíduo despre­
6
parado para a irrupção de um acontecimento . Por despre­parado,
entenda-se: desamparado. Na medida em que o aparato psíquico
não é capaz de dominar este excesso que o acossa, o indivíduo vê-se
tomado por uma sensação de desamparo e estra­nheza. O transborda­
mento de estimulações lhe imporia a idéia de algo fatídico e inescapável
que o subjuga, e diante do qual ele se encontra inerme.
Este mesmo desamparo diante de forças que lhe pareciam supe­
riores às suas teria conduzido os indivíduos a buscarem garantias
– deuses, leis, autoridades simbólicas. Freud supõe que a instituição
de garantias seria condicionada pela condição de desamparo do homem, que delas necessitaria como alicerce para a edificação de suas
crenças. Assim, a crença fundamental do mundo moderno, sobre a
qual teria se erigido todo um edifício imaginário e fantasmático, é a
de que “sobre cada um de nós vela uma Providência benevolente que
só aparentemente é severa e que não permitirá que nos tornemos
7
um joguete de forças poderosas e impiedosas (....)” . Ora, o que um
sujeito vivencia ao se ver reduzido a um joguete de forças poderosas
e impiedosas é justamente a situação traumática. Dá-se uma situação
de pane psíquica, na qual o desejo é impedido de constituir-se ou
de expressar-se. A autoridade simbólica seria, ilusoriamente, uma
instância que protegeria do trauma, passível agora de ser definido
como aniquilação do desejo.
Seríamos injustos com Freud se não marcássemos a sua denúncia
Lumina - Juiz de Fora - Facom/UFJF - v.6, n.1/2, p. 15-30, jan./dez. 2003
ISSN 1516-0785
19
Jô Gondar
em relação à existência de garantias. Entretanto, essa denúncia só
tinha sentido pelo fato de Freud ter vivido numa época na qual era
possível se crer num céu ou numa lei que nos protege. Em contrapar­
tida, nossa época é a da falência da autoridade simbólica e do campo
imaginário por ela sustentado. Embora tenhamos deixado de crer
nessas figuras de autoridade, deslocamos a busca de garantias para
um outro registro: o real. Mas esse real é traumático. Eis, então, o
paradoxo: a paixão pelo real pretende utilizar como âncora aquilo que
desfaz as possibilidades de acoramento; no limite, visa-se a proteção
de quem bate a nossa carteira. Trata-se aí de uma outra estratégia
diante do desamparo: ao invés de instituir deuses e regras, instâncias
capazes de mediar a relação entre os homens, busca-se a realização
direta do real como sinal de autenticidade. Desse modo, aquilo que
até então se produzira em situações de exceção – a subje­tivação
traumática – tornou-se hoje regra geral. A exposição rotineira à
violência e ao excesso, associada à falência dos alicerces simbólicos,
produz a vulnerabilidade psíquica ao trauma que marca as configu­
rações subjetivas contemporâneas. Como poderíamos pensá-las?
8 A crueldade e a regra
Há uma instância psíquica que aparece hipertrofiada nos modos
contemporâneos de subjetivação. Trata-se do supereu, instância que
faz liame entre a esfera individual e a coletiva, representando no
psiquismo as regras que organizam as relações sociais. O que ocorre
quando a lógica que preside a constituição dessas regras se modifica?
Inevitavelmente, o supereu apresentará um outro tipo de funciona­
mento. A passagem de uma forma social baseada em proibições e
interdições simbólicas bem definidas para uma outra, como a nossa,
calcada na incitação ao real, incrementa a produção de uma vertente
superegóica que parece contradizer os seus propósitos de proteção.
Quanto a estes, Freud já havia indicado a sua importância enquanto
barreira contra o trauma. Assim, definiu a situação traumática como
aquela em que o eu se vê “abandonado pelo supereu protetor, de
modo que ele não dispõe mais de qualquer salvaguarda contra os
9
perigos que o cercam” . O problema é que, sob determinadas condi­
20
Lumina - Juiz de Fora - Facom/UFJF - v.6, n.1/2, p. 15-30, jan./dez. 2003
ISSN 1516-0785
Terror, Imagem e Subjetivação
ções, não apenas o eu se vê abandonado pelo supereu como este
último se torna a própria fonte dos perigos. Vejamos este paradoxo
com mais detalhes.
Em sua vertente clássica, o supereu teria por função estabelecer limites a uma satisfação pulsional desregrada, trabalhando
simultanea­mente para o equilíbrio social (pela obediência às leis que
regulam as relações entre os homens) e para o equilíbrio psíquico
(ao levar em conta os mecanismos de regulação que obedecem ao
princípio do prazer). Todavia, em determinadas situações este agente da lei no psiquismo seria capaz de assumir uma função oposta,
exibindo uma feição sádica. É com este paradoxo que Freud se defronta em O mal-estar na cultura (1930): aqueles que mais se submetem
aos mandamentos sociais são os que, surpreendentemente, mais se
sentem culpados. Um excesso de submissão às regras, ao invés de
aplacar o supereu, poderia torná-lo ainda mais rigoroso: nesse caso, o
supereu gozaria do sofrimento que impinge, exigindo uma satisfação
sem freios ao invés de inibi-la. Ao ser imposta – ou obedecida – de
maneira totalizante, a lei não deixa espaço de negociação entre sua
pretensa universalidade e as inclinações particulares dos que a ela
se submetem. Sem margem para o desejo, a lei superegóica torna-se
sádica, incitando o desregramento, a crueldade e a violência.
Não por acaso, Freud sugeriu uma homologia entre os mandamentos do supereu e o imperativo categórico de Kant, imperativo
que leva às últimas consequências a obediência à lei. É com relação
à vertente cruel do supereu que poderíamos considerar essa homologia pertinente. Kant quer pensar uma lei que não esteja fundada
na idéia de bem, mas que valha por si mesma, não tendo outra fonte
nem outro objetivo senão a realização de sua pura forma universal.
É o que ele nos propõe sob o nome de imperativo categórico: guio
minhas ações deste modo porque é assim que devo guiá-las, sem
esperar disso qualquer prazer ou qualquer bem; ajo de maneira que
a máxima da minha vontade possa valer, ao mesmo tempo, como
princípio de legislação universal. Aqui a lei não visa o bem-estar, o
prazer, nem garante qualquer recompensa ou proteção para quem a
ela se assujeita: ela deve simplesmente ser obedecida, sem nenhuma
Lumina - Juiz de Fora - Facom/UFJF - v.6, n.1/2, p. 15-30, jan./dez. 2003
ISSN 1516-0785
21
Jô Gondar
negociação ou consideração pela subjetividade ou pelas inclinações
particulares. Ao contrário: ela implica o aniquilamento da singularidade e do desejo, como se o homem pudesse ser uma máquina de
obediência, tendo como sua única vontade a vontade da Lei.
Pretendendo defender uma moralidade pura e a pura forma da
lei, a proposta de Kant é, ironicamente, sádica. Essa denúncia já teria
sido realizada por Adorno e Horkheimer e por Lacan – que propõe
um paralelo entre o imperativo categórico e o imperativo de gozo
formulado por Sade. De fato, todo propósito de pureza traz em seu
bojo a recusa da diferença, conduzindo inevitavelmente a práticas
cruéis. Mas poderíamos estender essa aplicação: toda pretensão à
universalidade é violenta, exigindo igualmente o aplainamento das
arestas singulares, tal qual um leito de Procusto.
Uma tal situação é descrita de maneira exemplar por Kafka,
particularmente em sua Carta ao pai: “De sua poltrona, você regia
o mundo. (...) Você assumia para mim o que há de enigmático em
todos os tiranos, cujo direito está fundado, não no pensamento, mas
10
na própria pessoa” . A obra de Kafka trata de um mundo no qual a
lei se apresenta aos indivíduos em toda a sua crueza e arbitrariedade,
impossibilitando qualquer ilusão de amparo ou garantia. Uma imagem terrificante sobre o pai é capaz de expressar o esmagamento do
desejo diante de uma lei tão incompreensível quanto onipresente:
Às vezes imagino um mapa-mundi e você estendido transversal­
mente sobre ele. Para mim, então, é como se entrassem em
conside­ração apenas as regiões que você não cobre ou que não
estão ao seu alcance. De acordo com a imagem que tenho de
seu tamanho, essas regiões não são muitas nem muito conso11
ladoras (...) .
O mundo descrito por Kafka tornou-se hoje o nosso mundo.
No campo social e político, Hardt e Negri nos mostram como o capitalismo mundial integrado, por eles chamado de Império, impõe-se
como uma onipresença que pretende abarcar todo o espaço, inclusive
o das dife­renças que lhe poderiam fazer obstáculo. A nova ordem
pretende alisar as singularidades culturais e subjetivas para exercerse sem medida: “Com limites e diferenças suprimidos ou deixados
22
Lumina - Juiz de Fora - Facom/UFJF - v.6, n.1/2, p. 15-30, jan./dez. 2003
ISSN 1516-0785
Terror, Imagem e Subjetivação
de lado, o Império é uma espécie de espaço liso pelo qual deslizam
12
subjetividades sem resistência ou conflitos substanciais” . De fato,
em um espaço liso, sem marcações e sem atrito, não há lugares definidos para uma instância subjetiva ou para um Outro que a ela se
contraponha. Não há afron­tamento ou conflito, mas um controle
que se exerce em todos os lugares e em nenhum deles.
Não é fácil singularizar-se diante dessa onipresença. O que singu­
lariza uma modalidade subjetiva é a sua forma particular de fazer
obstáculo aos imperativos totalizantes, expressando-se através do
desejo ou mesmo através de sintomas – que não deixam de ser mani­
festações desejantes. Mas os imperativos produzidos sob a lógica do
controle dificilmente oferecem ao indivíduo uma possibilidade de
objeção, já que todas as suas tentativas nesse sentido são rapida­mente
fagocitadas pela instância ordenadora, servindo, paradoxalmente, para
fortalecê-la. Na teoria psicanalítica, o supereu cruel funciona sob esta
mesma lógica: qualquer possibilidade de transgressão aumenta a força
de uma instância que goza com o ultrapassamento de limites, incitando
e se alimentando do próprio desregramento que produz.
Os modos de sofrimento predominantes na atualidade dão mostras
incisivas desta presença superegóica que, ao invés de proteger do trauma,
aumenta a vulnerabilidade ao traumático. Vivemos numa cultura da
ação e da produção, na qual os indivíduos se sentem deficitários em
relação à performance que lhes é exigida. Uma cultura baseada em
imperativos totalizantes, que desprezam as inclinações subjetivas parti­
culares e exigem o sacrifício do prazer e do desejo – imperativos categóricos no sentido kantiano, e superegóicos, no sentido psicanalítico.
Fortalece-se assim, nos indivíduos, uma espécie de carrasco íntimo,
impelindo-os a agir para além de seu próprio desejo, o que termina
por conduzi-los a funcionamentos auto-destrutivos. Este carrasco
íntimo é a forma pela qual o supereu cruel se exerce no psiquismo:
incitação ao excesso e ao gozo, exigência desmedida, esboroamento
de limites. Em conseqüência, os indivíduos sofrem com a invasão de
sensações e sentimentos que não sabem nomear nem detectar porquê
e de onde vêm, dificilmente afirmam um desejo ou o endereçam a
algo, e muitas vezes respondem à invasão de afetos com passagens
Lumina - Juiz de Fora - Facom/UFJF - v.6, n.1/2, p. 15-30, jan./dez. 2003
ISSN 1516-0785
23
Jô Gondar
ao ato sem mediações ou intervalos de elaboração. O existir é por
eles experi­mentado como solidão e desamparo diante de uma fatalidade inexorável, com a qual se confrontam sem qualquer mediação:
“é assim, e não há nada a fazer.”. São indivíduos cujo desejo – índice
de singularização – encontra-se esmagado por exigências inego­ciáveis,
diante das quais não encontram brechas para afirmar um território
subjetivo próprio. Cercados pela onipresença do imperativo, reagem
ora pela apatia ou imobilidade – como nos fenômenos depressivos ora pela mobilização frenética e imediatista, como nas compulsões.
Trata-se, sem dúvida, de duas faces do mesmo Janus, dois modos de
responder ao fechamento de possíveis ou, em outros termos, ao rolo
compressor que se abate sobre os processos de singularização.
Terror e imagem
Retornemos agora ao problema da imagem e da paixão pelo real
que hoje se dissemina. Falamos da imposição de uma lógica totali­zante
na esfera política e/ou subjetiva. Mas não seria essa lógica própria do
registro imagético, independentemente de qualquer paixão pelo real
que a partir dela se exerça? De fato, a imagem não possui negativo,
o que a torna diferente do símbolo, calcado na relação presença/
ausência, sim e não. Não seria possível, por exemplo, imagi­narmos
uma paisagem sem árvores ou um ambiente sem fumantes sem que
nos venham à mente as árvores e o cigarro. Muito do fascínio da
imagem, seja nos outdoors, na televisão ou nas artes visuais, decorre de
sua simples positividade, ao ocupar um espaço sem contrapontos.
Todavia, o fato da imagem ser sempre positiva não a torna
neces­sariamente absoluta ou totalizante. Porque uma imagem precisa
ser vista. O que seria uma imagem publicitária, por exemplo, se não
fosse vista por alguém? Porém esse alguém que vê tem um olhar,
e esse olhar emite ao mesmo tempo em que recebe e reflete. Dito de
outro modo, o olhar não apenas recebe estímulos e os decodifica, mas
faz intervir um modo subjetivo na imagem vista. Quem olha se coloca
em posição não apenas de ver, mas também de participar do espetáculo
que lhe é oferecido: não se limitando a ver, o olhar também interroga,
penetra, espera, acede, associa uma imagem com outras, com afetos
24
Lumina - Juiz de Fora - Facom/UFJF - v.6, n.1/2, p. 15-30, jan./dez. 2003
ISSN 1516-0785
Terror, Imagem e Subjetivação
13
ou com palavras . Nesse sentido, não haveria visibilidade total, ainda
que a imagem seja totalmente positiva. Porque o olhar implica uma
atitude e uma atividade, criando um jogo de distância e de proximi­
dade com o visto, ou, em outros termos, uma relação entre a imagem
e o imaginário de quem a vê. A imagem pede o olhar, e devido a
esse apelo ela não se absolutiza.
Contudo, a espetacularização do real que assistimos hoje implica uma mudança na relação vidente-visível e nos jogos de força
envol­vidos na captação das imagens. Dissemos já que a paixão pelo
real demanda, no terreno da imagem, uma visibilidade total. Mas
também dissemos que a existência do olhar impediria essa visão
absoluta, na medida em que age, joga e participa daquilo que é visto.
A não ser... que o olhar transfira para a imagem a sua força. Assim,
se no jogo de forças entre o vidente e o visível a balança pender
quase que inteira­mente para este último, é possível se objetivar – o
que não significa que se consiga, de fato – a completa visibilidade.
É somente ao preço da eliminação do olhar, enquanto atitude, que
se pode pretender tudo ver. Aos espectadores de um reality show se
promete que tudo será oferecido à sua visão, que todos os segredos poderão ser por eles desvelados; crêem, desse modo, que são
detentores de um olhar absoluto quando, na verdade, são despos­
suídos de todo olhar. O vidente absoluto é um vidente sem olhar, e,
como tal, paralisado e passivo diante de uma imagem que o inunda
e o captura, e da qual não consegue desprender-se. Imagem à qual
tanto mais se submete quanto se vê impossibilitado de elaborá-la
psiquicamente. Ora, é justamente a isso que a psicanálise chama de
situação traumática.
Para falarmos do traumático em relação à imagem é preciso
que ao afeto de terror, percebido por Freud na gênese do trauma,
acres­centemos um outro: o fascínio. Ambos provocam como efeito
a paralisia e a submissão. Trata-se de estados semelhantes aos que se
verificam na hipnose. Neste ponto, Freud sugere uma comparação
ainda mais interessante. Diz ele que “a hipnose contém um elemento
adicional de paralisia, derivado da relação entre alguém com poderes
superiores e alguém que está sem poder e desamparado – o que
Lumina - Juiz de Fora - Facom/UFJF - v.6, n.1/2, p. 15-30, jan./dez. 2003
ISSN 1516-0785
25
Jô Gondar
pode facilitar uma transição para a hipnose de terror que ocorre nos
14 animais” A hipnose de terror envolve uma mescla de paralisia e
fascínio, estando o animal impotente e sem possibilidade de fuga diante
de seu predador. A paralisia seria um comportamento defensivo, como
se o animal mais fraco simulasse a morte na esperança de escapar do
ataque do mais forte. Mas existe também uma dimensão do fascínio,
como nas situações em que pequenos animais se vêem diante do olhar
de uma cobra: o ser impotente se vê diante de um ser percebido como
onipotente que o olha, e do qual ele, petrificado, não pode tirar os
15
olhos, pois isso corresponderia à sua sentença de morte .
Evidentemente, a hipnose pelo terror não é idêntica em animais
e humanos. Freud, contudo, percebe aí alguns elementos comuns:
há um fascínio ligado ao terror quando um ser desamparado e impotente se vê – ou é olhado por – um ser onipotente. Assim como
ocorre na técnica da hipnose, o olhar do indivíduo poderoso visa
o outro sob seu domínio; este olhar é percebido como absoluto e
inegociável, o que implica o esmagamento do outro enquanto sujeito.
Desse modo, o olhar se torna prerrogativa da imagem que fascina
por sua totalidade, enquanto que aquele que a vê se encontra despos­
suído de um olhar; entretanto, não pode retirar os olhos da imagem
fascinante e aterradora, nela diluindo-se e perdendo-se.
Por que motivo o olhar do vidente se deslocaria para o visível, para
a imagem fascinante, se isto implica a sua aniquilação subjetiva? É que a
imagem que fascina responde, de alguma maneira, à condição de desamparo do indivíduo submisso. Assim como o hipnotizador aparece como
figura idealizada, promessa de unificação e tranqüili­zação das aflições de
quem a ele se assujeita, a imagem totalizante parece preencher o vazio e
o desamparo daquele que a vê sem ser capaz de olhá-la. Assujeitado à
imagem que o olha e a ele impõe o seu recorte de mundo, o indivíduo
se sente seguro, sem dar-se conta de que esta segurança provém de sua
alienação na imagem. A hipnose pelo terror não confronta o sujeito com
nenhuma experiência de falta; pelo contrário, fascina-o na medida em
que promete satisfazê-lo de maneira absoluta. Ao mesmo tempo em
que o ser onipotente e a imagem tota­lizante causam horror, projeta-se
sobre eles um poder de proteção.
26
Lumina - Juiz de Fora - Facom/UFJF - v.6, n.1/2, p. 15-30, jan./dez. 2003
ISSN 1516-0785
Terror, Imagem e Subjetivação
Daí provém o fascínio dos torturadores sobre os torturados, mas
também o fascínio e a excitação provocados pelas imagens que não
convocam o imaginário. Elas não exigem a atividade do vidente; ao
contrário, em sua literalidade extrema, elas funcionam como uma espécie de supereu imagético, ordenando ao sujeito o que ele deve querer,
como deve sentir e compreender o que vê. Como se o sujeito tivesse
como única vontade aquela que a imagem expressa. As imagens sem
imaginário, sejam elas violentas ou banais, surgem como uma vontade
que ordena, mas também como um objeto absoluto que alimenta e
preenche. Em ambos os casos, elas atraem pela incitação ao gozo. O
fascínio pela relação fusional que é aí prenunciada cega para o fato
de que a plenitude cobra um preço muito alto – o esma­gamento do
próprio olhar e de toda referência própria.
Quando o terror é espetacularizado, a própria categoria do espetáculo sofre um radical deslocamento. A paixão pelo real é, de fato,
uma paixão de abolição. A nós cabe pensá-la, denunciá-la, desmontar
os seus elementos de fascínio. Mas se a denúncia é necessária, ela
não é suficiente. Pois pensar também é resistir, e mais ainda quando
se trata de uma lógica imagética que implica – ou exige – a abolição
do desejo. Ainda que o campo de concentração tenha se tornado
o nosso modelo de mundo, o paradigma do espaço político em
16
que vivemos , não devemos esquecer que o homem é, como bem
17
expressou Jean-Luc Nancy , a resistência absoluta e inaba­lável ao
aniquilamento. Perguntamos, em um momento anterior desse artigo,
como poderíamos manter os processos de singularização diante do
aparato de captura do Império. Perguntamos agora – e trata-se da
mesma questão, desdobrada – como seria possível produzir imagens
que falem de um mundo no qual o terror impera sem que elas estejam
dominadas pela mesma estética, a do anseio pela visi­bilidade total.
Um filme de Claude Lanzmann, Shoah, é um exemplo dessa
possibilidade. Lanzmann aborda o holocausto, tema que poderia
facil­mente conduzir à espetacularização do terror. Mas o faz com
outra política da imagem, apresentando, no lugar da exibição os18
tensiva de atrocidades, uma estética sóbria . Originalmente, o filme
deveria chamar-se O local e a palavra. Ao estabelecer uma distância
Lumina - Juiz de Fora - Facom/UFJF - v.6, n.1/2, p. 15-30, jan./dez. 2003
ISSN 1516-0785
27
Jô Gondar
entre os dois registros, Lanzmann propõe uma recusa ao aviltamento: assim, enquanto ouvimos narrativas dos horrores vivenciados
no campo, vemos, ao mesmo tempo, imagens deste campo em seu
estado atual, com sua natureza impassível, seus rios, rochas e flores.
Nada nessas imagens expõe o sofrimento narrado; nada nos torna
cúmplices, pelo gozo, da condição de carrascos ou de vítimas, nada
nos hipnotiza. Essa proposital defasagem cria um intervalo estético
que impossibilita o prosseguimento do horror numa linha evolutiva, como se pudés­semos, pela visibilidade completa, experimentar
o ponto mais extremo da degradação de um homem. Pelo contrário,
a defasagem nos acorda, instaurando uma distância que impede a
redução daquele que narra à abjeção sofrida no passado, e exigindo
nosso trabalho subjetivo sobre o visto e o dito. Justamente porque a
sobriedade da imagem contrasta com o excesso da fala, nem tudo se
vê e nem tudo se entende, o que abre um espaço-tempo para o olhar
e a subjetividade.
Certamente existem outros modos de resistir ao terror pela via
da imagem. Não se trata de negá-lo e tampouco de passar ao largo
dele. Ele aí está e nos cerca. Contudo, também podemos cercá-lo, ou
melhor, construir cercamentos em torno do buraco negro. Em nosso
afã de tudo ver ou dar a ver, é ele que nos captura e nos hipnotiza:
dificilmente permanecemos despertos quando abrimos os olhos em
demasia – sem olhar. Mas se o despertar não consiste apenas em ver,
manter a reticência pode ser uma forma de estar acordado.
Notas
1. Ver BADIOU, Alain. Le siècle. Paris: Éditions du Soleil, 2003.
28
2. ZIZEK, Slavoj. Bem-vindo ao deserto do real. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003,
p.32. No primeiro capítulo deste livro, Zizek trabalha a idéia de “paixão do
real” proposta por Badiou.
3. O mote é usado e desenvolvido por SELIGMAN-SILVA, Márcio. A história
como trauma in NESTROVSKI, Arthur e SELIGMAN-SILVA, Márcio (Orgs.)
Catástrofe e representação. São Paulo: Escuta, 2000. A questão das representações
literais ou excessivamente realistas é associada por SELIGMAN-SILVA à
experiência traumática, idéia que utilizamos aqui.
4. FREUD, Sigmund. Conferências introdutórias sobre psicanálise (1916-1917)
Lumina - Juiz de Fora - Facom/UFJF - v.6, n.1/2, p. 15-30, jan./dez. 2003
ISSN 1516-0785
Terror, Imagem e Subjetivação
Conferência XVIII: Fixação em traumas. O inconsciente in ESB, vol.XVI,
p.325.
5. Ver APPELFELD, Aharon. Tzili. São Paulo: Summus, 1986.
6. Ver FREUD, Sigmund. Além do Princípio do Prazer (1920) in ESB, vol.XVIII,
p.23-24. Na edição brasileira a palavra Schreck é traduzida como “susto” e não
como “terror”. Este último termo expressaria melhor o sentido do original
alemão.
7. FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão (1927) in ESB, vol.XXI,
p.30.
8. Este item é uma versão modificada do trabalho por mim apresentado em
27/08/2004 no XIII Forum Internacional de Psicanálise, realizado em Belo
Horizonte, e intitulado “Quando não há jardim: perversão na cultura e modos
de subjetivação”.
9. FREUD, Sigmund. Inibições, sintomas e ansiedade (1926) in ESB, vol.XX,
p.153.
10. KAFKA, Franz. Carta ao pai. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Cia.das
Letras, 1997, p.15-16.
11. Idem, p.68.
12. HARDT, Michael e NEGRI, Antonio. Império. Rio de Janeiro: Record, 2000,
p.218.
13. A respeito do olhar e da imagem ver MERLEAU-PONTY, Maurice.
L’oeil et l’esprit. Paris: Gallimard, 1975, sobre o qual se baseia a análise
de GIL, José. A imagem nua e as pequenas percepções. Estética e metafenomenologia.
14. FREUD, Sigmund. Psicologia de grupo e a análise do ego (1921) in ESB, vol.
XVIII, p.146. Aqui traduzo Schreck por terror e não por susto, como consta
na edição brasileira.
15. A relação entre terror e fascínio foi muito bem desenvolvida por PEREIRA,
Mario Eduardo Costa. Pânico e desamparo: um estudo psicanalítico. São Paulo: Escuta,
1999, sobre a qual nos baseamos neste trecho.
16. Ver AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. O poder soberano e a vida nua I. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2002, particularmente a parte 3: “O campo como
paradigma biopolítico do moderno”.
17. NANCY, Jean-Luc. Les deux phrases de Robert Antelme in Lignes n.21, Paris:
Editions Hazan, 1994.
18. A propósito do filme de Lanzmann, remeto o leitor à bela análise
de Peter Pál Pelbart no artigo “Cinema e Holocausto” publicado em
Lumina - Juiz de Fora - Facom/UFJF - v.6, n.1/2, p. 15-30, jan./dez. 2003
ISSN 1516-0785
29
Jô Gondar
NESTROVSKI, Arthur e SELIGMAN-SILVA (Orgs.) Catástrofe e
representação, op. cit.
• Through the reality shows or the images of violence, the media promises
total visibility as a direct experience of the Real. This experience is associated with trauma and with totalizing imperatives, that are predo­minant in
political and subjective fields nowadays. The article deals with the relation
between trauma, fascination and hypnosis, and with the resistence possibility, through the image, to the dismissal of sight that the total visibility
promotes.
> Image - Spectacle - Terror - Trauma - Subjectivity - Sight
30
Lumina - Juiz de Fora - Facom/UFJF - v.6, n.1/2, p. 15-30, jan./dez. 2003
ISSN 1516-0785
Download

TERROR, IMAGEM E SUBJETIVAÇÃO