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Sociedade da sensação: a estetização da luta pela existência.
Christoph Türcke.1
Acerca da “pré-história da modernidade” muito ensinaria a
análise da mudança de significado sofrida pela palavra sensação,
sinônimo esotérico do novo de Baudelaire. A palavra universalizouse na formação cultural européia através da teoria do
conhecimento. Em Locke ela significa a percepção simples,
imediata, o contrário da reflexão. Mais tarde ela se transformou no
grande desconhecido e, finalmente, na excitação maciça, na
embriaguez destrutiva, no choque como bem de consumo. Ser ainda
capaz de perceber alguma coisa, sem se preocupar com a
qualidade, substitui a felicidade porque a onipotente quantificação
tirou-nos a própria possibilidade de perceber.
Th.W.Adorno, Minima Moralia
O termo sensação significou, originalmente, percepção. Porém, diante da atual
inundação dos acontecimentos públicos e catástrofes, o que é percebido restringe-se ao que
se sobressai. A sensação refere-se apenas àquilo que a percepção projeta além de sua rotina
banalizada. Não que isso fosse percebido apenas a partir da modernidade, pois faz parte,
antes de mais nada, das mais fortes experiências humanas anteriores. O fascínio, que
estremeceu tanto o particular como o coletivo diante da angústia ou do desejo (e que se fez
presente diante da tempestade, do terremoto, dos excessos sexuais ou de vítimas), era
representado pela forma antiga dos santos. Este mesmo fascínio continua presente, através
dos séculos, nos jogos dos gladiadores, nas festividades dos hereges, na queima das bruxas,
no carnaval e nas touradas. Todos estes eventos foram sensacionais no sentido atual da
palavra, ou seja, são capazes de seduzir a massa a tal ponto que servem como válvulas de
escape para todas as possíveis frustrações. Eles representaram, essencialmente, não apenas
a quebra da rotina diária, mas também as exceções que forneceram as regras à rotina e os
limites que esboçaram e definiram a própria existência. Os espetáculos sensacionais
proporcionaram não apenas a lascívia, mas também o próprio sentido; não apenas a
oportunidade para o excesso, mas também orientação.
Onde quer que se torne um hábito a designação de “sensação” para tais espetáculos,
ocorreu exatamente esta orientação. O extraordinário e o comum mesclaram-se numa
confusão que foi engendrada pela sociedade moderna de produção de mercadorias. O
mercado sempre teve em si este quê de espetáculo. Onde quer que ele esteja, encontra-se
também a compulsão que exalta o quão extraordinárias são as próprias mercadorias. O
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Suas referências originais são: “Sensationsgesellschaft: Ästhetisierung des
Daseinkampfs”. In SCHWEPPENHÄUSER, G. & WISCHKE, M. Impuls und Negativität:
Ethik und Ästhetik bei Adorno, Hamburg, Argument Verlag, 1995. Tradução de
Antônio Álvaro Soares Zuin. Revisão técnica de Bruno Pucci, Newton Ramos-deOliveira, Renato Franco e Cibele Rozenfeld.
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brilho do incomum faz parte da apresentação de mercadorias totalmente comuns, tais como
os chocalhos artesanais. Onde o mercado dita o sentido geral da vida, os produtos e os
produtores são então enfeitiçados pois, tal como mercadorias, eles têm seus valores
aumentados ou diminuídos, são aceitos ou rejeitados. E é dessa forma que ascendem em
suas respectivas posições no ranking. Esta é a sua índole: apresentar em tudo a estampa do
extraordinário.
As pessoas, os acontecimentos e os produtos que são mais fascinantes e espantosos
recebem, assim que passam a ser mercantilizados, aquilo que toda mercadoria reivindica
para si: a pecha de ser algo que é reconhecido, num plano mundial, como totalmente
singular. Desta forma, toda banalidade específica é inoculada com essa marca, ao mesmo
tempo em que auxilia o desenvolvimento do próprio mercado. O banal tem que ser também
aquilo que espanta, pois não tem a tendência de ser venal. Na transformação do sentido da
palavra sensação adjudica-se uma sentença destruidora: aquilo que não se destaca na massa
de ofertas não vende, pois não é verdadeiramente percebido. O que não é percebido é um
nada; quem não é percebido é um ninguém. Na necessidade, no desejo da sensação,
encontra-se a angústia da existência de uma sociedade inteira.
Ser significa tornar-se percebido. O bispo Berkeley não imaginou o quanto a
máxima de sua teoria do conhecimento seria confirmada através das indústrias
cinematográfica, radiofônica e televisiva. As câmeras se detém, cada vez mais sem
qualquer tipo de escrúpulo, diante da morte, do sofrimento, do horror, do desespero, do
sexo e do orgasmo. Certamente pode ser observada esta tendência crescente na Alemanha,
sobretudo após a implantação de numerosos canais privados. Há pouco tempo atrás, o
programa “Tages themen” (“temas do dia”), da ARD2, asseverou que esses canais mostram
a vida como ela é, ou seja, eles exibem sem meias palavras a miséria real. Ao ver deste
programa, isto é feito de forma não sensacionalista, embora o limite entre ambas as
situações seja muito tênue e, por isso, algumas vezes, até um pouco antes da sua exibição,
discute-se no estúdio o que deveria ou não ser mostrado. “Enquanto é possível,
conservaremos esse procedimento”, disse a apresentadora. Sabe-se, no entanto, que isso
não será possível por muito tempo, ou seja, os canais privados não poderão ludibriar as
pessoas, se estas conseguirem amainar sua própria vergonha. Onde se deve surpreender
para poder sobreviver; onde a luta pela existência se transforma num problema estético,
então se fez cumprir o estado de coisas da sociedade da sensação, para a qual caminhamos
de encontro a passos largos.
Por outro lado, há acontecimentos que são historicamente incomparáveis em relação a
tudo que foi anteriormente mencionado. O cartaz da Benetton, que mostra uma roupa suja
do sangue de sérvios fuzilados por soldados bósnios, teve apenas um objetivo:
impressionar. Sua violação do tabu representou, antes de mais nada, uma rigorosa
obediência às leis do mercado. Tal obediência expôs, de forma intransigente e
surpreendente, (e de uma tal maneira que revelou, atrevidamente, esta situação), aquilo que
até então se ousava mostrar, na maioria das vezes, de forma tímida: quando aquilo que
impressiona é considerado bom, pois torna-se necessário para a sobrevivência, então o que
é impressionável não pode ser ruim. Dessa forma, o bem e o mal se transformam em
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Arbeitsgemainschaft
der
öffentlichrechtlichen
Rundfunkanstalten
der
Bundesrepublik Deutschland (Rede pública de rádio e televisão da Alemanha, N. do T).
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categorias estéticas; e o estético se transforma no ontológico, ou seja, na possibilidade de
ser ou não ser.
Atualmente precisa-se apenas do contato com a velocidade média das imagens, que
se sucedem freneticamente no filme e na televisão (quando se compara com a situação de
trinta anos atrás), para que se possa ter o melhor aprendizado visual sobre angústia da
existência. Esta aceleração rasante qualifica-se não como um artifício estético pontual, com
o qual os grandes diretores de outrora souberam expressar o frenesi, o sonho e a vertigem.
Ora, a aceleração rasante engolfa todos os setores, todas as especialidades. O videoclip e a
propaganda marcam o ritmo; shows, documentários e noticiários se sucedem, de forma
crítica ou não, num menor ou maior intervalo. Contudo, a ressaca é geral, pois seus efeitos
podem ser observados na intensa inquietude da tela e na desconfiança manifesta contra o
efeito da própria imagem. E isso apenas enquanto permanecer o “aí”, tal como quando se
desloca a atenção para o próprio. Onde a aceleração diminui, isto não é mais e deve, então,
ser substituído por uma nova imagem. Aqui não se trata do prazer pela velocidade, tal como
pode ser observado no desfrute daquele que salta de pára-quedas, ou no corredor que
intensifica a velocidade da imagem, mas sim na presença de um horror vacui: a agitação da
angústia de se poder cair no abismo do não percebido.
Observa-se, sobretudo na arte, vestígios de tal horror que se faz presente, portanto,
não apenas na sua escória comercial. A tentação que, educadamente, se aproxima no tocar
estridente ou no sussurro, no gritado ou no murmurado, no colorido ou no monocromático,
(portanto que se coloca nos extremos), torna-se mais intensa, certamente, nos artistas mais
severos. Nas suas produções estéticas, bem como no próprio juízo, introduz-se, de forma
contundente, o sentimento de que aquilo que não choca também não presta. Portanto, o que
não é percebido não possui mais o direito de existência artística. O mediano é uma merda, o
lema secreto da sociedade da sensação vai infinitamente mais além do que lhe fora cabido.
Também os olhos e ouvidos mais sensíveis foram atacados pelas cegueira e surdez
coletivas do anti-espetáculo do registro médio e do entre-tons. Apenas os extremos é que se
tornam justificados: esta é a dedução que permaneceu às escondidas e de forma humilhante
nas extremidades da percepção estética. E ela age ainda de forma mais grosseira no
cotidiano. Por que os políticos se sentam na “cadeira branca” do RTL e lá se deixam
interrogar e insultar? A reposta poderia ser: porque eles desejam aproveitar a oportunidade
de revelar um par de idéias sensatas sobre um tema controverso. Nada disso. Eles desejam é
estar presentes. É secundário o tipo de representação que fazem de si, pois antes de mais
nada o que interessa é que aquele que é visto pode também deixar se ver. Sua emanação é
notória. Estar presente significa quase que o mesmo que fazer uma boa figura; estar
presente na conversa também é bom, ou seja, torna-se fundamental quando alguém se torna
o centro das atenções.
Ser significa ser percebido. Ser percebido não apenas pelo chefe da reunião mas
também a todo momento pelo gerente social. As malas-diretas diárias testemunham isto não
menos do que os manuscritos das montanhas, os quais se assemelham ainda mais a elas nas
redações. Um timbre estranho, uma escrita excêntrica, a assinatura que já é conhecida; tais
insignificâncias podem então ser decisivas no caso de um redator começar a ler um texto ou
um chefe do departamento pessoal decidir examinar, com o olhar mais apurado, uma
solicitação qualquer. Aquilo que não se percebe se torna marginalizado. E isto é válido não
apenas para o mercado de trabalho nacional. Áreas mundiais inteiras não são percebidas: a
Nicarágua após a queda dos sandinistas, o Iraque após a guerra do golfo, o sul do Saara, o
nordeste brasileiro, a maior parte da ex-URSS, etc. Isolar-se da percepção do mundo
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público significa quase que o mesmo que ser entregue à ruína político-econômica. O
seqüestro do avião, o tornar-se refém, a greve de fome, enfim, todos estes acontecimentos
lutam entre si na ânsia de receber a pecha do extraordinário que pode ser assim percebido e
também vendido. A sórdida propaganda da Benetton, que chama a atenção para os curdos e
para a condição desesperadora de seu povo, não tem muito que se esforçar para poder ser
notada. Impressionar para sobreviver é aquilo que predomina em ambas as situações, pois
tanto o genocídio dos povos como as empresas que são ávidas por lucro estão subordinadas
a esta obrigação. Os publicitários gostariam de expor a mais pura miséria sem qualquer tipo
de cálculo, contudo, eles não podem abster-se de fazer propaganda desta mesma miséria. É
a ordem econômica que os força a fazer esse tipo de publicidade; é essa mesma obrigação
que revela a forma como a Teoria Crítica foi, recentemente, utilizada para a fazer o ABC da
crítica da sociedade.
Tal obrigação tornou-se, desde então, mais forte ao mesmo tempo em que precisava
ser cada vez mais compreendida. Contudo, na medida em que há uma continuidade da
mesma, dificilmente ela chama ainda a atenção e espraia-se, de forma desapercebida, em
debates no quais brilha o sublime, tal como na controvérsia sobre o filme: Profissão:
Neonazista. Alguns dizem que se trata de uma monstruosidade dar uma hora e meia a um
neonazi para difundir sua ideologia de ódio aos homens, legitimar as mortes ocorridas nas
câmaras de gás e alegar que os documentários sobre Auschwitz são mentirosos, ao mesmo
tempo em se justifica que isto é apenas um documentário!
Já para outros, neste filme, um neonazi fala uma hora e meia sobre sua própria
sentença. Porém, nada é mais desmascarador do que uma cena sobre Auschwitz; nada é
mais inoportuno do que subordinar a cumplicidade do filmado ao próprio filme.
Certamente, o diretor desejou nada mais do que apenas documentar. Ora, mas nada
acontece se ele tem o poder de desejar ou não que algo ocorra? É possível que numa
sociedade, na qual cada detergente, automóvel, político e artista torna-se propaganda de si
mesmo quando são focalizados e difundidos, a própria representação da ideologia nazista
possa ser percebida como algo diferente do que uma propaganda de si mesma? Certamente
que não. A forma coletiva de se perceber algo está tão carregada de sensação que se tornou
perigosa a exibição de tal filme. As pessoas que discutem tal tema, de forma livre e
despreocupada, subestimam a posição alcançada pela suscetibilidade da sensação. Mas elas,
que insistem na sua proibição, sem, ao mesmo tempo, desdobrar o atestado de pobreza que
expõe a forma da consciência política das massas, propiciam um demasiado amparo à
maneira como o povo compreende as coisas. Tais pessoas desejam proteger a população
dos efeitos da susceptibilidade da sensação, a qual fazem ser o fundamento incontestável de
seu próprio juízo.
Desta forma, identifica-se uma tendência: no desenvolvimento da sociedade da
sensação desaparece o sensorium (o sensível) na documentação das coisas. Nada pode ser
significativo, caso não faça de si mesmo uma propaganda. O tempo passou e, tal como Karl
Kraus observou, torna-se suficiente apenas citar as opiniões corretas, pois elas falam já por
si próprias. Portanto, procura-se o que se localiza no próprio poder: aquilo que não faz de si
próprio nenhuma propaganda é também aquilo que não se expressa. E, com isso, o
politicamente correto toma seu rumo. Aliás, esta é uma forma de protesto da sociedade da
sensação contra seus próprios efeitos: sentinelas atentos asseguram que apenas a
propaganda “correta” é que deve ser feita, pois não pode ser de outra forma. Mas se o
pensamento crítico da sociedade analisa idéias, pessoas e acontecimentos em relação aos
efeitos da propaganda, então observa-se uma paranóia anteriormente programada: o que se
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coloca na sociedade da sensação é que não se pode suspeitar de tudo, não se pode suspeitar
do falso de que se serve a propaganda. Quem diz que nenhuma práxis educativa e nenhum
estado de direito sobrevivem sem algum tipo de violência não acabou por advogar a favor
das causas dos maus tratos com as crianças e da própria guerra? Quem fala dos deveres dos
cidadãos ao invés dos deveres das cidadãs e dos cidadãos já imediatamente não discriminou
as mulheres? Quem confirma que os homens reagem com medo diante do outro não acabou
por justificar o ódio em relação ao outro?
Tais riscos espreitam não apenas a atualidade e a política. Quem autoriza as
apresentações do Mercador de Veneza não oferece uma oportunidade para que a convicção
anti-semita se expresse abertamente por horas a fio? No que diz respeito ao barão cigano,
tornaram-se públicas as denúncias contra a difamação de Sinti3, cuja designação de “preto
odioso” na peça de Mozart transformou-se no inofensivo rótulo de “exótico” na tradução
inglesa da Flauta mágica. Além disso, até quando será feito o rapto de Serail 4, no qual o
eunuco Osmin personifica o preconceito que se observa nos ataques às moradias turcas? A
descoberta da arte clássica como ameaça política atual é ainda vista com escárnio por parte
da maioria da crítica, mas isso não deve demorar mais do que uma geração, até que sejam
postas lado a lado a nona de Beethoven e o som do heavy metal enquanto “músicas contra a
direita”, além de campanhas para que roteiros chocantes e peças de teatro sejam transcritos
em folhetins. Possivelmente, o clássico seria embalsamado ainda mais uma vez nessa
desesperançosa atualidade. De fato, ainda pode-se conquistar, por meio de uma percepção,
tudo aquilo que a atenção já não percebe e que é exposto através de uma propaganda
imediata, pois não se mantém qualquer tipo de distanciamento.
O prejuízo do discernimento quanto à relação entre a palavra e o ato, como se cada
citação, cada obra de arte, cada alusão e expressão fossem um início ruim (os quais podem
perfeitamente significar uma difamação em um certo contexto), caso alguém não
conseguisse defender-se e assim dirigir-se diretamente para o pior, prova que há um dano
no distanciamento da sensação. A “onipotência do pensamento”, ou seja, a onipotência do
desejo sobre a realidade, do pensamento sobre o ato, que Freud identifica na magia
primitiva e que revela, naturalmente, a verdade da fraqueza do pensamento, regride ao
estágio da onipotência da sensação. Aquilo que é percebido significa sua difusão, a qual é
sua ação, sua realidade; a sensação existe nessa mescla, nessa miscelânea entre o
pensamento e a realidade até chegar à sua própria desfiguração. Sua irritação diante de cada
palavra e cada gesto, que poderiam ser identificados como falsos, refere-se à
impossibilidade de admitir para a si a confissão dos encantos prepotentes que se fazem
presentes em todo tipo de propaganda.
O politicamente correto não é, tal como muitas vezes se assevera, o último bastião
da crítica social radical, mas sim a blasfêmia que a própria sociedade constrói ao mesmo
tempo em que a ela se entrega. Como uma associação dos mais honrados mediadores pode
garantir que nenhum de seus membros irá chantagear sua clientela, sem que discurse sobre
a própria chantagem numa cultura em que, talvez, a própria chantagem se transforma numa
profissão?
Como uma comissão técnica pode velar para que os resultados dos progressos
técnico-científicos possam ser tratados com responsabilidade se desperdiça uma reflexão
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Cigano alemão. (N. do T.)
Título de uma das óperas de Mozart. (N. do T.)
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sobre a possibilidade da direção desse progresso não ser em si mesma irresponsável? O
politicamente correto manifesta-se então como a sensibilidade contra tudo; contra toda
propaganda que cheira a qualquer coisa de falso sem que tome nota daquilo que estimula a
pressão para a realização da própria.
Não é à toa que o falso expressado pelo politicamente correto acaba por engendrar,
no final, a discriminação, a exclusão, a marginalização, ou seja, tudo isso confirma aquilo
que ele idealiza como o correto: a integração. É como se, sob os significados dominantes,
pudesse sair algo diferente do que a adaptação ao sistema capitalista. Neste caso, a
integração pode surgir, primeiramente, como um ideal de uma crítica social em uma fase na
qual o capitalismo perde, em seu âmago, sua força de coesão e cerca de 30% de sua
população não pode ser considerada integrada. Tal fato faz com que se torne prioritário o
lema da sociedade da sensação: “impressionar para sobreviver”, pois se impõe a
necessidade de que a luta para existência seja interpretada como luta para a percepção. O
politicamente correto deseja que a luta seja balizada pelo fair play. Ora, este é um trabalho
de Sísifo pois, até o presente momento, sua terrível beatitude é expressão do fato de que se
descobre a lasca no olho do próximo sem que se perceba a sua própria tora de madeira.
Quando se compara o politicamente correto com o que acontece hoje, conclui-se
aparentemente que seu terror é ingênuo, uma espécie de “defesa dos princípios”, tal como
pode ser observado no caso da brigada vermelha, cuja atitude comprova bem tal asserção.
Mas deve-se reagir a esta sensibilidade do politicamente correto; deve-se revelar que a sua
marca, a suspeita universal da propaganda voltada para o falso, a quase desconfiança a que
cada comentário conduz (caso se reflita sobre ela) pode levar diretamente à Auschwitz ou
ao Arquipélago Gulag, fazendo avançar um moralismo que se baliza na “não
discriminação”. Tal virtude cardeal do capitalismo poderia ser a última plataforma comum,
a qual deveria servir para equilibrar suas contas, numa época em que se observa o rápido
arrefecimento de sua força de coesão.
A luta moderna em relação à percepção desdobra-se em duas formas: o ser
percebido e o perceber. Como apenas aquilo que chama a atenção proporciona a si mesmo
o direito à existência, então afirma-se apenas aquilo que impressiona. A torrente, que
diariamente empurra tudo que é percebido e que é extraordinário para o vazio e para a
insensibilidade, precisa do extraordinário (o qual a percepção lança fora dos trilhos dos
registros indiferentes) para possa certifica-se de que o eu continua vivo e sensível; ela
precisa do choque da sensação que retorna novamente à obsessão. A sensação tenta vencer
através do seu encanto, como se fosse um santo; como se fosse um acontecimento
mundialmente profano que se faz passar por algo sacro e que, do sentido das coisas,
conserva apenas o lado lascivo. Ela só se preserva se for cada vez mais intensificada,
portanto deve dirigir-se ao sentimento de forma cada vez mais intensa. Para a mais
conceituada video-arte, a sua essência significa a simulação de uma experiência
tridimensional, bem como as viagens realizadas através da miscelânea de vivências de uma
realidade virtual. Para a grande massa, isso significa a passagem para a realidade-tv.
O ao vivo torna-se cada vez mais freqüente, quer seja nas casas que se incendeiam,
nos acidentes aéreos e automobilísticos ou naqueles que se tornam reféns. Produz-se o
arrepio através da vivência autêntica, pois esta não pode ser colocada artificialmente, tem
que ser original. Naturalmente, ela não tem nada de autêntica. A lascívia combina
justamente uma específica simultaneidade do estar perto e distante: vivencia-se a casa
queimando, mas não há perigo de alguém se queimar; vê-se a pistola apontada para o
refém, mas não há qualquer risco de que alguém possa se machucar. Não há dúvida de que
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a maioria deseja essa distância. Ninguém questiona se os passageiros de um ônibus, no qual
uma horda de jovens agride uma garotinha e viola as próprias instituições, comportam-se
como perfeitos telespectadores e desviam o olhar da cena vista apenas pela mãe que
sussurra para que seu filho “não olhe para lá”. É como se fosse possível desligar o controle
remoto sempre que se fizesse valer o seguinte lema: o que não se percebe, não existe; quem
não percebe, não se complica. E há uma tendência em direção à essa ofensiva social: a
auto-intervenção na sensação real sem que haja uma avaliação ponderada do perigo
coligado, tal como ocorreu recentemente em Frankfurt am Main, onde um assaltante
executou, com uma pistola, um homem e entrou numa loja. Junto à ávida multidão que se
formou em volta da loja, chegaram policiais com coletes à prova de bala. Só que a multidão
continuou a correr o risco de ser alvejada e, felizmente, não aconteceu mais nenhuma
descarga de tiros.
Cidadãos emancipados transformam-se em irresponsáveis: quando o poder de
fascinação da sensação audiovisual desperta a força de integração da sociedade, cresce a
necessidade de se lançar, de forma imediata, à vida real e seus perigos, como se se estivesse
sob o efeito de um feitiço audiovisual. O indivíduo que pode desejar a derrocada da vida
real é aquele que se sente enganado na sua própria vida. Ele não tem o controle da sua vida
que é devidamente calculada como se fosse uma mercadoria, ao mesmo tempo em que se
transforma num telespectador que se protege da vida real através de uma tela. Compreendese a crescente compulsão do jovem em pichar as construções, as casas, os túneis ou pontes.
É como se eles estivessem dizendo: este não é o meu mundo; eu preciso tentar pintá-lo com
a minha cor para que eu possa suportá-lo. Esta é a fala daquele que engana a si mesmo e
que também se faz ouvir no ato de violência que se torna cada vez mais característico na
escola, nos encontros dos jovens, na rua. Faz parte de um processo normal de busca pela
identidade o fato das crianças e dos jovens desejarem experimentar o quão distante podem
chegar, ou seja, tomar consciência de seus próprios limites. E isto ocorre tanto em relação à
exteriorização da própria força como à necessidade de protelar ou não o contato com o
desejado. Contudo, a desproporção, a dificuldade cada vez mais presente de se estabelecer
estes limites é que é nova. Os jovens que dançam e rodopiam nos trens de metrô (onde cada
movimento em falso, cada erro de cálculo quando se salta da condução significa a morte)
ou aqueles que não apenas batem nos outros mas também, sem um motivo claro e sem
nenhum sentimento de culpa, torturam e matam, sentem crescer em si mesmos algo que
incomoda e adotam um novo sentido para a palavra “sensação”: a obsessão por ela se
transforma numa necessidade e a sua forma audiovisual se espraia. O estar ao vivo torna-se
um imperativo, mas não na tela e sim no local do próprio acontecimento.
Na crescente sociedade da sensação os meios de comunicação perdem muita força e
capacidade de chamar a atenção do mercado. Mas apenas o perceber significa o ser e não o
brilhar significa o perceber. Os choques audiovisuais não fazem com que as pessoas sejam
mais notadas do que já são, pois eles pertencem a uma gigantesca irrealidade que logra a
própria vida e que não se permite agarrar, como se estivessem numa enorme cabine de
borracha que cede em todo o canto ou extremidade mas que permanece como sendo
inevitável. A própria morte ou a do outro pode resultar do desejo de se sair desse invólucro
e adentrar novamente na vida real: esta é a forma progressiva da obsessão pela sensação.
Evidentemente, tal obsessão destrói a si própria. Ela maquina a construção do horror ao
mesmo tempo em que deseja escapar do vácuo de uma irrealidade universal. Este é o seu
lado oculto: ela quer ingressar na vida, mas com poder. Ela percebeu que há uma direção
para o exercício de um impulso fundamentalista, pois o fundamentalismo é o horror vacui:
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agarrar com força ou segurar obstinadamente um sentido maior para desacreditá-lo se torna
o seu objetivo; e isso é feito apenas para que a própria vida não se deixe esvaziar.
Portanto, a sensação do ser marginalizado, na sociedade da sensação, não mais se
limita à esfera da debilidade econômica, mas está presente, sobretudo, onde o indivíduo
sente o logro de sua própria vida, ou seja, junto aos desempregados, aos operários e às
crianças mimadas. A exata sensação que se tem é a de que falta algo e isto se encontra
fundido no difuso horror vacui que faz da marginalidade um fato econômico, psíquico e,
até mesmo, metafísico. Este fato está longe de ser insignificante para o juízo do novo
radicalismo de direita. Não é difícil de entender qual é a relação feita entre a massa de
desempregados e o ódio ao estrangeiro. O ódio dos excluídos dirige-se, preferencialmente,
contra os próprios excluídos, os quais se tornam ainda mais marginalizados. Contudo, há
um fato que vem intrigando o meio acadêmico, a saber: até o momento, suspeita-se que a
maioria das agressões cometidas pelos jovens contra os estrangeiros provenha de filhos da
classe média (jornal Frankfurter Rundschau, 16.6.93) ou seja, de famílias que não deveriam
se portar, necessariamente, dessa maneira. O meio intelectual não percebe que a sociedade
da sensação aproxima a marginalidade de uma situação na qual perceber-se e ser excluído
tornam-se indiscerníveis. Essa situação também ameaça o salário, o pão e a prosperidade
crescente. Mas a sensação de pesar realmente parece não fazer parte da vida real calcada na
exclusão. É tão vaga essa sensação; são tão difusas as reações em sua direção...Pode-se hoje
ocupar-se da questão sobre os estrangeiros da mesma forma como se adentra numa
aventura, nas drogas ou numa seita fundamentalista. É difícil de prever qual dessas formas
(ou mesmo um mescla delas) se impõe como a principal, pois a progressiva obsessão pela
sensação é altamente inconstante. Assim como a flutuação de seus membros faz parte das
modernas seitas fundamentalistas, torna-se duvidoso se o assim chamado cenário de direita
deixa-se comprometer, de forma duradoura, com os partidos correspondentes e com os
ideólogos que deveria ter preferência. Sua incalculabilidade pode se tornar cada vez mais
perigosa. Quem é capaz de perceber o ressurgimento do radicalismo de direita apenas como
algo que se ancora nos traços do nacional-socialismo, faz esse tipo de dedução sem que se
leve em conta a especificidade do caráter social que produz a sociedade da sensação, o qual
soa como se estivesse emprestando a expressão da senha nazista. Ora, a nova direita só
pode ser deduzida deste caráter social. Por enquanto, predomina apenas uma cor em seu
amplo espectro: a cor do maior ódio possível. A politicamente correta campanha do “contra
a direita” empreende, novamente, a tentativa de avaliar o alcance desse caráter social. Não
obstante, tal tentativa apenas arranha a superfície do problema, assim como faz o
puritanismo da sociedade da sensação. Mas aquele que desconfia dessa situação, que
objetou essa aproximação da luta pela vida e da percepção com a própria direita, deseja que
ninguém se prejudique mais desta forma, embora não haja ninguém em melhor situação do
que o outro para fazer com que este desejo seja concretizado.
No atual estado da sociedade da sensação faz-se presente um dos significados
básicos que se vincula ao conceito moderno de sensação e que já soa quase como se fosse
mais antigo: o novo nunca é o inaudito. É bom saber que, nesse meio tempo, a indústria
forçou uma situação de concorrência tal que permite sempre com o novo atender a
necessidade de que se explore a mais sensacional inovação técnica por meio da mescla do
preço geral das mercadorias com sua conhecida banalidade. Assim, a apresentação forçada
do novo precisa fazer parte da rotina da sociedade que produz as próprias mercadorias. E é
por isso que a obsessão pela novidade diária, pelo news, sempre propaga a ânsia de que
deixe de existir o logro de que o inaudito não apenas preencha uma lacuna do mercado, mas
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sim que permita realmente o surgimento de uma nova época. Cada moda e cada paradigma
científico, os quais parecem aproximar os homens para a aura dessa nova época, denunciam
o quão profunda é tal ânsia. Eles não param de fazer com que o público apropriado seja
atraído, da mesma forma que a luz atrai as traças. Mas não pode ser feita a proclamação da
superação do tempo pós-industrial e posteriormente, pós-moderno, sem que se tenha
também modificado as relações de produção da sociedade da produção de mercadorias.
Como é possível que se louve o paradigma da razão comunicativa ou analítica como novo,
como um modo de pesar pós-metafísico, sem que se tenha livrado o pensamento e a
realidade de sua hipoteca metafísica? Mais importante é a constatação de que a “sociedade
da sensação” desejaria não ser identificada com o paradigma da “sociedade de risco” mas
sim apenas receber uma roupagem mais nova numa sociedade de uma formação bem mais
antiga: a capitalista. Ora, o capitalismo nunca se preocupou em proibir o disfarce imposto
àqueles que sempre protestaram contra este modo de produção. Quem nada oculta, nada
teme, pronunciou certa vez um ministro alemão do interior. Ora, tudo que ele teme, pois
acaba por revelar exatamente tal situação, é que o próprio disfarce tenha transformado o
capitalismo no jogo mais caro.
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