25 ANOS DA RÁDIO CULTURA, ARTHUR MOREIRA LIMA,
O PIANO E O CAMINHÃO
José Raimundo Gomes da Cruz
Procurador de Justiça aposentado (SP)
“Já mandei subir o piano pra Mangueira”
(Tom Jobim e Chico Buarque)
Começando, como convém, da infância em Espinosa, norte de Minas Gerais, minha
terra natal, lá não havia piano, como escrevi no meu livro de memórias – Espinosa, anos 40
- Depoimento de um menino curioso (São Paulo : 1997). Claro que havia música, à qual
dediquei o capítulo intitulado Mestres e Cantores de Espinosa. Estranhamente, na
publicação gráfica, final, omitiu-se o seguinte trecho, conservado no micro e na sua
impressão: “Mas o rádio, mesmo só havendo energia elétrica à noite, e não além das 22
horas, conseguiu emplacar Nada além, sucesso dos anos trinta que invadiu a década
seguinte; Aurora, Isaura, e Amélia, três marchinhas carnavalescas, ao lado de Jardineira e
Alalaô. Valsas como Sertaneja, Maria Helena e o repertório de Luiz Gonzaga, em começo
de carreira. Em 1948 houve uma grande festa de casamento no Calcete, já no Estado da
Bahia. Contrataram músicos de Montes Claros. Quando o imenso caminhão passou dentro
de Espinosa, conduzindo os mestres e cantores, parando para rápida refeição, o enorme
acordeom fez ecoar os acordes de Asa Branca, causando arrepios.”
Passo seguinte foi o internato no Colégio Arnaldo. Lamento ter estudado canto
orfeônico durante os quatro anos de ginásio (1949/1952) e não saber ler uma partitura.
Certas matérias ou aulas não pareciam ter a mesma importância de outras: além do canto,
trabalhos manuais e ginástica. Pelo menos, seus professores não agiam como os demais. No
primeiro ano, o professor, conhecido como Pinguim, ao piano, no salão nobre que também
funcionava, em outras ocasiões, como cinema, ia chamando cada um de nós. Dava o tom e
cada qual cantava trecho do Canto do Pajé, do Villa-Lobos: “No manhã de sol, Anhangá
fugiu...” Escolhidos os raros afinados, entre os quais eu jamais estaria, em meio da enorme
bagunça, que se formava entre mais de quarenta meninos aguardando a vez de cantar ou já
chamados para isso, a aula findava, todos indiferentes aos gritos do mestre tentando
estabelecer alguma ordem no ambiente, em vão. O desalento era completo, pois nem os
poucos afinados manifestavam algum interesse em tudo aquilo.
Como confessei, uma vez, falando sobre vinhos, também em música sigo as minhas
impressões. A partir de certa época, tornei-me ouvinte cativo da Rádio Cultura de São
Paulo, que já completou 25 anos. Vários músicos, maestros, críticos e apreciadores da
música, em geral, têm dado sua opinião e parabéns à emissora, cuja programação realmente
é de ótimo gosto, seja quanto à música erudita, seja quanto à popular. Vários entrevistados
afirmam que seu aparelho não sai da Rádio Cultura. No meu caso posso dizer que, quando
alguém põe em outra frequência, sinto dificuldade em voltar ao ponto da minha preferência.
Tenho aprendido muito sobre música, mesmo a popular de compositores nossos.
Principalmente, não há certo esnobismo que exclua a música menos clássica, expressão
que, em geral, adquire significado genérico, que, na verdade, corresponde ao erudito.
Erudita ou popular, a música deve ser boa. E se temos excelentes violonistas,
flautistas etc., também não nos faltam pianistas de renome internacional. Citaria três, que,
ainda bem jovens, em 1957, se incluíram entre os dez vencedores do I Concurso
Internacional de Piano realizado no Rio de Janeiro, e que o então Secretário de Educação e
Cultura do Município de São Paulo, Prof. Goffredo Telles Junior relembra ter conseguido
trazer para exibição no Festival de Piano que ele organizou no Teatro Municipal: Fernando
Lopes, Nelson Freire (então com doze anos de idade) e Arthur Moreira Lima (A folha
dobrada - Lembranças de um estudante. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1999. p. 519)..
Moreira Lima, embora tenha grande experiência internacional, parece o mais
voltado para o Brasil. Sua técnica refinada revisita compositores eruditos e populares,
antigos e modernos, estrangeiros ou nacionais.
Posso falar, brevemente, de um CD duplo dele, presente do José Expedito Prata,
diretor da Telefônica, uma das patrocinadoras da obra, e meu concunhado. Um deles se
intitula Valsas brasileiras, com as “clássicas” Rapaziada do Braz, Luiza, Eponina, Branca
e As doze valsas de esquina de F. Mignone. Destaque para Eponina e a 2ª Valsa de esquina.
O outro, com o título de Alma brasileira, traz a Protofonia da Ópera ‘Il Guarany’, Quem
sabe?, Carinhoso, Tico-tico no fubá, Odeon, Do sorriso da mulher nasceram as flores,
Fandangoso, Alma brasileira, O trenzinho capira/O polichinelo, Batuque, Grande fantasia
triunfal sobre o Hino Nacional Brasileiro e Apanhei-te, cavaquinho. Grande surpresa:
Nossa Senhora, de Roberto e Erasmo Carlos. Claro que não poderia faltar Asa Branca.
Por coincidência com os 25 anos da Cultura, o Jornal da Tarde de 10/8/2002 pôs em
manchete: “Arthur Moreira Lima cai na estrada”. Explica-se: o grande pianista, então com
62 anos de idade, resolveu bancar suas apresentações Brasil a dentro. O caminhão de
catorze metros possui palco, camarim, banheiro e espaço para o valioso piano Steinway. As
viagens musicais começaram em 2001 e deveriam prosseguir enquanto o milênio
aguentasse.
Volto, talvez em sonhos, às origens. Se eu souber de possível apresentação de
Moreira Lima em Espinosa, MG – claro que isso só se tornaria realidade com grande
empenho da Prefeitura Municipal local, junto ao compositor – eu avisarei o meu irmão
Aloísio, companheiro de viagens até lá. Durante o recital, eu ficaria no meio do povão,
provavelmente na beira do Rio Verde, que faz divisa com o Estado da Bahia, onde há até
praia e onde se realizou recente evento festivo muito concorrido.
Reduzindo as proporções do meu sonho, pode acontecer que Moreira Lima, o seu
famoso piano e o caminhão apenas passem dentro de Espinosa, indo de Montes Claros para
Conquista ou outra cidade, na Bahia. Ao parar para refeição ou breve descanso, Moreira
Lima talvez resolva tocar um número do seu repertório. Então, aos ouvidos sensíveis de
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Espinosa, bem mais de meio século depois, chegariam os acordes de Asa Branca, causando
arrepios.
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