AFINAL O QUE É A PIRATARIA?
Comunicação apresentada na Academia de
Marinha pelo comandante Eduardo Henrique
Serra Brandão, na Sessão Solene de 9 de
Fevereiro de 2010
A ideia desta comunicação deve-se inteiramente ao nosso Presidente,
impressionado como todos nós com a notável exposição do comandante da
“Corte Real” no regresso da sua missão nos mares da Somália, que mereceu
um prémio da Organização Marítima Internacional, recebido em Londres, a
23 de Novembro pelo capitão-de-mar-e-guerra Gonçalves Alexandre. Aliás,
não é a primeira vez que Portugal incomoda os piratas: já combatemos,
com êxito, os piratas mouros e Macau foi-nos oferecido pela forma eficaz
como combatemos a pirataria nos mares da China.
Aceitei gostosamente o convite e faço-o no seguimento de um pequeno
artigo, pretensamente esclarecedor, que escrevi no “Público” dias antes do
regresso da “Corte Real”, em que elogiava os nossos marinheiros e
manifestava perplexidade pela rápida libertação dos dezanove piratas que
tinham sido feitos prisioneiros e que era resultado da desarticulação entre o
direito internacional e as leis penais dos diversos Estados a que pertencem
as forças que actuam na região.
A União Indiana já tinha sido admoestada por um dos seus navios ter
atirado sobre uma embarcação de piratas, atingindo alguns deles e uns
pescadores lá embarcados. Também as Forças Americanas fizeram fogo
sobre os piratas para salvar nacionais seus que estavam prisioneiros.
No momento em que iniciei este trabalho, havia 36 pescadores, na maioria
espanhóis, presos na Somália, na perspectiva de serem executados, mas que
acabaram por ser libertados, ao fim de 47 dias de cativeiro, contra o
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pagamento de um resgate de 2,7 milhões de euros. A Espanha, na sequência
deste sequestro, exigiu à comunidade internacional uma acção mais radical
contra os piratas que, no dizer da ministra da Defesa espanhola, “são uma
autêntica organização criminosa com ligações aos escritórios de advogados
mais sofisticados de Londres”.
Segundo um relatório norueguês, a forma de organização mais usual dos
piratas, no golfo de Aden, é surpreendente: “realiza-se um evento para
recolher fundos dos investidores, geralmente empresários somalis mas
também do Líbano e dos Emirados Árabes, conscientes de que o dinheiro
se destina a sequestro de navios”. Uma vez reunido o dinheiro, o barco, as
armas e a tecnologia, a equipa de piratas divide-se em dois grupos: um
grupo fica encarregado de assaltar os barcos, o outro tem por missão manter
a tripulação retida e dirigir a negociação do resgate. Cerca de 30% do
resgate, diz o relatório, “é canalizado para o pagamento de subornos às
autoridades locais”. Os lucros da pirataria são assim divididos por três: os
financiadores, os piratas e as autoridades somalis.
A pirataria na Somália tem sido altamente rentável para os que a praticam e
li na Imprensa estrangeira do fim do ano que naquele momento estavam
sequestrados dez navios e mais de duzentas pessoas de trinta
nacionalidades que aguardavam negociação dos resgates.
*
Está de regresso a Portugal a fragata Álvares Cabral, completando a missão
portuguesa nos mares da Somália a chefiar a Força da Nato que tem por
missão dificultar a actividade dos piratas naquela zona. O oficial português,
porta-voz da Força Naval, reconheceu à partida de Lisboa que o crime de
pirataria desapareceu do direito interno português e não tem sido possível,
por isso, deter e levar os piratas a julgamento em tribunais portugueses.
Quando eu ensinava, o Código Penal Português estabelecia para o crime de
pirataria a pena de 16 a 20 anos de prisão maior, podendo ir até aos 24 se
houvesse homicídio.
As Forças Navais que têm actuado no Corno de África e nas extensas águas
da Somália impediram, como ficou provado, muitos ataques dos piratas,
salvaram vidas e embarcações em perigo, reduziram os riscos da navegação
comercial naquela zona, mas não tinham combatido, até agora, a pirataria,
tendo-se limitado a reduzir os ataques.
Os piratas descobriram rapidamente que, suspendendo o ataque, atirando as
armas ao mar e levantando os braços, nada lhes aconteceria. E poderiam
continuar, em segurança, os seus ataques noutro local , com outras armas e
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AFINAL O QUE É A PIRATARIA
noutra ocasião. A considerável despesa com a meia centena de navios de
guerra, o sacrifício exigido às guarnições e o risco de vida dos que se
aproximam das embarcações-piratas nada irão resolver no futuro, quando
essas forças retirarem para os países de origem, se não houver profunda
alteração no procedimento geral contra os criminosos.
De facto, segundo a Imprensa britânica, o número de ataques ultrapassou os
250 em 2009, com tendência para aumentar. É sua opinião que, graças a
maior vigilância, os mares da Somália tornaram-se menos perigosos mas
continuam a ser os mais perigosos do mundo.
As Forças Navais da União Europeia e dos Estados Unidos, ao abrigo de
protocolos que desconheço, mas cujo conteúdo se advinha, já podem
entregar à justiça do Quénia os piratas presos. No fim do ano, a “Álvares
Cabral”, segundo a nossa imprensa diária e agora a Revista da Armada,
apanhou seis piratas, lavou dali as mãos e entregou-os às autoridades
marítimas das Seychelles.
A navegação continua, no entanto, a fazer-se pelo Corno de África, porque
os armadores preferem o risco dos ataques dos piratas e o pagamento dos
resgates aos custos de circum-navegar a África ou à demora em comboios
escoltados.
Antes de prosseguir, lembro um preceito do Direito Internacional muitas
vezes esquecido, embora não tenha, neste caso especial, aplicação prática.
Considerando que os piratas têm origem num Estado falhado, incapaz de
restabelecer a lei e a ordem em terra e no mar, o Direito Internacional
permitiria o desembarque de forças em perseguição e ataque aos piratas.
Mas a desastrada experiência terrestre americana em 1998, no tempo de
Clinton, não entusiasma tão arriscada e complicada actuação. Com outro
fim andam lá forças de paz de países africanos. Note-se que o Conselho de
Segurança já autorizou a perseguição dos piratas no mar territorial da
Somália, com o acordo do respectivo governo.
*
Com tantos problemas sérios que Portugal atravessa, pensei que o tema de
hoje não despertaria grande interesse. Além disso, a Academia está
habituada a ouvir dos seus oradores “concertos de música clássica”,
enquanto hoje, para variar, está a ouvir “música ligeira”.
Todos sabemos desde a infância ou a adolescência o que são piratas, que
eles faziam base nas ilhas das Caraíbas, que assaltavam navios, bebiam
rum, não eram para brincadeiras e que os seus capitães tinham uma perna
de pau, um gancho a substituir uma das mãos, uma pala preta a tapar um
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dos olhos e, por vezes, um papagaio ao ombro. Muitos sabemos, pelo
menos desde a Escola Naval, que os que trabalhavam para um Estado ou
tinham o seu patrocínio, se chamavam corsários. Adiante voltaremos a falar
desta “parceria público-privada”.
Também nos lembramos que, nos séculos XVI e XVII, no auge da pirataria,
a rainha Isabel I de Inglaterra tinha bons amigos entre os corsários que para
ela trabalhavam, sendo seu favorito, reza a História, Sir Francis Drake que,
além de ter contribuído para a derrota da Invencível Armada, se tornou
famoso pelos assaltos aos galeões espanhóis carregados de ouro e prata
roubados aos Incas, aos Maias e aos Azetecas na Cordilheira dos Andes. A
rainha não tinha problemas de consciência porque, afinal, era “ladrão que
rouba a ladrão” e até recebia umas comissõezinhas sobre o valor dos
roubos, não sei se para ela se para o Estado. Há quem saiba, mas a rainha
considerou ilegais as escutas feitas no palácio e mandou destruí-las
rapidamente. Foi um bom exemplo da promiscuidade entre a Política e a
Pirataria.
Depois da descoberta da América, abriu-se um largo campo à actuação dos
piratas e dos corsários que, especialmente no século XVIII, actuavam com
completa impunidade nos mares das Antilhas. No século XIX a pirataria
intensificou-se nos mares da Indochina, onde actuava uma profusão de
malaios bem organizados que se tornaram famosos e obrigaram as forças
navais espanholas, holandesas e inglesas a dirigir contra eles expedições de
guerra e a travar verdadeiros combates navais.
Os tempos mudaram, a pirataria parecia ter passado de moda e os crimes
marítimos mais visíveis passaram a ser, sucessivamente, os tráficos de
escravos, de armas e de drogas.
Antes de prosseguir, lembro que a palavra pirataria, dada a evolução que se
verificou na sociedade, tem hoje vários homónimos, sendo o mais usado o
que é aplicado na electrónica, na Internet e nos “down-load” musicais.
*
A pirataria foi a preocupação mais antiga do mundo marítimo.
Historicamente, ela teve uma importância considerável porque a
insegurança dos mares foi, durante séculos, um factor dominante.
A “desnacionalização” do pirata é uma das regras mais velhas que se
encontram no direito marítimo e traduz a ideia, juridicamente exacta, de
que o princípio de não interferência em navios de outras bandeiras não é
válido em caso de pirataria.
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AFINAL O QUE É A PIRATARIA
O interesse geral da comunidade que exercia a sua actividade no mar alto
exigia que se pusesse fim a manobras criminosas, contrárias ao direito das
gentes. Importava, pois, que cada interessado tomasse medidas destinadas a
assegurar a livre e pacífica utilização do mar alto. Daqui surgiram o direito
e o dever que qualquer navio tem de aprisionar o pirata, independentemente
da sua nacionalidade.
No auge da pirataria aceitava-se um processo sumário e o captor não era
obrigado a trazer o pirata para julgamento em terra, podendo executá-lo, e
se o juiz em terra se recusasse a julgar os piratas ou se o julgamento se
apresentasse demorado, o captor podia fazer justiça pelas suas próprias
mãos. Considerava-se, e nada se alterou neste aspecto, que um navio que
opera com o propósito de cometer este crime é um navio pirata em qualquer
momento da sua viagem e a tripulação deve ser considerada culpada,
mesmo se o assalto tiver sido frustrado.
*
Entendeu-se por pirataria, através dos tempos, o assalto a um navio por
outro navio privado em proveito dos próprios assaltantes. Mas o assunto
não era tão simples e nem sempre a definição foi consensual. Pelo
contrário, pirataria é daqueles conceitos que, na doutrina, no costume, na lei
internacional e nas legislações nacionais tiveram grande dificuldade em
encontrar acordo e só a Convenção do Direito do Mar de 1958, confirmada,
com redacção ligeiramente diferente, pela de 1982, deu uma definição
clara, indicando o procedimento a adoptar pelos captores.
Existe a aceitação geral de que o produto do roubo feito pelos piratas deve
ser restituído ao dono, mas alguns tribunais reservam para o captor do
pirata uma parte do valor dos bens recuperados.
Qualquer navio de guerra tem o direito de visitar um navio suspeito da
prática de actos de pirataria para confirmar a suspeita e, se assim for, o
navio pirata perde a nacionalidade do Estado da bandeira e pode ser julgado
no Estado do navio de guerra de acordo com a sua legislação. O Estado da
bandeira do navio pirata tem o direito de pedir explicações sobre a visita, o
apresamento ou o julgamento.
*
Embora toda a gente saiba o que é pirataria, detectei na história
contemporânea alguns erros na definição de pirataria por parte de quatro
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governos e um consultor jurídico das Nações Unidas, algumas vezes, é
certo, por conveniência política ou militar.
Um deles é o do navio de guerra da marinha americana Shenandoah que
em 1865, alguns meses depois de terminada a guerra Norte-Sul, continuava
a atacar os navios dos Estados do Norte e foi considerado pirata pelas
autoridades do seu país já unificado. Tendo entrado no porto de Liverpool,
o governo britânico, contrariando a visão do governo americano, não o
considerou pirata porque ele só atacou enquanto não foi informado do fim
da guerra e não era em proveito próprio.
Outro caso é o do paquete Santa Maria que foi tomado de assalto, em 23 de
Janeiro de 1961, pelo capitão Henrique Galvão e pelos seus companheiros
que tinham embarcado como passageiros com esse objectivo. Queriam
levá-lo, ao que parece, até Angola como protesto contra a política
ultramarina portuguesa. O governo, não havendo forças portuguesas na
área, invocou a situação de pirataria para levar as forças inglesas e
americanas a interceptar o navio. Como o argumento não colou porque o
acto era político e não criava perigo para a navegação, foi usado, em
alternativa, o pretexto da protecção dos passageiros e tripulantes
americanos a bordo do “Santa Maria”. Entretanto, o navio entrou no porto
do Recife, foi restituído aos proprietários e os assaltantes foram deixados
em liberdade.
Embora não venha citado em qualquer livro, ocorre-me outra confusão em
que intervim pessoalmente.
Todos nos lembramos da ocupação de Nagar-Aveli, no interior de Damão,
quando o Tribunal Internacional de Justiça reconheceu o nosso direito
àquele território, mas não nos deixou atravessar terras indianas para a
reocupação.
Em 1961, um exército de trinta mil homens entrou em Goa, “a jóia cultural
e religiosa do Império”, como alguém lhe chamou. Entre estes dois
acontecimentos, navios de guerra da União Indiana apresaram embarcações
goesas que pescavam, como habitualmente, no mar alto adjacente ao mar
territorial do país vizinho. As autoridades navais portuguesas participaram
o acontecimento e o ministro da Marinha solicitou ao estado-maior um
parecer sobre “aqueles actos de pura pirataria”. O parecer era simples, mas
tornou-se ingrato porque o nosso ministro não se lembrou do que eram
actos de pirataria.
No livro “Origem e Desenvolvimento do Direito do Mar”, de autoria do
prof. Anand, da Universidade de Nova Deli e consultor das Nações Unidas,
encontrei outra errada versão de pirataria.
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AFINAL O QUE É A PIRATARIA
O autor, em capítulo dedicado à chegada dos Portugueses à Índia, elogia o
grande sucesso da viagem de Vasco da Gama, a introdução de canhões no
Oceano Índico, a criação do Império Marítimo Português e cita os “actos de
pirataria” praticados por Vasco da Gama no seu regresso à Índia. O autor
explica que sendo os Portugueses incapazes de competir com os
comerciantes Árabes, Hindus e do Oriente, Vasco da Gama usou a força da
sua Armada de 15 navios, com canhões, para atacar a navegação comercial
dos concorrentes, cometendo – em sua opinião – verdadeiros actos de
pirataria, com o objectivo do controlo efectivo do Mar. E cita também
exemplos desses actos, que podiam até ser o que hoje, civilizadamente, se
chama crime contra a humanidade, mas não eram com certeza pirataria,
porque Vasco da Gama estava ao serviço do Estado e não actuava em
proveito próprio: o que fazia não era substancialmente diferente do que
fizeram os submarinos alemães. Atirar sobre os náufragos é que valeu dez
anos de prisão ao almirante Doenitz, no Tribunal de Nuremberga.
Poderíamos chegar à conclusão de que Vasco da Gama foi um precursor da
teoria que ainda entusiasma tanta gente e que hoje parece uma verdade de
La Palice, considerando o poder marítimo como facilitador do poder
económico.
*
Um outro exemplo encontra-se no livro “International Law”, publicado
pela Academia de Ciências da URSS, para uso nos cursos superiores de
direito. Cito, “Os navios que cometam actos de pirataria (…) devem ser
apresados pelos navios de qualquer Estado e, se oferecerem resistência ou
tentarem a fuga, devem ser afundados. São considerados actos de pirataria
os actos de violência cometidos por navios ou as suas tripulações no mar
alto. Na época do imperialismo a pirataria tinha características especiais e
era um dos métodos que os Estados imperialistas usavam com propósitos
agressivos”.
E continua, “Durante a Guerra Civil de Espanha navios de guerra de
Estados fascistas (Alemanha e Itália) e também navios dos rebeldes de
Franco atacaram navios mercantes soviéticos. Para evitar estes actos de
banditismo, um grupo de Estados interessados aprovou o NYON
Agreement em 1937, que considerava estes actos como pirataria e dava a
qualquer navio de guerra o direito de destruir os navios atacantes” (fim de
citação). Todos sabemos que não eram actos de pirataria: era a guerra civil.
É verdade que os piratas, embora sempre presentes no Pacífico, pelo menos
entre Malaca e o sul da China, desapareceram durante muito tempo das
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preocupações do mundo ocidental e do nosso imaginário. O crime de
pirataria desapareceu, indevidamente, ao que se vê, do código penal de
muitos países, o que levou, por exemplo, Dickinson, em 1925, a perguntar
se “o crime de pirataria estava obsoleto”.
Os actos de pirataria diminuíram a ponto de quase desaparecerem. As
possibilidades de comunicação e a extrema mobilidade dos navios de
guerra e da aviação tornaram mais difícil a acção dos piratas.
O célebre livro de Ortolan, “Diplomatie de la Mer”, dedica várias páginas à
Pirataria e reconhece, já em 1844, que ela estava em quase total extinção e
elogia, a propósito, a acção da França ao pôr termo aos ataques dos
berberes do Norte de África à navegação cristã, com um sistema e num
ambiente bastante semelhantes ao que se passa hoje na Somália.
Carlos Testa, primeiro professor e pai do Direito Internacional Marítimo
em Portugal, não faz, no seu livro, qualquer referência à pirataria, mas
dedica alguns parágrafos aos corsários, “prática que – escrevia ele – era
aprovada pelos Estados para quem trabalhavam ou com quem tinham
acordos, chegando a admitir-se que o corsário devia possuir uma “carta
patente de corso” emitida pelo Estado para que trabalhava, a fim de não ser
confundido com piratas. Depois de mais algumas considerações, concluía
Carlos Testa em 1899 que o corso constitui um aspecto da guerra que
entrou em declínio e se encaminha para o completo abandono.
Também acerca do desaparecimento da pirataria, escreveu o professor da
Universidade de Génova Olivier de Ferron em 1958: “tendo-se alterado
profundamente as condições gerais de navegação, a repressão da pirataria e
suas modalidades levantam um problema muito mais teórico do que
prático” (fim de citação).
Foram considerações deste tipo que levaram muitos Estados a eliminar da
lei penal, como referi, o crime de pirataria. Mas os gurus do direito
internacional marítimo falharam a previsão, porque há ataques de piratas,
não só na Somália, mas também na Nigéria, na Tanzânia, no Bangladesh e
na Indonésia, contra navios a navegar, navios fundeados e até navios
atracados. Estes últimos, como não são pirataria, levaram a IMO a criar o
crime internacional “assaltos à mão armada a navios” cometidos no mar
territorial ou nas águas interiores. E assiste-se, em várias zonas do mundo,
ao aumento do número de navios sequestrados por piratas.
*
Actualmente, de acordo com a lei internacional, todos os Estados devem
cooperar na repressão da pirataria e apresar, no mar alto ou fora da
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AFINAL O QUE É A PIRATARIA
jurisdição de qualquer Estado, um navio pirata ou em poder dos piratas e
prender as pessoas que se encontrem a bordo, cabendo o seu julgamento
aos tribunais do Estado que fez o apresamento. O Maritime Safety
Committee propôs, já em 1983, uma série de medidas que incluíam o uso
da força.
Em 1956, a Comissão de Direito Internacional da Organização das Nações
Unidas, que preparou os trabalhos para discussão e aprovação em 1958,
tornou finalmente claro, e parece que em definitivo, o conceito de pirataria,
aceite tanto na Convenção de 1958 como na de 1982.
Chama-se a atenção para não considerar pirataria certos actos como, por
exemplo, quando parte da guarnição de um navio de guerra se revolta e se
apodera do navio por motivos políticos; quando a tripulação de um navio
mercante se revolta e mata o capitão ou mestre; e quando os actos são
praticados no mar territorial ou em águas interiores. Todos os referidos
actos caem apenas na jurisdição do Estado da bandeira do navio.
Um acto de pirataria deve satisfazer as seguintes condições:
a) Acto ilícito de violência, de detenção ou de depredação, cometido, para
fins privados, pela tripulação ou pelos passageiros de um navio ou de
uma aeronave privados, no mar alto ou fora da jurisdição de algum
Estado;
b) Acto de participação voluntária num destes actos ou que tenha por fim
incitar ou ajudar intencionalmente os actos enunciados.
A Comissão sublinhou que a intenção de lucro, ao contrário da tendência de
certos tribunais, não é indispensável para constituir acto de pirataria.
Também há pirataria se existir rapto, sequestro, ódio ou vingança.
Com a sua actualização na década de 60, a Ordenança do Serviço Naval
reproduz o estabelecido no direito internacional. Faltou a Portugal adaptar à
situação existente os Códigos Penal e de Processo Penal, e à NATO
negociar, em tempo oportuno, com os Estados vizinhos da Somália a
entrega dos piratas presos.
Fica esclarecido que pode haver dúvidas ou omissões nas legislações
nacionais sobre o crime de pirataria e sobre o procedimento a adoptar nos
julgamentos dos piratas, mas não é discutível a definição de pirataria nem a
autorização internacional para os capturar e punir.
Termino como comecei, insistindo em que tem havido qualquer coisa de
estranho na incapacidade das organizações internacionais e dos Estados em
encontrar formas eficazes de combater a crescente pirataria na Somália.
Alguém conhecedor da situação escreveu recentemente que o número de
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piratas está a aumentar, que a área onde actuam é enorme e que é
fundamental ter patrulhas aéreas marítimas que cubram o máximo de
espaço. Para quê? Perguntaria qualquer cidadão vulgar, se não os prendem
nem os afundam?
É verdade que li, aqui e além, várias justificações como a ONU exigir
respeito pelos direitos humanos, as Forças Navais em presença quererem, a
todo o custo, evitar a violência e o derramamento de sangue e ter sido
difícil negociar com os países vizinhos da Somália a colocação em terra dos
piratas presos.
E juro que li também, há pouco tempo, na respeitável revista “The
Economist” que navios das Forças que actuam nos mares da Somália já
deram aos piratas – para poderem regressar a terra e continuar o seu
trabalho – medicamentos, água e combustível, o que é profundamente
cristão e chega a parecer uma metáfora da Bíblia.
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