Carisma de Guarnieri domina a tela
Filme de José Sette sobre o músico
paulista foi o destaque da abertura
da 32a edição do Festival de Brasília
do Cinema Brasileiro
De volta à Sala Villa Lobos, lugar que leva o nome do maestro brasileiro que conviveu
com o grande homenageado da noite, a abertura da 32ª edição do Festival de Brasília do
Cinema Brasileiro, na noite de terça-feira, foi marcada pela harmonia da música de
Camargo Guarnieri e pela reunião de alguns personagens notáveis do cinema nacional,
como Nelson Pereira dos Santos, Vladimir Carvalho, Cláudio MacDowell, João Batista
de Andrade, , além de atores e cineastas da cidade. A mãe do cineasta Glauber Rocha,
Dona Lúcia Rocha, que tradicionalmente prestigia o Festival, esbanjou simpatia na
edição que homenageia o filhão.
O governador Joaquim Roriz e o Ministro da Cultura Francisco Weffort (representado
na festa pelo secretário do audiovisual do MinC, José Álvaro Moisés) não
compareceram à cerimônia. E mais uma vez enfatizando o perfil do Festival de Brasília
como cenário de manifestações críticas, jovens à entrada do Teatro Nacional seguravam
faixa contra o senador Luiz Estevão, outro ausente.
A sugestão de traje para a abertura, roupas em preto e branco ou fantasia de algum
personagem do cinema nacional, indubitavelmente não colou, apesar de muitos estarem,
naturalmente de preto. Algumas poucas pessoas chamaram atenção. Foi o caso da
funcionária do Senado Vandira Peixoto, vestida de Marquesa de Santos e do
maranhense Chico Coimbra, vestido de malandro da ópera. A arquiteta Joana
Trautvetter homenageou Luz Del Fuego, envolta por uma grande cobra de plástico.
Carmem Miranda foi outra que apareceu por lá acompanhada, é claro, dos malandros
cariocas.
A cerimônia de abertura começou com uma hora de atraso. O ator Eduardo Conde volta
a ser o apresentador oficial do Festival, depois de uma ausência de quatro anos. Ao seu
lado, Marta Benévolo, diretora do Espaço Cultural 508 Sul. Após breve apresentação,
José Sette, diretor do filme Encantamento de Camargo Guarnieri, exibido na noite, falou
sobre a felicidade que o maestro e compositor Camargo Guarnieri (morto em 1993)
ficaria em saber da homenagem que o Festival prestou a ele. O diretor salientou a
ligação do maestro com a cidade: a Sinfonia Nº 4, executada pela Orquestra Sinfônica
do Teatro Nacional, foi composta a pedido de Juscelino Kubistcheck na época da
construção da capital.
Lamentavelmente, a Orquestra, conduzida pelo maestro Marcelo Ramos, ficou
escondida no fosso. Não era possível enxergar um músico sequer. Tamanho
ocultamento não se justificava, já que os músicos não estavam ali para executar a trilha
sonora do filme. Uma pena. O palco, então, foi tomado pelos cinegrafistas, as estrelas
daquele momento. A Orquestra foi também prejudicada por um pequeno acidente:
Depois do estouro de um spot de luz, a platéia levantou-se assustada temendo o início
de um incêndio.Um bombeiro, devidamente uniformizado, acompanhado de um extintor
de incêndio, chegou visivelmente sem graça por não enxergar sinal de fogo, mas sua
presença foi bastante aplaudida pelos convidados. Os músicos, certamente, não
entenderam o porquê de tantas palmas. Gracinhas à parte, a atitude da público
demonstrou uma tremenda falta de respeito à Orquestra, reforçada pelos desagradáveis
celulares cujos donos insistem em deixá-los ligados durante execuções desse tipo (não
foi diferente durante a exibição do documentário). Para completar, pessoas interessadas
mais no bochico que no cinema perambulavam pela parte superior do teatro,
conversando tão alto que atrapalhavam quem estava disposto a ouvir o concerto e
assistir ao filme.
Mas o que comandou mesmo a noite foi o cinema. Não poderia ser diferente. O
belíssimo documentário de José Sette estabeleceu imensa empatia com o público.
Todo o carisma de Guarnieri, acompanhado da magia de suas composições,
ilustradas por referências plásticas, comoveram quem assistiu ao filme. Alguns
depoimentos do maestro despertaram reações na platéia como os que se referem à
ausência de bons professores brasileiros, JK e Brasília, Mário de Andrade e a cultura
brasileira: “Não confundam Mário de Andrade com Oswald de Andrade. Mário foi
fundamental para a formação da cultura brasileira”. O irreverente maestro ganhou de
vez a platéia ao elogiar a cidade e JK: “Juscelino foi o maior homem do século. Criou
essa maravilha que é Brasília”.
Falecido em 1993, Camargo Guarnieri não pôde testemunhar o surgimento de
movimentos como o mangue-beat e à reinvenção que se tem visto da música popular
brasileira, incorporando elementos de tradições populares. Daí, a fala incisiva: “O
músico brasileiro deve se interessar por aquilo que é nosso. Não tem Maracatu. Não tem
frevo. Ninguém sabe nada”. Ao final, lançou a provocação: “O Brasil hoje é uma
bagunça. Eu fico pensando como será daqui a uns anos. Ninguém entende o Brasil mais.
Você entende o Brasil?”.
Depois desta brilhante aula de brasilidade, os convidados voltaram ao foyer para o
cocktail. Regado a uísque, vinhos e uma infinidade de petiscos, curtiram parte do
glamour que envolve, a cada ano, o Festival de Brasília.
Renata Caldas
Jornal de Brasília 24/11/1999
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