THIAGO RESENDE MIZIARA
TEOLOGIA DO DIREITO: A INFLUÊNCIA DO FENÔMENO RELIGIOSO NA
PRODUÇÃO DE NORMAS JURÍDICAS.
Monografia apresentada ao curso de
graduação em Direito da Universidade
Católica de Brasília – UCB, como requisito
parcial para a obtenção do Título de
Bacharel em Direito.
Orientador: Prof. Paulo Bosco de Souza.
Brasília
2008
Dedico este trabalho de conclusão de
curso aos meus queridos amigos de
turma, Juju, Gugu, Cecéu, Léo, Paty,
Caroca, Lara, Michelly e Ethi, cujas
presenças na faculdade tornaram as
aulas de tal forma tão prazerosas que
minha graduação no curso de Direito
transcorreu-se na mais plena alegria, paz
e contentamento. Amigos, foi um prazer
ter compartilhado essa etapa de minha
vida com vocês.
AGRADECIMENTO
Agradeço primeiramente a Deus, que é a fonte de todo o meu saber,
inteligência, fé e conhecimento, por ter me possibilitado enfrentar e vencer mais esse
desafio de minha vida. Agradeço aos meus pais, Arnaldo e Helena, que não
mediram esforços para me apoiar no meu desenvolvimento acadêmico, oferecendo
também todo o amor e carinho de que eu muito precisei. Agradeço aos meus irmãos,
Michelle e Arnaldo Júnior, cujos companheirismos faziam-me sentir importante,
suscitando em mim a confiança necessária para seguir meu caminho sem vacilar. E,
por fim, agradeço à minha querida noiva, Juliana, que em todos os momentos de
nossos estudos foi a minha inspiração para o meu progredir, tanto acadêmico
quanto pessoal e espiritual.
“A Moralidade e o Direito nasceram
quando o homem deixou de viver pela
Alma do Universo.”
(Lao-Tsé)
RESUMO
Referência: MIZIARA, Thiago Resende. Teologia do Direito: A influência do
fenômeno religioso na produção de normas jurídicas. Defesa em 2009. 117 folhas.
Monografia de curso de graduação em Direito – Universidade Católica de Brasília UCB, Brasília, 2009.
A presente monografia versa sobre a análise do fenômeno religioso e suas
influências
na
produção
de
normas
jurídicas
reguladoras
da
sociedade,
principalmente as referentes aos Direitos Humanos. Dessa forma, o trabalho propõe
o vislumbre de um Direito altamente arraigado por normas de caráter moral e
religioso, bem como o vislumbre da forma que essas normas estão conectadas às
normas de caráter jurídico. E mediante essa análise, o trabalho analisará o
desenrolar de um paradoxo entre o uso dos princípios religiosos e morais como fonte
de Direito e o princípio anti-religioso em um país que se autodenomina laico, mas
que, segundo Ferdinand Lassalle em sua teoria dos fatores reais de Poder, não
pode, negar suas raízes espirituais tão bem instaladas na mentalidade do Povo e
dos seus legisladores. A Religião e a Espiritualidade humana são um fenômeno
abrangente que invade a cultura, a forma de viver e, principalmente, a estrutura da
sociedade. Mesmo a Constituição Federal se utiliza de elementos religiosos para
estruturar a sociedade, pelo simples fato de que a própria sociedade já se encontra
estruturada sob normas de ordem religiosa e moral, algo que os filósofos do Direito
gostam de chamar de Jusnaturalismo Divino. O povo, como fator real de Poder, não
pode ser contrariado no tocante às normas mais intrinsecamente naturais a todos os
seres humanos, sob pena de se obter um Estado altamente autoritário e artificial.
Palavras-chave: Direitos Humanos, Teologia, Religião, Direito Natural, Filosofia do
Direito.
ABSTRACT
Reference: MIZIARA, Thiago Resende. Theology of Rights: The influence of the
religious phenomenon in the construction of Right rules. Defense in 2009. 117 pages.
Monografy of the Law Graduation Course – Catholic University of Brasília, Brasília,
2009.
The present monografy says about the analysis of the religious phenomenon and its
influences over the construction of Right rules that regulates the human society,
especialy about the rules of Human Rights. In this way, this assignment proposes a
sight of a Law very deep-rooted of religious and moral rules, as the glimmer of the
conection between that religious rules and the legal rules. By this analysis, this
assignment offers the analysis of a paradox between the use of religious and moral
principles as the Source of the Law and the antireligious principle in a country that
defines itself as a laical country, which, according to Ferdinand Lassalle on his real
factors of Power theory, cannot deny its espiritual roots so deep implanted in the
Mind of the Nation‟s People and its Parlamentars. The Religion and the human
Spirituality are a wide-ranging phenomena that trespass the culture, the human way
of life and, specialy, the structure of Society. Even the Federal Constitution makes
use of religious elements to structure the Society by the simply fact that the Society
itself is already structured over the religious and moral rules, which the philosophers
like to call the “Divine Natural Law” ou simply “Natural Right”. Being a real factor of
Power, the People of Nation cannot be opposed at the most deep natural rules of the
human being, otherwise the country would become an artificial and authoritative
State.
Keywords: Human Rights, Theology, Religion, Natural Law, Rights Philosofy.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 8
1. DO FENÔMENO RELIGIOSO. ............................................................................. 9
1.1 . O QUE É RELIGIÃO? .................................................................................. 9
1.2. O FENÔMENO RELIGIOSO NAS SOCIEDADES. ...................................... 17
1.2.1. OS MITOS. ........................................................................................... 17
1.2.2. AS RELIGIÕES. .................................................................................... 19
1.2.2.1. HINDUÍSMO. .......................................................................... ...20
1.2.2.2. BUDISMO.................................................................................. 21
1.2.2.3. CONFUCIONISMO.................................................................... 26
1.2.2.4. TAOÍSMO. ................................................................................. 28
1.2.2.5. XINTOÍSMO. ............................................................................. 30
1.2.2.6. JUDAÍSMO. ............................................................................... 31
1.2.2.7. CRISTIANISMO. ....................................................................... 33
1.2.2.8. ISLAMISMO. ............................................................................. 35
1.3. A RELIGIÃO E O ESTADO MODERNO. ..................................................... 38
2. DO DIREITO NATURAL. .................................................................................... 48
2.1 . O QUE É JUSNATURALISMO. .................................................................. 48
2.2. OS TEÓRICOS DO DIREITO NATURAL..................................................... 50
2.2.1. TEÓRICOS DO JUSNATURALISMO CLÁSSICO. ............................... 50
2.2.1.1. ARISTÓTELES. ......................................................................... 50
2.2.1.2. CÍCERO. ................................................................................... 52
2.2.1.3. SANTO AGOSTINHO................................................................ 53
2.2.1.4. SÃO TOMÁS DE AQUINO. ....................................................... 54
2.2.2. TEÓRICOS DO JUSNATURALISMO RACIONAL. ............................... 55
2.2.2.1. GRÓCIO. ................................................................................... 55
2.2.2.2. THOMAS HOBBES. .................................................................. 56
2.2.2.3. LOCKE. ..................................................................................... 57
2.2.2.4. MONTESQUIEU. ....................................................................... 58
2.2.2.5. ROSSEAU. ................................................................................ 59
2.2.2.6. KANT. ........................................................................................ 60
2.3. O JUSNATURALISMO E O DIREITO ATUAL. ............................................ 61
3. DA INFLUÊNCIA DA RELIGIÃO NO PANORAMA JURÍDICO ATUAL. ........... 62
3.1 . OS DIREITOS HUMANOS. ........................................................................ 62
3.2. A NORMA JURÍDICA E A MORAL RELIGIOSA. .......................................... 68
3.3. OS EFEITOS DA RELIGIÃO NO DIREITO ATUAL. .................................... 99
CONCLUSÃO ......................................................................................................... 109
REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 110
8
INTRODUÇÃO
Este trabalho de monografia discorre sobre a influência do fenômeno religioso
e das normas de caráter moral na produção de normas jurídicas positivadas e na
manutenção da estrutura da sociedade. A discussão acadêmica sobre esse tema se
mostra de vital importância pelo fato de que se tornam cada vez mais constantes os
debates e conflitos de posicionamento entre as diversas camadas populares e
influentes da sociedade frente a projetos de leis que violam a consciência moral das
pessoas e os bons costumes da população brasileira. O propósito deste trabalho é
esclarecer que tais costumes culturais e normas de caráter moral são, em última
análise, subproduto de normas intrínsecas à própria natureza do ser humano,
devendo ser respeitadas. Muitos filósofos encontram a fonte dessa natureza
intrínseca ao ser humano nas diversas manifestações de expressão religiosa e
espiritual, formulando
teorias jusnaturalistas que
podem
ser denominadas
genericamente de “Direito Natural Divino”.
O primeiro capítulo versa sobre os conceitos daquilo que vem a ser chamado
de Religião, bem como sobre a forma que esse fenômeno adquire em sua relação
entre a essência natural do ser humano e a formação da estrutura das civilizações e
países, abordando questões referentes ao Estado religioso, ao conceito de Sagrado
como fundamentação jurídica e ao advento do Estado laico, numa abordagem
histórica que se faz necessária desde os primórdios até a Idade Contemporânea.
O segundo capítulo trata dos conceitos e concepções tanto tradicionais
quanto racionalistas a respeito do Jusnaturalismo, dando enfoque no aspecto
transpessoal e religioso da experiência da vida humana e na sua relação com a
organização da vida em sociedade.
No terceiro e último capítulo, será abordada a questão dos Direitos Humanos,
sua natureza e sua aplicação no Direito positivado brasileiro, traçando-se um
paralelo entre a moralidade religiosa e a dignidade que os Direitos Humanos
constantes da Constituição Federal de 1988 pretendem preservar. Além disso, serão
demonstrados casos concretos que exemplifiquem a influência do fenômeno
religioso na produção de normas jurídicas, bem como a influência dos efeitos da
religião na estruturação política do Estado Moderno.
9
1. DO FENÔMENO RELIGIOSO.
1.1 . O QUE É RELIGIÃO?
A busca pela compreensão do que representa o ser humano para o planeta
Terra passa pela compreensão do que vem a ser o ser humano para si mesmo e de
qual vem a ser a sua relação com o ambiente onde vive. O homem, como ser
criativo, histórico e cultural, modifica e organiza o local no qual interage. Esse local,
por muito tempo, variou conforme o homem ia se adaptando ao seu modus vivendi1,
durante o período pré-histórico marcado pelo nomadismo. No entanto, com a
invenção das primeiras ferramentas, o ser humano passou a ser um animal cada vez
mais sedentário, fixando moradias e se aglomerando em tribos ou pequenas aldeias.
Esse fenômeno deu origem à sociedade e ao Direito, ainda que de forma bastante
rudimentar. E é a partir desse momento que a Religião passa a ter importância para
o ser humano2.
Com a mudança do estilo de vida nômade para o de vida sedentário, o
homem passou a especular as suas origens, a sua própria natureza, o que ele era,
de onde vinha, e para onde iria. Isso tudo com o propósito de dominar a Natureza e
organizar a comunidade em que vivia. Não se sabe se a origem da Religião deu-se
pela necessidade de o homem se autoconhecer, ou se se deu pela necessidade de
se auto-organizar em sociedades, ou se pela necessidade de ambas. Mas é quase
unânime, entre os pesquisadores, que a origem da Religião coincida com a da
civilização primitiva e com a das primeiras ferramentas3. Portanto, o fenômeno
religioso e o fenômeno do Direito como regulador da sociedade se misturam e se
confundem numa mesma identidade ao analisarmos as origens do ser humano. Não
se pode dizer, pois, que a Religião surgiu desvinculada do surgimento da sociedade
1
Modus vivendi: expressão do latim que significa “modo de vida” ou “modo de viver”. (Wikipédia, a
enciclopédia livre. Modus vivendi. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Modus_vivendi>.
Acesso em: 25 fev. 2009).
2
Sobre a transição do nomadismo para o sedentarismo e a origem da sociedade coletiva, do Direito e
da Religião, ver: MORAES, José Geraldo Vinci de. Caminhos das Civilizações. História integrada
geral e Brasil. São Paulo, SP: Atual Editora, 1998. pp. 8 e 9.
3
Sobre a necessidade de dominar a natureza, as origens das primeiras tecnologias e da Religião,
coincidindo com o fenômeno da sedentarização, ver: BRAICK, Patrícia Ramos. MOTA, Myriam
Becho. História das cavernas ao terceiro milênio. São Paulo, SP: Editora Moderna, 1997. pp. 5 e
6.
10
e do Direito, bem como não se pode dizer que tal separação exista, totalmente ou
efetivamente, nos dias atuais, como há de se demonstrar nos capítulos
subsequentes deste trabalho.
Ao se dizer que a Religião tenha surgido junto com os primeiros aglomerados
civilizatórios, não se quer dizer que, com isso, a espiritualidade humana foi inventada
ou tenha surgido apenas nesse momento. Muito pelo contrário, a espiritualidade
humana é inerente ao próprio ser do homem, e talvez ninguém saiba dizer se houve
uma origem para isso, ou se o homem sempre possuiu a espiritualidade como
característica intrínseca à sua espécie4. Deve-se, portanto, fazer uma clara distinção
entre o que é espiritualidade e o que vem a ser Religião. A espiritualidade é o cerne
da alma humana. É uma característica intrínseca a todo ser humano, independente
de idade histórica ou evolução de espécie. É uma predisposição que o ser humano
tem de se conectar e permanecer junto a algo transcendente à sua condição animal.
É, portanto, mais do que um fenômeno pessoal ou social. É uma característica
essencial sem a qual o ser humano perde sua própria definição. É o que distingue o
ser humano dos demais animais. É a alma. A espiritualidade humana é precedente a
qualquer forma de cultura ou de arte, a qualquer forma de regimento ou de Direito.
Sendo assim, a espiritualidade precede também à Religião5.
O que se diz é que a espiritualidade era uma condição preexistente quando
da formação do próprio ser humano. Dessa forma, era uma condição preexistente a
qualquer modus vivendi. Com o passar dos séculos, a espiritualidade humana foi
perdendo importância à medida que o homem foi se tornando sedentário. O modo
de vida sedentário foi ocultando, mais e mais, a expressão da alma humana. O
homem perdia identidade e não encontrava mais sentido para sua existência. Ao
mesmo tempo em que perdia a capacidade de se autocompreender, perdia a
4
Antropologicamente, segundo George Brown, pode-se dizer que a espiritualidade “traduz uma
dimensão do homem, enquanto é visto como ser naturalmente religioso, que constitui, de modo
temático ou implícito, a sua mais profunda essência e aspiração”. (Wikipédia, a enciclopédia livre.
Espiritualidade. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Espiritualidade>. Acesso em: 25 mar.
2009).
5
“Espiritualidade é um estado de consciência; é reconhecer em si a Vida, e a mesma Vida em tudo e
em todos. É consciência não-condicionada pela mente. É consciência livre da mente, para ser o que
é: não aquilo que pensamentos e crenças dizem ser. As palavras em um ensinamento espiritual
apenas apontam para o estado de consciência essencial do ser humano. Alcançado esse estado de
consciência, o ser humano vive a vida na Terra a partir dessa liberdade, expansividade e maestria
sobre a realidade interna e externa, pois está alinhado com a essência daquilo que o criou: a vasta
inteligência criativa que permeia e dá Vida a todo o Universo.” (Wikipédia, a enciclopédia livre.
Espiritualidade. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Espiritualidade>. Acesso em: 2 abr.
2009).
11
capacidade de compreender sua nova situação e a sua relação com os outros. A
sua nova condição de sedentário mudou a forma de se relacionar com a natureza e
com a propriedade. O homem simplesmente não sabia como lidar com estas novas
realidades emergentes: a sociedade coletiva sedentária e a propriedade privada. Era
necessário respostas. Era necessária uma ordem6.
Não contrariando as tendências pendulares, quando algo é totalmente
suprimido, um movimento de retorno é iniciado no sentido de se buscar alguma
característica do status quo ante7 que seja capaz de restabelecer o equilíbrio. Foi o
caso ocorrido por ocasião da origem das civilizações. Ao se agrupar em tribos e
sociedades, o homem, que já havia abandonado quase que completamente sua vida
nômade, sua solitude e sua espiritualidade, viu-se questionado por uma série de
perguntas existenciais, as quais as respostas dariam sentido à sua própria natureza,
controlando e regendo seu novo modo de vida em sociedade.
A necessidade de se orientar na vida é fundamental para os seres
humanos. Não precisamos apenas de comida e bebida, de calor,
compreensão e contatos físicos; precisamos também descobrir por que
8
estamos vivos.
Foi questão de necessidade. O homem precisava de respostas. Precisava
reencontrá-las. Precisava de algo que pudesse controlar a sociedade, algo que
servisse para si mesmo e para os outros. Assim, surgiu a Religião.
Dada a importância da busca pelo conceito de Religião, faz-se mister abordar
esse tema com mais profundidade. A Religião (do verbo religare, que significa
“religar” em latim) se define como um movimento cultural ou forma de expressão
humana que religa um estado atual ao estado preexistente da condição humana. É
um movimento de retorno às origens. Busca-se a verdadeira natureza originária do
homem9. Segundo os filósofos do Jusnaturalismo, como será demonstrado mais
adiante no trabalho, essa condição preexistente é tão essencial e natural no homem
que é capaz de manter a paz pessoal e social em qualquer situação. Segundo as
6
VICENTINO, Cláudio e DORIGO, Gianpaolo. História para o ensino médio: História Geral e do
Brasil. Volume único, São Paulo: Editora Scipione, 2001. p. 24.
7
Status quo ante: expressão do latim que significa “situação ou condição anterior”. (Wikipedia, a
enciclopédia livre. Status quo ante. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Status_quo_ante>.
Acesso em: 25 fev. 2009).
8
GAARDER, Jostein; HELLERN, Victor; NOTAKER, Henry. O Livro das Religiões. São Paulo:
Companhia das Letras, 2002. p. 8.
9
Sobre as definições de Religião mais aceitas no meio científico, ver: BENTHO, Esdras Costa.
Teologia e Graça. Disponível em: <http://teologiaegraca.blogspot.com/2007/08/conceito-e-definio-dereligio-as.html>. Acesso em: 2 abr. 2009.
12
religiões, o homem, no início de sua existência, vivia na condição original de paz e
harmonia. Vivia unido ao seu Criador, um Deus transcendente e absoluto. Aos
poucos, o ser humano foi perdendo essa condição de unidade e caindo no dualismo
e no separatismo. Caindo numa condição de escravidão de seu próprio novo modo
de vida: a noção do “meu”, da “propriedade”, etc. A “queda” foi uma questão de
escolha. O homem foi deixando de lado sua espiritualidade à medida que se tornava
cada vez mais sedentário, mais materialista. Tal é a interpretação racional e
teológica para a metáfora do Gênesis bíblico10. A Religião seria o instrumento capaz
de religar o ser humano decaído à sua condição anterior, à sua condição de unidade
com seu Deus-Criador, à sua liberdade.
A Religião é, portanto, o fenômeno cultural que se diz capaz de religar a
pessoa à sua paz e à sua harmonia preexistentes em seu antigo estilo de vida. É
uma proposta de ordem social atraente: viver de modo novo, como se vivesse
antigamente. Aproveitar o novo modo de vida, vivenciando, ao mesmo tempo, aquilo
que se vivenciava no antigo modo de vida. É uma proposta de resgate capaz de, ao
mesmo tempo, alimentar as respostas existenciais inerentes a cada pessoa e de
regular a paz social entre as pessoas de um mesmo convívio.
A ordem social só seria possível num universo de significação humana, onde
há sentido existencial para todas as coisas, onde a relação do homem com as
demais coisas do planeta tivesse um significado, onde há respostas para tudo.
Como esclarece Rubem Alves, “A Religião aparece como a grande hipótese e
aposta de que o universo inteiro possui uma face humana.”11 No mesmo sentido,
Luckmann prega que “Religião é o fenômeno que proclama que toda realidade é
portadora de um sentido humano e invoca o cosmos inteiro para significar a validade
da existência humana” (apud ALVES, 1999, p. 34). Em outras palavras, a Religião
surgiu como uma “Ordem social”, um tipo de Estado primitivo, um tipo de
organização civilizatória. E assim permaneceu por muito tempo. Religião e “Ordem
social” se confundiam e se complementavam. Um não existia sem o outro.
10
“Gênesis 1 a 3 não pode ser lido com um relato histórico empírico e pontual que descreve os
primeiros dias da humanidade. Trata-se de uma “parábola” como uma metáfora narrativa que exprime
uma substância histórica profunda, porém, sem estabelecer referências pontuais a personagens,
lugares e tempos. Em roupagem mítica se reflete sobre a realidade histórica vivenciada pelo povo da
Bíblia. Não se trata de uma biografia de Adão e Eva.” (MOREIRA, Gilvander (Frei). Criação de um
outro mundo. Disponível em: <http://www.gilvander.org/genesisrecriacao.htm>. Acesso em: 2 abr.
2009).
11
ALVES, Rubem. O que é Religião? 6. ed. São Paulo, SP: Edições Loyola, 1999. p. 34.
13
No entanto, apesar de toda a influência das religiões na história da
humanidade, de toda influência no surgimento da ordem social e do Direito primitivo,
que culminariam com a formulação da noção de Estado moderno, para muitos
pesquisadores e cientistas atuais, negar a existência da Religião tem sido uma forma
de firmar o ser humano como um fenômeno objetivo no Universo, tirando dele a
significação espiritual e simbológica em prol do avanço tecnológico. A ciência diz
que o homem não precisa de respostas míticas ou religiosas para se
autocompreender. Ele só precisa se enxergar como um fato objetivo no universo.
Somente fatos objetivos, desprovidos de valor e de significados especiais, podem
ser estudados e analisados pela ciência.12
De acordo com alguns cientistas, o homem só conseguiria realmente se
conhecer se negasse a existência e a importância da ordem religiosa para si e para
a sociedade. Durante séculos, o ateísmo e a negação da religião como ordem social
foram vistos como algo necessário ao avanço da civilização. Muitas vezes, o avanço
científico só foi possível ao se suprimir a ordem imposta pelos valores religiosos e
pela ordem regida pela moralidade espiritual e natural. A ciência precisou abdicar
dos valores religiosos para poder analisar o Universo de forma objetiva, como se
fosse apenas uma coisa, vazia de significação.
Se tal postura de negação foi realmente de ocorrência imprescindível para o
avanço da humanidade, não é especulado pelos filósofos (nem deveria ser para os
demais cientistas). A Filosofia acredita que o fato de algo existir ou não
objetivamente não tem a ver com a sua significação ou com a sua valoração. Muito
menos com a sua negação. Para ela, o que importa é se o fato tem repercussão ou
não, se tem eficácia ou não, se cumpre seu objetivo social ou não. A análise
filosófica é mais profunda. Não calcula, nem delimita as coisas em certo ou errado,
em necessário ou desnecessário. Muito menos “coisifica” e desqualifica de valores
humanos seu objeto de estudo. Ela apenas se preocupa se determinado fenômeno
realmente tem peso e importância para a sociedade. E se ele tem peso, não pode
ser negado. A Ciência poderia até dizer que as Religiões são falsas ou verdadeiras,
mas nunca dizer que são inexistentes. Pois não deveria importar, para as Ciências
ou para a Filosofia, a taxação das Religiões em falsas ou verdadeiras. O que deveria
12
Sobre o dilema entre ciência e religião, ver: MERTON, H.K. Contestações religiosas e racionais.
Disponível em: <http://artedartes.blogspot.com/2009/03/constestacoes-religiosas-e-racionais.html>.
Acesso em: 2 abr. 2009.
14
importar é que, mesmo de forma abstrata, a Religião também é um fato social. E
como fato social, só se pode dizer que é existente. Não se pode negá-la.
A Religião é um fato de grande peso social para a história da humanidade.
Ela trouxe, e ainda traz, algum tipo de ordem social. Nesse aspecto, Durkhein
acredita que, além de dever ser sempre considerada existente, religião alguma pode
ser considerada como falsa em aspecto bruto, e nenhuma pode ser negada, pois
sempre traz alguma utilidade social, sempre funciona e cumpre os objetivos a que se
propõe. Sobre isso, Durkhein comenta que:
[...] a ciência, em princípio, nega a religião. Mas a religião existe. Constituise num sistema de fatos dados. Em suma, ela é uma realidade. Como a
ciência poderia negar tal realidade? Não existe religião alguma que seja
falsa. Ela é uma instituição, e nenhuma instituição pode ser edificada sobre
o erro ou uma mentira. Se ela não estivesse alicerçada na própria natureza
das coisas, teria encontrado nos fatos uma resistência sobre a qual não
poderia ter triunfado. Nosso estudo descansa inteiramente sobre o
postulado de que o sentimento unânime dos crentes de todos os tempos
não pode ser puramente ilusório. Admitimos que essas crenças religiosas
descansam sobre uma experiência específica cujo valor demonstrativo é,
sob um determinado ângulo, em nada inferior ao das experiências
científicas, muito embora sejam diferentes. (apud ALVES, 1999, pp. 59 e
60).
O que explica a necessidade primária que as ciências tiveram de negar as
religiões é o simples fato de que as religiões representavam a ordem social. É só
mais uma evidência que corrobora que a Religião foi, e ainda é, uma força coatora
que atua na civilização, uma força que impede o homem de agir conforme seus
desejos íntimos e desordenados, uma força que impõe que os homens convivam
segundo um preceito comum a todos. A ciência sempre precisou de liberdade total
para obter êxito e avanços em seus experimentos. E ainda hoje é assim. Como será
abordadeo no capíltulo 3 deste trabalho, a ciência, quando precisa se inovar,
costuma bater de frente com alguma norma moral de caráter religioso. E essa norma
é impositiva, é uma norma de ordem social. Ainda hoje a estreita relação entre
Religião e Direito pode ser confundida quando aspectos muito naturais e básicos
são colocados em xeque, em ameaça. Discussões sobre a legalização do aborto,
sobre a pesquisa irrestrita com células-tronco, por exemplo, passam pelo crivo da
dignidade da pessoa humana e pelo direito à vida, valores considerados inalienáveis
ao ser humano pela força da espiritualidade e da moral religiosa. Hoje em dia, tais
direitos possuem até mesmo status constitucional no ordenamento jurídico brasileiro.
É um exemplo de como a espiritualidade adentra o âmbito da ordem social e da
15
normatização jurídica positivada. Segundo a moral religiosa, direitos fundamentais
como esses são vistos como de relação intrínseca ao próprio ser humano. Não
podem ser simplesmente ignorados, suprimidos, desrespeitados, mesmo que isso
signifique estagnação científica. É aí que entra o discurso da Religião como forma de
Jusnaturalismo, ou de Direito Natural. Algumas coisas precisam ser respeitadas, sob
pena de se obter um Estado autoritário e artificial, que não corresponde aos anseios
de seu povo.
A ciência precisou (e ainda frequentemente precisa) negar a religião pelo fato
de que ela representava (e ainda de certa forma representa) algum tipo de ordem
coatora13. A ciência deseja a liberdade irrestrita em prol do avanço. E o desejo é
aquilo que precisa ser freado. Não há necessidade de normas que impeçam aquilo
que não é desejado. Não se faz mister, por exemplo, proibir que as pessoas comam
terra, pois ninguém deseja isso. No entanto, alguns podem desejar tirar a vida de um
nascituro inocente (aborto), e isso não pode ser permitido. É um desejo íntimo que
infringe uma ordem coletiva, uma convenção moral que serve para todos: direito à
vida. A pessoa quer fazer o aborto, mas seria um crime. Não pode ser realizado. “O
desejo grita: „Eu quero!‟ A sociedade responde: „Não podes!‟, „Tu deves‟. O desejo
procura o prazer. A sociedade proclama a ordem”. (ALVES, 1999, p. 89).
Como dito no início deste capítulo, não se sabe quando exatamente a religião
surgiu, mas se sabe que surgiu como resposta à necessidade de o homem se
autoconhecer, de obter respostas às dores existenciais, de atribuir sentidos ao
universo, de manipular a natureza e o ambiente onde ele passou a viver,
estabelecendo uma ordem social. A Religião surgiu como necessidade de imposição
de uma ordem, confundindo-se, nas origens, com a noção que temos hoje daquilo
que vem a ser o Direito. O homem, adquirente de uma nova forma de vida, uma
forma de vida sedentária e materialista, precisou inventar uma normatização que
evitasse a instauração do caos advinda dos desejos incontroláveis da psique
humana. Para a Psicanálise, ciência concebida por Freud, a Religião é uma das
muitas instituições capazes de manter a ordem na sociedade, servindo como válvula
de escape das crises internas e dos anseios humanos, por meio de um processo
psicológico chamado “sublimação”, que age na repressão dos impulsos primais dos
13
Sobre a forma como as ciência, mormente o Direito, precisam negar a Religião, ver a concepção
historicista de Hegel em: COMPARATO, Fábio Konder. Ética. Direito, Moral e Religião no mundo
moderno. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2006. p. 318.
16
indivíduos.14 Além de norma coatora dos impulsos institivos, a Religião se propôs a
levar o ser humano a suprimir seus desejos e a entrar novamente em contato com
sua origem essencial, a espiritualidade inerente ao seu próprio ser, a sensação de
se estar unido a um estado original de paz e harmonia, de “não-desejo”, de
completude.
Dessa forma, a Religião tornou-se uma espada de dois gumes, servindo tanto
à coação e à supressão dos desejos caóticos quanto ao apaziguamento da
insatisfação do ser humano ao se sentir coagido por uma ordem externa, dando
alívio aos sofredores do povo, e tranquilidade e paz de espírito aos que vivem à
margem da sociedade. A Religião impõe ordem, mas, paradoxalmente, também
alivia tensões. Sem ela, a sociedade entraria em caos, tanto por meio dos desejos
descontrolados de uns quanto pelas revoluções constantes dos sofredores
marginalizados. Não poderiam ser mantidos o estilo de vida sedentário e o convívio
entre os homens junto à recém surgida realidade da propriedade privada. Era
questão de necessidade. “Se Deus não existisse, teria de ser inventado.”15 “Se os
homens já são tão maus com a Religião, como seriam sem ela?”16. A Religião é,
sim, um sofrimento social, uma forma de repressão externa, de coação aos desejos
íntimos. Mas é um sofrimento que também se constitui como ordem e alívio
espiritual, uma proposta de retorno ao “seio materno”, às origens, ao paraíso das
“não-necessidades”, ao paraíso da completude da alma e da eterna satisfação
plena. Como apregoa a célebre citação de Karl Marx, “o sofrimento religioso é, ao
mesmo tempo, expressão de um sofrimento real e um protesto contra o sofrimento
real. Suspiro da criatura oprimida, coração de um mundo sem coração, espírito de
uma situação sem espírito: a religião é o ópio do povo.” (apud ALVES, 1999, p. 68).
14
“A Ética pede a renúncia às gratificações puramente instintuais por outras em conformidade com
valores racionais transcendentes. A sublimação constitui a adoção de um comportamento ou de um
interesse que possa enobrecer comportamentos que são instintivos de raiz. Um homem pode
encontrar uma válvula para seus impulsos agressivos, tornando-se um lutador campeão, um jogador
de football ou até mesmo um cirurgião. Para Freud, as obras de arte, as ciências, a religião, a
Filosofia, as técnicas e as invenções, as instituições sociais e as ações políticas, a literatura e as
obras teatrais são sublimações [...]” (COBRA, Rubem Queiroz. A Psicanálise. Disponível em:
<http://www.cobra.pages.nom.br/ecp-psicanalise.html>. Acesso em: 3 abr. 2009).
15
Frase atribuída à Voltaire, importante iluminista francês da Idade Moderna. (Disponível em:
<http://www.mnecho.com/frases/religiao.htm>. Acesso em: 3 abr. 2009).
16
Frase atribuída à Benjamim Franklin, um dos muitos líderes da Revolução Americana. (Disponível
em: <http://www.mnecho.com/frases/religiao.htm>. Acesso em: 3 abr. 2009).
17
1.2. O FENÔMENO RELIGIOSO NAS SOCIEDADES.
1.2.1. OS MITOS.
O Fenômeno religioso é bastante abrangente, englobando os povos de todas
as culturas, mesmo as mais primitivas. Como já dito, a religião é um fenômeno
inerente à própria sociedade. Onde houver convívio entre dois ou mais humanos, se
fará mister algum tipo de ordenamento, ainda que seja um ordenamento moral e
principiológico. Isso serve para evitar que o homem seja senhor de sua própria
vontade, ou seja, que seu interesse pessoal se sobressaia ao direito alheio. Serve
para tornar possível o convívio social, sem que haja conflitos ou desavenças. Nesse
aspecto, não há um só povo ou sociedade humana que não tenha desenvolvido
algum tipo de religião.17 Primeiro elas surgem, geralmente, como mitos: histórias
fabulosas que servem de estereótipo para a explicação de algo que o homem não
pode compreender pela forma empírica ou científica. O mito é um molde pronto que
serve para explicar na prática o motivo da ocorrência de determinados fenômenos
da natureza e de alguns fenômenos de psique humana, como comportamentos tidos
como perversos e inadequados.18
Os primeiros mitos são um exemplo cabal de como a religiosidade humana
avançou no sentido de estabelecer a ordem e o convívio social. O mito, como forma
primária de religião, já buscava colocar algum tipo de sentido e ordem à existência
humana, apesar de não prescrever imperativos diretos de comportamento. Os mitos
gregos sobre os titãs e os deuses do Olimpo, por exemplo, são manifestações
intelectuais de como o homem tentava explicava os eventos que ocorriam na
natureza, como maremotos, furacões, terremotos, secas, eclipses, etc. Por meio de
analogias traçadas com essas histórias, o homem explicava como os eventos
naturais funcionavam, apontando soluções para seu controle eficaz (assim como é
17
“O fenômeno é um fato universal; ele se encontra em todas as culturas. Em todos os tempos,
lugares e povos encontramos o fenômeno religioso. Segundo Franz Bretano, a fenomenologia é a
“intencionalidade da consciência humana”. A função da fenomenologia é interpretar os fenômenos
que se apresentam à percepção. A fenomenologia surgiu para extinguir a separação entre “sujeito” e
“objeto”. Para Emanuel Kant, o fenômeno tem duas propriedades: tempo e espaço. O tempo é a priori
enquanto dedução lógica da coisa, e a posteriori enquanto identificação do objeto. Por isso, o homem
como ser religioso acredita numa divindade, dentro ou fora de si.” (HELLMANN, Gilmar J.. O
Fenômeno Religioso. Disponível em:
<http://200.195.151.19/ciesc/arquivos//uni_3/fenomeno_1205504174.doc>. Acesso em: 3 abr. 2009).
18
Sobre o conceito de Mito, ver: GAARDER, 2002, p. 19.
18
hoje a proposta das ciências, que visam explicar tudo a fim de obter o domínio). O
mito de Narciso19, por exemplo, é uma clara expressão de como o ser humano
explicava a sua relação de vaidade com seu próprio ego. O homem egoísta só se
preocupa consigo mesmo e com seu próprio prazer, ignorando a realidade a sua
volta. Narciso se afogou em um lago, atraído por sua própria imagem espelhada na
superfície. Ele ignorava a realidade alheia, a beleza alheia. Mas, inadvertido, ignorou
também os perigos reais a sua volta. É uma clara advertência para o que pode
acontecer às pessoas egoístas, de duro convívio social. Quem se fecha em si
mesmo não só perde a beleza dos outros, mas também se expõe ao perigo mais
facilmente. Torna-se um alienado, presa fácil.
Com o passar do tempo, os mitos foram dando espaço a sistemas mais
elaborados de explicação, como as histórias gregas de heróis e as tragédias.
Histórias como a de Édipo Rei e Antígona, por exemplo, tangem questões
fundamentais sobre aquilo que denominamos hoje de Direitos Humanos, mas que
na época eram entendidos como normas morais de caráter natural ao homem. Era o
início da reflexão do Direito como parte indissociável da religião, como algo
transcendente, algo preexistente e anterior à ordem das leis positivadas. A Trilogia
Tebana20, do escritor grego Sófocles, datada por volta de 450 a.C, conta-nos essa
história, na qual Antígona, personagem principal da tragédia, clama ao rei por uma
Lei moral e religiosa na qual poderia se justificar, independente de seus decretos
reais autoritários. Antígona havia sepultado, contra as ordens do rei, o seu irmão que
fora condenado a não ter sepultamento digno. Isso por ter sido morto numa guerra
em que lutava contra sua própria pólis. Um caso de deserção. Como traidor da
pátria, não teria direito a ser sepultado. Antígona desobedece ao decreto real, e
realiza o sepultamento do irmão. O rei a interpela, perguntando sobre seus atos,
julgando-os uma afronta a suas ordens. Antígona responde ao rei, invocando
normas de caráter moral, anteriores ao decreto promulgado por ele. Ela diz: “Agi em
nome de uma lei que é muito mais antiga do que o rei, uma lei que se perde na
origem dos tempos, que ninguém sabe quando foi promulgada”. Disse isso porque
acreditava ser errado que o corpo de uma pessoa fosse abandonado às feras, sem
que recebesse as devidas honrarias do sepultamento. Sófocles, em Antígona,
19
Sobre o mito de Narciso, ver: Wikipédia, a enciclopédia livre. Narciso. Disponível em:
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Narciso>. Acesso em: 3 abr. 2009.
20
SÓFOCLES. A Trilogia Tebana: Édipo Rei, Édipo em Colono, Antígona. 6. ed., Rio de Janeiro, RJ:
Editora Jorge Zahar, 1997.
19
aborda o respeito à dignidade de qualquer pessoa, independentemente de sua
nacionalidade ou de seus atos ilegais, como uma deserção.
1.2.2. AS RELIGIÕES.
Tempos depois, com a evolução dos mitos e das tragédias heróicas, podemos
apontar o surgimento das religiões propriamente ditas, como as conhecemos hoje. A
transição do mito propriamente dito para a religião em si deu-se de forma gradual e
lenta, não se abandonando, no entanto, alguns aspectos míticos ainda essenciais ao
homem.
Em todo o curso de sua história, a religião permanece indissoluvelmente
ligada a elementos míticos, e impregnada deles. Por outro lado o mito,
mesmo em suas formas mais grosseiras e rudimentares, traz em si alguns
motivos que de certo modo antecipam os ideais religiosos superiores que
chegam depois. Desde o início, o mito é religião em potencial. O que leva de
um estágio para outro não é nenhuma crise repentina de pensamento, nem
qualquer revolução de sentimento. Dessa forma, embora haja elementos
comuns entre o mito e a religião, a forma como a religião trata esses
elementos vai caracterizando seu distanciamento gradativo e, por fim,
radical em relação ao pensamento mítico. [...] Dessa forma, a transição do
mito para religião ocorre por um processo lento, gradual e dialético,
resultante da tensão entre as forças de conservação e de transição no
interior do pensamento mítico. Se ao final desse processo se pode observar
elementos comuns entre o mito e a religião, o mesmo não se pode dizer em
relação a sua forma. [...] Nenhuma religião pôde jamais pensar em cortar,
ou sequer afrouxar, os laços entre o homem e a natureza. Mas nas grandes
religiões éticas esse laço é feito e apertado em um novo sentido. A ligação
simpática que encontramos na magia e na mitologia primitiva não é negada
ou destruída.; mas a natureza é agora abordada do ponto de vista racional,
em vez do emocional. Se a natureza contém um elemento divino, ele não
21
aparece na abundância da sua vida, mas na simplicidade da sua ordem.
As religiões se diferenciam dos mitos por serem mais elaboradas, e por serem
mais pragmáticas do que intelectuais. A busca pela ordem é direta, e a violação das
regras traz claras consequências ao infrator. Enquanto que os mitos apenas
advertiam e explicavam, as religiões já prescreviam claramente os comportamentos
e estabeleciam ordenamentos. Vê-se, então, que as religiões surgiram com a
evolução gradual dos primeiros mitos do homem. São uma forma mais elaborada de
explicações para os acontecimentos universais, chegando a formular doutrinas, a
21
FERNANDES, Vladimir. Mito e Religião na Filosofia de Cassirer e a Moral religiosa. Disponível
em: <http://www.hottopos.com/notand11/vladimir.htm>. Acesso em: 27 abr. 2009.
20
prescrever práticas ritualísticas e a estabelecer normas de convívio social mais
rígidas. As religiões são mais impositivas que os mitos, pois surgiram em um período
em que a ordem se fazia mais necessária.
Dentre os tipos de religiões ocidental e oriental, podemos destacar as mais
importantes e influentes para a História da humanidade: o hinduísmo, o budismo, o
confucionismo, o taoísmo, o xintoísmo, o judaísmo, o cristianismo e o islamismo.
Cada qual surgindo em determinada época, com determinado propósito, e com
doutrinas voltadas para a regulação do comportamento humano, numa tentativa de
adequá-lo àquilo que seria o comportamento ideal, o comportamento natural e
original, de acordo com a espiritualidade primitiva e essencial inerente a toda
pessoa. Adiante, segue um pouco sobre cada religião e sua influência na sociedade
onde brotou.
1.2.2.1. HINDUÍSMO.
O hinduísmo é o conjunto das várias formas de religião que surgiram na Índia
depois que os indo-europeus passaram a ocupar o Norte desse país há cerca de 3 a
4 mil anos. (GAARDER, 2002, p. 40). No entanto, o peculiar do hinduísmo é que,
apesar de se apresentar por meio de várias formas de expressão religiosa e em
vários estágios históricos diferentes, todas essas variações são perceptíveis
simultaneamente. Apesar da complexa diversidade, ainda se pode enxergar o
hinduísmo como uma religião só. As principais escrituras doutrinais são o Livro dos
Vedas22, que consiste de quatro coletâneas datadas por volta de 1.500 a.C, e os
Upanishads, que são os textos mais influentes e lidos na Índia. Surgidos no auge do
período védico por volta de 1.000 a.C até 500 a.C, os Upanishads se constituíram
sob a forma de diálogos entre discípulo e mestre, introduzindo o praticante da
doutrina nos mistérios de Brahman, a força espiritual que permeia todo o Universo
(GAARDER, 2002, p. 41).
Com relação à influência do fenômeno religioso do hinduísmo na sociedade,
pode-se claramente apontar o rígido sistema de castas. Não há dúvidas de que esse
sistema é um forte exemplo de como a religião é capaz de ordenar e normatizar a
vida em coletividade. Na Índia, desde tempos antigos, houve quatro castas
22
Vedas: palavra do sânscrito que significa “conhecimento” (GAARDER, 2002, p. 40).
21
principais: a casta dos brâmanes (a mais alta casta, composta por sacerdotes), a
casta dos guerreiros, a casta dos agricultores, artesãos e comerciantes em geral, e
por fim a casta dos servos. Dessa divisão primária surgiram outras milhares de
castas, cada uma com uma especificidade ou peculiaridade diferente. Hoje em dia,
calcula-se que há cerca de 3 mil castas diferentes na Índia. A importância de se
saber a casta de uma pessoa está ligada à noção de “pureza” e de “impureza”.
Quanto mais pura for uma casta, mais alta é sua posição na sociedade,
determinando o tipo de profissão que ela pode exercer, com quem a pessoa pode se
casar, o que ela pode comer, com quem ela pode interagir e as regras de conduta e
de prática religiosa que ela deve observar. Além das castas normais, há um nível de
casta que está totalmente à margem da sociedade indiana. Trata-se dos “párias”, ou
os “sem casta”, ou ainda os “intocáveis”. É uma classe social composta por pessoas
criminosas, ou que cometeram algum tipo de transgressão social muito grave, sendo
de alguma forma expulsas de suas castas originais. São extremamente impuros e
ocupam o mais baixo nível na sociedade. Só podem exercer profissões como de
lixeiros, de varredores de rua, de limpadores de fossas e esgotos, etc. Não se pode
esquecer que, na Índia, há também uma pequena porcentagem de cristãos e de
muçulmanos. Mas estes ficam totalmente fora do sistema de castas. (GAARDER,
2002, pp. 41 e 42).
Atualmente, a sociedade indiana passa por um processo de mudanças, que
tem progredido de forma bastante lenta por causa da resistência popular. Apesar de
a nova Constituição de 1947 ter proibido a discriminação de pessoas por motivos de
classe social, a própria população do país resiste à mudança dos hábitos culturais
que têm origem direta na religiosidade hindu. O sistema de castas continua
regulando e normatizando a vida em coletividade, principalmente nas pequenas
aldeias, aonde as informações chegam com mais dificuldade. (GAARDER, 2002, p.
42). Essa é uma importante constatação de que a religião influencia profundamente
na forma como uma sociedade se organiza.
1.2.2.2. BUDISMO.
O budismo é uma religião que foi fundada há cerca de 530 anos a.C por
Sidartha Gautama, o filho de um poderoso rajá do norte da Índia. Sidartha nasceu
22
em meio ao luxo, entre fortuna e conforto. No entanto, uma antiga profecia advertia
que, se o príncipe entrasse em contato com o mundo exterior, abandonaria as
riquezas de sua vida por completo. Seu pai tentou de tudo para manter seu filho
dentro dos limites do palácio, mas, aos 29 anos, confrontando a proibição do pai,
Sidartha foge do palácio e entra em contato com um mundo exterior que até então
não conhecia: um mundo de dores, sofrimentos e miséria. Tal experiência o mudou
por completo. Renunciou à sua vida de príncipe e, sem se despedir, partiu para uma
vida de peregrinação. Aos 35 anos, após seis anos de rígida vida ascética e de
sacrifícios, sentou-se sob uma figueira durante sete dias e sete noites, alcançando a
compreensão sobre as verdades universais e absolutas. A pessoa que chega a tal
compreensão passa a ser chamada de “Buda”23, que significa “iluminado”,
“desperto”. Após sua compreensão espiritual, Sidartha, agora Buda, decidiu difundir
seus ensinamentos a todos aqueles que o quisessem ouvir, a fim de fazer o maior
número possível de pessoa alcançar, por seu próprio esforço, a iluminação, se
libertando do carma e das infelicidades.24
“O budismo cresceu dentro do hinduísmo como um caminho individual para a
salvação. As duas religiões têm muitos conceitos em comum: as doutrinas do
renascimento, do carma e da salvação.” (GAARDER, 2002, p. 54). No entanto,
apesar de ensinar muitas doutrinas em comum, Buda, que também passou a ser
chamado de sakiamuni (que significa “o sábio dos sakia”) provocou um choque
profundo na sociedade indiana ao bater de frente com a religiosidade tradicional
hinduísta, devido aos preconceitos de classe social a ela inerentes. Sidartha deixava
as autoridades sociais perplexas ao transmitir seus ensinamentos para todos que o
buscassem, independente de sexo, idade ou origem, e principalmente sem distinção
de casta social.
Ele lutou contra esse terrível flagelo, que desde a sua época até os nossos
dias (apesar das novas legislações) oprime milhões de indianos. A
justificativa para a eterna escravidão dos nascidos nas „castas inferiores‟ era
(e ainda é) a de que na próxima encarnação haveriam [sic] novas
oportunidades de renascimento melhores... A situação mais desumana era
a dos "párias", nascidos à margem do sistema de castas, chamados
"intocáveis", pois nenhum membro da sociedade deveria sequer tocá-los,
sob o risco de se tornarem impuros e acumular sobre si karma ruim. Por
23
Buda: do sânscrito Buddha, que significa “Desperto”, “Iluminado”. É um título dado na filosofia
budista àqueles que despertaram plenamente para a verdadeira natureza dos fenômenos e se
puseram a divulgar tal redescoberta aos demais seres. (Wikipédia, a enciclopédia livre. Disponível
em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Buda>. Acesso em: 24 fev. 2009).
24
Sobre as origens do budismo, ver: Buda: biografia. Disponível em:
<http://www.budismo.hpgvip.ig.com.br/biografia.html>. Acesso em: 2 abr. 2009.
23
essa razão, Sakiamuni ensinou em seu próprio idioma, um dialeto do
nordeste da Índia, evitando o sânscrito empregado pelos hinduístas e
eruditos, o símbolo de uma casta que na sua visão não significava
necessariamente sabedoria, justamente porque os brâmanes tinham cargos
25
hereditários.
Com relação à doutrina budista propriamente dita, que era transmitida sem
restrições, pode-se dizer que ela atingiu profundamente as bases da sociedade
indiana, modificando os hábitos da população que o seguia de dentro para fora, ou
seja, a mudança proposta por Buda era de natureza subjetiva. Acontecia primeiro
internamente. Em termos de Direito Natural, assemelha-se a uma auto-norma que
deveria ser seguida por cada pessoa individualmente. A sua doutrina foi propagada
primeiramente pela Índia, mas, devido às duras resistências de algumas castas
influentes, acabou tendo que emigrar para outros países, nos quais se incluem
Birmânia, Tailândia, Sri Lanka, Laos, Camboja, China, Japão, Mongólia, Tibet,
Coréia e Vietnã. (GAARDER, 2002, p 67). Entre os ensinamentos mais importantes
e de grande influência no modo de vida das pessoas e de sua relação com o meioambiente está a doutrina das “Quatro Nobres Verdades”26 e do “Nobre Caminho
Óctuplo” 27.
A primeira Nobre Verdade é chamada de “A Verdade do Sofrimento”.
Segundo essa premissa, viver é um eterno sofrimento, desde o nascer, no qual
perdemos o conforto e a sensação de completude do útero materno, até a morte, na
qual a alma é obrigada a se desencarnar. Entre o nascimento e a morte, o ser
humano estaria sujeito a todo tipo de miséria, sofrimento, doenças, envelhecimento,
etc. A vida, portanto, é um conjunto de sofrimentos. Para Buda, viver é sinônimo de
sofrer.
A segunda Nobre Verdade é chamada de “A Verdade da Causa do
Sofrimento”. Segundo esse princípio, Sidartha explicava que todo o sofrimento do
ser humano ao viver tinha uma causa determinada. A causa do sofrimento seria a
ignorância e o desejo, que levariam o homem a ter ganância e a estar sempre
frustrado e sem paz. O desejo produz apego material, sofrimento, frustração e
arrogância. É devido ao desejo que o homem sofre. Não se pode deixar de notar
25
MERTON, H.K. O Buda. Disponível em: <http://artedartes.blogspot.com/search/label/budismo>.
Acesso em: 24 fev. 2009.
26
Sobre a doutrina das quatro nobre verdades, ver: DOWNEY, Rodney. As quatro nobres
verdades. Disponível em: <http://nalanda.org.br/pdf/4verdades.pdf>. Acesso em: 3 abr. 2009.
27
Sobre a doutrina do nobre caminho óctuplo, ver: SCHNEIDER, David. Encontramos o caminho
sob nossos pés. Disponível em: <http://www.geocities.com/sakyabr3/ocaminho.html>. Acesso em: 2
abr. 2009.
24
que essa nobre verdade budista visa a influenciar diretamente no modo de vida
humano, desde que se tornou sedentário, atingindo diretamente a noção da
propriedade privada, de acumulação de bens, e da forma como o ser humano deve
lidar com tais realidades. Para Buda, o próprio estilo de vida materialista é a causa
do sofrimento humano. É mister saber lidar com a realidade da propriedade privada,
para proporcionar o desapego necessário à liberdade.
A terceira Nobre Verdade é chamada de “A Verdade da Cessação do
Sofrimento”. Por esse princípio doutrinário, o sofrimento só tem fim quando a pessoa
deixa de se identificar com as causas do sofrer, que são o desejo e a ignorância.
Quando isso acontece, se daria a extinção do ciclo infindável de reencarnação,
fazendo com que a pessoa entre num estado de suprema bem-aventurança
denominado Nirvana28.
A quarta Nobre Verdade diz respeito ao método e regras de conduta que as
pessoas devem observar para chegar ao fim do sofrimento. É chamada de “A Nobre
Verdade do Caminho Óctuplo”. Por essa premissa, o budista impõe como norma de
caráter natural o cumprimento de oito regras rígidas. A influência dessas regras no
ordenamento jurídico é evidente, uma vez que serve de fonte à positivação do
direito. Qualquer lei positiva que tente ir contra essas normas religiosas será
descumprida pelo povo budista, por falta de legitimidade. Além disso, percebe-se
claramente que as regras do Nobre caminho óctuplo já visam a regular o modo como
o ser humano deve agir na sua relação consigo mesmo e no seu convívio com os
outros e com o meio-ambiente. Talvez o descumprimento de tais normas traga
consequências piores do que as que são trazidas pelo descumprimento das leis
positivadas, pois as penas de caráter religioso atingem diretamente a subjetividade
da pessoa, não possuem prescrição e perseguem a consciência do infrator onde
quer que ele esteja, independente de o ato ser conhecido ou não pelas autoridades.
É uma pena cruel, com força altamente coatora. E isso funciona para quaisquer
religiões que prescrevem regras de conduta moral e social. As sanções religiosas
sempre possuem as mesmas características, e é por meio delas que a imposição se
realiza. Com o budismo não seria diferente.
28
Nirvana: “Essa palavra significa, na verdade, “apagar”, uma referência ao fato de que o desejo “se
extingue” quando se atinge o nirvana. [...] As descrições do nirvana em textos budistas costumam ser
expressas em termos negativos. Uma vez que o nirvava é o oposto direto do ciclo do renascimento,
uma vez que ele não pode ser comparado a nada em nossa vida diária, só é possível dizer que o
nirvana não é. Poderíamos talvez descrever o nirvana como uma quinta dimensão, divorciada de
nossa existência quadridimensional.” (GAARDER, 2002, p. 59).
25
No caso do budismo, podemos citar as oito regras principais que integram a
quarta Nobre Verdade e fazem parte da doutrina budista, devendo ser de
observância geral. A primeira regra é a da “Correta compreensão”, na qual a pessoa
deve buscar compreender as verdades universais pelo seu próprio esforço. A
iluminação é consequência da dedicação pessoal, e apenas a própria pessoa pode
se salvar.
A segunda regra é a do “Correto pensamento”, na qual as pessoas devem
buscar parar de pensar em coisas ruins, parar de premeditar atos perversos, de
pensar em coisas iníquas, semeando sempre bons pensamentos, de modo a não
prejudicar aos outros.
A terceira regra é a do “Correto falar”, na qual a pessoa deve se abster de
falar inutilmente, demasiadamente, de mentir, de levantar falso testemunho, de usar
palavras ásperas, caluniosas, xingamentos. Isso tudo com o intuito de não provocar
desentendimentos e conflitos desnecessários com os outros. Traçando-se um
paralelo com o Direito moderno, pode-se dizer que é um tipo de norma religiosa que
visa evitar condutas que se assemelham bastante aos nossos modernos crimes
contra a honra, ou seja, calúnia, injúria e difamação.
A quarta regra é a do “Correto agir”, na qual a pessoa deve se abster de
matar, roubar, ter conduta sexual indevida, não praticando incesto, pedofilia,
estupro,
obscenidades,
depravações,
orgias,
homossexualismo,
etc.
É
desnecessário comentar que tal norma religiosa é totalmente voltada para a
regulação e a normatização da vida em coletividade, pois é algo evidente. A
proibição de matar, aliás, não se aplica somente aos seres humanos, mas se
estende a todo ser vivo. Por esse motivo, a maioria dos budistas é vegetariana e os
países de religião budista possuem economia voltada principalmente para o setor
agrícola, exemplo de como uma religião influencia não só nas normas jurídicas, mas
também na economia de determinada sociedade.
A quinta regra é a do “Correto meio de vida”, na qual as pessoas têm a
obrigação de prover seu sustento com profissões não prejudiciais à sociedade, tais
como o tráfico de drogas, estelionato, corrupção, ou matança de animais. Fazendose uma analogia com o Direito moderno, é possível traçar um paralelo entre tal regra
e as normas que dizem respeito ao “valor social do trabalho e da propriedade
26
privada”. No Brasil, inclusive, tais normas são princípios que possuem status
constitucional.29
A sexta regra budista é a do “Correto esforço”, na qual a pessoa deve
exercitar a autodisciplina para obter o controle da mente, de maneira a evitar
estados mentais maléficos, visando sempre à manifestação da sanidade e do
equilíbrio emocional e racional.
A sétima regra diz respeito à “Correta atenção”, na qual a pessoa deve
desenvolver completa consciência de todas as ações do corpo, da fala e da mente
para evitar atos insanos. É um complemento da regra anterior.
A oitava e última regra é um resumo conclusivo da prática das sete anteriores.
É chamada de “Correta Contemplação”, na qual o budista procura obter serenidade
mental e sabedoria para compreender o significado integral das Quatro Nobres
Verdades. É o início da prática meditativa, tão peculiar a esta religião oriental.
Apesar de parecer que o budismo só influencia na sociedade a partir da mudança
interior dos praticantes, pode-se também observar uma grande influência externa na
religião. “O ideal budista original era trabalhar por sua própria salvação, se valendo
da meditação, algo que pouco incentiva a atividade social. Mas o budismo também
realça a abnegação de si e a caridade, o que tem levado a uma participação ativa
nas questões sociais e políticas contemporâneas.” (GAARDER, 2002, p. 75).
1.2.2.3. CONFUCIONISMO.
O confucionismo está longe de ser uma religião com enfoque místico. Na
verdade, o confucionismo é um conjunto de regras de natureza social e jurídica,
desenvolvidas pelo filósofo chinês chamado Kong-Fu-Tzu, latinizado com o nome
29
Art. 1º, CF - A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e
Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como
fundamentos:
[...]
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
[...]
Art. 5º, CF - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
XXII - é garantido o direito de propriedade;
XXIII - a propriedade atenderá a sua função social;
27
Con (de Kong) fu (de Fu) e cius (de Tzu), ou seja, Confucius ou Confúcio 30. O intuito
de Confúcio era educar a elite dos funcionários letrados da administração imperial,
os mandarins. Por muito tempo, portanto, o confucionismo foi uma ideologia adotada
pelos mandarins, ganhando aderência popular apenas quando começou a misturar
elementos de natureza propriamente religiosa, como normas sobre sacrifícios e
rituais. Mesmo assim, o confucionismo se manteve mais restrito às classes
dominantes, pouco influenciando na vida das massas populacionais, mais devotadas
ao culto dos antepassados, etc.
Confúcio teve um efeito decisivo no desenvolvimento da China. Após sua
morte, os discípulos começaram a difundir e ampliar suas idéias. O
confucionismo acabou se tornando uma espécie de religião estatal da
China, chegando muitas vezes a atacar outras religiões, como o budismo e
o taoísmo. [...] Apesar disso, deve-se enfatizar que o confucionismo nunca
havia sido uma religião independente. Falando-se mais precisamente: o
termo abrange uma série de idéias filosóficas e políticas que formavam os
pilares do governo e da burocracia da China imperial, muito embora a ética
do confucionismo também permeasse amplas camadas da população
chinesa. É típica dessa tradição sua visão política pragmática e seu
interesse pelas questões sociológicas reais, como a educação dos filhos, o
papel do indivíduo na sociedade, as regras corretas de conduta etc. Seu
interesse pelas questões religiosas e metafísicas é muito menor.
(GAARDER, 2002, p. 78).
Com relação à doutrina confucionista, destaca-se a idéia jusnaturalista de
bondade e harmonia inerente ao ser humano e ao universo inteiro. O universo, para
Confúcio, está em plena harmonia com suas leis físicas. Analogicamente, o homem,
ao entrar em sintonia com as forças do universo, possui a capacidade de alcançar a
harmonia inerente ao Espírito universal, que ele chama de Tao. O Tao é um conceito
tanto taoísta quanto confucionista. Diz respeito ao Espírito universal que rege a tudo
e a todos. Literalmente, Tao significa “Caminho”, pois as filosofias orientais
acreditam que Deus é um “caminho infinito”, um “modo de vida” a ser observado e
cumprido para sempre. Na verdade, Confúcio utilizou-se do modelo taoísta para
desenvolver sua filosofia. No entanto, há pequenas diferenças de conceitos entre as
duas denominações religiosas. Enquanto que para Confúcio o Tao é uma ordem
divina e natural que o homem deve seguir, podendo ser estudada e compreendida
racionalmente, para o taoísmo o Tao só pode ser conhecido de forma intuitiva, e não
pode nunca ser descrito de forma racional. Para o taoísmo, o Tao é totalmente
transcendente. (GAARDER, 2002, p.81).
30
Confúcio foi um importante e influente filósofo chinês que viveu entre 551 e 479 a.C. (GAARDER,
2002, p. 78).
28
Para Confúcio, a harmonia do Tao seria um modelo de ordem e equilíbrio que
deveria ser aplicada ao homem e à sociedade. Para tanto, o homem precisa obter
conhecimento e compreensão ao estudar o passado e as tradições. Confúcio via a
pessoa como um ser essencialmente bom. Nesse aspecto, todo mal gerado não
passava de ignorância ou falta de conhecimento. A educação ocupa, portanto, uma
posição de destaque nessa filosofia. Apenas por meio da educação e da instrução
racional, o homem é capaz de manifestar sua natureza essencialmente boa. Com
relação à educação confucionista, as pessoas eram instruídas no tocante ao seu
lugar na sociedade, que é regulado por cinco principais relacionamentos: em
primeiro está o relacionamento entre o servo e o senhor, em segundo está o
relacionamento entre os mais velhos e os mais jovens, em terceiro está o
relacionamento entre pais e filhos, em quarto está o relacionamento entre homem e
mulher, e por último o relacionamento entre amigos. É evidente o equilíbrio entre as
relações sociais no confucionismo. O senhor deve ser bondoso e o servo deve ser
obediente e fiel, os pais devem ser amorosos e os filhos devem ser respeitadores, o
homem deve ser justo e a mulher deve ser obediente, os amigos devem se respeitar
mutuamente,
etc.
Para
Confúcio,
a
base
do
equilíbrio
social
está
nos
relacionamentos entre as pessoas. Se há harmonia entre as pessoas, há harmonia e
paz social. Em suma, pode-se dizer que os ideais mais importantes para a doutrina
de Confúcio são a educação, o respeito, a reverência e o relacionamento familiar.
(GAARDER, 2002, p. 79).
1.2.2.4. TAOÍSMO.
O taoísmo é a mais primitiva e tradicional religião da China. Diz-se que o
taoísmo foi fundado por Lao-Tsé, muito embora os preceitos e os princípios
espirituais chineses já existissem há alguns séculos antes de tal marco oficial. LaoTsé foi um sábio chinês que teria vivido no século VI a.C., vindo a escrever, no fim
de sua vida, um documento conhecido como “Tao-Te-Ching”. (GAARDER, 2002, p.
80). O Tao-Te-Ching (também pronunciado como Dao-De-Jing) é um livrinho que
contém apenas 81 poemas. Nesse documento, Lao-Tsé evidencia o conceito de
Tao, como a pessoa deve fazer para sentir e viver o Tao, e também prescreve
condutas de natureza social e coletiva. Quanto a estas últimas, o que se pode dizer
29
é que seguem a filosofia oriental da passividade meditativa. Como para Lao-Tsé o
Tao não pode nunca ser descrito racionalmente, o Tao que é pensado, agido,
normatizado não é o verdadeiro Tao. Já que a ideologia desse sábio chinês era a
busca pelo verdadeiro Tao, os ensinamentos são todos passivistas, todos de
passividade ou de “não ação”. Para o taoísmo, a “não ação” (“wu-wei”, em chinês) é
a verdadeira ação por meio da qual todas as coisas se realizam. Nesse aspecto, a
visão de vida coletiva para o taoísmo é a de menor interferência possível em
assuntos políticos. (GAARDER, 2002, p. 81). A normatização social, no taoísmo,
segue uma profunda concepção jusnaturalista na qual o homem sequer precisaria
de Estado, Governo ou Direito para reger a sociedade se ele soubesse viver de
acordo com os princípios espirituais do Tao. Todo tipo de construção jurídica é uma
tentativa artificial de regular socialmente aquilo que deveria ser regulado
espiritualmente. Se o homem estiver em sintonia com a essência do Tao, o Espírito
Universal, então a ordem jurídica não se faz necessária.31
Enquanto Confúcio desejava educar o homem por meio de conhecimento,
Lao-Tsé preferia que as pessoas permanecessem ingênuas e simples,
como crianças. Enquanto Confúcio ansiava por regras e sistemas fixos na
política, Lao-Tsé acreditava que o homem deveria interferir o mínimo
possível no desdobramento natural dos fatos. (GAARDER, 2002, p. 81).
Para o taoísmo, a idéia de coletividade e de sociedade não passa da
concepção de vida em pequenas aldeias ou cidades, aquelas tradicionais que já
existiam na China antiga. Apenas nessas pequenas aldeias poderia haver paz e
contentamento. Qualquer tipo de aglomeração humana maior que isso estaria
fadado a ter que construir regras e normas de convívio artificiais, estando sujeito a
guerras civis e entre países vizinhos. O ideal de vida taoísta é, portanto, o mais
bucólico e simples possível. (GAARDER, 2002, p. 81). No tocante à questão social e
jurídica, a frase de Lao-Tsé que expressa com maior clareza a sua ideologia
jusnaturalista é: “A Moralidade e o Direito nasceram quando o homem deixou de
viver pela alma do Universo.”32
31
LAO-TSÉ. Tao Te Ching. (Tradução e comentários: Huberto Rohden). Editora Martin Claret, São
Paulo, SP, 2006, p. 60.
32
Ibidem.
30
1.2.2.5. XINTOÍSMO.
O xintoísmo, diferentemente da maioria das religiões, não possui um
fundador. Trata-se de uma antiga religião mítica, tradicional e primitiva do povo
japonês. É, portanto, uma religião autenticamente nacional. (GAARDER, 2002, p.
82). O xintoísmo surgiu primeiramente como uma mitologia complexa e intrincada,
cheia de deuses ou espíritos naturais chamados “kami”. Tal mitologia servia para
explicar a origem das ilhas japonesas e do povo nipônico que nelas habitava.
Explicava também a origem divina do imperador japonês, fazendo com que o mesmo
fosse reconhecido como um deus (um kami) vivo sobre a Terra. Segundo a mitologia
xintoísta, o imperador do Japão seria descendente direto de Amaterasu, a deusa do
Sol. Portanto, todo o povo japonês, por intermédio do imperador, teria uma
ascendência divina. O imperador, por muitos séculos, foi respeitado e adorado como
a própria deusa do Sol. Sua vontade era incontestável e todo o povo deveria venerálo. (GAARDER, 2002, p. 83). Com o passar dos tempos, o xintoísmo foi deixando
sua característica mítica e se expressando mais como religião espiritualista,
envolvendo a adoração aos espíritos da natureza e o culto aos antepassados, sendo
que este último ritual começou a ser feito por causa da forte influência recebida do
confucionismo chinês. Muitos acreditam, inclusive, que os ascendentes, ao
morrerem de forma honrada e respeitosa, se tornam kami e passam a proteger seu
clã (ou família). Muitos antepassados são adorados como verdadeiros deuses, em
pequenos templos levantados em sua homenagem nas próprias casas dos
familiares. Já os kami da natureza são cultuados nos diversos templos públicos
espalhados por todo o território. (GAARDER, 2002, p. 84).
Após a derrota do Japão na segunda grande Guerra Mundial, houve uma
ruptura total entre a religião xintoísta e o Estado japonês. Antes, desde a era Meiji, o
xintoísmo era a única religião permitida no Japão, pois havia sido elevado à
condição de religião oficial do Estado. Tal medida teve a finalidade de reforçar o
caráter japonês e o nacionalismo expansionista. (GAARDER, 2002, p. 83). Com a
derrota na II Guerra, no entanto, o imperador foi obrigado a fazer uma declaração na
qual renunciou à sua condição divina. O xintoísmo deixou de ser a religião estatal, e
o Japão voltou a ser um país com liberdade religiosa. O xintoísmo, porém, não
deixou de ter praticantes, sendo, ainda hoje, a religião com maior representatividade
31
no Japão, ao lado do budismo, do confucionismo, e de pequena parcela do
cristianismo católico e protestante. (GAARDER, 2002, p. 84). Essa grande variação
religiosa fez do Japão o país mais sincrético do mundo e com o maior número de
seitas também.
1.2.2.6. JUDAÍSMO.
O judaísmo é a mais antiga das religiões monoteístas. Por ser ocidental, o
judaísmo possui uma espiritualidade intimamente ligada à História e à dinâmica de
um determinado povo na sua relação consigo mesmo e com os demais povos
vizinhos. É uma religião que surgiu como alento e incentivo para o povo hebreu, que
por muito tempo foi oprimido por outros povos da Terra. Em determinado momento
da história, um Deus se revelou como sendo o único Deus vivo da Terra e se
comprometeu a fazer uma aliança com esse povo oprimido, tornando-o o povo
eleito. Esse povo deveria ser fiel a esse único Deus, e em troca o Deus único o
tornaria o povo mais numeroso e poderoso do planeta. Deveriam espalhar aos
outros povos a fé de que só há um Deus vivo no universo e também observar as leis
da aliança firmada com o Divino. Devido a essa origem histórica, por muito tempo os
judeus não foram vistos apenas como uma comunidade religiosa, mas também
comunidade étnica. O judaísmo era inerente a um determinado povo. Hoje em dia,
essa definição se tornou inexata, pois existem judeus das mais diversas etnias,
espalhados por todos os países do mundo. (GAARDER, 2002, pp. 98 e 99).
Apesar de o judaísmo existir como religião monoteísta desde 1.800 a.C.,
quando Abrão saiu de sua cidade de Ur, na Mesopotâmia, e se tornou o patriarca
Abraão, o judaísmo como religião jurídica só ganhou expressão por volta de 1.300
a.C, quando Moisés libertou os israelitas do Egito e recebeu as tábuas da Lei no
topo do monte Horeb, na península do Sinai, pelas mãos do próprio Deus. As tábuas
da Lei são o mais antigo registro histórico da influência da religião no ordenamento
jurídico positivado de um povo. Ainda que muitos povos já utilizassem os mitos e as
religiões como forma de normatizar a vida em coletividade, apenas a partir de
Moisés essa normatização religiosa se evidenciou de forma escrita. Dessa forma,
pode-se dizer que os 10 mandamentos representam o gérmen do Direito positivado
32
ocidental, figurando entre os registros de Direito Formal mais antigos de que se tem
notícia. (COMPARATO, 2006, pp. 67 e 70).
A lei mosaica, como ficou conhecida, prescrevia as normas de ordem
espiritual, representadas pelos 4 primeiros mandamentos, e as normas de ordem
social e comunitária, representadas pelos 6 mandamentos restantes. Desses 10
mandamentos iniciais (se assemelhando ao que atualmente definimos como
Constituição), surgiram outras 613 normas de caráter religioso e jurídico, que
deveriam (e ainda devem) ser rigorosamente observadas pelo povo hebreu (se
assemelhando aos modelos de legislação esparsa que temos hoje em dia). “Os
judeus não fazem distinção nítida entre a parte ética e a parte religiosa de sua
doutrina. Tudo pertence à Lei de Deus. Existem 248 ordens afirmativas e 365
proibições, totalizando 613 mandamentos.” (GAARDER, 2002, p. 111). A infração
dessas leis gerava sanções tanto de ordem espiritual quanto de ordem jurídica. Um
exemplo disso era as pessoas descobertas em flagrante crime de adultério. Além da
sanção religiosa e espiritual, a pessoa recebia uma sanção jurídica, podendo ser
apedrejada em local público, muitas vezes até a morte.
Com a morte de Moisés e a chegada do povo hebreu à terra prometida, deuse o início ao Reino de Israel, cuja monarquia foi instaurada pelo rei Saul por volta
do ano 1.000 a.C. Os líderes políticos e religiosos eram chamados de “juízes”, pois
procuravam fiscalizar se o povo cumpria e respeitava as leis dadas por Deus e
reveladas por Moisés. Com a ascensão de Davi, e depois de seu filho Salomão, ao
poder, Israel encontrou seu apogeu e se tornou uma potência política, unindo todas
as 12 tribos do povo hebreu sob o comando da capital Jerusalém. Nesta cidade, foi
construído um grande Templo em homenagem ao Deus único, no qual foi guardada
a Arca da Aliança, um recipiente destinado a guardar as sagradas tábuas da Lei
recebidas por Moisés no monte Horeb. (GAARDER, 2002, p. 100).
Com o passar dos anos, Israel tornou-se um povo iníquo e leviano, por muitas
vezes causando a ira do Deus único ao violarem as Leis da Antiga aliança. Nesse
contexto histórico, o judaísmo conheceu uma série de profetas que surgiram para
advertir o povo e seus governantes sobre as maldades e as infrações que
repetidamente cometiam. Falavam sobre um tempo em que viria um enviado por
Deus para condenar os injustos e retomar o Reino de Israel, governando com cetro
de ferro num reinado de paz que nunca mais teria fim. Todos eles previram o
advento de uma era messiânica. (GAARDER, 2002, p. 103). Até hoje, os judeus
33
mais ortodoxos esperam pela vinda do Messias33 que há de governar seu povo para
sempre. Para outros, esse rei já veio, e deu início ao “Reino de Deus”, não
necessariamente atrelado a “este mundo”, mas sim ao “mundo espiritual”. Seus
seguidores sofreram inúmeras perseguições devido a essa concepção de “messias
espiritual”, conseguindo, porém, fundar a religião que conhecemos hoje como
cristianismo.
1.2.2.7. CRISTIANISMO.
Há cerca de 2.000 anos, entre revoluções, opressões e agitações sociais,
surge o cristianismo, galgado nas ideologias de liberdade e igualdade entre os
homens, pois, por sua doutrina (que veio do judaísmo), todo homem é considerado
como “imagem e semelhança de Deus”, não tendo, portanto, uns mais direitos do
que outros, pressupondo também que a igualdade não advinha apenas do mero
usufruto dos próprios bens, mas também do dever de amor e de caridade ao
próximo que não se encontre em pé de igualdade. (GAARDER, 2002, p. 141).
O cristianismo foi fundado por Jesus (Yeshua ou Yashua, em aramaico), um
carpinteiro judeu que iniciou seu ministério na região da Galiléia. Para muitos, Jesus
era o Messias prometido nas escrituras pelos profetas. Segundo a tradição religiosa,
Jesus realmente cumpriu em todos os aspectos as profecias sobre o Messias, ou
seja, forma de nascimento, ascendência em linha reta com o rei Davi, entre outras
peculiaridades. Cumpriu todas, exceto uma: reger o povo com cetro de ferro. Foi
exatamente nesse aspecto que os judeus se dividiram. O período político foi
marcado pela tirania do Império Romano, e muitos judeus esperavam que Jesus
fosse tomar o poder à força, restabelecendo a liberdade ao “Reino de Israel”.
(GAARDER, 2002, pp. 153 a 157). No entanto, Jesus se considerava um ser divino,
o rei de um outro tipo de reinado, um reinado que não pertencia a “este mundo”. Uns
acreditavam em Jesus, outros o consideravam um blasfemo. A autoridade real de
33
A palavra “messias”, que significa "ungido" (consagrado), aplicava-se a várias pessoas: aos reis de
Israel, aos juízes, bem como ao Sumo Sacerdote. Messias era, portanto, alguém de quem o Espírito
de Deus se apoderava, fazendo com que o eleito realizasse maravilhas e demonstrasse que sua
autoridade sobre o povo. No entanto, desde há alguns séculos, a palavra Messias passou a ser
aplicada apenas às profecias que se referiam à vinda do libertador de Israel, um humano
“consagrado”, descendente do rei Davi, que iria reconstruir a nação de Israel e restaurar o reino de
David, trazendo desta forma a paz ao mundo. (Wikipédia, a enciclopédia livre. Messias. Disponível
em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/ Messias_(Juda%C3% ADsmo)>. Acesso em: 26 fev. 2009).
34
Jesus, segundo ele próprio, não estava destinada a este mundo. Ela vinha direto de
Deus, a quem chamava de Pai. Sua autoridade era celeste. Jesus pregava que o Pai
havia lhe dado toda a autoridade sobre o Reino espiritual. Ninguém seria capaz de
chegar a Deus se não ouvisse suas palavras. Ele era o “Caminho, a Verdade e a
Vida”34. Com esse tipo de autoridade divina, Jesus pregou sua doutrina, com o
objetivo de realizar o “Reino espiritual” na vida social terrena.
Para o cristianismo, portanto, a vida em coletividade e a relação entre os
seres humanos deveriam refletir a paz e a harmonia que existe incondicionalmente
no Reino de Deus. Apesar de muitos terem interpretado que Jesus falava apenas de
um reinado divino escatológico, a doutrina cristã é clara em afirmar que, apesar de
espiritual, o Reino de Deus deve se manifestar a todo momento no reino do homens,
ou seja, na sociedade, nas relações entre os homens, na política, etc. (GAARDER,
2002, p. 156). Jesus pregava: “o Reino está próximo”, mas também, “o Reino de
Deus está no meio de vós”, ou ainda, “dou-vos as chaves do Reino, o que ligares na
Terra estará ligado nos Céus, e o que desligares na Terra estará desligado nos
Céus”. A influência do Poder de um Reino no outro é evidente. Para Jesus, o único
Poder capaz de governar o mundo vem do Alto e pertence ao Alto. Se assim não for,
o ser humano estará sempre fadado à opressão social, pois o homem não é capaz
de guiar a si mesmo. Dizia ele: “deixai-os; são cegos guiando outros cegos. Ora, se
um cego guiar outro cego, cairão ambos no barranco.”35 A ordem, portanto, era
clara: o homem deve ter o compromisso de se santificar em prol de transformar o
reino terreno em reino celeste, onde só reina a paz e a harmonia. Esse é o Reino do
Messias.
Nesse sentido, o cristianismo, desde sua origem, se empenhou no serviço da
caridade como obra de justiça e paz social. A noção de igualdade entre os homens é
o ensinamento mais marcante. A igualdade deve ser marcada pelas ideologias do
Amor a Deus e ao próximo, inclusive aos inimigos. Um Amor incondicional.
(GAARDER, 2002, pp. 161 e 162). Para introduzir na prática os ensinamentos de
sua doutrina, Jesus utilizou-se de uma fenomenal pregação ao ar livre na presença
de aproximadamente 7.000 pessoas, que veio a ficar conhecida como o “Sermão da
34
Bíblia Sagrada. Evangelho de Jesus Cristo segundo João, capítulo 14, versículo 6 a 11. 73 ed.
Editora Ave Maria, São Paulo, SP, 1991, p. 1404.
35
Bíblia Sagrada. Evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus, capítulo 15, versículo 14. 73 ed.
Editora Ave Maria, São Paulo, SP, 1991, p. 1302.
35
Montanha”. Nesse discurso, Jesus resumiu toda a sua doutrina teórica, e exortou
seus seguidores a demonstrá-la na prática, por meio de atos concretos: um exemplo
de como o Reino de Deus, que é espiritual, deve influenciar na vida e no reino dos
homens, que é concreto. Apesar das inúmeras acusações de que tal doutrina vinha
a romper com a Lei de Moisés, Jesus deixou claro que não veio para romper com a
Lei, mas sim para renová-la, dando-lhe novo sentido, um sentido que há muito
tempo os judeus haviam perdido e abandonado: “Não julgueis que vim abolir a lei ou
os profetas. Não vim para os abolir, mas sim para levá-los à perfeição.” (Mt 5, 17)36.
Sua doutrina resumiu, assim, toda a Lei dos 10 mandamentos e das 613 normas
judaicas em apenas dois mandamentos, os quais teriam o poder de incluir toda a
norma espiritual e jurídica imprescindível à vida pessoal e comunitária do ser
humano:
O primeiro de todos os mandamentos é: Ouve, Israel, o Senhor nosso Deus
é o único Senhor. Amarás, pois, ao Senhor teu Deus de todo o teu coração,
de toda a tua alma, de todo o teu entendimento e com todas as tuas forças;
este é o primeiro mandamento. E o segundo, semelhante a este, é: Amarás
o teu próximo como a ti mesmo. Não há outro mandamento maior do que
estes. (Bíblia Sagrada. Evangelho de Jesus Cristo segundo Marcos,
capítulo 12, versículos de 29 a 31. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave
Maria, 1991. p. 1338).
1.2.2.8. ISLAMISMO.
O islamismo, religião fundada por Maomé (ou Mohammed), teve origem na
Arábia, sendo seus escritos sagrados registrados na língua árabe. Em consequência
disso, ainda que o islamismo, hoje em dia, não se restrinja apenas ao mundo árabe,
alcançando também vastas regiões da Ásia, da África e da Oceania, a cultura árabe
se faz de grande importância para a religião. (GAARDER, 2002, p. 118).
Maomé nasceu em Meca, na Arábia, por volta de 570 d.C, quando o povo
árabe sofria de uma profusão de culturas de povos nômades e estrangeiros que
disseminavam aos poucos a sua cultura. Muitos deuses pagãos eram adorados em
inúmeros templos religiosos, e o cenário sincrético prevalecia. Nesse ambiente
envolto em esoterismo e idolatria, o povo árabe foi deixando sua vida nômade e se
36
Bíblia Sagrada. Evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus, capítulo 5, versículo 17. 73. ed.,
São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p.1288.
36
fixando em tribos e sociedades urbanas. Em decorrência desse fenômeno de fixação
urbana, as religiões monoteístas começaram a ter mais influência sobre os árabes.
Após a queda de Jerusalém e a destruição do Templo, muitos judeus e cristãos
migraram para as regiões arábicas, passando a adotar a língua e os costumes
árabes e introduzindo o monoteísmo. Muitos beduínos se convertiam ao
cristianismo, sendo possível encontrar muitos cristãos entre as camadas inferiores
de Meca. (GAARDER, 2002, pp. 119 e 120).
Maomé cresceu nesse cenário movido pelas ideologias judaico-cristãs e pela
noção do Juízo Final, juntamente com a forte influência esotérica e politeísta dos
povos nômades. Aos 40 anos, enquanto meditava em uma caverna, Maomé teria
recebido a visita do anjo Gabriel, que lhe inspirou a ler um pergaminho com as
verdades monoteístas. Esse pergaminho, mais tarde, foi transformado no Corão.
Seus 114 capítulos foram escritos e organizados pelos discípulos de Maomé após a
sua morte. Foram agrupados de forma que os mais longos viessem antes dos mais
curtos, com exceção do primeiro capítulo, que coincide com a Revelação do anjo na
caverna. (GAARDER, 2002, pp. 120 e 121). Após as revelações, Maomé, que
originalmente se considerava judaico-cristão, foi aos poucos se distanciando tanto
de judeus quanto de cristãos. Suas idéias sobre o monoteísmo começavam a
divergir em muitos pontos das idéias pregadas pelos judeus e mesmo pelos cristãos.
Assim, Maomé declarou que os judeus e os cristãos haviam deturpado os
ensinamentos bíblicos e que cabia a ele restaurar o monoteísmo puro fundado pelo
patriarca Abraão. (GAARDER, 2002, p. 125).
Maomé intitulou-se profeta e se propôs a pregar em Meca a crença em um
Deus único. As autoridades viram tal atitude como uma tentativa de usurpar o poder.
Maomé ganhava a aderência de alguns discípulos, mas escandalizava as camadas
mais influentes de Meca. A guerra política fez com que Maomé rompesse suas
raízes com Meca e partisse para Medina, no ano de 622 d.C, num ato que se
assemelhou à saída de Abraão da cidade de Ur quando ouviu o chamado de Deus.
Em Medina, Maomé logo se tornou um líder religioso e político, fundando a religião
do islã (de íslan, palavra árabe que significa “submissão”) e dando início ao
confronto com as autoridades e camadas populares de Meca que ainda se revolviam
em idolatria. Tal confronto declarado ficou conhecido mais tarde como Jihad, ou
guerra santa, que até hoje é utilizada como pretexto para o crescente expansionismo
islâmico pelos povos da Terra. (GAARDER. 2002, p. 121). Os adeptos que se
37
agregavam ao islã passaram a ser chamados de muçulmanos, palavra que vem da
mesma raiz árabe íslan, que significa “submissão”. Muitas vezes a luta por Alá se
constituiu sobre uma base violenta e agressiva, ganhando precedência até mesmo
sobre as tradições morais e os conceitos religiosos herdados das origens
monoteístas.
Ao fim de sua vida, em 632, Maomé havia conseguido subjugar Meca e
unificar grande parte da Arábia sob as égides do islã (islamismo). A sucessão de
Maomé por seus discípulos se deu de forma hereditária. O sucessor era chamado de
califa e passava a organizar a vida dos árabes e da religião islâmica. O quarto califa,
chamado Ali, primo de Maomé, foi quem deu início à cisma do islã. Sua liderança era
cheia de controvérsias e causava a insatisfação de alguns seguidores de Maomé.
Dessa forma, a principal dissidência do islamismo não se deu por razões
ideológicas, mas por desentendimento sobre quem deveria ser o líder do islã. A
facção dos sunitas, a maioria do islamismo, desejava que o islã fosse liderado por
aquele que melhor soubesse utilizar o Poder. Já os xiitas, minoria, acreditavam que
a liderança do islã deveria ser exercida pelos descendentes de Maomé.
Após a morte de Ali, o califado teve sede em Damasco por algum tempo e a
seguir instalou-se em Bagdá, onde permaneceu por um período de
quinhentos anos. Depois disso, a liderança passou para o sultão turco de
Istambul. O último sultão foi derrubado em 1924, e desde então o mundo
islâmico deixou de ter um califa como líder. (GAARDER, 2002, p. 122).
Como religião, o islã compreende tanto a esfera espiritual quanto a esfera
social. Ele pretende abarcar todos os aspectos das relações humanas em
coletividade, passando a fazer a interpretação das leis, do Direito e da política como
um todo. Na grande parte dos países islâmicos, não existe um sacerdócio
organizado, mas os líderes religiosos de grande conhecimento filosófico e religioso
acumulam funções jurídicas e políticas, sendo bastante respeitados por todos. No
islã, por tradição, não há de se falar em distinção entre a moral e a fé, tampouco
entre a política e a religião. O Corão, a Suna e o Xariá, livros sagrados do islamismo,
estabelecem todas as obrigações morais, religiosas e sociais do homem.
(GAARDER, 2002, pp. 130 e 131). Com relação à economia e à propriedade
privada, devido à cultura árabe herdada dos nômades, o Corão faz grande
referência ao comércio como fonte de subsistência, não questionando o direito à
propriedade
privada.
Coloca,
porém,
algumas
limitações
e
restrições
ao
38
enriquecimento, como a proibição de juros. Tal regra, todavia, não atinge a área das
finanças internacionais, sendo que na maioria dos países árabes vigora o liberalismo
no mercado e na economia. (GAARDER, 2002, p. 133).
Visto
como
os
fenômenos
religiosos
se
manifestaram
no
mundo,
influenciando a ordem jurídica nas sociedades onde surgiram, passa-se a
compreender que é quase impossível se falar no surgimento de um Estado Moderno
totalmente separado da religião como fonte de Direito. A análise histórica demonstra
claramente que o fenômeno religioso acompanha a espécie humana em qualquer
estágio evolutivo de organização da sociedade. A seguir, o trabalho tratará sobre as
origens históricas do Estado, analisando como se deu essa passagem do Estado
medieval, onde a religião se confundia com o Direito, para o Estado Moderno, que
pretende ser laico, mas que não pode, conforme se depreende dos ensinamentos de
Lassalle sobre os fatores reais do poder, ignorar a cultura religiosa do povo que o
constitui.
1.3. A RELIGIÃO E O ESTADO MODERNO.
Se levarmos em consideração apenas a história ocidental européia, pode-se
dizer que o cristianismo foi a religião que mais influenciou na formação daquilo que
se conhece hoje como Estado moderno de Direito. Após a morte de Jesus, seus
discípulos se colocaram a espalhar sua doutrina primeiramente para as tribos de
Israel e depois para os gregos e outros povos vizinhos tidos como “gentios”37. Como
a doutrina sofria grande repressão pelas autoridades judaicas ortodoxas, os
seguidores de Jesus sofreram uma discriminação quanto ao restante dos judeus,
passando a ser chamados de “nazarenos”, ou seja, seguidores de Jesus de Nazaré.
Para as altas classes judaicas, nada de bom poderia vir da aldeia de Nazaré. O
nome, portanto, além de designativo, era um termo pejorativo. Os nazarenos foram
37
“A palavra gentio designa um não-israelita e deriva do termo latim „gentium’ (significando “gentes"
ou “povos”) e é muitas vezes usada no plural. Os tradutores cristãos da Bíblia usaram esta palavra
para designar coletivamente os povos e nações distintos do povo Israelita.” (Wikipédia, a enciclopédia
livre. Gentio. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Gentio>. Acesso em: 3 mar. 2009).
39
declarados formadores de uma nova seita que, por ser herege, deveria ser
perseguida e exterminada.38
A fuga da perseguição judaica foi um dos fatores decisivos para a expansão
do cristianismo em outros lugares do mundo. A evangelização dos gentios teve,
dessa forma, dois principais propósitos: fugir da perseguição dos judeus, evitando
que os ensinamentos se perdessem para sempre, e tornar a doutrina de Jesus
universalmente conhecida e praticada por todos os povos do planeta. Os primeiros
seguidores gregos de Jesus se puseram a pregar a doutrina na Antióquia, uma
cidade do Império Romano que reunia cerca de 500 mil habitantes. Foi lá que os
nazarenos passaram a ser chamados, pela primeira vez, de “cristãos”39. Foi nessa
época que Saulo, um dos perseguidores de cristãos, teve uma experiência mística
com Jesus e se converteu ao cristianismo, sendo batizado com o nome de Paulo,
tornando-se um dos principais divulgadores da doutrina de Jesus entre os povos
gentios. A conversão de Saulo foi o maior exemplo de que o cristianismo poderia ser
praticado por qualquer tipo de povo, e não estaria restrito à observância de todas as
leis judaicas, como as de restrição alimentar e a da circuncisão. Esse foi um dos
fatores decisivos para a propagação do cristianismo entre os gregos e demais
povos, que consideravam tais leis uma transgressão à dignidade do homem. A
despeito de ser uma importante jogada política expansionista, a doutrina de Jesus
enfatizou que, mais importante do que o cumprimento de rituais externos, era aquilo
que o homem deveria trazer no coração, pois era isso que ele iria manifestar aos
outros.
A destruição do Templo de Jerusalém, no ano 70 d.C., separou
definitivamente os cristãos da religião judaica, reforçando a sua tendência "católica"
(isto é, “universal”). Missionários cristãos ultrapassaram as fronteiras do Império
Romano, chegando a lugares até então inexplorados pela cultura monoteísta. O
cristianismo se espalhou por grande parte da Arábia, da Grécia, do Egito, da Ásia
menor e da Europa central. (MERTON, 2009). Tal expansão foi narrada e
documentada pelos escritos que vieram a ficar conhecidos como os “Atos dos
Apóstolos”, hoje um dos principais livros que compõem a Bíblia. Foi nesse período
também que começaram a surgir os primeiros documentos escritos que narram a
38
MERTON, H.K. História do Cristianismo: um legado de 2 mil anos. Disponível em:
<http://artedartes.blogspot.com/search/label/cristianismo>. Acesso em: 7 abr. 2009.
39
Ibidem.
40
vida e obra de Jesus. Tais documentos passaram a ser chamados de Evangelhos,
palavra grega que significa “Boa nova”, ou “Novidade”. Isso porque o cristianismo
seria a doutrina tida como novidade a todos os povos que quisessem ser livres. Os
primeiros evangelhos, escritos em língua copta e grega, são datados por volta de 70
d.C., sendo que o apocalipse de João foi o último documento a ser escrito, mediante
a inspiração de revelações que o apóstolo João teria tido no fim de sua vida
enquanto esteve preso e exilado na ilha de Pátmos, na Grécia, por volta de 95
d.C..40 Apesar das controvérsias quanto à autenticidade e à datação dos
documentos cristãos, muitos cientistas historiadores os consideram uma importante
fonte histórica de como a religião monoteísta influenciou na sociedade daquela
época, fazendo surgir o que se denominou de a “queda do Império Romano do
ocidente” e a ascensão do “Império Bizantino do oriente”.
Após a perseguição dos cristãos, com a ascensão de Constantino ao trono, o
cristianismo passou a ser permitido na Grécia e em outros locais sob o jugo do
Império Romano. Tal evento se deveu a um acontecimento histórico no qual
Constantino, na Batalha da Ponte Mílvio, em 28 de outubro de 312 d.C., perto de
Roma, obteve uma vitória esmagadora sobre as tropas do inimigo, sendo tal feito
atribuído ao Deus cristão. Segundo a tradição, na noite anterior à batalha,
Constantino havia sonhado com uma cruz, e nela estava escrito em latim "In hoc
signo vinces" ("sob este símbolo vencerás"). Pela manhã, um pouco antes da
batalha, mandou que pintassem uma cruz nos escudos dos soldados, conseguindo a
vitória logo em seguida. Em 313 d.C., Constantino subiu ao trono do Império
Romano e outorgou o Édito de Milão, que declarou a liberdade de culto ao
cristianismo e estabeleceu uma segunda capital para o império em Bizâncio, que
passou a ser chamada de Constantinopla. (VICENTINO, 2001, p. 91). O cristianismo
estava livre da perseguição, mas era obrigado a coexistir com a profusão dos
deuses gregos e romanos, adotados pelos imperadores e por grande parte da
população. Jesus e o Deus único eram apenas mais uma das divindades do panteão
adotado pelo povo.
Essa situação, porém, viria a mudar por volta de 391 d.C., quando Teodósio,
o imperador que sucedeu a Constantino no Poder, assinou o Édito de Tessalônica,
40
MERTON, H.K. Cristianismo: fontes documentais. Disponível em:
<http://artedartes.blogspot.com/search/label/cristianismo?updated-max=2008-0815T11%3A39%3A00-03%3A00&max-results=20>. Acesso em: 7 abr. 2009.
41
estabelecendo que o cristianismo se tornasse a religião oficial do Império Romano,
impondo a toda população a sua doutrina e abolindo as práticas politeístas em todas
as terras abrangidas pelo Império. Assim, os romanos passaram a ter uma só
religião, o cristianismo. (VICENTINO, 2001, p. 91). No governo de Teodósio, porém,
o Império Romano começou a entrar em declínio. A intensificação dos ataques
bárbaros e o enfraquecimento da economia escravista geraram grande debilidade às
cidades do Império. O Império Romano, enfraquecido economicamente pela crise do
escravismo e pela expansão do cristianismo, não teve condições de se defender dos
ataques externos. A ascensão do cristianismo correspondeu à queda do Império
Romano. Esse seria o começo do cristianismo e da Igreja Católica como os grandes
formadores da mentalidade jurídica e social do período histórico que se seguiu: a
Idade Média. (VICENTINO, 2001, p. 90).
Depois da ascensão da Igreja, o cristianismo passou a ter um papel
fundamental na ordem jurídica da sociedade ocidental medieval à medida que
exercia o papel de “Estado”. Nesse aspecto, a Igreja se utilizou de sua doutrina
religiosa junto com elementos jurídicos romanos para formar uma nova ordem social.
Assim, pode-se dizer que o maior legado romano àquela posteridade foram os
conjuntos de leis conhecidos como Codex41 romano. Esse código de leis abrangia o
Jus Naturale (Direito Natural), o Jus Gentium (Direito das gentes), aplicado a todos
os povos, e o Jus Civile (Direito Civil), aplicado aos cidadãos romanos. (VICENTINO,
2001, p. 92). Com essa base jurídica romana, a Igreja pôde continuar a organizar a
sociedade da época, evitando a decadência total da economia. Aos poucos foi
introduzindo elementos e normas advindas da própria doutrina cristã. Foi o período
medieval denominado como “A Alta Idade Média”, um período marcado pela
coexistência entre a Igreja Católica como o “Estado” do Ocidente e o Império
Romano do Oriente como o “Estado” do Oriente. Ao contrário do que se haveria de
esperar, o colapso do Império Romano do ocidente não foi acompanhado na parte
oriental do Império, cuja economia era baseada no comércio e não no escravismo.
Dessa forma, Constantinopla tornou-se o centro do Império Romano do Oriente,
passando a ser conhecido como Império Bizantino. Nessa metade do Império,
prevalecia o idioma grego e não o latim. A autoridade máxima era o imperador,
41
Códice: “da palavra em latim Codex, que significa "livro" ou "bloco de madeira. [...] É um avanço do
rolo de pergaminho, e gradativamente substituiu este último como suporte da escrita. O códice, por
sua vez, foi substituído pelo livro impresso.” (Wikipédia, a enciclopédia livre. Códice. Disponível em:
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Codex>. Acesso em: 3 mar. 2009).
42
considerado ao mesmo tempo chefe do exército e chefe da Igreja. (VICENTINO,
2001, p. 106). Aqui se deu a divisão da Igreja Católica, conhecida como a “Cisma do
Oriente”. Na parte ocidental, o chefe político e religioso era o chefe da Igreja
Católica, o bispo de Roma, que passou a ser chamado de Papa. Na parte oriental, o
chefe político e religioso do Império e da Igreja Católica era o próprio imperador.
Assim, a Igreja Católica era o Poder estatal no ocidente, cuja capital era Roma. O
Império Bizantino era o Poder estatal no oriente, cuja capital era Constantinopla
(antiga Bizâncio).
O principal imperador bizantino foi Justiniano (527-565), responsável pela
temporária reconquista de grande parte do Império Romano do Ocidente,
incluindo a própria cidade de Roma. Seu maior legado, na verdade, foi a
compilação das leis romanas desde o século II, o corpus Juris Civilis (Corpo
do Direito Civil), uma revisão e atualização do direito romano que serviu de
base para os códigos civis de diversas nações na atualidade. O Codex
Justinianus, depois chamado de Corpus Juris Civilis, foi redigido por uma
comissão de dez juristas e era composto das constituições imperiais, da
compilação de normas jurídicas (chamada Digesto ou Pandectas), de um
resumo para os estudantes de direito (chamada Institutas) e de novas leis
para solucionar controvérsias jurídicas (chamadas Novelas ou Autênticas).
(VICENTINO, 2001, pp. 106 e 107).
Após o auge do governo justiniano, o Império Bizantino também começou a
entrar em declínio, devido à pressão econômica nas fronteiras orientais, aos gastos
com as guerras e à expansão ocidental marcada especialmente pelas cruzadas,
culminando com a queda definitiva do Império em 1453, quando os turco-otomanos
tomaram a cidade de Constantinopla, mudando seu nome para Istambul e
transformando-a na capital do Império Otomano. Apenas em 1930, no entanto, a
cidade mudou oficialmente de nome, passando a ser considerada a capital da atual
Turquia. (VICENTINO, 2001, p. 107). Mesmo com o palco formado pela “Cisma
Católica”, o cristianismo predominou tanto na sociedade feudal do ocidente europeu
quanto no Império Bizantino na parte oriental da Europa, constituindo-se como
doutrina religiosa que mais influenciou na história e no Direito da sociedade moderna
do mundo Ocidental.
Como visto, em 476 deu-se a queda do Império Romano do ocidente e a
ascensão da Igreja como Poder estatal. Para muitos historiadores, esses fatos
deram início à Idade Média e à transição da economia escravista greco-romana para
a economia feudal. O modo feudal de produção predominou na Europa ocidental
durante cerca de 1000 anos, sendo fortemente influenciada pelas ideologias da
doutrina cristã. Ao contrário do comércio oriental do Império Bizantino, o comércio
43
ocidental e a utilização das moedas de troca entraram em decadência com a
instabilidade causada pelas inúmeras guerras, sendo aos poucos substituídos pelo
modo feudal de sociedade. (MORAES, J., 1998, p. 109). Nesse “modo de
produção”42, ocorreu um forte movimento de êxodo urbano em direção às regiões
rurais, onde havia mais proteção contra os ataques bárbaros. Essa unidade de
produção agrária que reunia em si uma estrutura societária ficou conhecida como
feudo. O feudo pertencia a uma camada de senhores da nobreza ou do alto clero da
Igreja.
A servidão era o sistema de trabalho que predominou nesse período histórico,
e era marcado pelo trabalho realizado no feudo em troca de uma pequena parcela
da produção, de um pedaço de terra para moradia dentro do feudo e da proteção
dos nobres que detinham as terras. Essa condição de trabalho era incentivada e
apoiada pela Igreja, que disseminava a mentalidade de que cada classe da
sociedade estava destinada a um determinado tipo de ofício. O dos servos seria o
trabalho na terra, o do clero seria rezar pela produção, pelo desenvolvimento e pela
proteção de todos dentro do feudo, e a da nobreza seria a de proteger militarmente
as propriedades. Dessa forma, todo o modo de produção feudal que vingou na
Europa durante a Idade Média estava baseado num sistema de sociedade tripartido
em Clero, Nobreza e Servos. (MORAES, J., 1998, p. 111). Havia ainda outro sistema
de classes sociais estabelecida especialmente entre os senhores feudais,
determinando relações de suserania e vassalagem. Nessas relações, o senhor
feudal mais poderoso cedia terras ou outros privilégios a um nobre menos poderoso
em troca de proteção militar e outros tipos de favores convenientes para o feudo. O
senhor que doava as terras ou privilégios se tornava o suserano, e o nobre que se
comprometia com o feudo era chamado de vassalo. (VICENTINO, 2001, p. 120).
Como, após a queda o Império Romano do ocidente, o cristianismo assumiu o
Poder, o período medieval inteiro foi marcado por uma forte religiosidade cristã,
cujos objetivos era zelar pela homogeneidade dos princípios espirituais e promover a
conversão dos pagãos.
Presentes em todos os níveis de uma sociedade marcada pela
religiosidade, os membros da Igreja medieval cimentaram valores como a
42
“Modo de produção significa a forma como se organiza a produção de riquezas numa sociedade, o
que implica um conjunto de relações econômicas, mas também sociais, políticas e culturais,
intimamente ligadas entre si e interferindo umas nas outras.” (VICENTINO, 2001, p.117).
44
passividade e a subordinação dos homens comuns perante o senhor
espiritual, encarregado de proteger as almas, quanto o senhor feudal da
terra, que protegia os corpos. O poder da Igreja, portanto, não estava
restrito ao plano espiritual, por mais importante que este fosse para as
sociedades medievais; também era temporal. Isso porque a Igreja pouco a
pouco foi-se transformando na maior proprietária de terras da Idade Média e
construindo fortes vínculos com a estrutura feudal. [...] Apesar de todo seu
poder e influência, a estrutura da Igreja medieval encontrou dificuldades de
manter a homogeneidade da doutrina cristã, em meio à insegurança do
período. Era comum o surgimento de seitas, facções ou orientações, que,
embora fundadas em princípios cristãos, eram contrárias à doutrina oficial
da Igreja – eram as chamadas heresias. [...] Entretanto, durante a Alta Idade
Média, o crescimento vertiginoso de seu patrimônio e o alcance da
influência da instituição sobre o conjunto da sociedade medieval
sobrepujaram as dificuldades enfrentadas pela Igreja. A instituição tornou-se
a mais importante e poderosa do período. Os poderes locais dos senhores
feudais integravam-se ao poder universal da Igreja, ambos visando, em
última instância, manter a organização econômica e social feudal que lhes
era favorável. (VICENTINO, 2001, pp. 122 e123).
Culturalmente, o período medieval conheceu um pequeno estágio de
estagnação em relação à produção greco-romana, sendo pejorativamente chamada
por muitos estudiosos de “A Idade das Trevas”. No entanto, parte dessa estagnação
se deveu à escassez de recursos e às péssimas condições materiais, aliadas ao
analfabetismo crônico das grandes massas. (VICENTINO, 2001, p. 136). A Igreja,
para não deixar perder a cultura greco-romana, monopolizou todo o conhecimento
em monastérios e bibliotecas restritas ao clero. Tais conhecimentos, aliados à
intensa religiosidade que acabou se refletindo na produção econômica, social,
cultural e artística do período, passaram a ser denominados de “teocentrismo
cultural”. Toda a cultura medieval tinha Deus como o centro da produção. E como
Deus era um conceito imutável, a moral religiosa impedia muitos dos avanços
tecnológicos e científicos. A produção era quase que voltada restritamente para a
área agrícola (para o cultivo dos feudos), bélica (para a proteção das terras) e
filosófica. (VICENTINO, 2001, p. 137).
Nesse sentido, os principais pensadores e filósofos, inclusive juristas, eram do
meio clerical e religioso. Como exemplo, sabe-se que os monges da Idade Média
resgataram os conhecimentos de Santo Agostinho, um dos doutores da Igreja que
viveu entre os anos 354 e 430, durante o período de declínio do Império Romano.
Tendo por inspiração as obras de Platão, Santo Agostinho foi um dos maiores
filósofos e também juristas de sua época, reunindo e sintetizando grande parte da
Filosofia clássica e sistematizando a doutrina teológica do cristianismo a fim de
combater o paganismo e as heresias. Mesmo durante a Baixa Idade Média o
pensamento
religioso
predominava
na
produção
intelectual.
A
concepção
45
agostiniana foi aos poucos sendo substituída pela ideologia de São Tomás de
Aquino, representante da filosofia escolástica. O conjunto de idéias e concepções
filosóficas de São Tomás de Aquino, que retomava as tendências aristotélicas, ficou
conhecido como tomismo, e envolvia assuntos como o “livre arbítrio”, o uso da
“razão” humana como fonte de progresso, e o “esforço” do homem na construção de
seu destino. O tomismo era uma filosofia que buscava conciliar a “fé e a razão” em
prol do progresso científico que esteve estagnado durante a Alta Idade Média.
(VICENTINO, 2001, p. 140).
Junto com essas idéias e com o renascimento urbano provocado pelas
cruzadas expansionistas, surgiram as primeiras universidades voltadas à produção
de conhecimentos. Embora restrita aos membros do clero e a alguns nobres
admitidos, as universidades passaram a difundir pouco a pouco o conhecimento. Os
cursos básicos eram compostos pelo chamado trivium, formado pelo estudo da
lógica, da gramática e da retórica, e pelo chamado quadrivium, formado pelo estudo
da astronomia, da música, da aritmética e da geometria. Após o curso básico, os
estudantes poderiam ingressar nos “cursos liberais”, voltados para o exercício de um
ofício específico como Medicina, Teologia ou Direito. (VICENTINO, 2001, p. 139). Na
produção de arte arquitetônica, prevaleceram as construções de estilos românico e
gótico, caracterizadas por igrejas e templos de torres altas, pela verticalidade das
construções e pela utilização de rosetas e vitrais decorativos. Na pintura e na
escultura, houve pouca inovação, exceto pela arte das iluminuras que estava
presentes em documentos religiosos como missais e bíblias. (VICENTINO, 2001, p.
138).
O sistema feudal de produção começou a entrar em colapso com o início dos
movimentos cruzadistas. Com o crescimento demográfico, a economia agrícola
tornou-se insuficiente para o sustento das pessoas que viviam nos feudos. A saída
encontrada pelos senhores feudais foi esvaziar as terras, enviando o maior número
de pessoas possível em expedições à Terra Santa com o objetivo de proteger as
rotas de peregrinação e libertar Jerusalém do domínio árabe, detendo a expansão e
as conquistas dos califas do islã. (BRAICK, 1997, p. 88). Em 1095, o papa Urbano II
pronunciou, no Concílio de Clermont, o tão famoso discurso incitando os cristãos a
ingressassem nas expedições cruzadistas rumo à Terra Santa, em troca do perdão
de todos os pecados. Entre 1096 e 1270, partiram oito cruzadas européias em
direção ao oriente. Nesses quase duzentos anos de emigrações, houve um
46
crescente reavivamento do comércio e o ressurgimento de algumas poucas cidades.
Tal renascimento urbano e comercial fez emergir uma nova classe social: a
burguesia. (VICENTINO, 2001, pp. 128 e 129).
A ascensão da burguesia e as novas ideologias sobre o comércio e o lucro,
combinadas com a centralização do Poder nas mãos dos reis, fez a Baixa Idade
Média entrar cada vez mais em declínio, dando espaço para a Idade Moderna,
marcada pela expansão marítima européia, pelo renascimento cultural, pela reforma
protestante e pelo absolutismo, um sistema de sociedade em que todo o Poder
estatal se concentrava nas mãos dos reis. As monarquias da Idade Moderna,
mesmo em frente à nova realidade do capitalismo, eram baseadas nas doutrinas
religiosas formuladas pelo clero, como a Teoria do Direito Divino, na qual o rei seria
o representante de Deus na Terra. (BRAICK, 1997, p. 102). Como a ideologia cristã
dizia que todo o poder sobre os homens vinha do Alto, a interpretação das palavras
de Jesus foi deturpada para legitimar o poder absoluto da nobreza. A figura do Rei
se confundia com a do próprio Estado. O Rei era o Estado. No entanto, após o
declínio das monarquias absolutistas, a Igreja saiu oficialmente do palco estatal.
Houve uma verdadeira ruptura entre o Estado e Igreja, dando origem ao Estado laico
iluminista. A ideologia religiosa cristã, por muito tempo deturpada, retorna às origens,
deixando de se identificar com as classes dominantes e se aliando aos dominados.
Dessa forma, hoje em dia, principalmente após a Revolução Industrial, a
doutrina católica sobre o “Reino de Deus” que influencia no “reino da terra” está mais
para uma interpretação sociológica do que aristocrática. Em tal renovação ideológica
católica, as pessoas devem se comprometer a realizar a paz e a harmonia social
através da partilha dos bens e das riquezas. Após a Revolução Industrial e a
Revolução Francesa, que acabaram de vez com o poder absolutista e firmaram os
alicerces do Estado Moderno de Direito, galgado em ideologias iluministas, o
altruísmo e a caridade voltaram a ser a ideologia religiosa predominante na Igreja
Católica em resposta ao crescente capitalismo mercantilista, de modo que, mesmo
no período pós-medieval e pós-moderno, a religião cristã continuou influenciando na
produção de normas jurídicas reguladoras da sociedade. No entanto, a influência se
tornou uma oposição ao crescente Poder da burguesia e do capitalismo em prol das
classes desfavorecidas. Na Idade Contemporânea, a Igreja, estimulada pela contrareforma protestante e interessada em não perder adeptos, buscou ideologias
religiosas mais condizentes com o cristianismo primitivo, permitindo que a religião se
47
voltasse para a proteção dos direitos do povo e das massas proletariadas
constantemente exploradas pelo poder econômico capitalista, ao invés de proteger
as altas classes burguesas da sociedade. A mentalidade religiosa precisou sofrer
essa mudança de mentalidade para não entrar em colapso.43
Um exemplo de como a Igreja influenciou na produção de leis que
favorecessem as massas foi a edição da carta-encíclica Rerum Novarum, na qual o
Papa Leão XIII visava estimular a elaboração de leis estatais que abrandassem as
ações praticadas pelos donos das indústrias, baseando-se em princípios cristãos de
igualdade, fraternidade, etc. Isso tudo porque, na época da Revolução Industrial, os
trabalhadores eram explorados nas indústrias, com cargas horárias que chegavam a
até 18 horas diárias. Havia a exploração do trabalho proletariado em condições
subumanas de vida, como jornadas de trabalho excessivas, exposição a ambientes
sujos, insalubres, escuros, sem higiene, alojamentos mal estruturados e o
aliciamento de mulheres e crianças como mão-de-obra mais barata.44 Mulheres e
crianças morriam nas fábricas sem as menores condições humanas de trabalho. O
aparecimento da encíclica papal Rerum Novarum e da lei de Peel45 traduziu-se em
medidas que tentaram resgatar a noção de Direitos Humanos em contraposição à
lógica capitalista de produção desenfreada. Nesse estágio de evolução histórica,
surgiram em grande proporção outras ideologias humanitárias, como o socialismo, o
comunismo e os movimentos anarquistas. Nesse ínterim, viu-se cada vez mais forte
a necessidade de se positivar normas gerais sobre a dignidade e os direitos
fundamentais do ser humano, todos também baseados e influenciados por
ideologias religiosas de igualdade, fraternidade, direito à vida, etc. Essa positivação
seria a manifestação mais sublime de um Direito Natural inerente ao ser humano
que vem sido conservado desde os mais remotos tempos históricos. Estavam sendo
traçadas as primeiras idéias referentes aos Direitos Humanos.
43
IGREJA CATÓLICA. Constituição Pastoral Gaudium et Spes. Sobre a Igreja no mundo atual.
Roma, Vaticano, 1965. Disponível em:
<http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vatii_const_19651207_gaudium-et-spes_po.html> Acesso em: 23 fev. 2009.
44
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda e MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando, introdução à
Filosofia. 2. ed., São Paulo: Editora Moderna, 1993. p. 10.
45
“Foi uma das primeiras leis trabalhistas que surgiram para proibir o trabalho em determinadas
condições, como o dos menores até certa idade e o de mulheres em ambientes ou sob condições
incompatíveis.” (NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Iniciação ao Direito do Trabalho. 30. ed., São
Paulo, SP: Editora LTR, 2004. p. 48).
48
Após os horrores da Primeira e da Segunda Guerras mundiais, na qual o
planeta conheceu todo o tipo de desrespeito e maus tratos ao ser humano motivado
por regimes totalitaristas de extrema direita (fascismo, nazismo, etc), finalmente
surgiu a positivação dos direitos fundamentais inerentes a todo ser humano. A
Declaração Universal dos Direitos do Homem traduziu todos os anseios de Direito
Natural que permeavam a consciência coletiva, social e religiosa do povo, entrando
no ordenamento jurídico e constitucional de muitos países, inclusive no do Brasil, por
meio de ratificações de tratados internacionais. São os famosos Direitos Humanos.46
Vê-se, portanto, que as religiões, mormente o cristianismo para a sociedade
ocidental, foram de grande influência para a formação dos atuais Estados de Direito,
participando direta e/ou indiretamente na ordem normatizadora das nações de
inúmeras maneiras ao longo da evolução histórica da humanidade.
2. DO DIREITO NATURAL.
2.1 . O QUE É JUSNATURALISMO.
Quando se fala em jusnaturalismo, se está falando de um ramo da Filosofia
do Direito que coloca o homem como o centro do conhecimento em prol do próprio
homem. A Filosofia do Direito, como um todo, possui um aspecto antropológico, no
qual o ser humano é colocado em destaque. As vantagens de se desenvolver uma
ciência com essas características é a valorização do aspecto cognoscente da
ciência, ou seja, o aspecto capaz de formular, a partir da essência, os conceitos
jurídicos que formam o ordenamento social.47 Não se pode reduzir o conceito de
Direito ao que prega a definição de uma ciência jurídica em particular, como o Direito
Civil ou o Direito Penal, pois a espécie não pode abranger o todo. A competência
para definir o conceito de Direito pertence ao âmbito da Filosofia do Direito, tendo o
homem como seu principal fundamento.48 O homem é tão importante para a
Filosofia do Direito que, de certa forma, a visão que se tem do Direito é a mesma
REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. Adaptado ao Novo Código Civil – Lei Nº
10.406/02. 27. ed., São Paulo, SP: Editora Saraiva, 2004. pp. 268 e 269.
47
Sobre a Filosofia do Direito, ver: NADER, Paulo. Filosofia do Direito. Rio de Janeiro: Editora
Forense, 2003. p. 12.
48
REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. Adaptado ao Novo Código Civil – Lei Nº
10.406/02. 27. ed., São Paulo, SP: Editora Saraiva, 2004. p. 15.
46
49
visão que o homem tem de si mesmo. O Direito é um reflexo da essência humana. O
jusnaturalismo consiste, dessa forma, numa vertente jurídica que vai até essa fonte
essencial buscar o sentido e a compreensão sobre as normas jurídicas internas e
intuitivas a todo ser humano.49 A pergunta que se pode fazer, portanto, é: “será
possível ir até essa fonte essencial sem antes passar pelo prisma da espiritualidade
e da religiosidade humana? Existe alguma relação entre o que é religioso e o que é
juridicamente essencial?” O estudo sobre os aspectos cognoscentes da Filosofia do
Direito e do jusnaturalismo antropológico pode oferecer algumas respostas.
O jusnaturalismo, como ciência que analisa as origens jurídicas, não se
restringe aos aspectos puramente positivos da lei. O conceito de Direito que o
jusnaturalismo pretende obter passa por questões muito mais amplas, como a moral,
a ética, a religião, os valores pessoais e espirituais, sem, no entanto, descartar a
reflexão concreta e positiva do Direito. O jusnaturalismo busca uma realidade mais
profunda para o homem e para o ordenamento jurídico, se firmando como uma
doutrina que busca idealizar um Direito Natural galgado num sistema de condutas
entre as pessoas de uma determinada sociedade mais amplo e profundo do que o
sistema formado unicamente pelas leis e pelas normas positivadas do Estado
Moderno de Direito. A busca por esse Direito Natural se faz necessária pelo fato de
tal Direito ter uma validade natural em si mesmo, sendo superior e anterior a
qualquer ordem jurídica positivada. Portanto, em casos de conflitos de normas, o
jusnaturalismo busca prevalecer sobre a norma positivada por se relacionar
diretamente com a essência formadora do ser humano. Por esse ponto de vista,
qualquer Estado ou ordenamento jurídico que se oponha diretamente aos princípios
basilares do Direito Natural podem ser considerados ilegítimos perante a sua
sociedade e ao seu próprio povo. O jusnaturalismo prega que, embora toda lei seja
legal, nem toda lei é justa. Dessa forma, nem toda lei merece ser obedecida, mas
tão somente aquelas que são justas, as que estão de acordo com os princípios
fundamentais inerentes à natureza e à dignidade do ser humano.50
O Direito Natural, historicamente, se divide em duas grandes vertentes: a do
Direito Natural Clásssico e a do Direito Natural Racionalista. A Primeira vertente
possui como características o aspecto objetivo da Lei, sua postura divina e seu
49
Sobre o jusnaturalismo como a corrente filosófico-jurídica que busca o caráter imutável e essencial
das leis, ver: CICCO, Cláudio de. História do Pensamento Jurídico e da Filosofia do Direito. 3.
ed., São Paulo, SP: Editora Saraiva, 2006. p. 21.
50
RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. (tradução: Marlene Holzhausen). São Paulo, SP:
Martins Fontes, 2004. pp. 25 e 26.
50
conteúdo cosmológico imutável. Já a segunda vertente possui como características
o aspecto subjetivo e antropológico da Lei, colocando o homem e a razão como
fonte da moralidade jurídica. O foco sai do aspecto divino e adentra a esfera do
puramente humano. A vertente clássica foi desenvolvida pelos filósofos gregoromanos e pelos cristãos desde a antiguidade clássica até a Idade Média. A vertente
racionalista passou a ser desenvolvida a partir da Idade moderna com o surgimento
dos movimentos iluministas inerentes ao renascimento urbano e cultural do mundo
ocidental.51 Ambas vertentes filosóficas do jusnaturalismo possuem pontos fortes e
críticas peculiares a si mesmas, sendo que ainda resistem ao passar dos séculos,
não sendo inteiramente abandonadas, apesar de estarem praticamente em desuso
nos dias atuais, devido à positivação inevitável e definitiva do Estado Moderno de
Direito que se deu pela herança do sistema jurídico romano-germânico.
Os principais pensadores do jusnaturalismo, desde as épocas mais remotas
até as mais atuais, são Aristóteles, Marco Túlio Cícero, Santo Agostinho, São Tomás
de Aquino, Hugo Grócio, Thomas Hobbes, John Locke, Montesquieu, Jean Jacques
Rosseau e Immanuel Kant, todos em contraposição quase absoluta aos pensadores
puramente historicistas ou positivitas, como Hegel, Karl Marx, Augusto Comte e
Hans Kelsen.
2.2. OS TEÓRICOS DO DIREITO NATURAL.
2.2.1. TEÓRICOS DO JUSNATURALISMO CLÁSSICO.
2.2.1.1. ARISTÓTELES.
Aristóteles foi um filósofo grego nascido em Estagira, na Calcídica, por volta
de 384 a.C., morrendo em 322 a.C.. Foi aluno de Platão, superando em muitos
aspectos o seu mestre, tornando-se professor e preceptor de muitas pessoas
importantes, como Alexandre, o Grande. Seus pensamentos influenciaram de tal
modo as ideologias pós-socráticas e cristãs que é considerado o pai do pensamento
51
STEUDEL, Adelângela de Arruda Moura, Jusnaturalismo clássico e Jusnaturalismo
racionalista: aspectos destacados para acadêmicos do curso de Direito. Disponível em:
<http://www.propesp. uepg.br/publicatio/hum/2007_1/Adelangela.pdf>. Acesso em: 8 abr. 2009.
51
lógico ocidental. A Filosofia de Aristóteles permeia vários campos de conhecimento
científico, como a Lógica, a Retórica, a Física, a Psicologia, a Biologia, a Metafísica,
a Ética, a Poética, a Política e o Direito. Com relação ao Direito, a tônica da filosofia
aristotélica gira em torno da noção de “aequitas” (equidade, em grego). Nesse
aspecto, Aristóteles acreditava que a “equidade” era o verdadeiro Direito.
A noção de equidade passa pela noção de justiça. A preocupação aristotélica
está no sentido de definir aquilo que é justo. O verdadeiro Direito é aquilo que é
justo. A definição do que é justo está nas leis de caráter imutável, inerentes ao ser
humano e estabelecidos por uma fonte anterior à razão humana, ou seja, à uma
fonte Divina. Segundo Aristóteles, a razão humana não pode ser fonte de si mesma,
visto que é historicamente mutável. Se a história está em constante movimento,
seria necessário existir um motor externo e existencialmente anterior à ela que fosse
capaz de propulsionar a sociedade à sua organização, ou seja, o motor externo,
natural e imutável seria a própria Divindade. Para Aristóteles, o tempo é inexistente
em Deus, de modo que a noção de moral e de virtude é um conceito sempre
constante, podendo estar apto a formar a base durável da justiça humana. Nesse
aspecto, a virtude formadora da equidade e da justiça é um fenômeno que só pode
ser apreendido no cotidiano da pólis (cidade). Para Aristóteles, o homem é um ser
social que não consegue viver isoladamente. A vida ideal e virtuosa é aquela em que
há multiplicidade de funções sociais numa cidade. Se a pólis não existisse, a
sociedade reduzir-se-ia à condição de família ou clã, o que é uma situação
indesejável para o desenvolvimento das virtudes e, consequentemente, da Justiça.
Em último aspecto, o Direito Natural Divino concebido por Aristóteles deve ser
a base de uma legislação coerente e condizente com os princípios naturais e
imutáveis, conduzindo o ser humano ao seu destino último: a felicidade. Portanto,
em tal concepção jusnaturalista, a Lei possui como finalidade teleológica a própria
felicidade do homem, levando o Direito para um campo mais místico da antropologia.
No entanto, só é justo aquilo que satisfaz a alma do ser humano numa visão macro
de pólis, e não numa visão micro e individualista. A satisfação das vontades
individuais em detrimento da coletividade são definidas como tirania na filosofia
aristotélica. Portanto, a cosmologia cosmopolita é a verdadeira justiça capaz de
trazer felicidade a todos ao mesmo tempo, e não a apenas determinados indivíduos.
52
2.2.1.2. CÍCERO.
Marco Túlio Cícero foi um advogado romano, jurisconsulto e político do
período pós-estóico, que viveu entre 106 a.C. e 43 a.C.. Foi o autor de inúmeros
tratados filosóficos sobre as Leis, a Política, o bem, o mal, os deveres, as proibições,
a velhice, a amizade e o Estado, transmitindo a tradição grega para a sua
posteridade. Sua doutrina jusnaturalista se assemelha bastante à ideologia
aristotélica do Direito Natural, sendo também muito influenciado pelo estoicismo52 da
época, pelas idéias de Platão e de Sócrates. Tal sincretismo filosófico é
característica marcante nos discursos de Cícero. Seu escrito que mais destaca a
ideologia do Direito Natural é o De Legibus, no qual ele prega a supremacia do
ordenamento divino sobre a Lei humana, sendo esta válida ou não apenas a partir
do ponto de vista da justiça natural. Se a Lei humana não refletisse a natureza prima
dos princípios da amizade e das virtudes em si mesmas, ela até poderia ser escrita e
positivada, de acordo com o processo romano formal, mas não seria justa. Assim,
mesmo que os tiranos obrigassem as pessoas a cumprirem uma lei escrita, e esta
estivesse em desacordo com os princípios naturais inerentes ao ser humano, tal lei
seria injusta. Da mesma forma, Cícero ensinava que não era a Lei escrita que
possuía a força para dizer o que deveria ser feito ou para proibir aquilo que não
deveria ser feito, pois logo a coação da Lei deixasse de existir, ela não seria mais
cumprida. Para Cícero, o verdadeiro Direito é aquele que é cumprido por si mesmo,
e não pelo medo da coação, ou pela promessa da recompensa, ou por qualquer
outro motivo inteiramente pessoal. A Lei natural deve ser cumprida por possuir um
valor intrínseco a si mesma. Um valor natural e superior que é a prova da sua
ligação com a Divindade. Essa mesma relação natural, por ser herdada dos deuses,
deveria ser aplicada não só ao Direito, mas também naturalmente a todos os
âmbitos das relações humanas, como as relações de amizade, de família, etc.
52
“O estoicismo propõe viver de acordo com a lei racional da natureza e aconselha a indiferença
(apathea) em relação a tudo que é externo ao ser. O homem sábio obedece à lei natural,
reconhecendo-se como uma peça na grande ordem e propósito do universo.” (Wikipédia, a
enciclopédia livre. Estoicismo. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Est%C3%B3ico>. Acesso
em: 12 mar. 2009).
53
2.2.1.3. SANTO AGOSTINHO.
Santo Agostinho foi um importante doutor da Igreja Católica, nascido em 354
d.C. em Tagaste, na Argélia. Viveu, durante sua mocidade, uma vida desregrada e
inconsequente, se convertendo ao cristianismo após ouvir a pregação de Santo
Ambrósio, bispo de Milão na época. Logo após, fundou uma ordem monástica,
tornou-se sacerdote cristão e, em 395, foi ordenado Bispo de Hipona, na Argélia,
onde morreu em 430. Santo Agostinho foi um dos maiores filósofos e também
juristas de sua época. Sua filosofia retomava as ideologias de Platão, reunindo e
sintetizando grande parte da Filosofia Clássica e da Teologia católica, com o
propósito pessoal de combater as heresias e o paganismo. Nessa retomada
platônica, Agostinho dividia o universo em dois grandes planos ordenados: o plano
ideológico e abstrato, formado pela “cidade de Deus”, e o plano real e concreto,
formado pela “cidade dos homens”. A “cidade de Deus”, idealizada por Agostinho,
reflete o antigo “mundo das idéias” de Platão. Nesses planos de ordenamento, a
Justiça Divina prevalecia sempre, pois pertencia a um plano abstrato imutável, um
mundo ideário a ser sempre buscado.
No “mundo das idéias”, tudo se explicava por meio de conceitos sempre
existentes e eternos. Esse ideário deveria ser aplicado ao mundo do homens a fim
de modelá-lo de acordo com a própria Justiça Divina. Nesse aspecto, Agostinho
retoma o “mito da caverna” de Platão, no qual as pessoas justas, ao conhecer o
verdadeiro mundo da justiça, são mortas pelas pessoas injustas que se recusam a
conhecer o mundo superior, dizendo que tal mundo não existe. Tanto para
Agostinho quanto para Platão, viver preso ao mundo dos homens é o mesmo que
permanecer cego no fundo de uma caverna. No entanto, enquanto que para Platão a
virtude da justiça já é pré-existente no mundo das idéias, para Agostinho, é possível
que o homem construa esse ideário de justiça a partir do seu dia a dia, ou seja, na
prática correta das virtudes nos relacionamentos interpessoais na “cidade dos
homens”.
A ideologia neo-platônica de Agostinho passou a ser chamada de patrística,
ou seja, a filosofia dos santos padres, à medida que foi sendo adotada pelos
sacerdotes católicos como filosofia básica. Com relação ao Direito propriamente dito,
Agostinho falava sobre a Lex Aeterna de origem divina, ao qual o homem não
54
poderia corromper, e na qual o homem deveria se espelhar. Para Agostinho, todo
ser humano é um ser nascido com uma predisposição corrupta, voltada para a má
índole. Nesse sentido, a Lei Eterna é totalmente desvinculada da razão humana,
posto que esta é corruptível. O Estado já nasce imerso na idéia de pecado, o que
era uma concepção pessimista. No entanto, sua doutrina dava um norte preciso para
a superação da corrupção moral do homem. A Lei Eterna só encontra sua base na
natureza, que é Divina. Assim, a Lex Aeterna é a única fonte verdadeira da Justiça e
do Direito. Dando ênfase à necessidade da praxis, Agostinho estabelecia o ideal de
sociedade justa na fusão entre a “cidade de Deus” (o ideário imutável) e a “cidade
dos homens” (a realidade historicamente mutável e corrupta).
2.2.1.4. SÃO TOMÁS DE AQUINO.
São Tomás de Aquino foi um frade dominicano nascido na Itália, em 1225,
durante o período da baixa Idade Média. Sendo um importante expoente da
escolástica53, suas idéias coincidiam com o surgimento de uma nova mentalidade
mais aberta que surgia ao final da Idade Média, deixando um pouco de lado o
teocentrismo e começando a colocar o homem no centro da produção cultural e
científica. O tomismo, como ficou conhecido o conjunto de ideologias de São Tomás,
dava grande importância à razão humana, revendo assuntos controversos como o
destino, o livre arbítrio e a importância da vontade humana no contexto social. Para
São Tomás de Aquino, era totalmente possível conciliar a fé e a razão em prol do
ordenamento jurídico da sociedade. A idéia que São Tomás faz do jusnaturalismo
retoma as principais idéias aristotélicas sobre a Lex Aeterna, sobre a natureza da
verdade e sobre a necessidade de se conhecer a verdade para se poder amá-la.
O tomismo prega que a Natureza revela o perfil daquela que a criou, ou seja,
estudar e imitar a Natureza é viver de acordo com a Justiça de Deus, a verdadeira
Justiça. A fé seria o instrumento capaz de conciliar a razão humana com a verdade
natural de Deus. Portanto, nem fé nem razão devem ser consideradas
separadamente, mas ambas devem levar o homem à experiência da verdadeira
53
“A Escolástica (ou Escolasticismo) é uma linha dentro da filosofia medieval, de acentos
notadamente cristãos, surgida da necessidade de responder às exigências da fé, ensinada pela
Igreja, considerada então como a guardiã dos valores espirituais e morais de toda a Cristandade.”
(Wikipédia, a enciclopédia livre. Escolástica. Disponível em:
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Escol%C3%A1stica> Acesso em: 13 mar. 2009).
55
Justiça social. Quanto à Ética, pregava que todo homem era naturalmente bom,
visto que participava da essência divina, mas devia vigiar os próprios atos para
praticar somente o bem, que é natural e divino, e evitar o mal, que não é natural e
não é divino. A Lei humana, sob esse aspecto, deveria se subordinar à Lei natural,
devendo ser boa para todos. A Lei humana que não é boa, não é natural, não tem
legitimidade e é de observância duvidosa, assim como todos os jusnaturalistas
pregam. Em suma, São Tomás se destacou por unificar em uma única ideologia a
visão teológica cristã de mundo com a visão filosófica de Aristóteles sobre o mundo.
Se com a escolástica e com São Tomás de Aquino o período medieval já
começava a mostrar os gérmens de uma sociedade e um Direito mais baseados na
racionalidade humana do que na fé, no período moderno que se seguiu, o
racionalismo passou a ser a regra do jusnaturalismo filosófico. A fé não deixou de ter
seu valor, e ainda participava da apologética cristã arraigada na mentalidade da
sociedade. Assim, a Natureza Divina não deixou de ser objeto de conhecimento dos
filósofos, posto que a construção do Direito ainda era carregada de jusnaturalismo.
No entanto, o foco deixou de ser dado à divindade em si, passando a ser dado à
própria razão humana, na construção de um pensamento metafísico antropológico
(ou ontológico). Era o início do crescimento do Estado com base na racionalidade.
Os representantes mais notáveis dessa nova vertente mais racional do
jusnaturalismo foram Hugo Grócio, Thomas Hobbes, John Locke, Montesquieu, Jean
Jacques Rosseau e Immanuel Kant.
2.2.2. TEÓRICOS DO JUSNATURALISMO RACIONAL.
2.2.2.1. GRÓCIO.
Hugo Grócio, nascido em 1583 nos Países Baixos, foi um importante jurista,
muito célebre por ter se destacado precocemente no ramo do Direito, doutorando-se
pela Universidade de Orleans quando tinha apenas 15 anos. A visão jusnaturalista
de Grócio definia o Direito Natural como uma percepção jurídica em que as coisas
e/ou pessoas são boas ou más por sua própria natureza. Assim, Grócio rompe a
união indissolúvel entre a vontade Divina e a vontade do homem. Não era um
56
rompimento com a crença na existência de Deus, mas com a idéia de que Deus quer
se envolver nos problemas humanos do cotidiano. Ambas as vontades, a humana e
a divina, existiam, ambas eram independentes e ambas poderiam ser naturais.
Sua doutrina jurídica levava em consideração a crescente importância das leis
em âmbito internacional, tratando sobre a questão bélica inserida no direito de
autodefesa do Estado, sendo sua mais importante obra o De iure belli ac pacis (Do
direito da guerra e da paz). Grócio não acreditava que a guerra e a coação fosse um
meio legítimo de manter a ordem jurídica. Ele pregava que a coação era uma
medida de defesa, dando mais foco à vontade do homem em si e criando o civilismo
jurídico, ou seja, colocando o homem como sujeito capaz de contrair direitos
subjetivos, e não apenas punitivos. A única ocasião em que a guerra e a repressão
seria juridicamente aceitável seria no caso da autodefesa. O foco da filosofia de
Grócio deixava, portanto, de ser a lei em si, o “dever ser” (a coação), para ser a
“vontade do homem” (o civilismo). Nesse aspecto, a Lei Natural devia estar a serviço
da satisfação e da vontade do homem. Tais pensamentos influenciaram bastante,
posteriormente, na construção da idéia do Estado Liberal e de sua laicização.
2.2.2.2. THOMAS HOBBES.
Thomas Hobbes foi um importante político, que também se destacou nas
áreas da Matemática e da Filosofia, vivendo entre 1588 e 1679. Quanto à sua
doutrina jusnaturalista, era um empirista que formulou a teoria de que o homem é um
ser em constante conflito interno entre o bem e o mal, sendo incapaz de viver
inteiramente sozinho ou inteiramente em sociedade. É a famosa teoria do “bellum
omnium contra omnes”, que significa em latim “a guerra de todos contra todos”. É
necessário ao homem que exista uma ordem coatora que lhe imponha limites e dite
as normas de convivência. Tal norma coatora seria uma força externa repressora
necessária ao desenvolvimento da paz social. Ou seja, a força externa coatora é o
Estado. Para Hobbes, assim como o homem possui um corpo físico e natural, o
Estado também deve possuir um corpo físico, porém artificial, de organismos
reguladores. E tanto o corpo humano quanto o corpo estatal devem estar imbuídos
de um espírito vital de “auto-conservação”. No corpo humano, a força vital se
expressa pela vontade própria de direitos subjetivos infinitos em constante conflito
57
com os direitos de outrem, concomitante com o desejo de paz entre si. No corpo
estatal, a força vital se expressa como a vontade imperante, capaz de manter a
ordem e a paz social.
Para Hobbes, portanto, a vontade humana deve ser limitada pela vontade
estatal, posto que o homem está em constante tensão e conflito interno, o que deu
origem ao famoso ditado “o homem é lobo do próprio homem”. Tal concepção
jusnaturalista coloca o Estado como uma instituição de existência natural e essencial
à vida em coletividade. A Lei natural é a constante busca pela Paz na agregação
humana, que só pode ser obtida por meio da existência de um ente superior que
imponha a ordem. É necessária e natural a existência do Estado, que se dá por meio
de um contrato social. Em prol da paz social, o homem naturalmente abdica de
alguns direitos e liberdades, dando origem ao Estado natural. Se o conflito interno é
natural ao homem, o desejo pela paz também o é. O contrato social é a autoridade
que as próprias pessoas outorgam ao Estado, para que este lhes proporcione a paz.
O corpo estatal, em Hobbes, assume, numa analogia, a forma corporal do Leviatã,
um monstro que possuía seus membros formados por pessoas, uma representação
do mal. Para Hobbes, o Estado era um “mal necessário”. Quanto à relação entre
Estado e Igreja, sua doutrina, ao contrário da de Grócio, ainda era favorável ao
absolutismo monárquico e à sua coligação com o Poder papal.
Thomas Hobbes defendia a idéia segundo a qual os homens só podem
viver em paz se concordarem em submeter-se a um poder absoluto e
centralizado. Para ele, a Igreja cristã e o Estado cristão formavam um
mesmo corpo, encabeçado pelo monarca, que teria o direito de interpretar
as Escrituras, decidir questões religiosas e presidir o culto. Neste sentido,
critica a livre-interpretação da Bíblia na Reforma Protestante por, de certa
forma, enfraquecer o monarca. (Wikipédia, a enciclopédia livre. Thomas
Hobbes. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/ Thomas_Hobbes>
Acesso em: 16 mar. 2009).
2.2.2.3. LOCKE.
No entanto, John Locke, um filósofo empirista inglês que viveu entre 1632 e
1704, possuía uma concepção diferente para o contrato social. Apesar de pregar a
mesma idéia da auto-conservação da sociedade, Locke acreditava que, pela Lei
natural, a conservação se daria de forma “livre”, sem que fossem necessárias
normas coatoras por parte do Estado. Foi o maior pregador do liberalismo estatal,
58
formulando a teoria de que o Estado deveria ser mínimo. A paz social seria garantida
pelo livre exercício dos direitos naturais pessoais, tais como o direito à vida, à
liberdade e à propriedade. Afirmava que o acesso à propriedade privada só poderia
se dar por meio do trabalho, que é o único instituto que poderia justificar a origem da
riqueza monetária. Apesar de pregar a liberdade e a igualdade entre os homens, era
a favor da escravidão originária do ônus da guerra. Para Locke, a escravidão racial
não era aceitável, mas os prisioneiros de guerra que deveriam ser mortos em
batalha, não sendo mortos, arcariam com o ônus da servidão em troca da vida.
2.2.2.4. MONTESQUIEU.
Após o período dos filósofos empiristas, surge uma nova corrente filosófica
chamada iluminismo. Entre os filósofos mais importantes que integraram essa
vertente encontrava-se Montesquieu, filósofo francês que viveu entre 1689 e 1755.
Em sua obra mais importante, intitulada “O Espírito das Leis”, formulou a teoria de
que as leis estatais eram necessárias, pois os seres humanos são indivíduos
diferentes, com vontades pessoais diferentes e conflitantes, não sendo capazes de
se organizarem sem uma norma superior. Retomando a ideologia de Hobbes sobre
o constante estado de tensão entre os homens, Montesquieu vai mais além,
conceituando os diferentes tipos de Estados e apontando qual deles é o mais
adequado à ordenação jurídica da sociedade. Assim, diferenciava três formas de
Estados: o despotismo, no qual o governante domina a sociedade através do medo,
a monarquia, na qual o governante domina a sociedade por meio de sua honra
adquirida ou herdada, e a república, na qual o governante não possui um poder
absoluto, mas equilibrado e harmonizado com outros poderes.
A tripartição do Poder entre Executivo, Legislativo e Judiciário é uma doutrina
típica de Montesquieu, sendo apontada por ele mesmo como a melhor forma de se
formar um Estado. Além disso, Montesquieu conceituou fatores importantes que
poderiam ser usados para se definir um Estado e diferenciá-lo de outros, como a
natureza do território, o tipo de clima, a história e a política do povo, bem como sua
cultura, religião e idioma. Como iluminista, foi um crítico feroz da monarquia
absolutista e da influência clerical nos assuntos do poder estatal. Apesar de retomar
algumas idéias de Hobbes, se opôs a elas no tocante à natureza das leis. Para o
59
jusnaturalismo de Montesquieu, a Lei natural é inerente ao próprio povo, e à sua
própria história, não havendo leis mais justas ou injustas que outras, mas apenas
leis adequadas à determinada situação de um povo. Nesse sentido, a Lei surge
naturalmente pela força da história do povo e não da vontade estatal sobre a
vontade das pessoas. A tripartição dos poderes excluía a idéia de submissão
incondicional e apresentava a idéia de um Direito baseado na virtude, na
naturalidade do espírito das leis.
2.2.2.5. ROSSEAU.
Jean Jacques Rosseau, filósofo suíço que viveu entre 1712 e 1778, foi uma
das figuras mais marcantes para o iluminismo francês. Sua ideologia naturalista
aborda questões como a liberdade natural e a liberdade social. Na liberdade natural,
o homem só visa à satisfação de seus instintos, não se preocupando com as
consequencias de suas ações. Na liberdade social, o homem deve se pautar num
trato feito de comum acordo, para que a liberdade natural de cada um não venha a
prejudicar a do outro. Tal pacto é feito mediante a vontade geral de todos, que teria
o poder de submeter ao seu ordenamento tanto as pessoas do povo quanto o
próprio governo. A Lei, portanto, nasce de um consenso ao qual todos estão
submetidos. É a noção do Direito natural como um contrato social. Para Rosseau, o
Direito Natural se revela em um tipo de democracia simples e clara, na qual é
necessário haver uma verdadeira comunhão entre os aspectos culturais, religiosos,
históricos e jurídicos de um povo para que a vontade geral fosse aplicada tanto às
pessoas quanto ao governo de forma eficaz.
Com relação ao período de sua vida em que esteve em contato com o
cristianismo, Rosseau desenvolveu a teoria de que todo o ser humano é
essencialmente bom, retomando a idéia do amor próprio e ao próximo e a da
valorização do sentimento de piedade (teosébeia) de se viver em comunidade com
os outros. Pregava o livre acesso a Deus, sem a necessidade das instituições
religiosas como mediadoras, o que gerava o descontentamento tanto dos católicos
quanto dos protestantes, tendo algumas de suas obras queimadas. Rosseau
rejeitava a religião revelada. Como iluminista, acreditava que todo o ser humano,
60
nascido essencialmente bom, teria a capacidade para buscar Deus pessoalmente
em seu próprio coração.
2.2.2.6. KANT.
Immanuel Kant, um alemão que viveu entre 1724 e 1804, foi o filósofo
moderno que mais contribuiu para a ideologia jurídica moderna e para a Revolução
francesa. Kant foi um dos iluministas mais brilhantes de sua época, inaugurando a
ideologia do moralismo jurídico. A principal contribuição de Kant para o
jusnaturalismo foi retomar a idéia da Moral e inseri-la no contesto da fé racional.
Nesse aspecto, pregava que a fé eclesiástica (a revelada) daria lugar à verdadeira
religião, que seria a “fé pura” ou a “fé racional”. No âmbito desta última fé, não
estaria excluída a moral. Levando tais conceitos religiosos para o âmbito social, Kant
formula um Direito Natural altamente imbuído de moral. Para Kant, a norma moral
também possui natureza coatora, e não apenas a norma positivada. Assim, para que
uma ação humana se tornasse o princípio de uma legislação natural e universal, era
necessário que se agisse por meio dos imperativos categóricos, que incluem em si
as normas morais, jurídicas e religiosas.
Ao contrário do imperativo hipotético intrínseco à razão pura, no qual a moral
existe apenas como uma norma provável e incriada, o imperativo categórico
(intrínseco à razão prática) exige que a ação se dê de forma legal e moral,
constituindo-se como obrigação incondicional, independente das vontades e desejos
de foro íntimo. Assim, Kant transforma a moral numa Razão prática, sem a qual a lei
positivada perde sentido, tornando-se apenas externa e superficial, não indo ao
âmago da subjetividade humana. A moral, como atributo da consciência humana, é
uma lei imperativa de vontade autônoma, ou seja, existente na natureza do homem.
É a lei moral que imbui de Valor as ações dos homens. Já a lei puramente positiva
se constitui como uma vontade heterônoma, externa ao homem. A crítica que Kant
faz para a validação da norma jurídica é a análise entre a eficácia da norma jurídica
e a sua repercussão na vontade autônoma, ou seja, na moral subjetiva. Para Kant, a
natureza do Direito de “dever ser” só é válida e legítima se houver a harmonia entre
a vontade autônoma e a vontade heterônoma, isto é, entre a norma coatora externa
e a norma moral interna. Se o comando for moral, é um comando puro. Se não for,
61
não é puro. A filosofia jusnaturalista de Kant dá praticidade ao sistema jurídico
moderno, uma vez que utiliza a norma moral como norma igualmente cogente e
necessária para se obter a eficácia jurídica sobre a sociedade. Se a norma jurídica
estiver em perfeita harmonia com a Razão prática, então a distinção entre Direito e
Moral se torna meramente didática, uma vez que ambas adquirem a mesma
natureza.
2.3. O JUSNATURALISMO E O DIREITO ATUAL.
Com o advento do iluminismo, movimento intelectual altamente racionalista,
com o surgimento dos primeiros Estados laicos vindos dos idos da Revolução
Francesa e com os códigos napoleônicos, o Direito ocidental foi se tornando cada
vez mais positivado, dando origem a pensadores que legitimavam única e
exclusivamente uma experiência objetiva da Lei escrita sobre a sociedade. Foi o
movimento do positivismo, representado por figuras como Augusto Comte e Hans
Kelsen. Aspectos como a moral e a natureza humana ficaram em segundo plano. O
reducionismo jurídico tornou-se a regra cotidiana, uma vez que o jusnaturalismo
clássico demonstrou não ser efetivo na prática e estava mais identificado com as
ideologias socialistas do que capitalistas. Os pensadores começaram a negar que se
pudesse recorrer a um Direito Natural em caso de lacuna no ordenamento jurídico,
pois o positivismo deveria ser exauriente.54 Assim, o Direito Natural caiu em total
desuso durante o século XIX, permanecendo apenas na forma católica do Direito
Canônico, que se fundamentava em doutrinas como as de Santo Agostinho e as de
São Tomás de Aquino. O adjetivo jusnaturalista começou a ser usado em sentido
depreciativo pelos juristas desse século, para denominar fenômenos ou argumentos
externos ou alheios ao da pura juridicidade positivada.55
Dando continuidade ao andamento do processo histórico, a humanidade
passou pelos horrores e tormentos da I e da II Guerras Mundiais, em cujos contextos
conheceram-se todo o tipo de humilhação e degradação da dignidade humana,
principalmente por meio dos genocídios e barbaridades cometidos em ampla escala
54
GHIDOLIN, Clodoveo. Jusnaturalismo ou positivismo: uma breve aproximação. Disponível em:
<http://www.fadisma.com.br/arquivos/ghidolinpdf.pdf>. Acesso em: 13 mar. 2009).
55
ANDRADE, Hamilton Rodrigo Araújo Freire de. Jusnaturalismo. Formas da doutrina do Direito
Natural. Disponível em: <http://direitoepaz.blogspot.com/2008/09/jusnaturalismo.html>. Acesso em:
13 mar. 2009).
62
por regimes totalitários, como os fascismos, e o nazismo. Por causa disso, sentiu-se
a necessidade de se criar algo que impedisse a repetição desses acontecimentos.
Segundo Radbruch, importante jurista alemão do século passado, após as guerras
mundiais, o jusnaturalismo voltou a ser cogitado como uma saída para se humanizar
as relações jurídicas entre as pessoas. De todos os meios acadêmicos, o Direito
Natural se firmou mais fortemente no âmbito da cultura católica, em universidades
alemãs de ideologia protestante e, de forma mais razoável, no mundo laico estatal,
sobretudo como limites ao crescente poder dos estatismos de extrema direita. 56 Os
movimentos jusnaturalistas pressionaram os órgãos de Direito Público Internacional
a elaborarem cartilhas sobre os direitos e garantias fundamentais inerentes a todos
os homens. Todos esses preceitos naturais estavam, obviamente, imbuídos de
ideologia religiosa e humanitária, de forma que se pode afirmar que a Religião teve
grande participação na elaboração da carta de Declaração Universal dos Direitos do
Homem, que se constitui nos dias de hoje, paradoxalmente, como a mais autêntica
fonte positiva do Direito Natural.
Portanto, pode-se dizer que a história constitucional dos Direitos Humanos
como fonte positiva do jusnaturalismo começou basicamente após o período do Pósguerra, estendendo-se aos países por meio da ratificação e da constitucionalização,
total ou parcial, de convenções internacionais da ONU pelos países membros.
3. DA INFLUÊNCIA DA RELIGIÃO NO PANORAMA JURÍDICO ATUAL.
3.1 . OS DIREITOS HUMANOS.
Os Direitos Humanos representam os direitos fundamentais que todo ser
humano goza, independente de ser pessoa ou não (no sentido jurídico da palavra57).
Todo ser humano, nascido com vida ou ainda nascituro, goza dos Direitos Humanos
por estes se tratarem de normas intrínsecas e básicas a toda espécie humana,
sendo teoricamente inalienáveis e imprescritíveis. Por exemplo, no caso do
ordenamento jurídico brasileiro, o nascituro, mesmo não possuindo personalidade
56
Ibidem.
Sobre a definição jurídica do termo “pessoa”, ver os artigos 1º e 2º da Lei nº 10.406 (Código Civil
o
Brasileiro), que dispõe o instituto nos seguintes termos: “Art. 1 Toda pessoa é capaz de direitos e
o
deveres na ordem civil. Art. 2 A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas
a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.”
57
63
jurídica e não podendo ser juridicamente chamado de pessoa, possui direito à vida,
etc.
Se a Justiça consiste em sua essência, como ressaltaram os antigos, em
reconhecer a todos e a cada um dos homens o que lhes é devido, esse
princípio traduz-se, logicamente, no dever de integral e escrupuloso respeito
àquilo que, sendo comum a todos os humanos, distingue-os radicalmente
das demais espécies de seres vivos: a sua transcendente dignidade. Os
direitos humanos em sua totalidade – não só os direitos civis e políticos,
mas também os econômicos, sociais e culturais; não apenas os direitos dos
povos, mas ainda os de toda a humanidade, compreendida hoje como um
novo sujeito de direitos no plano mundial – representam a cristalização do
supremo princípio da dignidade humana. (COMPARATO, 2006, p. 622).
Sendo a dignidade inerente a todo homem, independente de possuir ou não
personalidade jurídica, a essência do conceito de Direitos Humanos esbarra,
portanto, nos principais fundamentos daquilo que vem a ser o fenômeno da
espiritualidade humana e da sua indissociável relação com o conceito de Direito
Natural58, como se deduz por meio de todo o processo histórico já exposto neste
trabalho.
Historicamente, os Direitos Humanos são o resultado de um longo debate
entre filósofos, religiosos e juristas de diferentes épocas e culturas ao longo dos
séculos, como já tratado por este trabalho em seu tópico 2.2. Nesse afã, a dialética
girava em torno daquilo que podia ser considerado justo e daquilo que deveria ser
considerado como injusto, tendo como parâmetros e argumentos os próprios
princípios religiosos e as normas morais. O cristianismo, por exemplo, muito
contribuiu para a noção da igualdade entre pessoas e da liberdade como fator de
dignidade humana concedida por Deus. E, mesmo após o período medieval, a
construção racional do Direito não abandonou a noção da Moral como fundamento
da norma jurídica, como bem pontifica Kant59.
E assim, o Direito Natural veio
caminhando através dos séculos até ganhar, após a crise de valores vivida no
período das guerras mundiais, a denominação que atualmente possui, ou seja, a
denominação sob a etiqueta de “Declaração Universal dos Direitos do Homem”, ou
simplesmente “Direitos Humanos”.
58
Sobre os Direitos humanos e sua relação com o jusnaturalismo e a religião, ver: Wikipédia, a
enciclopédia livre, Direitos Humanos. Disponível em:
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Direitos_humanos>. Acesso em: 31 mar. 2009.
59
KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos costumes e outros escritos. São Paulo,
SP: Editora Martin Claret, 2003. pp. 37 a 71.
64
Foi no período do pós-guerra que se viu a necessidade de se estabelecer
diretrizes referentes aos direitos dos homens que não poderiam ser violados sob
qualquer circunstância ou justificativa. As cartilhas elaboradas pela ONU, como a
“Declaração Universal dos Direitos do Homem”, proclamada em 10 de dezembro de
1948, constituem-se como a base jurídica para todo Estado de Direito que pretender
ratificar as normas jusnaturalistas em seus ordenamentos jurídicos, inserindo, pela
primeira vez na História, um direito natural dentro de um sistema positivado.
A elaboração das diversas cartilhas referentes aos direitos inalienáveis do ser
humano levou em consideração o advento das chamadas gerações históricas de
Direitos Humanos. Como ensina Alexandre de Moraes, cada uma das gerações de
Direitos Humanos veio em um momento histórico diferente e, por isso, representa a
proteção dos direitos que estavam sendo ameaçados no decorrer de tal época.
Apenas didaticamente, especialistas em Direito Constitucional reconhecem três
grandes gerações históricas de Direitos Humanos, embora correntes atuais venham
analisando o provável surgimento de uma quarta geração.60 As três gerações de
Direitos Humanos, apesar de surgirem em momentos históricos diferentes, não são
divergentes entre si, mas se complementam mutuamente na integralidade do que
vêm a ser entendidas como a dignidade e a liberdade da pessoa humana. Dessa
forma, faz-se necessário analisar cada uma das gerações separadamente para se
ter noção do que representa os Direitos Humanos em sua totalidade.
Os direitos humanos de primeira geração são aqueles correspondentes aos
direitos civis e políticos, intimamente ligados às liberdades individuais, ao direito à
vida, à segurança, à igualdade de tratamento perante a lei e ao direito de
propriedade.61 É importante ressaltar que o advento desses direitos de primeira
geração são uma reação às ideologias jurídicas que estavam em voga nos períodos
do absolutismo e, depois, dos regimes estatais totalitários, como as ditaduras e os
fascismos de extrema direita. Ou seja, os direitos de primeira geração são
prerrogativas que pedem uma “não ação” (uma não intervenção) do Estado nos
direitos e garantias individuais. Portanto, quando se fala em direito à vida, à
propriedade e à liberdade, por exemplo, quer se ter a garantia de que o Estado não
60
Sobre as gerações de Direitos Humanos: MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 15. ed.,
São Paulo: Editora Atlas S.A., 2004. p. 61.
61
FERREIRA, Pinto. Curso de Direito Constitucional. 12. ed., São Paulo: Editora Saraiva, 2002. p.
99.
65
irá suprimir esses direitos dos cidadãos, privando-os de sua liberdade de locomoção
e expressão, confiscando seus bens materiais arbitrariamente, ou matando-os em
nome de uma artificial “ordem pública”. Por resguardarem os direitos humanos
perante a prerrogativa de não-ação do Estado Moderno, são também chamados de
direitos humanos negativos.
Os direitos de segunda geração são aqueles chamados de direitos
econômicos, sociais e culturais, como o direito à saúde, à educação, à moradia, ao
trabalho, ao lazer e aos direitos trabalhistas (FERREIRA, 2002, p. 100). Por surgirem
como uma reação aos acontecimentos provenientes do período histórico em que a
humanidade conheceu um momento de misérias e de grande escassez de bens,
principalmente no período da quebra da bolsa de valores de Nova York, da
depressão americana e do pós-guerra, são direitos que pedem uma atuação direta
do Estado (uma intervenção direta) que vise a um certo grau de assistencialismo
humano, evitando que a população se encontre em situações subumanas devido à
superveniência de fatores externos e casos fortuitos, ou mesmo sob condições
normais. Em países liberais, essa geração de direitos é menos ampla, intervindo o
Estado apenas em situações de extrema necessidade, embora na maioria dos
outros países o desenvolvimento igualitário seja praticamente impossível sem essa
intervenção. Por pedir uma atuação direta (uma ação social) do Estado ao invés de
uma abstenção de uma provável ação abusiva, são também chamados de direitos
humanos positivos.
Por fim, os direitos de terceira geração são aqueles chamados de direitos de
todos, correspondendo aos direitos básicos dos povos do mundo em sua totalidade
una, como os direitos ao desenvolvimento, à autodeterminação dos povos, à paz
internacional, ao meio ambiente equilibrado, a uma qualidade de vida saudável e à
participação de todos no patrimônio comum da humanidade. (FERREIRA, 2002, p.
101). Por serem provenientes do moderno processo de Globalização, visam regular
o respeito mútuo entre os países de modo que nenhum ser humano seja prejudicado
em prol de interesses internacionais. Toda pessoa, independente de país ou nação,
tem direito a um meio ambiente limpo e bem cuidado e de estar em paz com os
demais povos e nações, por exemplo. A Globalização deve servir, portanto, à
interação, à cooperação e ao mútuo respeito entre as nações, e não simplesmente
66
aos interesses econômicos, que, na maioria das vezes, só vêm a deteriorar e a
subjugar os Direitos Humanos.
Vistas as três gerações de Direitos Humanos, pode-se claramente traçar um
paralelo entre os direitos fundamentais do homem e os princípios jurídicos do Direito
Natural, bem como entre estes e os princípios de natureza religiosa. Há um quê de
aspecto religioso em toda a sistematização dos Direitos Humanos no ordenamento
jurídico brasileiro. É indissociável a idéia dos direitos fundamentais da idéia do
Direito Natural e da humanização religiosa. Como conclui Miguel Reale, o Estado
Democrático de Direito brasileiro só pode existir se se respeitar tais espécies de
direitos supraestatais, como requisito para o florescimento da dignidade humana:
A partir da invariante axiológica primordial representada pela pessoa
humana configura-se todo um sistema de valores fundantes, como o
ecológico e o de uma forma de vida compatível com a dignidade humana
em termos de habitação, alimentação, educação e segurança etc., em
função dos quais se impõem imperativamente deveres ao Estado, com a
correspondente constelação de direitos subjetivos públicos. Somente assim
se realiza o Estado Democrático de Direito proclamado logo no artigo
primeiro da Constituição Federal. (REALE, 2004, p. 276).
Porém, para que a análise do paralelo entre os Direitos Humanos e os
princípios religiosos seja de certo modo eficiente, restringir-se-á ao Direito brasileiro
atual. No Direito brasileiro, os Direitos Humanos traduziram-se em direitos subjetivos
públicos (MORAES, A., 2004, p. 60), que, após todo o árduo processo histórico de
democratização política no país, finalmente encontraram um lugar especial no “berço
esplêndido” da Constituição Federal de 1988. O discurso de Ulysses Guimarães, na
sessão da Assembléia Nacional Constituinte, já prenuncia, antes mesmo da abertura
do texto constitucional, uma idéia da dimensão que os Direitos Humanos tomaram
no ordenamento jurídico brasileiro:
Esta será a Constituição cidadã, porque recuperará como cidadãos milhões
de brasileiros, vítimas da pior das discriminações: a miséria. Cidadão é o
usuário de bens e serviços do desenvolvimento. Isso hoje não acontece
com milhões de brasileiros, segregados nos guetos da perseguição social.
Esta Constituição, o povo brasileiro me autoriza a proclamá-la, não ficará
como bela estátua inacabada, mutilada ou profanada. O povo nos mandou
62
aqui para fazê-la, não para ter medo. Viva a Constituição de 1988!
62
Discurso pronunciado pelo Presidente da Câmara dos Deputados, Ulysses Guimarães, na Sessão
da Assembléia Nacional Constituinte, em 27 de julho de 1988. Disponível em:
<http://www.fugpmdb.org.br/ c_cidada.htm>. Acesso em: 10 de junho, 2006.
67
Nessas palavras de Ulysses Guimarães, pode-se sentir toda a disposição de
se elaborar o que foi chamada de “a Constituição cidadã”. Como será analisado a
seguir, tal cidadania pretende ser conquistada por meio da proclamação e do
cumprimento dos direitos e garantias fundamentais das pessoas. Essa espécie de
direitos encontra-se sistematizada no artigo 5º da Constituição de 88 e nos seus 78
incisos seguintes. O caput do artigo 5º da Constituição concretiza, de forma clara, os
preceitos morais e éticos defendidos pelo jusnaturalismo e pelos princípios
religiosos:
Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade [...]
O artigo cita a vida, a liberdade, a igualdade, a segurança e a propriedade
como prerrogativas inerentes à dignidade humana. Se são prerrogativas humanas
de dignidade conferidas por um Direito Natural, então são superiores ao Estado, de
modo que a regra constitucional obrigue e submeta o próprio Estado ao seu
cumprimento. O Estado não pode, em tempos normais e de paz, inviabilizar o
exercício das liberdades (de locomoção, de expressão, etc.), desrespeitar o direito à
vida, deixar de oferecer segurança ou praticar ele mesmo atos de abuso à
integridade física e psicológica das pessoas, e não pode confiscar arbitrariamente os
bens pessoais que constituam o patrimônio dos civis. O Estado brasileiro se limita a
si mesmo ao promulgar tal enunciado em sua Carta Magna. Tal fenômeno pode ser
justificado pela “Teoria da Autolimitação” desenvolvida por Rudolf Von Jhering, em
sua inacabada obra clássica “O Fim do Direito”. Jhering sustenta que a Soberania
atuante nos ordenamentos jurídicos precisa ir discriminando esferas de ação e
inação entre os indivíduos e grupos. Nessa discriminação, o Estado precisa se
autolimitar para reconhecer que os cidadãos possam ser detentores de direitos
subjetivos oponíveis ao próprio Estado. O Estado se autolimita ao declarar e
reconhecer os direitos das pessoas.
No entanto, a teoria de Jhering sofreu várias críticas pelos juristas de sua
época por causa do uso equivocado da palavra “autolimitação”. Apesar de a idéia
central se conservar na teoria de Jhering, a palavra “autolimitação” se torna
inadequada, uma vez que se compreende que não é o Estado que traça seus
próprios limites, mas sim que a realidade jurídica se desenvolve de um processo de
68
natureza histórico-cultural. (REALE, 2004, p. 274). Nesse sentido, pode-se dizer que
o desenvolvimento histórico-cultural consolidou-se em costumes morais de caráter
religioso e nas normas universais jusnaturalistas cristalizadas na declaração dos
Direitos Humanos. Sendo assim, o Estado encontra seu limite nos próprios fatores
reais que constituem a base do Poder soberano, corroborando a “teoria dos fatores
reais do Poder”, de Ferdinand Lassalle. O Estado que não respeita tais limites
naturais pode ser justificadamente declarado autoritário e artificial.
3.2. A NORMA JURÍDICA E A MORAL RELIGIOSA.
Pode-se perceber que a influência da moral religiosa no ordenamento jurídico
brasileiro começa, positivamente falando, antes mesmo do texto constitucional em si,
ou seja, no preâmbulo da Carta Magna. Juridicamente, o preâmbulo não possui
poder de Lei, não integrando valor jurídico autônomo, mas nem por isso é
irrelevante, pois representa as intenções do diploma legal, podendo muitas vezes ser
usado para a interpretação finalística e para a integração da norma jurídica
constitucional. O preâmbulo, apesar de não se constituir como norma constitucional
propriamente dita, traça diretrizes políticas, filosóficas e ideológicas que o Estado
brasileiro adotará em todo seu ordenamento, sendo uma das principais linhas
mestras interpretativas. (MORAES, A., 2004, p. 51). A influência do fenômeno
religioso no Direito brasileiro se evidencia quando, mesmo antes do texto jurídico em
si, os legisladores constituintes promulgam a Constituição Federal de 1988 sob a
proteção de Deus, deixando clara a forma como a moral religiosa é importante para
a interpretação da norma constitucional brasileira. E, mesmo que indiretamente, os
constituintes de 1988 também atribuíram proteção divina a todo o conjunto de leis
esparsas, visto que toda a legislação infraconstitucional deve estar de acordo com a
Carta Magna. Segue abaixo a transcrição integral do preâmbulo constitucional, com
negrito especial incluído por parte do trabalho, dando ênfase ao que se quer
destacar:
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional
Constituinte para instituir em Estado Democrático, destinado a assegurar o
exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bemestar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de
uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia
69
social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução
pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a
seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.
Voltando à análise do artigo 5º da Constituição brasileira, pode-se perceber
claramente o paralelo que existe entre os direitos tutelados pela Carta Magna e os
direitos defendidos pelos jusnaturalistas, bem como a estrita relação entre os
mesmos direitos e os ensinamentos de natureza religiosa.
Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade [...]
A - “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza [...]”:
Neste preceito constitucional, encontra-se o princípio da isonomia, no qual, perante
o Estado, todas as pessoas recebem um tratamento isonômico, igualando os iguais
e desigualando os desiguais na medida em que se desigualam. (MORAES, A., 2004,
p. 66).
Como já tratado no capítulo anterior no tópico 2.2., a igualdade é também um
preceito jusnaturalista, na medida em que traduz uma característica natural a todo
ser humano. Assim, Aristóteles traduz a Justiça como sinônimo de aequitas, ou
equidade. A Equidade, segundo Aristóteles, é a justa relação interpessoal no
ambiente da pólis, onde as pessoas, iguais entre si pelo atributo da dignidade,
exercem faculdades sociais diversas apenas conforme sua função específica na
comunidade. A diversidade é a alma da pólis para Aristóteles, sendo o fator
determinante que impede a redução da sociedade à unidade familiar. No entanto, a
pluralidade de funções deve se dar de forma igualitária e justa, conforme a
disposição e a felicidade de cada pessoa. Para Aristóteles, portanto, da mesma
forma como que para a Constituição brasileira, a existência de tratamento desigual
para os desiguais não é contrária à idéia de igualdade (isonomia), mas antes a
corrobora. No mesmo sentido, os pensadores jusnaturalistas do iluminismo se
baseavam fortemente nas ideologias de igualdade, liberdade e fraternidade entre os
homens.
No âmbito do cristianismo, São Paulo prega: “Porque todos sois filhos de
Deus pela fé em Jesus Cristo. Porque todos quantos fostes batizados em Cristo já
vos revestistes de Cristo. Já não há judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem
70
homem nem mulher, pois todos vós sois Um em Jesus Cristo” (Gl 3, 26-28)63. A
forma como todos os homens possuem a mesma dignidade perante os olhos de
Deus é uma característica marcante em todo o sistema religioso cristão que
influenciou na história do pensamento jurídico ocidental, ainda que diversa seja a
disposição religiosa da cultura oriental hinduísta, que ainda hoje mantém
discriminações de ordem social no rígido sistema de castas64. No entanto, o
pensamento jurídico ocidental vem influenciando uma mudança de flexibilização nas
leis indianas em prol da humanização das relações na Índia atual, cuja Constituição
já proíbe a discriminação de pessoas por motivos de castas sociais.
B – “garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a
inviolabilidade [...]” (dos direitos fundamentais): A Constituição, neste preceito,
concede direitos fundamentais tanto a brasileiros quanto a estrangeiros residentes
no país. No entanto, pela interpretação finalística da Lei, preceitua Paulo Bonavides
que os direitos fundamentais são universais e se estendem aos estrangeiros em
trânsito pelo país:
A nova universalidade procura, enfim, subjetivar de forma concreta e
positiva os direitos da tríplice geração na titularidade de um indivíduo que
antes de ser o homem deste ou daquele país, de uma sociedade
desenvolvida ou subdesenvolvida, é pela sua condição de pessoa um ente
qualificado por sua pertinência ao gênero humano, objeto daquela
65
universalidade.
Dessa forma, a interpretação do artigo 5º, caput, da Constituição Federal deve
ser feita de modo extensivo, permitindo que o estrangeiro em trânsito no País possa
também invocar os direitos e garantias fundamentais no Brasil. De modo idêntico,
Vidal Serrano Nunes Júnior e Luiz Alberto David Araújo ensinam que as liberdades
constitucionais são para todos, inclusive aos estrangeiros em trânsito:
Os direitos fundamentais têm um forte sentido de proteção do ser humano,
e mesmo o próprio caput do art. 5º faz advertência de que essa proteção
realiza-se „sem distinção de qualquer natureza‟. Logo, a interpretação
sistemática e finalística do texto constitucional não deixa dúvidas de que os
63
Bíblia Sagrada. Carta de São Paulo aos Gálatas, capítulo 3, versículo 26 a 28. 73. ed. São Paulo,
SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 1495.
64
MERTON, H. K. O sistema de castas da Índia. Disponível em: <http://artedartes.blogspot.com/
2008/01/sistema-de-castas.html>. Acesso em: 02 mai. 2009.
65
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 14. ed. rev. e atual., São Paulo, SP:
Editora Malheiros, 2004. p. 574.
71
direitos
fundamentais
destinam-se
a
todos
os
indivíduos,
66
independentemente de sua nacionalidade ou situação no Brasil.
Com relação ao sentido que o legislador constituinte queria dar ao termo
“residentes no país”, Alexandre de Moraes elucida que:
[...] a expressão residentes no Brasil deve ser interpretada no sentido de
que a Carta Federal só pode assegurar a validade e gozo dos direitos
fundamentais dentro do território brasileiro, não excluindo, pois, o
estrangeiro em trânsito pelo território nacional, que possui igualmente
acesso às ações, como mandado de segurança e demais remédios
constitucionais. (MORAES, A., 2004, p. 65).
Traçando-se um paralelo com os princípios religiosos, descobre-se que o
respeito ao estrangeiro se deve ao princípio da igualdade entre os homens, de modo
que a todos se impõe o dever de amar ao próximo. Assim, em inúmeras passagens
bíblicas, aconselha-se o respeito e o dever de Amor ao estrangeiro, como se
demonstra a seguir:
Não oprimas o estrangeiro; vós sabeis o que é ser estrangeiro, pois fostes
67
estrangeiros no Egito. (Êx 23, 9) .
O estrangeiro que mora convosco seja para vós como o nativo do país.
Ama-o como a ti mesmo, pois vós também fostes estrangeiros na terra do
68
Egito. [...]. (Lv 19, 33 e 34) .
Portanto, amai o estrangeiro, porque vós também fostes estrangeiros no
69
Egito. (Dt 10, 19) .
Pelo princípio da alteridade religiosa, as pessoas devem fazer às outras tudo
aquilo que desejam que os outros façam a elas. Cristo disse: “Portanto, tudo quanto
quereis que os homens vos façam, assim fazei vós a eles; porque esta é a Lei e os
Profetas”. (Mt 7, 12)70. Se o povo hebreu foi estrangeiro em países vizinhos e teve
princípios humanos respeitados, da mesma forma devem agir ao terem estrangeiros
em seu território. Esse princípio religioso da alteridade, além de ter sido uma
importante influência do mundo religioso no mundo jurídico, formou o fundamento
para um importante princípio jurídico aplicado atualmente no Direito Internacional
66
NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano; e ARAÚJO, Luiz Alberto David. Curso de Direito Constitucional.
10. ed. rev. e atual., São Paulo: Saraiva, 2006. p. 128.
67
Bíblia Sagrada. Livro do Êxodo, capítulo 23, versículo 9. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave
Maria, 1991. p. 124.
68
Bíblia Sagrada. Levítico, capítulo 19, versículo 34. 73. ed. São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991.
p.164.
69
Bíblia Sagrada. Livro do Deuteronômio, capítulo 10, versículo 19. 73. ed., São Paulo, SP: Editora
Ave Maria, 1991. p. 226.
70
Bíblia Sagrada. Evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus, capítulo 7, versículo 12. 73. ed.,
São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 1291.
72
Público: o princípio da reciprocidade71, no qual o tratamento dispensado a um sujeito
em determinado país no qual ele é estrangeiro serve de parâmetro para o tratamento
jurídico que as pessoas desse determinado país receberão quando forem
estrangeiras no país daquele sujeito.
C – Direito à vida: No ensinamento de Alexandre de Moraes, o direito à vida é
“o mais fundamental de todos os direitos, já que se constitui em pré-requisito à
existência e exercício de todos os demais direitos”. (MORAES, A., 2004, p. 65). O
direito à vida é tão especial ao mundo jurídico atual, que engloba toda a integridade
física e psicológica da pessoa, como características intrínsecas da manifestação da
vida humana, surgindo daí um extenso rol de direitos e deveres subjetivos, como a
tipificação dos crimes de homicídio, infanticídio, genocídio, aborto, auxílio ao
suicídio, lesão corporal, crimes de periclitação da vida e da saúde, abandono de
incapaz, abandono de recém-nascido, omissão de socorro, crime de maus-tratos,
crimes de tortura e terrorismo, crimes contra a honra da pessoa como a calúnia, a
injúria e a difamação, etc. Na seara civil, também protege-se toda a integridade física
e psicológica da vida humana com os direitos à indenização por danos materiais,
danos
morais
e
lucros
cessantes.
Com
relação
ao
direito
à
vida,
e
consequentemente à integridade física e psicológica da pessoa humana, os
preceitos devem igualmente ser oponíveis ao Estado em sua função administrativa,
legislativa e judiciária, entendendo-se que o país se submete ao respeito à vida
humana da mesma forma como as pessoas do povo se submetem a esse direitodever. No Estado, é proibida constitucionalmente a aplicação de penas de morte
(salvo em caso de guerra declarada), penas de caráter perpétuo, penas de trabalho
forçado, penas de banimento, de tortura e de tratamentos cruéis, bem como a
obtenção de provas processuais por meios ilícitos, como as obtidas por meio de
torturas, ameaças e tratamentos cruéis, etc.
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
[...]
III - ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou
degradante;
71
SILVA, Roberto Luiz. Direito Internacional Público. 2. ed., Belo Horizonte, MG: Editora Del Rey,
2005. p. 114.
73
[...]
XLVII - não haverá penas:
a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX;
b) de caráter perpétuo;
c) de trabalhos forçados;
d) de banimento;
e) cruéis;
XLVIII - a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo
com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado;
XLIX - é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral;
L - às presidiárias serão asseguradas condições para que possam
permanecer com seus filhos durante o período de amamentação;
[...]
LVI - são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos;
Da mesma forma, não há como negar que o direito à vida é, para as correntes
jusnaturalistas, o bem jurídico mais transcendente a ser tutelado. Como visto no
tópico 2.1 deste trabalho, para o Direito Natural, a vida humana é o próprio
fundamento da Filosofia do Direito. Do mesmo modo, o a vida humana é
fundamental ao próprio Estado, dando ao mundo jurídico toda uma ênfase
antropológica sem a qual a discussão das normas jurídicas perdem todo o sentido. O
Direito não existe sem a vida humana. (MORAES, A., 2004, p. 65). É inegável a
relação que existe entre a consciência jusnaturalista, que fundamentou o direito à
vida como um dos Direitos Humanos, e o ingresso do direito à vida no rol dos
direitos e garantias fundamentais asseguradas pelo Estado brasileiro, uma vez que
todo o artigo 5º da Constituição Federal baseia-se na “Declaração Universal do
Direitos do Homem” proclamada pela ONU, que por sua vez representa a tendência
do Direito Natural no panorama jurídico contemporâneo. A religião também
compartilha da mesma concepção jusnaturalista do direito à vida, uma vez que
atribui à vida um status de Lex Aeterna72, superior ao Estado, um direito preexistente
e anterior à própria Lei, não cabendo a ninguém, nem mesmo ao Estado, dispor de
tal prerrogativa humana, como se vê a seguir:
Os direitos inalienáveis da pessoa devem ser reconhecidos e respeitados
pela sociedade civil e pela autoridade política. Os direitos do homem não
dependem nem dos indivíduos, nem dos pais, e também não representam
uma concessão da sociedade e do Estado. Pertencem à natureza humana e
são inerentes à pessoa em razão do ato criador do qual esta se origina.
Entre estes direitos fundamentais é preciso citar o direito à vida e à
73
integridade física de todo se humano, desde a concepção até a morte.
72
Para saber mais sobre a Lex Aeterna, ver sobre o tomismo. Disponível em:
<http://www.stelle.com.br/pt/purgatorio/notas_26.html>. Acesso em: 2 mai. 2009.
73
IGREJA CATÓLICA, Catecismo da Igreja Católica, edição típica vaticana, São Paulo: Edições
Loyola, 2000. §2272, p. 592.
74
No âmbito religioso, o direito à vida está diretamente associado ao respeito ao
Summum Bonum, ou seja, ao “Dom Supremo”. Configurando-se como o presente
mais precioso recebido de Deus, a vida humana é o mais alto bem jurídico a ser
tutelado. Algumas religiões orientais consideram que, não apenas a vida humana,
mas toda a vida terrestre, como a dos animais e a das plantas, são manifestações
da vida divina, como é o caso do hinduísmo, budismo e taoísmo. Em muitas delas,
os adeptos são contra o sacrifício de animais e a ingestão de proteína animal,
fazendo com que muitos adotem o estilo de vida vegetariano (GAARDER, 2002, pp.
43 e 61). Na tradição judaico-cristã, “o corpo do homem participa da dignidade da
„imagem de Deus‟”. (Catecismo da Igreja Católica, 2000, §364, p. 105). Nesse
mesmo sentido, a Igreja Católica declara que a dignidade da vida humana se deve à
união entre o corpo material e a alma imortal recebida por Deus, que constituem
uma única natureza humana:
A unidade da alma e do corpo é tão profunda que se deve considerar a
alma como a "forma" do corpo; ou seja, é graças à alma espiritual que o
corpo constituído de matéria é um corpo humano e vivo; o espírito e a
matéria no homem não são duas naturezas unidas, mas a união deles forma
uma única natureza. (Catecismo da Igreja Católica, 2000, §365, p. 105).
A vida humana é sagrada porque é recebida de Deus, é dom de Deus. Sendo
apenas Deus o dono da vida, cabe apenas a Ele dá-la e tirá-la. A ninguém cabe o
poder sobre a vida humana, nem mesmo à própria pessoa sobre sua própria vida.
Apenas a Deus cabe o ministério sobre a vida humana, pois Ele é considerado, na
tradição judaico-cristã, o “Senhor da Vida”.
E o SENHOR Deus formou o homem do pó da terra, e soprou em suas
74
narinas o fôlego da vida; e o homem foi feito alma vivente. (Gn 2, 7) .
Na mesma concepção, o catecismo da Igreja Católica afirma que:
A vida humana é sagrada porque desde sua origem ela encerra a ação
criadora de Deus e permanece para sempre numa relação especial com o
Criador, seu único fim. Só Deus é o dono da vida, do começo ao fim;
ninguém, em nenhuma circunstância, pode reivindicar para si o direito de
destruir diretamente um ser humano inocente. (Catecismo da Igreja
Católica, 2000, §2258, p. 588).
74
Bíblia Sagrada. Livro do Gênesis, capítulo 2, versículo 7. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave
Maria, 1991. p. 50.
75
Toda a tradição judaica é avessa ao desrespeito à vida humana. No decálogo,
a ordem de não tirar a vida humana é tão clara e direta (como o é na Lei Penal
brasileira) que é inegável a relação entre a norma religiosa e a norma jurídica, bem
como a influência de uma na outra:
Religião:
75
Não matarás (Êx 20, 13) .
Estado brasileiro:
Art 121, CP. Matar alguém:
Pena - reclusão, de seis a vinte anos.
Religião:
Não haverá mulher que aborte, nem estéril na tua terra; o número dos teus
76
dias cumprirei. (Êx 23, 26) .
Não mate, não cometa adultério, [...] Não mate a criança no seio de sua
77
mãe e nem depois que ela tenha nascido. (Didaqué 2, 2) .
Estado brasileiro:
Art. 123, CP - Matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho,
durante o parto ou logo após:
Pena - detenção, de dois a seis anos.
Art. 124, CP - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho
provoque:
Pena - detenção, de um a três anos.
Art. 125, CP - Provocar aborto, sem o consentimento da gestante:
Pena - reclusão, de três a dez anos.
Art. 126, CP - Provocar aborto com o consentimento da gestante:
Pena - reclusão, de um a quatro anos.
De certo modo, a concepção de “vida” na tradição cristã evoluiu a tal ponto
que a vida deixa de ser considerada apenas como o “bem supremo” recebido de
Deus, mas passa a ser a Sua própria essência divina, ou seja, Deus em si mesmo.
Deus é Vida, e, sendo Vida, dá a vida a toda criatura. A vida, portanto, é o Dom e o
Doador, pois Deus doa a Si mesmo. Assim, Jesus Cristo afirma: “Eu sou o Caminho
a Verdade e a Vida”. (Jo 14, 6)78. “Porque, como o Pai tem a vida em si mesmo,
assim deu também ao Filho ter a vida em si mesmo” (Jo 5, 26)79. Nesse aspecto, a
vida deixa de ser apenas a manifestação corporal do ser humano, e passa a ser a
75
Bíblia Sagrada. Livro do Êxodo, capítulo 20, versículo 13. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave
Maria, 1991. p. 121.
76
Bíblia Sagrada. Livro do Êxodo, capítulo 23, versículo 26. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave
Maria, 1991. p. 125.
77
MERTON H.K. O mais antigo documento cristão. Disponível em:
<http://artedartes.blogspot.com/search/label/cristianismo>. Acesso em: 13 abr. 2009.
78
Bíblia Sagrada. Evangelho de Jesus Cristo segundo João, capítulo 14, versículo 6. 73. ed., São
Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p.1404.
79
Bíblia Sagrada. Evangelho de Jesus Cristo segundo João, capítulo 5, versículo 26. 73. ed., São
Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 1390.
76
manifestação do corpo, da alma e do espírito humano, que encontram o seu
fundamento na própria essência de Deus, na própria Vida de Deus. “Porque Nele
vivemos, nos movemos e temos o nosso ser [...]”. (At 17, 28) 80. A vida, para o
cristianismo, é mais do que um presente de Deus: é o próprio Deus em si mesmo.
D – Direito à liberdade: O direito à liberdade assegurado pela Constituição
Federal, como se vê no parágrafo especial a seguir, engloba uma série de
liberdades individuais e subjetivas que devem ser respeitadas e garantidas pelo
Estado e pelos indivíduos entre si. Entre os direitos de liberdade mais famosos
assegurados pelo ordenamento constitucional brasileiro estão o direito à liberdade
de expressão, à liberdade de culto religioso, à liberdade de produção intelectual, à
liberdade de exercer qualquer trabalho lícito, à liberdade de locomoção (direito de ir
e vir), à liberdade de reunir-se para fins pacíficos e à liberdade de associação, como
se vê a seguir:
Art. 5º, CF - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no
País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da
indenização por dano material, moral ou à imagem;
VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado
o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção
aos locais de culto e a suas liturgias;
VII - é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa
nas entidades civis e militares de internação coletiva;
VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de
convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de
obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação
alternativa, fixada em lei;
IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de
comunicação, independentemente de censura ou licença;
[...]
XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas
as qualificações profissionais que a lei estabelecer;
[...]
XV - é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo
qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair
com seus bens;
XVI - todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos
ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem
outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas
exigido prévio aviso à autoridade competente;
80
Bíblia Sagrada. Livro dos Atos dos Apóstolos, capítulo 17, versículo 28. 73. ed., São Paulo, SP:
Editora Ave Maria, 1991. p. 1435.
77
XVII - é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de
caráter paramilitar;
[...]
LXI - ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e
fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de
transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei;
[...]
LXVIII - conceder-se-á "habeas-corpus" sempre que alguém sofrer ou se
achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de
locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder;
Em toda a corrente jusnaturalista racionalista, inspirada majoritariamente pelo
movimento iluminista, preza-se a liberdade individual como um direito fundamental a
ser resguardado. O lema mais famoso do iluminismo, que influenciou a Revolução
Francesa, prega claramente os direitos de igualdade e liberdade para todas as
pessoas: “Liberté, Igualité, Fraternité”. A própria Déclaration de Droits de l’Homme81
(Declaração dos Direitos do Homem), precursora da “Declaração Universal dos
Direitos do Homem” proclamada pela ONU, foi formulada sob a inspiração do ideário
iluminista, que por sua vez era influenciado por ideologias jusnaturalistas e
religiosas, como se vê na figura seguinte (ressaltando-se o detalhe artístico inspirado
em motivos religiosos, como a imagem do anjo, e a do triângulo dourado com o olho
ao centro, representando a presença divina):
81
Sobre a Declaração dos Direitos do Homem, ver: Wikipédia, a enciclopédia livre. Déclaration des
Droits de l'Homme et du Citoyen de 1789. Disponível em:
<http://fr.wikipedia.org/wiki/D%C3%A9claration_ des_droits_de_l'homme_et_du_citoyen_de_1789>.
Acesso em: 14 abr. 2009.
78
Figura 1 - Declaração dos Direitos Humanos, França,
1789, um dos muitos documentos políticos produzidos
no século XVIII sob a inspiração do ideário iluminista.
Fonte: Wikipédia, a enciclopédia livre. Iluminismo.
Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Ilumin ismo>.
Acesso em: 14 abr. 2009.
Assim como sofreu influência do jusnaturalismo iluminista, o texto
constitucional também foi influenciado pelos princípios religiosos e espirituais no
tocante ao direito fundamental à liberdade. Para as religiões, mormente as de
tradição judaico-cristã, o ser humano foi criado por Deus dotado de livre arbítrio, ou
seja, dotado da capacidade de ser livre para exercer a sua vontade livremente.
Nesse sentido, pode-se citar a doutrina que a Igreja Católica prega sobre o assunto:
A liberdade é o poder, baseado na razão e na vontade, de agir ou não agir,
de fazer isto ou aquilo, portanto, de praticar atos deliberados. Pelo livrearbítrio, cada qual dispõe sobre si mesmo. A liberdade é, no homem, uma
força de crescimento e amadurecimento na verdade e na bondade. A
liberdade alcança sua perfeição quando está ordenada para Deus, nossa
bem-aventurança. (Catecismo da Igreja Católica, 2000, §1731, p. 472).
79
A liberdade se exerce no relacionamento entre os seres humanos. Toda
pessoa humana, criada à imagem de Deus, tem o direito natural de ser
reconhecida como ser livre e responsável. Todos devem a cada um esta
obrigação de respeito. O direito ao exercício da liberdade é uma exigência
inseparável da dignidade da pessoa humana, sobretudo em matéria moral e
religiosa. Este direito deve ser reconhecido civilmente e protegido nos
limites do bem comum e da ordem pública. (Catecismo da Igreja Católica,
2000, §1738, p. 473).
O exercício da liberdade individual, no entanto, encontra o seu limite no direito
de liberdade de outrem e também nos limites da ordem pública e do bem comum,
sob pena de se tornar um ato imoral e abusivo. Tanto a religião quanto o Estado
brasileiro limitam o exercício das liberdades individuais, imbuindo ao indivíduo a total
responsabilidade sobre seus atos. Ou seja, é permitido ao homem ser livre, desde
que ele possa ser responsabilizado por essa liberdade. O exercício das liberdades,
portanto, exige um compromisso com a moral religiosa, no caso da espiritualidade, e
com a moral jurídica e os princípios da boa-fé objetiva, no caso do ordenamento
jurídico:
Religião:
O exercício da liberdade não implica o direito de dizer e fazer tudo. É falso
pretender que "o homem, sujeito da liberdade, baste a si mesmo, tendo por
fim a satisfação de seu próprio interesse no gozo dos bens terrenos. Por
sua vez, as condições de ordem econômica e social, política e cultural
requeridas para um justo exercício da liberdade são muitas vezes
desprezadas e violadas. Estas situações de cegueira e injustiça prejudicam
a vida moral e levam tanto os fortes como os fracos à tentação de pecar
contra a caridade. Fugindo da lei moral, o homem prejudica sua própria
liberdade, acorrenta-se a si mesmo, rompe a fraternidade com seus
semelhantes e rebela-se contra a verdade divina. (Catecismo da Igreja
Católica, 2000, §1740, p. 474).
A liberdade torna o homem responsável por seus atos, na medida em que
forem voluntários. O progresso na virtude, o conhecimento do bem e a
ascese aumentam o domínio da vontade sobre seus atos. (Catecismo da
Igreja Católica, 2000, §1734, p. 473).
Porque vós, irmãos, fostes chamados à liberdade. Não useis então da
liberdade para dar ocasião à carne, mas servi-vos uns aos outros pelo amor.
Porque toda a lei se cumpre numa só palavra, nesta: Amarás ao teu
82
próximo como a ti mesmo. (Gl 5, 13-14) .
Aquele que procura meditar com atenção a lei perfeita da liberdade e nela
persevera, não como ouvinte que facilmente se esquece, mas como
83
cumpridor fiel do preceito, este será feliz no seu proceder. (Tg 1, 25) .
Estado brasileiro:
Art. 187, CC - Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao
exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim
econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
Art. 927, CC - Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a
outrem, fica obrigado a repará-lo.
82
Bíblia Sagrada. Carta de São Paulo aos Gálatas, capítulo 5, versículos 13 e 14. 73. ed., São
Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 1497.
83
Bíblia Sagrada. Carta de São Tiago, capítulo 1, versículo 25. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave
Maria, 1991. p. 1539.
80
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente
de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade
normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza,
risco para os direitos de outrem.
Art. 5º, CF - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no
País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da
indenização por dano material, moral ou à imagem;
O exercício da liberdade de expressão no Brasil possui correlato religioso no
discurso cristão de proclamar a ideologia do evangelho, mesmo em meio a toda
repressão e perseguição que a doutrina sofreu no início da Igreja. Os cristãos foram
considerados rebeldes, contra a ordem do Império Romano, agitadores políticos,
mas não pararam de exercer seu direito fundamental de manifestar livremente seus
pensamentos. Da mesma forma, durante o período da ditadura militar no Brasil,
havia muita repressão e perseguição por causa de manifestações públicas de
opiniões contrárias ao governo totalitário. Quando a Constituição Federal proclamou
o Estado Democrático de Direito, rompeu com a tradição totalitária de repressão à
manifestação livre do pensamento e assegurou às pessoas a liberdade de
expressão, afeiçoando-se aos preceitos jusnaturalistas e religiosos já bastante
conhecidos no ocidente:
Religião:
O que vos digo privativamente dizei-o em plena luz; e o que escutais ao
84
ouvido pregai-o sobre os telhados. (Mt 10, 27) .
Estado brasileiro:
Art. 5º, CF - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no
País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da
indenização por dano material, moral ou à imagem;
A liberdade de expressão no Brasil também carrega uma carga negativa com
relação à geração de Direito Humano, uma vez que não apenas assegura a
possibilidade ativa de se poder expressar livremente os pensamentos, mas também
84
Bíblia Sagrada. Evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus, capítulo 10, versículo 27. 73. ed.,
São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 1295.
81
a garantia de que ninguém poderá sofrer repressão, censura, restrição de direitos,
etc, por motivos de convicção religiosa, intelectual, cultural ou científica. A liberdade
de expressão é, portanto, tanto uma garantia de se poder manifestar livremente o
pensamento quanto uma garantia de que a livre manifestação das ideologias não
será justificativa legal (jurídica) para o cerceamento de direitos, discriminação,
tratamento jurídico desigual, repressão, censura, etc. No mesmo sentido, a Igreja
Católica declara que o homem, ao exercer a liberdade de expressão, não pode
sofrer coação em sua consciência. Para o Estado, a consciência humana se traduz
em lei positiva, sendo que a coação na consciência pode, dependendo do caso, ser
tipificado como crime de “constrangimento ilegal”, por exemplo. Assim, traça-se o
seguinte paralelo:
Religião:
O homem tem o direito de agir com consciência e liberdade, a fim de tomar
pessoalmente as decisões morais. "O homem não pode ser forçado a agir
contra a própria consciência. Mas também não há de ser impedido de
proceder segundo a consciência, sobretudo em matéria religiosa.
(Catecismo da Igreja Católica, 2000, §1782, p. 482).
Por isso, a criação aguarda ansiosamente a manifestação dos filhos de
Deus, [...] na esperança de que também a mesma criatura será libertada do
cativeiro da corrupção, para a liberdade gloriosa dos filhos de Deus. (Rm 8,
85
19 e 21) .
Estado brasileiro:
Art. 5º, CF - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no
País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado
o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção
aos locais de culto e a suas liturgias;
[...]
VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de
convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de
obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação
alternativa, fixada em lei;
IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de
comunicação, independentemente de censura ou licença;
[...]
LII - não será concedida extradição de estrangeiro por crime político ou de
opinião;
Crimes contra a liberdade individual.
Constrangimento ilegal
Art. 146, CP - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou
depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de
resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda:
Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa.
85
Bíblia Sagrada. Carta de São Paulo aos Romanos, capítulo 8, versículo 19 e 21. 73. ed., São
Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 1457.
82
§ 1º - As penas aplicam-se cumulativamente e em dobro, quando, para a
execução do crime, se reúnem mais de três pessoas, ou há emprego de
armas.
§ 2º - Além das penas cominadas, aplicam-se as correspondentes à
violência.
§ 3º - Não se compreendem na disposição deste artigo:
I - a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou
de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida;
II - a coação exercida para impedir suicídio.
Outra das liberdades subjetivas que possui estritos paralelos entre os
preceitos de moral religiosa é a liberdade de locomoção, ou seja, liberdade de ir e
vir, que, em última análise, é o direito de estar fisicamente no lugar que se deseja,
conforme a consciência pessoal e o respeito ao bem comum e à propriedade privada
alheia.
Religião:
Até os adolescentes podem se esgotar, e os jovens robustos podem
cambalear, mas os que esperam no Senhor renovarão suas forças, subirão
com asas de águia, correrão e não se cansarão; caminharão e não se
86
fatigarão. (Is 40, 30-31) .
Eis o que diz o Senhor dos Exércitos: se andares nos meus caminhos e
fores fiel às minhas ordens, governarás a minha casa, guardarás os meus
átrios e te darei livre acesso entre os que estão aqui diante de mim. (Zc 3,
87
7) .
Estado brasileiro:
Art. 5º, CF - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no
País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
XV - é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo
qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair
com seus bens;
XVI - todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos
ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem
outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas
exigido prévio aviso à autoridade competente;
XVII - é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de
caráter paramilitar;
A liberdade de locomoção também se traduz num direito humano negativo ao
ser oponível ao Estado, uma vez que se quer garantir que o mesmo não irá cercear
o direito de ir e vir dos indivíduos arbitrariamente, sem respeito ao princípio do
contraditório e da ampla defesa e ao princípio do devido processo legal. Quando
assim não procede o Poder público, ocorre um abuso de Poder. Ocorrendo a prisão
86
Bíblia Sagrada. Isaías, capítulo 40, versículo 30 e 31. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria,
1991. p. 992.
87
Bíblia Sagrada. Zacarias, capítulo 3, versículo 7. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991.
p. 1272.
83
de alguém de forma abusiva e contra as normas de processo penal, é cabível a
garantia constitucional do habeas corpus, que possui o condão de livrar o preso do
cerceamento indevido de sua liberdade de locomoção. A religião também possui
precedentes condizentes com a ideologia do habeas corpus, pregando que os
inocentes e oprimidos são logo livrados e colocados em liberdade pelo Senhor.
Dessa forma, assim como o habeas corpus é a garantia constitucional de que
ninguém sofrerá restrição abusiva de seu direito de locomoção, o Espírito de Deus é
a garantia de que o homem que está cativo injustamente será colocado em liberdade
pela força da Verdade. Se tal liberdade religiosa ora se considera como a libertação
do cárcere espiritual dos pecados ou ora se considera como libertação literal do
corpo daqueles que se encontram presos e oprimidos injustamente pela força dos
poderosos, não há relevância alguma, uma vez que o princípio da libertação dos
injustiçados se conserva como ideologia capaz de influenciar a produção de normas
jurídicas. Assim, considera-se o paralelo que pode ser traçado entre a religião e o
ordenamento jurídico brasileiro neste caso:
Religião:
O espírito do Senhor DEUS está sobre mim; porque o SENHOR me ungiu,
para pregar boas novas aos mansos; enviou-me a restaurar os contritos de
coração, a proclamar liberdade aos cativos, e a abertura de prisão aos
88
presos. (Is 61, 1) .
O Espírito do Senhor é sobre mim, Pois que me ungiu para evangelizar os
pobres. Enviou-me a curar os quebrantados do coração, a pregar liberdade
aos cativos, e restauração da vista aos cegos, a pôr em liberdade os
89
oprimidos, a anunciar o ano da graça do Senhor. (Lc 4, 18-19) .
Pai de órfãos e juiz de viúvas é Deus, no seu lugar santo. Deus faz com que
o solitário viva em família; liberta aqueles que estão presos em grilhões;
90
mas os rebeldes habitam em terra seca. (Sl 67, 5-6) .
Estado brasileiro:
Art. 5º, CF - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no
País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido
processo legal;
[...]
LXI - ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e
fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de
transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei;
[...]
88
Bíblia Sagrada. Isaías, capítulo 61, versículo 1. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p.
1023.
89
Bíblia Sagrada. Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas, capítulo 4, versículo 18 e 19. 73.
ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 1351.
90
Bíblia Sagrada. Salmo 67 (hebr. 68), versículos 6 e 7. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria,
1991. p. 706.
84
LXVIII - conceder-se-á "habeas-corpus" sempre que alguém sofrer ou se
achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de
locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder;
Quando o Poder público procede à prisão com abuso de Poder, comete uma
prisão ilegal, a qual será imediatamente relaxada pela autoridade competente, posto
que priva pessoa inocente do seu direito de locomoção. Da mesma forma, quando
ocorre prisão por condenação de pessoa inocente por erro judicial, o Estado se
obriga à reparação dos danos por meio de indenização. Assim, considera-se o
paralelo que pode ser traçado entre a religião e o ordenamento jurídico brasileiro
neste caso:
Religião:
E, sendo já dia, os magistrados mandaram quadrilheiros, dizendo: Soltai
aqueles homens. E o carcereiro anunciou a Paulo estas palavras, dizendo:
Os magistrados mandaram que vos soltasse; agora, pois, saí e ide em paz.
Mas Paulo replicou: Açoitaram-nos publicamente e, sem sermos
condenados, sendo homens romanos, nos lançaram na prisão, e agora
encobertamente nos lançam fora? Não será assim; mas venham eles
mesmos e tirem-nos para fora. E os quadrilheiros foram dizer aos
magistrados estas palavras; e eles temeram, ouvindo que eram romanos. E,
vindo, lhes dirigiram súplicas; e, tirando-os para fora, lhes pediram que
saíssem da cidade. E, saindo da prisão, entraram em casa de Lídia e, vendo
91
os irmãos, os confortaram, e depois partiram. (At, 16, 35-40) .
Estado brasileiro:
Art. 5º, CF - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no
País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
LXV - a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária;
[...]
LXVIII - conceder-se-á "habeas-corpus" sempre que alguém sofrer ou se
achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de
locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder;
[...]
LXXV - o Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o
que ficar preso além do tempo fixado na sentença;
[...]
Art. 954, CC - A indenização por ofensa à liberdade pessoal consistirá no
pagamento das perdas e danos que sobrevierem ao ofendido, e se este não
puder provar prejuízo, tem aplicação o disposto no parágrafo único do artigo
antecedente.
Parágrafo único. Consideram-se ofensivos da liberdade pessoal:
I - o cárcere privado;
II - a prisão por queixa ou denúncia falsa e de má-fé;
III - a prisão ilegal.
91
Bíblia Sagrada. Atos dos Apóstolos, capítulo 16, versículos de 35 a 40. 73. ed., São Paulo, SP:
Editora Ave Maria, 1991. p. 1434.
85
Quanto à liberdade de locomoção e aos atos criminosos de indivíduos que
controlam à força o direito de ir e vir de outrem a fim de obter vantagens pecuniárias
à custa da degradação da dignidade humana, tanto a tradição cristã quanto o Estado
brasileiro atual possuem uma dogmática a favor do respeito ao ser humano e da
aversão à exploração econômica em detrimento da liberdade humana. Tal
exploração econômica é, religiosamente, considerada como roubo, indo diretamente
contra a lei do decálogo (Os dez mandamentos). A religião entende dessa forma
porque a liberdade de locomoção é um dos atributos da dignidade humana,
constituindo-se como bem infungível e não podendo ser explorada comercialmente,
como se demonstra a seguir:
Religião:
Porque não recebestes o espírito de escravidão, para outra vez estardes em
temor, mas recebestes o Espírito de adoção de filhos, pelo qual clamamos:
92
Aba, Pai. (Rm 8, 15) .
93
Não roubarás (Êx 20, 15) .
O sétimo mandamento proíbe os atos ou empreendimentos que, por
qualquer razão que seja, egoísta ou ideológica, mercantil ou totalitária,
levam a escravizar seres humanos, a desconhecer sua dignidade pessoal, a
comprá-los, a vendê-los e a trocá-los como mercadorias. É um pecado
contra a dignidade das pessoas e contra seus direitos fundamentais reduzilas, pela violência, a um valor de uso ou a uma fonte lucro. S. Paulo
ordenava a um patrão cristão que tratasse seu escravo cristão "não mais
corno escravo, mas como um irmão [...], como um homem, no Senhor" (Fm
16). (Catecismo da Igreja Católica, 2000, §2414, p. 624).
Estado brasileiro:
Crime de seqüestro e cárcere privado.
Art. 148, CP - Privar alguém de sua liberdade, mediante seqüestro ou
cárcere privado:
Pena - reclusão, de um a três anos.
§ 1º - A pena é de reclusão, de dois a cinco anos:
I - se a vítima é ascendente, descendente, cônjuge ou companheiro do
agente ou maior de 60 (sessenta) anos;
II - se o crime é praticado mediante internação da vítima em casa de saúde
ou hospital;
III - se a privação da liberdade dura mais de 15 (quinze) dias.
IV - se o crime é praticado contra menor de 18 (dezoito) anos;
V - se o crime é praticado com fins libidinosos.
§ 2º - Se resulta à vítima, em razão de maus-tratos ou da natureza da
detenção, grave sofrimento físico ou moral:
Pena - reclusão, de dois a oito anos.
Crime de redução à condição análoga a de escravo.
Art. 149, CP - Reduzir alguém à condição análoga à de escravo, quer
submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitandoo a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer
meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou
preposto:
92
Bíblia Sagrada. Carta de São Paulo aos Romanos, capítulo 8, versículo 15. 73. ed., São Paulo,
SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 1457.
93
Bíblia Sagrada. Livro do Êxodo, capítulo 20, versículo 15. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave
Maria, 1991. p. 121.
86
Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente
à violência. (Redação dada pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
§ 1o Nas mesmas penas incorre quem:
I - cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador,
com o fim de retê-lo no local de trabalho;
II - mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de
documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no
local de trabalho.
§ 2o A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido:
I - contra criança ou adolescente;
II - por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.
E – Direito à igualdade: O direito à igualdade, como já dito anteriormente, está
juridicamente pautado no princípio da isonomia, no qual o Estado deve tratar com
igualdade as pessoas que se encontram em situações jurídicas iguais e tratar com
desigualdade as pessoas que se encontram em situações jurídicas diferentes. Sem
o tratamento desigual, não pode haver a isonomia, posto que faz parte da própria
essência de igualdade. (MORAES, A., 2004, p. 66). Tal tratamento diferenciado visa
estabelecer um equilíbrio entre essas duas realidades distintas. Se o tratamento
fosse igual, em qualquer situação, o equilíbrio se despedaçaria. Assim, seres
humanos que se encontram em situações jurídicas idênticas devem ser tratados de
forma igual.
Como núcleo do direito de igualdade, a carta constitucional estabelece a
igualdade de direitos entre homens e mulheres. Dessa mesma forma, pode-se
perceber uma ideologia que caminha em igual sentido em âmbito religioso, espiritual
e sociológico. Pelas religiões de tradição judaico-cristã, homens e mulheres foram
criados conforme a mesma dignidade atribuída por Deus, ambos sendo criados “à
imagem e semelhança” da divindade. Assim, observa-se o seguinte paralelo quanto
à igualdade entre homem e mulher:
Religião:
Deus criou o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou, homem e
94
mulher os criou. (Gn 1, 27) .
O Senhor Deus disse: “Não é bom que o homem esteja só; vou dar-lhe uma
ajuda que lhe seja adequada.” [...] Então o Senhor Deus mandou ao homem
um profundo sono; e enquanto ele dormia, tomou-lhe uma costela e fechou
com carne o seu lugar. E da costela que tinha tomado do homem, o Senhor
Deus fez uma mulher, e levou-a para junto do homem. “Eis agora aqui,
disse o homem, o osso de meus ossos e a carne de minha carne; ela se
chamará mulher, porque foi tomada do homem.” Por isso o homem deixa o
94
Bíblia Sagrada. Gênesis, capítulo 1, versículo 27. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991.
p. 49.
87
seu pai e sua mãe para se unir à sua mulher; e já não são mais que uma só
95
carne. (Gn 2, 18-24) .
Ao criar o ser humano, homem e mulher, Deus dá a dignidade pessoal de
modo igual ao homem e à mulher. O homem é uma pessoa, e isto na
mesma medida para o homem e para a mulher, pois ambos são criados à
imagem e à semelhança de um Deus pessoal. (Catecismo da Igreja
Católica, §2334, p. 605).
Que o homem e a mulher tenham sido criados um para o outro, a sagrada
Escritura o afirma: "Não é bom que O homem esteja só" (Gn 2,18). A
mulher, "carne de sua carne", é, igual a ele, bem próxima dele, lhe foi dada
por Deus como um "auxilio", representando, assim, "Deus, em quem está o
nosso socorro". "Por isso um homem deixa seu pai e sua mãe, se une à sua
mulher, e eles se tornam uma só carne" (Gn 2,24). Que isto significa uma
unidade indefectível de suas duas vidas, o próprio Senhor no-lo mostra
lembrando qual foi, 'na origem", o desígnio do Criador (Cf Mt 19,4): "De
modo que já não são dois, mas uma só carne" (Mt 19,6). (Catecismo da
Igreja Católica, §1605, p. 439).
O homem e a mulher são criados, isto é, são queridos por Deus: por um
lado, em perfeita igualdade como pessoas humanas e, por outro, em seu
ser respectivo de homem e de mulher. "Ser homem, 'ser mulher" é uma
realidade boa e querida por Deus: o homem e a mulher têm uma dignidade
inamissível que lhes vem diretamente de Deus, seu Criador. O homem e a
mulher são criados em idêntica dignidade, "à imagem de Deus". Em seu
"ser-homem" e seu "ser-mulher" refletem a sabedoria e a bondade do
Criador.(Catecismo da Igreja Católica, §369, p. 106).
Deus não é de modo algum à imagem do homem. Não é nem homem nem
mulher. Deus é puro espírito, não havendo nele lugar para a diferença dos
sexos. Mas as "perfeições" do homem e da mulher refletem algo da infinita
perfeição de Deus: as de uma mãe e as de um pai e esposo. (Catecismo da
Igreja Católica, §370, p. 106).
Cabe a cada um, homem e mulher, reconhecer e aceitar sua identidade
sexual. A diferença e a complementaridade físicas, morais e espirituais
estão orientadas para os bens do casamento e para o desabrochar da vida
familiar. A harmonia do casal e da sociedade depende, em parte, da
maneira como se vivem entre os sexos a complementaridade, a
necessidade e o apoio mútuos. (Catecismo da Igreja Católica, §2333, p.
605).
Estado brasileiro:
Art. 5º, CF - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no
País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos
desta Constituição;
No atual Estado brasileiro, o homem e a mulher são considerados pessoas de
mesma situação jurídica, ou seja, são iguais perante a lei, recebendo tratamento
igual na maioria das situações. Há casos, porém, em que homem e mulher recebem
tratamentos diferenciados em face da condição biológica inerentes a cada um. Há
de se observar, no entanto, que o tratamento diferenciado entre homens e mulheres
não se dá devido à diferença de dignidade humana, pois ambos possuem a mesma
dignidade. Nem podem ser discriminados por motivos de sexo, crença ou concepção
95
Bíblia Sagrada. Gênesis, capítulo 2, versículo 18 a 24. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria,
1991. p. 50.
88
intelectual, conforme a própria Constituição (Art. 5º, VIII, CF). O tratamento desigual,
quando previsto pela Constituição, só ocorre em face de justificativas específicas,
conforme a limitação natural de cada gênero da espécie humana. Assim, há
tratamento
diferenciado
quanto
à
concessão
legal
de
licença
maternidade/paternidade, quanto aos critérios de aposentadoria no serviço público e
no Regime Geral de Previdência Social, quanto à isenção do serviço militar
obrigatório à mulher em tempo de paz, etc. Nessa perspectiva, Alexandre de
Moraes, ao interpretar o princípio da igualdade entre homem e mulher presente no
inciso I do artigo 5º da Constituição, esclarece que:
A correta interpretação desse dispositivo torna inaceitável a utilização do
discrímen sexo, sempre que o mesmo seja eleito com o propósito de
desnivelar materialmente o homem da mulher; aceitando-o, porém, quando
a finalidade pretendida for atenuar os desníveis. Conseqüentemente, além
de tratamentos diferenciados entre homens e mulheres previstos pela
própria constituição (arts. 7º, XVIII e XIX; 40, § 1º, 143, §§ 1º e 2º; 201, §
7º), poderá a legislação infraconstitucional pretender atenuar os desníveis
de tratamento em razão do sexo. (MORAES, A., 2004, p. 69).
Homens e mulheres são iguais em dignidade tanto em âmbito jurídico quanto
no religioso. No entanto, quanto ao tratamento em razão do gênero humano, podem
receber tratamento diferenciado tanto em âmbito jurídico quanto no religioso. Ao
longo das escrituras, pode-se perceber certo tratamento diferenciado no tocante às
funções específicas de cada gênero na sociedade. Essas raízes históricas podem ter
influenciado de maneira significativa nas normas jurídicas atuais. Dessa forma,
observa-se o seguinte paralelo:
Religião:
O Senhor disse a Moisés: “Dize aos israelitas o seguinte: quando uma
mulher der à luz um menino será impura durante sete dias, como nos dias
de sua menstruação. No oitavo dia far-se-á a circuncisão do menino. Ela
ficará ainda trinta e três dias no sangue de sua purificação; não tocará coisa
alguma santa, e não irá ao santuário até que se acabem os dias de sua
purificação. Se ela der á luz uma menina, será impura durante duas
semanas, como nos dias de sua menstruação, e ficará sessenta e seis dias
96
no sangue de sua purificação. (Lv 12, 1-5) .
O Senhor disse a Moisés: “Dize aos israelitas o seguinte: se alguém fizer
um voto, as pessoas serão do Senhor segundo a tua avaliação. Se se tratar
de um homem de vinte a sessenta anos, o valor será de cinqüenta siclos de
prata, segundo o siclo do santuário; se for uma mulher, o valor será de trinta
siclos. Para a idade de cinco a vinte anos, o valor será de vinte siclos para o
menino, e dez siclos para a menina. De um mês até cinco anos, o valor será
de cinco siclos de prata para um menino, e três para uma menina. Aos
96
Bíblia Sagrada. Levítico, capítulo 12, versículos de 1 a 5. 73. ed. São Paulo, SP: Editora Ave
Maria, 1991. p. 154.
89
sessenta anos, e daí para cima, a estimação será de quinze siclos para um
97
homem e dez siclos para uma mulher. (Lv 27, 1-7) .
Estado brasileiro:
Art. 7º, CF - São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros
que visem à melhoria de sua condição social:
[...]
XVIII - licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a
duração de cento e vinte dias;
XIX - licença-paternidade, nos termos fixados em lei;
[...]
Art. 10, ADCT, § 1º - Até que a lei venha a disciplinar o disposto no art. 7º,
XIX, da Constituição, o prazo da licença-paternidade a que se refere o
inciso é de cinco dias.
Art. 40, CF - Aos servidores titulares de cargos efetivos da União, dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e
fundações, é assegurado regime de previdência de caráter contributivo e
solidário, mediante contribuição do respectivo ente público, dos servidores
ativos e inativos e dos pensionistas, observados critérios que preservem o
equilíbrio financeiro e atuarial e o disposto neste artigo.
§ 1º Os servidores abrangidos pelo regime de previdência de que trata este
artigo serão aposentados, calculados os seus proventos a partir dos valores
fixados na forma dos §§ 3º e 17:
[...]
III - voluntariamente, desde que cumprido tempo mínimo de dez anos de
efetivo exercício no serviço público e cinco anos no cargo efetivo em que se
dará a aposentadoria, observadas as seguintes condições:
a) sessenta anos de idade e trinta e cinco de contribuição, se homem, e
cinqüenta e cinco anos de idade e trinta de contribuição, se mulher;
b) sessenta e cinco anos de idade, se homem, e sessenta anos de idade, se
mulher, com proventos proporcionais ao tempo de contribuição.
Art. 201, CF - A previdência social será organizada sob a forma de regime
geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios
que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, nos termos da
lei, a:
[...]
§ 7º É assegurada aposentadoria no regime geral de previdência social, nos
termos da lei, obedecidas as seguintes condições:
I - trinta e cinco anos de contribuição, se homem, e trinta anos de
contribuição, se mulher;
II - sessenta e cinco anos de idade, se homem, e sessenta anos de idade,
se mulher, reduzido em cinco anos o limite para os trabalhadores rurais de
ambos os sexos e para os que exerçam suas atividades em regime de
economia familiar, nestes incluídos o produtor rural, o garimpeiro e o
pescador artesanal.
Art. 143, CF - O serviço militar é obrigatório nos termos da lei.
[...]
§ 2º - As mulheres e os eclesiásticos ficam isentos do serviço militar
obrigatório em tempo de paz, sujeitos, porém, a outros encargos que a lei
lhes atribuir.
O direito de igualdade refere-se também à acessibilidade sócio-jurídica a
todas as pessoas independente de poder aquisitivo ou capacidade econômica, ou
seja, nenhum indivíduo pode ser privado dos atos básicos da vida civil por não ter
dinheiro. Assim, juridicamente, um pobre e um rico não podem ser tratados de forma
97
Bíblia Sagrada. Levítico, capítulo 27, versículos de 1 a 7. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave
Maria, 1991, p. 172.
90
igual, pois se encontram em situações jurídicas diferentes. O pobre, para se igualar
ao rico, deve ser tratado com certos privilégios jurídicos que não podem ser
aplicados ao rico. Assim, o tratamento diferenciado, em certos casos, entre pobres e
ricos, traduz-se no estrito cumprimento do preceito legal da isonomia. De maneira
semelhante, o mesmo preceito isonômico encontra-se consubstanciado pela tradição
espiritual, na qual os pobres e oprimidos são constantemente objetos da proteção
divina. Vislumbra-se, então, o paralelo seguinte:
Religião:
O Reino pertence aos pobres e aos pequenos, isto é, aos que o acolheram
com um coração humilde. Jesus é enviado para "evangelizar os pobres" (Lc
4,18). Declara-os bem-aventurados, pois "o Reino dos Céus é deles" (Mt
5,3); foi aos "pequenos" que o Pai se dignou revelar o que permanece
escondido aos sábios e aos entendidos. Jesus compartilha a vida dos
pobres desde a manjedoura até a cruz; conhece a fome, a sede e a
indigência. Mais ainda: identifica-se com os pobres de todos os tipos e faz
do amor ativo para com eles a condição para se entrar em seu Reino.
(Catecismo da Igreja Católica, §544, p. 154).
Deus abençoa aqueles que ajudam os pobres e reprova aqueles que se
afastam deles: "Dá ao que te pede e não voltes as costas ao que te pede
emprestado" (Mt 5,42). "De graça recebestes, de graça dai" (Mt 10,8). Jesus
Cristo reconhecerá seus eleitos pelo que tiverem feito pelos pobres. Temos
o sinal da presença de Cristo quando "os pobres são evangelizados" (Mt
11,53). (Catecismo da Igreja Católica, §2443, p. 631).
O Senhor disse a Moisés: “Dize aos israelitas o seguinte: [...] se aquele que
tiver feito o voto for demasiado pobre e não puder pagar o valor que
avaliaste, apresentar-se-á ao sacerdote, que fixará o valor segundo as
98
posses daquele que fez o voto. (Lv 12, 1 e 8) .
99
Não atentarás contra o direito do pobre em sua causa. (Êx 23, 6) .
Ser for pobre, e suas posses não lhe permitirem trazer tanto, tomará um só
cordeiro em sacrifício de reparação, como oferta agitada, para fazer a
expiação em seu favor: tomará um décimo de efá de flor de farinha
100
amassada com óleo em oblação, e uma medida de óleo. (Lv 14, 21) .
“Se teu irmão se tornar pobre junto de ti, e as suas mãos se enfraquecerem,
sustentá-lo-ás, mesmo que se trate de um estrangeiro ou de um hóspede, a
101
fim de que ele viva contigo. (Lv. 25, 35) .
Se houver no meio de ti um pobre entre os teus irmãos, em uma de tuas
cidades, na terra que te dá o Senhor, teu Deus, não endurecerás o teu
102
coração e não fecharás a mão diante de teu irmão pobre; (Dt 15, 7) .
Ele não tem preferência pelos grandes, e não tem mais consideração pelos
ricos do que pelos pobres, porque são todos obras de suas mãos. (Jó 34,
103
19) .
98
Bíblia Sagrada. Levítico, capítulo 12, versículos 1 e 8. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria,
1991. p. 154.
99
Bíblia Sagrada. Livro do Êxodo, capítulo 23, versículo 6. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave
Maria, 1991. p. 124.
100
Bíblia Sagrada. Levítico, capítulo 14, versículo 21. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria,
1991. p. 157.
101
Bíblia Sagrada. Levítico, capítulo 25, versículo 35. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria,
1991. p. 170.
102
Bíblia Sagrada. Deuteronômio, capítulo 15, versículo 7. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave
Maria, 1991. p. 231.
103
Bíblia Sagrada. Livro de Jó, capítulo 34, versículo 19. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria,
1991. p. 647.
91
Mas Deus salvará o pobre pela sua miséria, e o instrui pelo sofrimento. (Jó
104
36, 15) .
Responde, porém, o Senhor: Por causa da aflição dos humildes e dos
gemidos dos pobres, levantar-me-ei para lhes dar a salvação que desejam.
105
(Sl 11, 6) .
Os pobres comerão e serão saciados; louvarão o Senhor aqueles que o
106
procuram: Vivam para sempre os nossos corações. (Sl 21, 27) .
Não abandoneis ao abutre a vida de vossa pomba, não esqueçais para
107
sempre a vida de vossos pobres. (Sl 73, 19) .
Defendei o oprimido e o órfão, fazei justiça ao humilde e ao pobre, livrai o
108
oprimido e o necessitado, tirai-o das garras dos ímpios. (Sl 81, 3-4) .
Estado brasileiro:
Art. 5º, CF - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no
País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
LXXIV - o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que
comprovarem insuficiência de recursos;
[...]
LXXVI - são gratuitos para os reconhecidamente pobres, na forma da lei:
a) o registro civil de nascimento;
b) a certidão de óbito;
LXXVII - são gratuitas as ações de "habeas-corpus" e "habeas-data", e, na
forma da lei, os atos necessários ao exercício da cidadania.
LXXVIII - a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a
razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua
tramitação.
F – Direito à segurança: Quanto ao direito à segurança, apesar de, nas
origens, tal garantia advir da 1ª geração dos direitos fundamentais, pode-se dizer
que o Estado brasileiro atual adota uma concepção bivalente, ou seja, tanto positiva
quanto negativa. O Estado é responsável por garantir a segurança e a paz da
sociedade, se comprometendo ele mesmo a não violar tal direito fundamental.
Portanto, atualmente o direito à segurança pede uma intervenção estatal ativa
(direito humano positivo) no caso das organizações militares e policiais, quanto uma
abstenção estatal negativa (direito humano negativo), que visa obter a garantia de
que o Estado não irá colocar em xeque os direitos fundamentais, como o direito à
vida, à propriedade privada, à liberdade de locomoção, etc, evitando prisões
arbitrárias, ilegais, autoritárias e sem motivação. (MORAES, A., 2004, p. 124). Nesse
104
Bíblia Sagrada. Livro de Jó, capítulo 36, versículo 15. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria,
1991. p. 649.
105
Bíblia Sagrada. Salmo 11 (Hebr. 12), versículo 6. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria,
1991. p. 664.
106
Bíblia Sagrada. Salmo 21 (Hebr. 22), versículo 27. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria,
1991. p. 672.
107
Bíblia Sagrada. Salmo 73 (Hebr. 74), versículo 19. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria,
1991. p. 714.
108
Bíblia Sagrada. Salmo 81 (Hebr. 82), versículos 3 e 4. 73. ed. São Paulo, SP: Editora Ave Maria,
1991. p. 722.
92
sentido, a norma constitucional também sabiamente prevê, como corolário do direito
à segurança, os direitos processuais da presunção de inocência, do devido processo
legal, do contraditório e da ampla defesa, nos quais o indivíduo se vê protegido de
alguma possível ação abusiva do Estado. (MORAES, A., 2004, p. 125).
Historicamente, o direito à segurança entrou no rol dos Direitos Humanos por
influência das correntes jusnaturalistas racionais, que consideravam qualquer abuso
estatal sobre as pessoas um ato ilícito e não condizente com o Direito Natural,
violando claramente a liberdade e a dignidade humanas. O direito à segurança era a
garantia de que a dignidade humana seria respeitada por todos, inclusive pelo
Estado. Portanto, a inclusão da segurança no rol dos Direitos Humanos foi um
evento histórico natural, que decorreu dos inúmeros abusos que os Estados
fascistas cometiam contra as pessoas durante os períodos das duas guerras
mundiais. (VICENTINO, 2004, pp. 503 a 508). No Brasil, os abusos estatais que
mais marcaram a população foram os decorrentes do período totalitário de extrema
direita e também do período da ditadura militar. A repressão e os abusos eram
frequentes. (VICENTINO, 2004, pp. 533 a 538 e 597 a 614). Assim, pode-se dizer
que a inclusão do direito à segurança na Constituição de 1988 nada mais foi do que
uma reação natural a esse período conturbado. Os ideais jusnaturalistas e
iluministas de liberdade, igualdade e fraternidade só seriam viáveis em um pretenso
Estado Democrático de Direito com uma forte ferramenta capaz de assegurá-los: o
direito constitucional à segurança.
Em âmbito religioso, a segurança se traduz em proteção divina contra os
males corriqueiros, como as doenças, as pestes, as guerras e a repressão dos
povos vizinhos. Na tradição judaica, a observância das leis e da aliança feita com
Deus garantiria a proteção, a segurança e a certeza de que o povo hebreu, um povo
historicamente pequeno, vulnerável e perseguido, não seria subjugado. (GAARDER,
2002, pp. 102 e 103). Por isso, em muitas passagens bíblicas, Deus assume uma
identidade específica chamada “O Senhor dos Exércitos”, que remete a essa
característica protecionista que a divindade dos hebreus assumia. Já na era cristã, a
preocupação com a segurança corporal, ou seja, estritamente material, passou para
um segundo plano na doutrina religiosa, que considerava mais importante a
segurança espiritual do que a da carne. Assim, Deus passou a ser lembrado menos
como “O Senhor dos Exércitos” e passou a ser mais conhecido como “O Paráclito”
ou “O Consolador” ou “Espírito de Fortaleza”. Na tradição cristã, convencionou-se
93
que a preocupação maior não recairia sobre aqueles que “matam o corpo, mas não
matam a alma” (Mt 10, 28). Dessa forma, a preocupação no cristianismo é com a
salvação espiritual, e não puramente a salvação material. No entanto, tal diferença
não prejudica na forma como tais ideologias influenciam na produção de normas
jurídicas protecionistas, posto que o ser humano é considerado, para a religião,
corpo e espírito unidos109. A proteção do espírito traz como conseqüência a proteção
do corpo, e vice versa. Logo, o paralelo entre religião e a norma jurídica brasileira
que pode ser traçado é a seguinte:
Religião:
Eis o que diz o Senhor dos Exércitos: se andares nos meus caminhos e
fores fiel às minhas ordens, governarás a minha casa, guardarás os meus
átrios e te darei livre acesso entre os que estão aqui diante de mim. (Zc 3,
110
7) .
Davi, porém, disse ao filisteu: Tu vens a mim com espada, e com lança, e
com escudo; porém eu vou contra ti em nome do SENHOR dos Exércitos, o
111
Deus dos exércitos de Israel, a quem tens afrontado. (1 Sm 17, 45) .
Já se ouve a gritaria da multidão sobre os montes, como a de muito povo; o
som do rebuliço de reinos e de nações congregados. O SENHOR dos
112
Exércitos passa em revista suas tropas para a batalha. (Is 13, 4) .
Porque me levantarei contra eles, diz o SENHOR dos Exércitos, e extirparei
o nome e os vestígios de babilônia, sua raça e sua posteridade, diz o
113
SENHOR. (Is 14, 22) .
Porque este dia é o dia do Senhor DEUS dos Exércitos, dia de vingança
para ele se vingar dos seus adversários; e a espada devorará, e fartar-se-á,
e embriagar-se-á com o sangue deles; porque o Senhor DEUS dos
Exércitos tem um sacrifício na terra do norte, junto ao rio Eufrates. (Jr 46,
114
10) .
Sê tu a minha habitação forte, à qual possa recorrer continuamente. Deste
um mandamento que me salva, pois tu és a minha rocha e a minha
115
fortaleza. (Sl 70, 3) .
Porque vós sois o refúgio para o fraco, e a fortaleza do necessitado na sua
angústia; abrigo contra a tempestade, e sombra contra o calor (porque o
sopro dos opressores é como uma tempestade de inverno, como o calor
sobre a terra árida. Vós fazeis cessar o clamor dos tiranos, assim como
cessa o calor à sombra de uma nuvem. O canto triunfal dos tiranos
116
extinguir-se-á. (Is 25, 4 e 5) .
109
AGOSTINHO, Santo. A Trindade. 2. ed., São Paulo: Editora Paulus, 1994. p. 322 a 324.
Bíblia Sagrada. Zacarias, capítulo 3, versículo 7. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991.
p. 1272.
111
Bíblia Sagrada. I Samuel, capítulo 17, versículo 45. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria,
1991. p. 322.
112
Bíblia Sagrada. Isaías, capítulo 13, versículo 4. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991.
p. 955.
113
Bíblia Sagrada. Livro do Êxodo, capítulo 20, versículo 15. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave
Maria, 1991. p. 121.
114
Bíblia Sagrada. Jeremias, capítulo 46, versículo 10. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria,
1991. p. 1094.
115
Bíblia Sagrada. Salmo 70 (hebr. 71), versículo 3. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991.
p. 710.
116
Bíblia Sagrada. Isaías, capítulo 25, versículo 4 e 5. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria,
1991. p. 970.
110
94
O SENHOR é o meu rochedo, e o meu lugar forte, e o meu libertador; o meu
Deus, a minha fortaleza, em quem confio; o meu escudo, a força da minha
salvação, e o meu alto refúgio. Invoco o SENHOR digno de todo o louvor, e
117
fico livre dos meus inimigos (Sl 17, 3 e 4) .
Tu que habitas sob a proteção do Altíssimo, que moras à sombra do
Onipotente, Dize ao SENHOR: “Sois o meu refúgio, e a minha fortaleza,
Meu Deus, em quem eu confio”. E Ele te livrará do laço do caçador, e da
peste perniciosa. Ele te cobrirá com as suas penas, e debaixo das suas
asas encontrarás refúgio; Sua fidelidade te será um escudo de proteção.
Não temerás os terrores noturnos, nem a flecha que voa de dia, nem a
peste que se propaga nas trevas, nem a mortandade que assola ao meiodia. Caiam mil homens à tua esquerda, e dez mil à tua direita, mas tu não
118
serás atingido. (Sl 90, 1 a 7) .
E repousará sobre ele o Espírito do SENHOR, o espírito de sabedoria e de
entendimento, o espírito de conselho e de fortaleza, o espírito de
119
conhecimento e de temor do SENHOR. (Is 11, 2) .
E eu rogarei ao Pai, e ele vos dará outro Consolador, para que fique
120
convosco para sempre; (Jo 14, 16) .
Sou Eu, sou Eu quem vos consola; Como podes temer o homem que é
121
mortal, ou um filho do homem, que acabará com a erva? (Is 51, 12) .
Clama outra vez, dizendo: Assim diz o SENHOR dos Exércitos: As minhas
cidades ainda aumentarão e prosperarão; porque o SENHOR ainda
122
consolará a Sião e ainda escolherá a Jerusalém. (Zc 1, 17) .
Estado brasileiro:
Art. 5º, CF - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no
País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
XLI - a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades
fundamentais;
[...]
LIII - ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade
competente;
LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido
processo legal;
LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados
em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e
recursos a ela inerentes;
LVI - são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos;
LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de
sentença
penal condenatória;
[...]
LXI - ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e
fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de
transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei;
[...]
117
Bíblia Sagrada. Salmo 17 (Hebr. 18), versículos 3 e 4. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria,
1991. p. 667.
118
Bíblia Sagrada. Salmo 90 (Hebr. 91), versículos de 1 a 7. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave
Maria, 1991. p. 730.
119
Bíblia Sagrada. Isaías, capítulo 11, versículo 2. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991.
p. 954.
120
Bíblia Sagrada. Evangelho de Jesus Cristo segundo João, capítulo 14, versículo 16. 73. ed.,
São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 1404.
121
Bíblia Sagrada. Isaías, capítulo 51, versículo 12. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991.
p. 1010.
122
Bíblia Sagrada. Zacarias, capítulo 1, versículo 17. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria,
1991. p. 1271.
95
LXV - a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária;
[...]
LXVIII - conceder-se-á "habeas-corpus" sempre que alguém sofrer ou se
achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de
locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder;
[...]
Art. 142, CF - As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército
e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares,
organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade
suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à
garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da
lei e da ordem.
[...]
Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade
de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da
incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:
I - polícia federal;
II - polícia rodoviária federal;
III - polícia ferroviária federal;
IV - polícias civis;
V - polícias militares e corpos de bombeiros militares.
G – Direito à propriedade: Como já exposto no tópico 1.1 deste trabalho,
pesquisadores situam a provável origem dos primeiros fenômenos religiosos junto
com o surgimento do sedentarismo e da propriedade privada. Consideram que as
primeiras religiões surgiram como uma forma de normatizar as relações
interpessoais entre os indivíduos e suas propriedades privadas. No entanto, esse
aspecto das religiões foi evoluindo com o passar dos tempos e se transformando em
algo mais profundo, como o abordado nos tópicos subsequentes deste trabalho.
Portanto, há estrita relação entre a religiosidade e o direito de propriedade.
Para a tradição judaico-cristã, a propriedade dos bens materiais é garantida a
partir da criação do Universo, desde que o homem saiba usufruir dos bens de modo
equilibrado e voltando-os para o bem comum. O uso da propriedade de modo
desordenado, o acumulo excessivo de bens materiais, e o uso ilegal das posses
sempre foi reprovável religiosamente, sendo uma exceção ao direito de propriedade.
No direito brasileiro, tal ideologia traduz-se no princípio da função social da
propriedade, a qual é consagrada na Constituição Federal como limite ao direito
subjetivo de propriedade. Ou seja, a propriedade é assegurada, desde que voltada à
sua função social. (MORAES, A., 2004, p. 683). A propriedade atende sua função
social quando não é destinada para a prática de atos ilícitos e quando é utilizada
regularmente conforme a legislação, e quando está em conformidade com as
normas de Direito Administrativo, que prioriza o interesse coletivo sobre o privado, o
que justifica casos de desapropriação no direito brasileiro.
96
Em âmbito religioso, a propriedade possui o fim de levar condições materiais
de vida condizentes com a inalienável dignidade humana. A não acumulação
exarcebada de bens materiais visa à justa distribuição equânime das riquezas
produzidas, objetivando a manutenção da dignidade humana, que é direito de todos.
Assim, para a religião, o ideal é que cada pessoa possua apenas o necessário para
satisfazer suas necessidades e viver confortavelmente. Tudo o que passa disso é
considerado um acumulo prejudicial à própria pessoa e à comunidade, que se vê
privada da circulação das riquezas. Num Estado Democrático e liberal, essa visão
sobre a propriedade é de certo modo compartilhada, pois o capitalismo sobrevive da
livre circulação do capital. Se as pessoas resolvem apenas acumular riquezas e não
colocam o dinheiro em circulação, a economia geral entra em crise, gerando índices
alarmantes de desemprego, baixa produtividade, baixo consumo, acúmulo de
produtos em estoques, etc.123 Dessa forma, pode-se observar um interessante
paralelo entre o direito de propriedade assegurado pela religião (com a condenação
do mal uso e do acúmulo indevido da propriedade) e o direito de propriedade no
direito constitucional brasileiro (com seus limites fincados no princípio da função
social da propriedade):
Religião:
Então Deus disse: "Façamos o homem à nossa imagem e semelhança. Que
ele reine sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais
domésticos e sobre toda a terra, e sobre todos os répteis que se arrastem
sobre a terra." [...] Deus os abençoou: "Frutificai, disse ele, e multiplicai-vos,
enchei a terra e submetei-a. Dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves
dos céus e sobre todos os animais que se arrastam sobre a terra." Deus
disse: "Eis que eu vos dou toda a erva que dá semente sobre a terra, e
todas as árvores frutíferas que contêm em si mesmas a sua semente, para
124
que vos sirvam de alimento. (Gn 1, 26-29) .
Da destinação universal e a propriedade privada dos bens. No começo,
Deus confiou a terra e seus recursos à administração comum da
humanidade, para que cuidasse dela, a dominasse por seu trabalho e dela
desfrutasse. Os bens da criação são destinados a todo o gênero humano. A
terra está, contudo, repartida entre os homens para garantir a segurança de
sua vida, exposta à penúria e ameaçada pela violência. A apropriação dos
bens é legítima para garantir a liberdade e a dignidade das pessoas, para
ajudar cada um a prover suas necessidades fundamentais e as daqueles de
quem está encarregado. Deve também permitir que se manifeste uma
solidariedade natural entre os homens. (Catecismo da Igreja Católica, 2000,
§2402, p. 621).
123
Sobre as leis econômicas de circulação de riquezas, ver: GOMES, Carlos. Antecedentes do
capitalismo. Circulação de capital. Edição eletrônica gratuita. Disponível em:
<http://www.eumed.net/libros/2008a/372/CIRCULACAO%20DE%20CAPITAL.htm>. Acesso em: 21
abr. 2009.
124
Bíblia Sagrada. Gênesis, capítulo 1, versículos de 26 a 29. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave
Maria, 1991. pp. 49 e 50.
97
Não ajunteis para vós tesouros na terra, onde os ladrões furam e roubam.
Ajuntai para vós tesouros no céu, onde não os consomem nem as traças,
125
nem a ferrugem, e os ladrões não furam nem roubam. (Mt 6, 19 e 20) .
Perguntava-lhe a multidão: “que devemos fazer?” Ele respondia: “aquele
que tiver duas túnicas dê uma a quem não tem; e quem tem o que comer
126
faça o mesmo”. (Lc 3, 10 e 11) .
"Usando aqueles bens, o homem que possui legitimamente as coisas
materiais não as deve ter só como próprias dele, mas também como
comuns, no sentido de que elas possam ser úteis não somente a ele, mas
também aos outros." A propriedade de um bem faz de seu detentor um
administrador da Providência, para fazê-los frutificar e para repartir os
benefícios dessa administração a outros, a seus parentes, em primeiro
lugar. (Catecismo da Igreja Católica, §2404, p. 621).
A autoridade política tem o direito e o dever de regulamentar, em função do
bem comum, o exercício legítimo do direito de propriedade. (Catecismo da
igreja Católica, §2406, p. 622).
Não cobiçarás a casa do teu próximo; não cobiçarás a mulher do teu
próximo, nem seu escravo, nem sua escrava, nem seu boi, nem seu
127
jumento, nem nada do que lhe pertence. (Êx 20, 17) .
O décimo mandamento proíbe a avidez e o desejo de uma apropriação
desmedida dos bens terrenos; proíbe a cupidez desmedida nascida da
paixão imoderada das riquezas e de seu poder. Proíbe ainda o desejo de
cometer uma injustiça pela qual se prejudicaria o próximo em seus bens
temporais: Quando a Lei nos diz: "Não cobiçarás", ordena-nos, em outros
termos, que afastemos nossos desejos de tudo aquilo que não nos
pertence. Pois a sede dos bens do próximo é imensa, infinita e nunca
saciada, como está escrito: "Quem ama o dinheiro nunca se fartará de
dinheiro" (Ecl 5, 9). (Catecismo da Igreja Católica, §2536, p. 650).
Estado brasileiro:
Art. 5º, CF - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no
País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
XXII - é garantido o direito de propriedade;
XXIII - a propriedade atenderá à sua função social;
XXIV - a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por
necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e
prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta
Constituição;
Quanto à proteção jurídica que a propriedade privada recebe, tanto a religião
judaico-cristã quanto o direito atual brasileiro reprovam as condutas atentatórias
contra os bens materiais alheios. Assim, observa-se o curioso paralelo seguinte:
Religião:
128
Não roubarás (Êx 20, 15) .
125
Bíblia Sagrada. Evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus, capítulo 6, versículos 19 e 20. 73.
ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 1290.
126
Bíblia Sagrada. Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas, capítulo 3, versículos 10 e 11. 73.
ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 1349.
127
Bíblia Sagrada. Livro do Êxodo, capítulo 20, versículo 17. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave
Maria, 1991. p. 121.
128
Bíblia Sagrada. Livro do Êxodo, capítulo 20, versículo 15. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave
Maria, 1991. p. 121.
98
Não cobiçarás a casa do teu próximo; não cobiçarás a mulher do teu
próximo, nem seu escravo, nem sua escrava, nem seu boi, nem seu
129
jumento, nem nada do que lhe pertence. (Êx 20, 17) .
Não roubarás (Ex 20, 15; Cf Dt 5, 19). Não roubarás (Mt 19, 18). O sétimo
mandamento proíbe tomar ou reter injustamente os bens do próximo ou
lesá-lo, de qualquer modo, nos mesmos bens. Prescreve a justiça e a
caridade na gestão dos bens terrestres e dos frutos do trabalho dos
homens. Exige, em vista do bem comum, o respeito à destinação universal
dos bens e ao direito de propriedade privada. A vida cristã procura ordenar
para Deus e para a caridade fraterna os bens deste mundo. (Catecismo da
Igreja Católica, §2401, p. 620).
Toda maneira de tomar e de reter injustamente o bem do outro, mesmo que
não contrarie as disposições da lei civil, é contrária ao sétimo mandamento.
Assim, também, reter deliberadamente os bens emprestados ou objetos
perdidos, defraudar no comércio, pagar salários injustos, elevar os preços
especulando sobre a ignorância ou a miséria alheia. São ainda moralmente
ilícitos a especulação, pela qual se faz variar artificialmente a avaliação dos
bens, visando levar vantagem em detrimento do outro; a corrupção, pela
qual se "compra" o julgamento daqueles que devem tomar decisões de
acordo com o direito; a apropriação e uso privados dos bens sociais de uma
empresa; os trabalhos malfeitos; a fraude fiscal; a falsificação de cheques e
de faturas; os gastos excessivos; o desperdício. Infligir voluntariamente um
prejuízo aos proprietários privados ou públicos é contrário à lei moral e
exige reparação. (Catecismo da Igreja Católica, §2409, p. 622).
Estado brasileiro:
Crimes contra o patrimônio.
Furto
Art. 155, CP - Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel:
Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.
Roubo
Art. 157, CP - Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante
grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer
meio, reduzido à impossibilidade de resistência:
Pena - reclusão, de quatro a dez anos, e multa.
Extorsão
Art. 158, CP - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, e
com o intuito de obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica,
a fazer, tolerar que se faça ou deixar fazer alguma coisa:
Pena - reclusão, de quatro a dez anos, e multa.
Extorsão indireta
Art. 160, CP - Exigir ou receber, como garantia de dívida, abusando da
situação de alguém, documento que pode dar causa a procedimento
criminal contra a vítima ou contra terceiro:
Pena - reclusão, de um a três anos, e multa.
Alteração de limites
Art. 161, CP - Suprimir ou deslocar tapume, marco, ou qualquer outro sinal
indicativo de linha divisória, para apropriar-se, no todo ou em parte, de coisa
imóvel alheia:
Pena - detenção, de um a seis meses, e multa.
Dano
Art. 163, CP - Destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia:
Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.
129
Bíblia Sagrada. Livro do Êxodo, capítulo 20, versículo 17. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave
Maria, 1991. p. 121.
99
3.3. OS EFEITOS DA RELIGIÃO NO DIREITO ATUAL.
Vista a forma como os princípios religiosos, mormente os de tradição
ocidental monoteísta, estabelecem curiosos paralelos de influência na formação dos
direitos e garantias fundamentais na Constituição Federal brasileira de 1988, resta
analisar a forma como tais movimentos religiosos continuam atuando no
ordenamento jurídico atual. A problemática passa em torno de questões
fundamentais que abordam temas polêmicos, principalmente em torno do direito à
vida, como a pesquisa com células-tronco embrionárias e a legalização do aborto.
Com relação à pesquisa científica com células-tronco embrionárias, a
discussão atual acalorou-se entre as opiniões das alas religiosas de grande
representação na sociedade e as dos cientistas brasileiros, que visavam obter
permissão legal para o desenvolvimento e o progresso nas pesquisas com tais
células. A opinião religiosa, nesse caso, representou uma força de influência contra
a tendência governamental de se permitir tais tipos de experiências com seres
humanos, inicialmente previstas na Lei nº 11.105/05 (Lei de Biossegurança). O
artigo 5º da referida lei prescreve em seu caput que “é permitida para fins de
pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões
humanos produzidos por fertilização 'in vitro' e não utilizados no respectivo
procedimento”. Tal dispositivo foi objeto de Ação Direta de inconstitucionalidade por
ferir teoricamente o direito à vida garantido pela Carta Magna brasileira. Além da
proteção da vida humana como direito inalienável, o Direito brasileiro protege todos
os direitos da pessoa, desde a concepção até a sua morte, como se depreende da
inteligência do artigo 2º do Código Cívil, que diz: “A personalidade civil da pessoa
começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os
direitos do nascituro.” Assim, embora nascituro e isento de personalidade jurídica, os
embriões e/ou fetos gozariam de direitos para com o Estado, e dentre eles o de ter
segura a sua vida e a sua dignidade humana. O conceito da concepção como início
100
da vida humana é próprio da Ciência Médica e da Biologia 130, tendo sido abarcada
por muito tempo pela Ciência Jurídica brasileira (Art. 2º, CC). Juridicamente,
portanto, a vida humana teria início na concepção, fenômeno no qual há a união da
célula reprodutora masculina com a feminina, gozando o ser humano de proteção
jurídica a partir de tal fenômeno até a sua morte. A discussão que se deu em torno
do assunto era, dessa forma, estritamente jurídico. No entanto, envolveu também a
opinião dos espiritualistas, uma vez que a manipulação da vida humana seria um ato
imoral do ponto de vista religioso e ilegal do ponto de vista jurídico.
Assim, pôde ser observada a forma como as ideologias religiosas
influenciaram fortemente nos argumentos a favor da Adin em trâmite no Supremo
Tribunal Federal. Apesar de ser uma discussão tecnicamente jurídica, setores
religiosos da Igreja Católica131 e de algumas das igrejas protestantes132 reagiram
fortemente à problemática, emitindo opiniões públicas em favor do direito à vida e do
respeito à dignidade humana. Para os religiosos, a Bíblia afirma categoricamente em
várias passagens que o início da vida se dá antes do nascimento, mais
especificamente quando ocorre o que a Medicina chama hoje em dia de concepção.
Uma das passagens preferidas dos religiosos situa-se no livro de Jeremias, em que
Deus diz ao seu profeta: “Antes que eu te formasse no ventre materno, eu já te
conhecia; antes do teu nascimento, Eu já te havia consagrado, e te havia designado
profeta das nações." (Jr 1, 5)133.
Há de se espantar que na Bíblia há passagens que fornecem argumentos da
existência da vida antes mesmo da concepção carnal, pois para Deus o homem é
também e principalmente espírito, e não somente carne. Assim, passagens como
130
“Um novo indivíduo biológico humano, original em relação a todos os exemplares de sua espécie,
inicia o seu ciclo vital no momento da penetração do espermatozóide no ovócito. A fusão dos
gâmetas masculino e feminino (chamada também "singamia") marca o primeiro "passo generacional",
isto é, a transição entre os gâmetas - que podem considerar-se "uma ponte" entre as gerações - e o
organismo humano não-formado. A fusão dos gâmetas representa um evento "crítico" de
"descontinuidade" porque marca a constituição de uma nova individualidade biológica,
qualitativamente diferente dos gâmetas que a geraram.” (GIULI, Anna. Bases biológicas do início
da vida humana. Disponível em:
<http://www.minhocomvida.org/site/index.php?option=com_content&task=view&id=46&Itemid=45>.
Acesso em: 26 abr. 2009).
131
ABARCA, Gerson. Células-tronco, ciência e religião. Disponível em:
<http://blog.cancaonova.com/ pensandobem/2008/03/12/celulas-tronco-ciencia-religiao/>. Acesso em:
26 abr. 2009.
132
MAGALHÃES, Ageu (Pr.). Resistência protestante. Pesquisas com células-tronco
embrionárias: o que a mídia omitiu. Disponível em:
<http://resistenciaprotestante.blogspot.com/2008/06/pesquisas-com-clulas-tronco-embrionrias.html>.
Acesso em: 26 abr. 2009.
133
Bíblia Sagrada. Jeremias, capítulo 1, versículo 5. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991.
p. 1032.
101
“Em verdade vos digo, antes que Abraão fosse, Eu sou” (Jo 8, 58)134 ampliam mais
ainda a idéia que a religião faz da vida humana como participante da vida divina, e
por isso mesmo cheia de uma dignidade inerente a si mesma. Mais estranho ainda é
observar que há precedentes no Direito brasileiro que corroboram essa existência da
vida humana mesmo antes da concepção, protegendo direitos de pessoas que ainda
não nasceram e sequer foram concebidas carnalmente. São os chamados direitos
hereditários de prole eventual, que encontram respaldo jurídico nos artigos 1.799 e
1.800 do Código Civil:
Art. 1.799, CC - Na sucessão testamentária podem ainda ser chamados a
suceder:
I - os filhos, ainda não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador,
desde que vivas estas ao abrir-se a sucessão;
[...]
Art. 1.800, CC - No caso do inciso I do artigo antecedente, os bens da
herança serão confiados, após a liquidação ou partilha, a curador nomeado
pelo juiz.
[...]
o
§ 4 Se, decorridos dois anos após a abertura da sucessão, não for
concebido o herdeiro esperado, os bens reservados, salvo disposição em
contrário do testador, caberão aos herdeiros legítimos.
Apesar de toda a influência que a religião possui, neste caso específico o
Estado brasileiro, por meio da declaração do Supremo Tribunal Federal, julgou
improcedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade em 28 de maio de 2008, dando
permissão jurídica para a continuidade das pesquisas com células-tronco
embrionárias, o que parece contraditório em um ordenamento jurídico que protege a
vida e a dignidade humanas desde a concepção, e algumas vezes até mesmo antes
da concepção, até a morte. O então presidente do STF, Excelentíssimo Sr. Ministro
Gilmar Mendes, foi o último a apresentar seu voto no julgamento, decidindo a
questão por 6 votos contra 5 vencidos. No entanto, o julgamento improcedente da
Adin e a conseqüente permissão da pesquisa com as células-tronco se deram de
forma parcial, pois seriam consideradas lícitas desde que se observassem algumas
ressalvas como as que já estão previstas na lei de biossegurança:
O texto impõe como condições que os embriões sejam "inviáveis ou
congelados há três anos ou mais, na data da publicação da Lei, ou que, já
congelados na data da publicação desta Lei, depois de completarem três
anos, contados a partir da data de congelamento." Em qualquer caso, prevê
134
Bíblia Sagrada. Evangelho de Jesus Cristo segundo João, capítulo 8, versículo 58. 73. ed., São
Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 1397.
102
a lei, "é necessário o consentimento dos genitores." E as instituições de
pesquisa e serviços de saúde devem "submeter seus projetos à apreciação
e aprovação dos respectivos comitês de ética em pesquisa." Também
135
proíbe a "comercialização do material biológico".
Mesmo assim, como pôde ser observado, houve certa influência da moral
religiosa neste permissivo legal, posto que as restrições que já haviam sido previstas
em lei estabelecem limites à ampla pesquisa com as células-tronco em face da
proteção da dignidade humana. Além disso, não se pode negar que a discussão
fática em torno do tema desenvolveu-se praticamente entre as posições jurídicas,
médicas e religiosas, onde todas essas áreas do conhecimento humano omitiam
suas opiniões fervorosamente, visando influenciar no julgamento da Adin pelo STF.
Foi um exemplo claro de como a religião, mesmo nos dias atuais, continua a exercer
influência de opinião no ordenamento jurídico.
Além das pesquisas com as células-tronco embrionárias, pode-se citar um
outro tema jurídico que vem sido debatido calorosamente nos dias atuais com forte
influência da opinião religiosa: a questão da legalização do aborto. Inclusive, diz-se
que muito da oposição religiosa contrária à permissão das pesquisas com célulastronco embrionárias se deu pelo fato de que tal permissivo legal abriria precedentes
jurídicos para a legalização do aborto, o que é uma tática de permissão progressiva,
como afirmou o jurista Rodrigo Rodrigues Pedroso, da Comissão de Defesa da
República e da Democracia da seção paulista da Ordem dos Advogados do Brasil
(OAB), dirigindo-se a estudantes em um debate relatado pelo jornalista Paulo
Montoia da Agência Brasil:
O que se fez com a Lei da Biossegurança é a tática de “comer a sopa pela
beirada”. Ele acredita que, se mantida a autorização na lei, será aberto
caminho para o aborto e para a clonagem de seres humanos. Isso é um
pretexto para a liberalização do aborto. E uma vez que você permita a
pesquisa de células-tronco, estará aberto o caminho também para a
136
clonagem humana terapêutica.
135
ANDRADE, Cláudia. UOL últimas notícia, ciência e saúde. STF aprova pesquisas com célulastronco embrionárias. Disponível em:
<http://cienciaesaude.uol.com.br/ultnot/2008/05/29/ult4477u692. jhtm>. Acesso em: 26 abr. 2009.
136
MONTOIA, Paulo. Agência Brasil. Decisão do STF sobre células-tronco pode ampliar debate
sobre aborto, afirmam juristas. Disponível em:
<http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2008/03/04/ materia.2008-03-04.8895409735/view>. Acesso
em: 26 abr. 2009.
103
A questão do aborto é antiga no Brasil, e até hoje movimentos feministas e
também de outras áreas logram obter a descriminalização do aborto. No entanto, o
Estado brasileiro em sua Constituição Federal garante a proteção do direito à vida, e
pune, conforme o Código Penal, a realização de aborto, sendo ele consentido ou
não pela mãe. Tal posicionamento, como já abordado por este trabalho, vem das
ideologias religiosas, que consideram a vida como maior bem do ser humano,
gozando de dignidade desde a sua concepção no útero materno até a sua morte
natural. Tanto para o Estado brasileiro quanto para a Religião, a vida humana intrauterina não se difere da vida humana personalizada. No entanto, no Direito
brasileiro, o Código Penal não pune certos tipos de aborto, como o “aborto
necessário” e o “aborto no caso de gravidez resultante de estupro”, não obstante
seja necessário esclarecer que é apenas uma excludente de punibilidade, e não de
antijuridicidade, ou seja, o aborto ainda se constitui no Brasil como crime em
qualquer situação.
Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico:
Aborto necessário
I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;
Aborto no caso de gravidez resultante de estupro
II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de
consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.
Apesar de grande parte das opiniões religiosas protestantes possuir essa
mesma tolerância com relação ao chamado “aborto necessário”137, o mesmo não
ocorre com a opinião da Igreja Católica, que condena qualquer tipo de prática
abortiva. “A Igreja Católica [sic] baseada na afirmativa de Santo Agostinho de que o
aborto é dos crimes o mais odioso, vez que é praticado contra um ser que não pode
se defender, não o justifica em nenhum caso e nem mesmo acolhe o chamado
aborto terapêutico”.138 Quanto ao aborto por motivo de gravidez resultante de
estupro, tanto a doutrina protestante quanto a católica consideram tal atitude
reprovável e condenável, posto que acreditam na proteção irrestrita da vida humana,
na superação dos traumas humanos pela força divina, e na suportação dos fardos
como vocação de vida cristã, como se observa a seguir:
137
Ver discurso do Pr. Silas Malafaia. (MERTON, H. K. Pastor evangélico fala sobre aborto.
Disponível em: <http://artedartes.blogspot.com/2009/03/pastor-evangelico-fala-sobre-aborto.html>.
Acesso em: 26 abr. 2006).
138
ARAÚJO, Luis Ivani de Amorim. Direito Internacional Penal. Delicta Iuris Gentium. Rio de
Janeiro, RJ: Editora Forense, 2000. p. 89.
104
A postura das igrejas protestantes em geral (batista, luterana, metodista,
presbiteriana, episcopal e unitária) parece ser um pouco menos rígida que a
da Igreja Católica, uma vez que admite o aborto terapêutico, embora jamais
encare o aborto como método de controle da natalidade. De qualquer forma,
dá-se grande importância à vida da mãe, devendo a questão ser resolvida
139
entre médico, pastor e paciente.
A mulher brutalizada pelo estupro, não é uma criminosa, é apenas uma
infeliz vítima de crime hediondo, mas quando decide provocar o aborto, ela
assume também o ônus da culpa pela eliminação da segunda vítima, que é
uma criança que não pediu para estar envolvida nesta desgraça toda. O
trauma pode ser tratado com o competente acompanhamento médico e
psicológico, e, simultaneamente com ajuda espiritual da igreja, através da
140
comunhão, oração e orientação espiritual, ministrada por quem de direito.
Então disse Jesus aos seus discípulos: Se alguém quiser vir comigo,
renuncie-se a si mesmo, tome a sua cruz e me siga. Porque aquele que
quiser salvar a sua vida, perdê-la-á, mas aquele que tiver sacrificado a sua
141
vida pela minha causa, recobra-la-á. (Mt 16, 24-25) .
O caminho da perfeição passa pela cruz. Não existe santidade sem
renúncia e sem combate espiritual. O progresso espiritual envolve ascese e
mortificação, que levam gradualmente a viver na paz e na alegria das bemaventuranças: Aquele que vai subindo jamais cessa de progredir de começo
em começo, por começos que não têm fim. Aquele que jamais cessa de
desejar aquilo que já conhece. (Catecismo da Igreja Católica, §2015, p.
532).
Os pais devem considerar seus filhos como filhos de Deus e respeitá-los
como pessoas humanas. Educar os filhos no cumprimento da Lei de Deus,
mostrando-se eles mesmos obedientes à vontade do Pai dos Céus.
(Catecismo da Igreja Católica, §2222, p. 580).
Desde o século I, a Igreja afirmou a maldade moral de todo aborto
provocado. Este ensinamento não mudou. Continua invariável. O aborto
direto, quer dizer, querido como um fim ou como um meio, é gravemente
contrário à lei moral: Não matarás o embrião por aborto e não farás perecer
o recém-nascido. Deus, senhor da vida, confiou aos homens o nobre
encargo d preservar a vida, para ser exercido de maneira condigna ao
homem. Por isso a vida deve ser protegida com o máximo cuidado desde a
concepção. O aborto e o infanticídio são crimes nefandos. (Catecismo da
Igreja Católica, §2271, p. 592).
O diagnóstico pré-natal é moralmente licito "se respeitar a vida e a
integridade do embrião e do feto humano, e se está orientado para sua
salvaguarda ou sua cura individual... Está gravemente em oposição com a
lei moral quando prevê, em função dos resultados, a eventualidade de
provocar um aborto. Um diagnóstico não deve ser o equivalente de uma
sentença de morte". (Catecismo da Igreja Católica, § 2274, p. 593).
Assim, o aborto é prática ilícita tanto em âmbito religioso quanto em âmbito
jurídico, mesmo que haja tolerância religiosa nas doutrinas protestantes em alguns
casos específicos e que haja previsão jurídica de excludente de punibilidade em dois
casos específicos no Direito brasileiro. No entanto, a discussão ainda se faz atual
139
ALVARENGA, Augusta T. de. SCHOR, Néia. O aboto: um resgate histórico e outros dados.
Disponível em: <http://www.fsp.usp.br/SCHOR.HTM>. Acesso em: 26 abr. 2009.
140
VENTURA, Paulo. Os evangélicos e o aborto. Disponível em: <http://pt.shvoong.com/
humanities/religious-studies/1806244-os-evang%C3%A9licos-aborto/>. Acesso em: 26 abr. 2009.
141
Bíblia Sagrada. Evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus, capítulo 16, versículos 24 e 25.
73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 1304.
105
pelo fato de existirem tendências que visam amplificar a permissão do aborto,
legalizando sua prática sob argumentos que tangem a questão da saúde pública,
etc. Atualmente, entraram em pauta de discussão da Comissão de Seguridade
Social e Família (CSSF) da Câmara dos Deputados dois projetos de lei sobre o
aborto, o PL nº 1135/91 e o PL nº 176/95, ambos visando lograr a descriminalização
do aborto em geral. O atual Ministro da Saúde, o Sr. José Gomes Temporão, é a
favor da descriminalização do aborto, pois afirma ter dados estatísticos que há no
Brasil inúmeras mortes de mulheres que se submetem a procedimentos abortivos
ilegais. A descriminalização seria uma questão de saúde pública que visa evitar a
quantidade de óbitos devido a tratamentos inadequados. Em seu discurso,
Temporão diz: “Quem não reconhece que aborto é questão de saúde pública está
delirando” e “não se pode prescrever dogmas de uma religião para a sociedade
inteira”.142
No entanto, católicos e protestantes se unem, cada vez mais, em prol da
defesa da vida contra a prática do aborto. Realizam passeatas, movimentos
ecumênicos de protesto contra tais projetos de lei, etc. Para reforçar a opinião da
Igreja Católica sobre o assunto, a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil)
deram à campanha da fraternidade do ano de 2008 o tema “Fraternidade e defesa
da vida”, sob o lema “Escolhe, pois, a vida”, retirado de uma passagem bíblica do
livro Deuteronômio, capítulo 30, versículo 19. O secretário-geral do órgão, Dom
Odilo Scherer, enviou carta à presidência da República, órgão exercido na época
pelo Sr. Luiz Inácio Lula da Silva, esclarecendo que “proteger, defender e promover
a vida é tarefa primordial do Estado, sobretudo a vida indefesa e frágil, como a dos
seres humanos ainda não nascidos”.143 De acordo com pesquisa do instituto
Datafolha, divulgada em 2007, a maioria da população brasileira, representada por
87% dos entrevistados, se posiciona contra a legalização do aborto, abrangendo
todas as diferentes classes sociais e de variados níveis de escolaridade, indicando
que a oposição não se restringe ao âmbito teológico do alto clero, mas envolve
também a religiosidade e a moral populares. O maior apoio à legalização é
observado nas famílias com renda superior a 20 salários mínimos por mês,
indicando que os dados do Ministério da Saúde sobre os alarmantes índices
142
GONÇALVES JÚNIOR, Valter. Posição marcada. Católicos e evangélicos se unem contra a
legalização do aborto. Disponível em:
<http://www.cristianismohoje.com.br/retrancas/Cat%C3%B3licos+e+evang%C3%A9licos+se+unem+c
ontra+o+aborto/33586/rss>. Acesso em: 26 abr. 2006).
143
Ibidem.
106
precários da saúde pública talvez não diga respeito exatamente à parte da
população mais carente.144
Ainda no mesmo sentido, vale ressaltar que a influência do pensamento
religioso nesse assunto é tão grande que mobilizou vários atos sociais públicos em
prol da vida humana intra-uterina, principalmente na cidade de São Paulo, que
possui uma grande concentração de pessoas e a maior densidade populacional
urbana do país, como pôde ser observado na publicação dos folders seguintes:
Figura 2 – Folder de convocação para o 3º Ato Público em
defesa da vida, que foi realizado na cidade de São Paulo
em 28 de março de 2009.
Fonte: Imagem retirada do Portal da Família. Disponível em:
<http://www.portaldafamilia.org.br/eventos/vidadefesa2009.s
html>. Acesso em: 26 abr. 2009.
144
Ibidem.
107
Figura 3 – Verso do folder de convocação para o 3º Ato Público em defesa da vida,
que foi realizado na cidade de São Paulo em 28 de março de 2009.
Fonte: Imagem retirada do Portal da Família. Disponível em: <http://www.portalda
familia.org.br/eventos/vidadefesa2009.shtml>. Acesso em: 26 abr. 2009.
Ainda que tais projetos de leis fossem aprovados, não faltariam proposituras
de Ações Diretas de inconstitucionalidade, uma vez que permitem a prática de
aborto em qualquer momento da gestação e que, além disso, obrigam o Sistema
Único de Saúde (SUS) e toda a rede conveniada a interromper a gravidez da mulher
que reivindicar esse tipo de intervenção, desde que o faça durante os primeiros três
meses de gestação.145 Tais projetos de leis não vão apenas contra a moral religiosa
e os bons costumes, mas afrontam também diretamente a tutela jurídica dada à vida
humana pela Constituição Federal, pelo Código Civil e pelo Código Penal.
O objetivo deste tópico 3.3 do trabalho, ao analisar esses casos polêmicos em
torno da pesquisa em células-tronco embrionárias e da descriminalização do aborto,
é evidenciar, mais uma vez, a forma como as religiões e a espiritualidade ainda
145
GONÇALVES JÚNIOR, Valter. Posição marcada. Católicos e evangélicos se unem contra a
legalização do aborto. Disponível em:
<http://www.cristianismohoje.com.br/retrancas/Cat%C3%B3licos+e+evang%C3%A9licos+se+unem+c
ontra+o+aborto/33586/rss>. Acesso em: 26 abr. 2006).
108
influenciam no ordenamento jurídico brasileiro, mesmo na atualidade onde o Estado
se diz laico. A ação das religiões promove debates, incentiva reflexões e compele a
população a tomar atitudes públicas de protesto que visem pressionar as
autoridades legislativas a fazerem valer a vontade da maioria, conforme o princípio
da democracia.
109
CONCLUSÃO
Ao chegar ao fim deste trabalho, conclui-se que a Religião e a Espiritualidade
humana são um fenômeno abrangente que invade a cultura, a forma de viver e,
principalmente, a estrutura jurídica das sociedades. Analisando o fenômeno com
mais critério, observa-se que há estreitos laços de semelhanças entre as normas
jurídicas constantes da Constituição Federal brasileira de 1988 e os princípios de
natureza religiosa, mormente os de tradição judaico-cristã ocidental. Segundo
Ferdinand Lassalle em sua teoria dos fatores reais de Poder (LASSALLE, 2008, p.
10), o Estado e seus legisladores não podem negar as raízes espirituais
profundamente instaladas na mentalidade do Povo, sob pena de se obter um Estado
ilegítimo, artificial e autoritário. Assim, apesar de o Brasil se constituir atualmente
como um Estado laico, sua legislação, devido ao decurso do processo histórico, é
profundamente marcada pela influência religiosa e espiritual, que conduz as leis
mais ou menos no mesmo senso de justiça, direito e dever que a população média
possui.
Observa-se que, por se autodenominar “a constituição cidadã”, a atual
Constituição Federal precisou abarcar todos os princípios e anseios populares
referentes à dignidade da pessoa humana que um indivíduo possui em seu próprio
território nacional. Abarcar tais princípios significou, consequentemente, não negar
as influências religiosas na produção das normas jurídicas, ainda que tal influência
não se dê de forma explícita. Conclui-se deste trabalho, portanto, que negar os
costumes e a cultura populares não foi a opção escolhida pelos legisladores
constituintes quando da confecção da Carta Magna brasileira de 1988, e que a
religião continua promovendo a reflexão jurídica também no tocante às leis
infraconstitucionais que afetam o dia a dia das pessoas.
110
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Thiago Rezende Miziara - Universidade Católica de Brasília