THIAGO RESENDE MIZIARA TEOLOGIA DO DIREITO: A INFLUÊNCIA DO FENÔMENO RELIGIOSO NA PRODUÇÃO DE NORMAS JURÍDICAS. Monografia apresentada ao curso de graduação em Direito da Universidade Católica de Brasília – UCB, como requisito parcial para a obtenção do Título de Bacharel em Direito. Orientador: Prof. Paulo Bosco de Souza. Brasília 2008 Dedico este trabalho de conclusão de curso aos meus queridos amigos de turma, Juju, Gugu, Cecéu, Léo, Paty, Caroca, Lara, Michelly e Ethi, cujas presenças na faculdade tornaram as aulas de tal forma tão prazerosas que minha graduação no curso de Direito transcorreu-se na mais plena alegria, paz e contentamento. Amigos, foi um prazer ter compartilhado essa etapa de minha vida com vocês. AGRADECIMENTO Agradeço primeiramente a Deus, que é a fonte de todo o meu saber, inteligência, fé e conhecimento, por ter me possibilitado enfrentar e vencer mais esse desafio de minha vida. Agradeço aos meus pais, Arnaldo e Helena, que não mediram esforços para me apoiar no meu desenvolvimento acadêmico, oferecendo também todo o amor e carinho de que eu muito precisei. Agradeço aos meus irmãos, Michelle e Arnaldo Júnior, cujos companheirismos faziam-me sentir importante, suscitando em mim a confiança necessária para seguir meu caminho sem vacilar. E, por fim, agradeço à minha querida noiva, Juliana, que em todos os momentos de nossos estudos foi a minha inspiração para o meu progredir, tanto acadêmico quanto pessoal e espiritual. “A Moralidade e o Direito nasceram quando o homem deixou de viver pela Alma do Universo.” (Lao-Tsé) RESUMO Referência: MIZIARA, Thiago Resende. Teologia do Direito: A influência do fenômeno religioso na produção de normas jurídicas. Defesa em 2009. 117 folhas. Monografia de curso de graduação em Direito – Universidade Católica de Brasília UCB, Brasília, 2009. A presente monografia versa sobre a análise do fenômeno religioso e suas influências na produção de normas jurídicas reguladoras da sociedade, principalmente as referentes aos Direitos Humanos. Dessa forma, o trabalho propõe o vislumbre de um Direito altamente arraigado por normas de caráter moral e religioso, bem como o vislumbre da forma que essas normas estão conectadas às normas de caráter jurídico. E mediante essa análise, o trabalho analisará o desenrolar de um paradoxo entre o uso dos princípios religiosos e morais como fonte de Direito e o princípio anti-religioso em um país que se autodenomina laico, mas que, segundo Ferdinand Lassalle em sua teoria dos fatores reais de Poder, não pode, negar suas raízes espirituais tão bem instaladas na mentalidade do Povo e dos seus legisladores. A Religião e a Espiritualidade humana são um fenômeno abrangente que invade a cultura, a forma de viver e, principalmente, a estrutura da sociedade. Mesmo a Constituição Federal se utiliza de elementos religiosos para estruturar a sociedade, pelo simples fato de que a própria sociedade já se encontra estruturada sob normas de ordem religiosa e moral, algo que os filósofos do Direito gostam de chamar de Jusnaturalismo Divino. O povo, como fator real de Poder, não pode ser contrariado no tocante às normas mais intrinsecamente naturais a todos os seres humanos, sob pena de se obter um Estado altamente autoritário e artificial. Palavras-chave: Direitos Humanos, Teologia, Religião, Direito Natural, Filosofia do Direito. ABSTRACT Reference: MIZIARA, Thiago Resende. Theology of Rights: The influence of the religious phenomenon in the construction of Right rules. Defense in 2009. 117 pages. Monografy of the Law Graduation Course – Catholic University of Brasília, Brasília, 2009. The present monografy says about the analysis of the religious phenomenon and its influences over the construction of Right rules that regulates the human society, especialy about the rules of Human Rights. In this way, this assignment proposes a sight of a Law very deep-rooted of religious and moral rules, as the glimmer of the conection between that religious rules and the legal rules. By this analysis, this assignment offers the analysis of a paradox between the use of religious and moral principles as the Source of the Law and the antireligious principle in a country that defines itself as a laical country, which, according to Ferdinand Lassalle on his real factors of Power theory, cannot deny its espiritual roots so deep implanted in the Mind of the Nation‟s People and its Parlamentars. The Religion and the human Spirituality are a wide-ranging phenomena that trespass the culture, the human way of life and, specialy, the structure of Society. Even the Federal Constitution makes use of religious elements to structure the Society by the simply fact that the Society itself is already structured over the religious and moral rules, which the philosophers like to call the “Divine Natural Law” ou simply “Natural Right”. Being a real factor of Power, the People of Nation cannot be opposed at the most deep natural rules of the human being, otherwise the country would become an artificial and authoritative State. Keywords: Human Rights, Theology, Religion, Natural Law, Rights Philosofy. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 8 1. DO FENÔMENO RELIGIOSO. ............................................................................. 9 1.1 . O QUE É RELIGIÃO? .................................................................................. 9 1.2. O FENÔMENO RELIGIOSO NAS SOCIEDADES. ...................................... 17 1.2.1. OS MITOS. ........................................................................................... 17 1.2.2. AS RELIGIÕES. .................................................................................... 19 1.2.2.1. HINDUÍSMO. .......................................................................... ...20 1.2.2.2. BUDISMO.................................................................................. 21 1.2.2.3. CONFUCIONISMO.................................................................... 26 1.2.2.4. TAOÍSMO. ................................................................................. 28 1.2.2.5. XINTOÍSMO. ............................................................................. 30 1.2.2.6. JUDAÍSMO. ............................................................................... 31 1.2.2.7. CRISTIANISMO. ....................................................................... 33 1.2.2.8. ISLAMISMO. ............................................................................. 35 1.3. A RELIGIÃO E O ESTADO MODERNO. ..................................................... 38 2. DO DIREITO NATURAL. .................................................................................... 48 2.1 . O QUE É JUSNATURALISMO. .................................................................. 48 2.2. OS TEÓRICOS DO DIREITO NATURAL..................................................... 50 2.2.1. TEÓRICOS DO JUSNATURALISMO CLÁSSICO. ............................... 50 2.2.1.1. ARISTÓTELES. ......................................................................... 50 2.2.1.2. CÍCERO. ................................................................................... 52 2.2.1.3. SANTO AGOSTINHO................................................................ 53 2.2.1.4. SÃO TOMÁS DE AQUINO. ....................................................... 54 2.2.2. TEÓRICOS DO JUSNATURALISMO RACIONAL. ............................... 55 2.2.2.1. GRÓCIO. ................................................................................... 55 2.2.2.2. THOMAS HOBBES. .................................................................. 56 2.2.2.3. LOCKE. ..................................................................................... 57 2.2.2.4. MONTESQUIEU. ....................................................................... 58 2.2.2.5. ROSSEAU. ................................................................................ 59 2.2.2.6. KANT. ........................................................................................ 60 2.3. O JUSNATURALISMO E O DIREITO ATUAL. ............................................ 61 3. DA INFLUÊNCIA DA RELIGIÃO NO PANORAMA JURÍDICO ATUAL. ........... 62 3.1 . OS DIREITOS HUMANOS. ........................................................................ 62 3.2. A NORMA JURÍDICA E A MORAL RELIGIOSA. .......................................... 68 3.3. OS EFEITOS DA RELIGIÃO NO DIREITO ATUAL. .................................... 99 CONCLUSÃO ......................................................................................................... 109 REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 110 8 INTRODUÇÃO Este trabalho de monografia discorre sobre a influência do fenômeno religioso e das normas de caráter moral na produção de normas jurídicas positivadas e na manutenção da estrutura da sociedade. A discussão acadêmica sobre esse tema se mostra de vital importância pelo fato de que se tornam cada vez mais constantes os debates e conflitos de posicionamento entre as diversas camadas populares e influentes da sociedade frente a projetos de leis que violam a consciência moral das pessoas e os bons costumes da população brasileira. O propósito deste trabalho é esclarecer que tais costumes culturais e normas de caráter moral são, em última análise, subproduto de normas intrínsecas à própria natureza do ser humano, devendo ser respeitadas. Muitos filósofos encontram a fonte dessa natureza intrínseca ao ser humano nas diversas manifestações de expressão religiosa e espiritual, formulando teorias jusnaturalistas que podem ser denominadas genericamente de “Direito Natural Divino”. O primeiro capítulo versa sobre os conceitos daquilo que vem a ser chamado de Religião, bem como sobre a forma que esse fenômeno adquire em sua relação entre a essência natural do ser humano e a formação da estrutura das civilizações e países, abordando questões referentes ao Estado religioso, ao conceito de Sagrado como fundamentação jurídica e ao advento do Estado laico, numa abordagem histórica que se faz necessária desde os primórdios até a Idade Contemporânea. O segundo capítulo trata dos conceitos e concepções tanto tradicionais quanto racionalistas a respeito do Jusnaturalismo, dando enfoque no aspecto transpessoal e religioso da experiência da vida humana e na sua relação com a organização da vida em sociedade. No terceiro e último capítulo, será abordada a questão dos Direitos Humanos, sua natureza e sua aplicação no Direito positivado brasileiro, traçando-se um paralelo entre a moralidade religiosa e a dignidade que os Direitos Humanos constantes da Constituição Federal de 1988 pretendem preservar. Além disso, serão demonstrados casos concretos que exemplifiquem a influência do fenômeno religioso na produção de normas jurídicas, bem como a influência dos efeitos da religião na estruturação política do Estado Moderno. 9 1. DO FENÔMENO RELIGIOSO. 1.1 . O QUE É RELIGIÃO? A busca pela compreensão do que representa o ser humano para o planeta Terra passa pela compreensão do que vem a ser o ser humano para si mesmo e de qual vem a ser a sua relação com o ambiente onde vive. O homem, como ser criativo, histórico e cultural, modifica e organiza o local no qual interage. Esse local, por muito tempo, variou conforme o homem ia se adaptando ao seu modus vivendi1, durante o período pré-histórico marcado pelo nomadismo. No entanto, com a invenção das primeiras ferramentas, o ser humano passou a ser um animal cada vez mais sedentário, fixando moradias e se aglomerando em tribos ou pequenas aldeias. Esse fenômeno deu origem à sociedade e ao Direito, ainda que de forma bastante rudimentar. E é a partir desse momento que a Religião passa a ter importância para o ser humano2. Com a mudança do estilo de vida nômade para o de vida sedentário, o homem passou a especular as suas origens, a sua própria natureza, o que ele era, de onde vinha, e para onde iria. Isso tudo com o propósito de dominar a Natureza e organizar a comunidade em que vivia. Não se sabe se a origem da Religião deu-se pela necessidade de o homem se autoconhecer, ou se se deu pela necessidade de se auto-organizar em sociedades, ou se pela necessidade de ambas. Mas é quase unânime, entre os pesquisadores, que a origem da Religião coincida com a da civilização primitiva e com a das primeiras ferramentas3. Portanto, o fenômeno religioso e o fenômeno do Direito como regulador da sociedade se misturam e se confundem numa mesma identidade ao analisarmos as origens do ser humano. Não se pode dizer, pois, que a Religião surgiu desvinculada do surgimento da sociedade 1 Modus vivendi: expressão do latim que significa “modo de vida” ou “modo de viver”. (Wikipédia, a enciclopédia livre. Modus vivendi. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Modus_vivendi>. Acesso em: 25 fev. 2009). 2 Sobre a transição do nomadismo para o sedentarismo e a origem da sociedade coletiva, do Direito e da Religião, ver: MORAES, José Geraldo Vinci de. Caminhos das Civilizações. História integrada geral e Brasil. São Paulo, SP: Atual Editora, 1998. pp. 8 e 9. 3 Sobre a necessidade de dominar a natureza, as origens das primeiras tecnologias e da Religião, coincidindo com o fenômeno da sedentarização, ver: BRAICK, Patrícia Ramos. MOTA, Myriam Becho. História das cavernas ao terceiro milênio. São Paulo, SP: Editora Moderna, 1997. pp. 5 e 6. 10 e do Direito, bem como não se pode dizer que tal separação exista, totalmente ou efetivamente, nos dias atuais, como há de se demonstrar nos capítulos subsequentes deste trabalho. Ao se dizer que a Religião tenha surgido junto com os primeiros aglomerados civilizatórios, não se quer dizer que, com isso, a espiritualidade humana foi inventada ou tenha surgido apenas nesse momento. Muito pelo contrário, a espiritualidade humana é inerente ao próprio ser do homem, e talvez ninguém saiba dizer se houve uma origem para isso, ou se o homem sempre possuiu a espiritualidade como característica intrínseca à sua espécie4. Deve-se, portanto, fazer uma clara distinção entre o que é espiritualidade e o que vem a ser Religião. A espiritualidade é o cerne da alma humana. É uma característica intrínseca a todo ser humano, independente de idade histórica ou evolução de espécie. É uma predisposição que o ser humano tem de se conectar e permanecer junto a algo transcendente à sua condição animal. É, portanto, mais do que um fenômeno pessoal ou social. É uma característica essencial sem a qual o ser humano perde sua própria definição. É o que distingue o ser humano dos demais animais. É a alma. A espiritualidade humana é precedente a qualquer forma de cultura ou de arte, a qualquer forma de regimento ou de Direito. Sendo assim, a espiritualidade precede também à Religião5. O que se diz é que a espiritualidade era uma condição preexistente quando da formação do próprio ser humano. Dessa forma, era uma condição preexistente a qualquer modus vivendi. Com o passar dos séculos, a espiritualidade humana foi perdendo importância à medida que o homem foi se tornando sedentário. O modo de vida sedentário foi ocultando, mais e mais, a expressão da alma humana. O homem perdia identidade e não encontrava mais sentido para sua existência. Ao mesmo tempo em que perdia a capacidade de se autocompreender, perdia a 4 Antropologicamente, segundo George Brown, pode-se dizer que a espiritualidade “traduz uma dimensão do homem, enquanto é visto como ser naturalmente religioso, que constitui, de modo temático ou implícito, a sua mais profunda essência e aspiração”. (Wikipédia, a enciclopédia livre. Espiritualidade. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Espiritualidade>. Acesso em: 25 mar. 2009). 5 “Espiritualidade é um estado de consciência; é reconhecer em si a Vida, e a mesma Vida em tudo e em todos. É consciência não-condicionada pela mente. É consciência livre da mente, para ser o que é: não aquilo que pensamentos e crenças dizem ser. As palavras em um ensinamento espiritual apenas apontam para o estado de consciência essencial do ser humano. Alcançado esse estado de consciência, o ser humano vive a vida na Terra a partir dessa liberdade, expansividade e maestria sobre a realidade interna e externa, pois está alinhado com a essência daquilo que o criou: a vasta inteligência criativa que permeia e dá Vida a todo o Universo.” (Wikipédia, a enciclopédia livre. Espiritualidade. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Espiritualidade>. Acesso em: 2 abr. 2009). 11 capacidade de compreender sua nova situação e a sua relação com os outros. A sua nova condição de sedentário mudou a forma de se relacionar com a natureza e com a propriedade. O homem simplesmente não sabia como lidar com estas novas realidades emergentes: a sociedade coletiva sedentária e a propriedade privada. Era necessário respostas. Era necessária uma ordem6. Não contrariando as tendências pendulares, quando algo é totalmente suprimido, um movimento de retorno é iniciado no sentido de se buscar alguma característica do status quo ante7 que seja capaz de restabelecer o equilíbrio. Foi o caso ocorrido por ocasião da origem das civilizações. Ao se agrupar em tribos e sociedades, o homem, que já havia abandonado quase que completamente sua vida nômade, sua solitude e sua espiritualidade, viu-se questionado por uma série de perguntas existenciais, as quais as respostas dariam sentido à sua própria natureza, controlando e regendo seu novo modo de vida em sociedade. A necessidade de se orientar na vida é fundamental para os seres humanos. Não precisamos apenas de comida e bebida, de calor, compreensão e contatos físicos; precisamos também descobrir por que 8 estamos vivos. Foi questão de necessidade. O homem precisava de respostas. Precisava reencontrá-las. Precisava de algo que pudesse controlar a sociedade, algo que servisse para si mesmo e para os outros. Assim, surgiu a Religião. Dada a importância da busca pelo conceito de Religião, faz-se mister abordar esse tema com mais profundidade. A Religião (do verbo religare, que significa “religar” em latim) se define como um movimento cultural ou forma de expressão humana que religa um estado atual ao estado preexistente da condição humana. É um movimento de retorno às origens. Busca-se a verdadeira natureza originária do homem9. Segundo os filósofos do Jusnaturalismo, como será demonstrado mais adiante no trabalho, essa condição preexistente é tão essencial e natural no homem que é capaz de manter a paz pessoal e social em qualquer situação. Segundo as 6 VICENTINO, Cláudio e DORIGO, Gianpaolo. História para o ensino médio: História Geral e do Brasil. Volume único, São Paulo: Editora Scipione, 2001. p. 24. 7 Status quo ante: expressão do latim que significa “situação ou condição anterior”. (Wikipedia, a enciclopédia livre. Status quo ante. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Status_quo_ante>. Acesso em: 25 fev. 2009). 8 GAARDER, Jostein; HELLERN, Victor; NOTAKER, Henry. O Livro das Religiões. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 8. 9 Sobre as definições de Religião mais aceitas no meio científico, ver: BENTHO, Esdras Costa. Teologia e Graça. Disponível em: <http://teologiaegraca.blogspot.com/2007/08/conceito-e-definio-dereligio-as.html>. Acesso em: 2 abr. 2009. 12 religiões, o homem, no início de sua existência, vivia na condição original de paz e harmonia. Vivia unido ao seu Criador, um Deus transcendente e absoluto. Aos poucos, o ser humano foi perdendo essa condição de unidade e caindo no dualismo e no separatismo. Caindo numa condição de escravidão de seu próprio novo modo de vida: a noção do “meu”, da “propriedade”, etc. A “queda” foi uma questão de escolha. O homem foi deixando de lado sua espiritualidade à medida que se tornava cada vez mais sedentário, mais materialista. Tal é a interpretação racional e teológica para a metáfora do Gênesis bíblico10. A Religião seria o instrumento capaz de religar o ser humano decaído à sua condição anterior, à sua condição de unidade com seu Deus-Criador, à sua liberdade. A Religião é, portanto, o fenômeno cultural que se diz capaz de religar a pessoa à sua paz e à sua harmonia preexistentes em seu antigo estilo de vida. É uma proposta de ordem social atraente: viver de modo novo, como se vivesse antigamente. Aproveitar o novo modo de vida, vivenciando, ao mesmo tempo, aquilo que se vivenciava no antigo modo de vida. É uma proposta de resgate capaz de, ao mesmo tempo, alimentar as respostas existenciais inerentes a cada pessoa e de regular a paz social entre as pessoas de um mesmo convívio. A ordem social só seria possível num universo de significação humana, onde há sentido existencial para todas as coisas, onde a relação do homem com as demais coisas do planeta tivesse um significado, onde há respostas para tudo. Como esclarece Rubem Alves, “A Religião aparece como a grande hipótese e aposta de que o universo inteiro possui uma face humana.”11 No mesmo sentido, Luckmann prega que “Religião é o fenômeno que proclama que toda realidade é portadora de um sentido humano e invoca o cosmos inteiro para significar a validade da existência humana” (apud ALVES, 1999, p. 34). Em outras palavras, a Religião surgiu como uma “Ordem social”, um tipo de Estado primitivo, um tipo de organização civilizatória. E assim permaneceu por muito tempo. Religião e “Ordem social” se confundiam e se complementavam. Um não existia sem o outro. 10 “Gênesis 1 a 3 não pode ser lido com um relato histórico empírico e pontual que descreve os primeiros dias da humanidade. Trata-se de uma “parábola” como uma metáfora narrativa que exprime uma substância histórica profunda, porém, sem estabelecer referências pontuais a personagens, lugares e tempos. Em roupagem mítica se reflete sobre a realidade histórica vivenciada pelo povo da Bíblia. Não se trata de uma biografia de Adão e Eva.” (MOREIRA, Gilvander (Frei). Criação de um outro mundo. Disponível em: <http://www.gilvander.org/genesisrecriacao.htm>. Acesso em: 2 abr. 2009). 11 ALVES, Rubem. O que é Religião? 6. ed. São Paulo, SP: Edições Loyola, 1999. p. 34. 13 No entanto, apesar de toda a influência das religiões na história da humanidade, de toda influência no surgimento da ordem social e do Direito primitivo, que culminariam com a formulação da noção de Estado moderno, para muitos pesquisadores e cientistas atuais, negar a existência da Religião tem sido uma forma de firmar o ser humano como um fenômeno objetivo no Universo, tirando dele a significação espiritual e simbológica em prol do avanço tecnológico. A ciência diz que o homem não precisa de respostas míticas ou religiosas para se autocompreender. Ele só precisa se enxergar como um fato objetivo no universo. Somente fatos objetivos, desprovidos de valor e de significados especiais, podem ser estudados e analisados pela ciência.12 De acordo com alguns cientistas, o homem só conseguiria realmente se conhecer se negasse a existência e a importância da ordem religiosa para si e para a sociedade. Durante séculos, o ateísmo e a negação da religião como ordem social foram vistos como algo necessário ao avanço da civilização. Muitas vezes, o avanço científico só foi possível ao se suprimir a ordem imposta pelos valores religiosos e pela ordem regida pela moralidade espiritual e natural. A ciência precisou abdicar dos valores religiosos para poder analisar o Universo de forma objetiva, como se fosse apenas uma coisa, vazia de significação. Se tal postura de negação foi realmente de ocorrência imprescindível para o avanço da humanidade, não é especulado pelos filósofos (nem deveria ser para os demais cientistas). A Filosofia acredita que o fato de algo existir ou não objetivamente não tem a ver com a sua significação ou com a sua valoração. Muito menos com a sua negação. Para ela, o que importa é se o fato tem repercussão ou não, se tem eficácia ou não, se cumpre seu objetivo social ou não. A análise filosófica é mais profunda. Não calcula, nem delimita as coisas em certo ou errado, em necessário ou desnecessário. Muito menos “coisifica” e desqualifica de valores humanos seu objeto de estudo. Ela apenas se preocupa se determinado fenômeno realmente tem peso e importância para a sociedade. E se ele tem peso, não pode ser negado. A Ciência poderia até dizer que as Religiões são falsas ou verdadeiras, mas nunca dizer que são inexistentes. Pois não deveria importar, para as Ciências ou para a Filosofia, a taxação das Religiões em falsas ou verdadeiras. O que deveria 12 Sobre o dilema entre ciência e religião, ver: MERTON, H.K. Contestações religiosas e racionais. Disponível em: <http://artedartes.blogspot.com/2009/03/constestacoes-religiosas-e-racionais.html>. Acesso em: 2 abr. 2009. 14 importar é que, mesmo de forma abstrata, a Religião também é um fato social. E como fato social, só se pode dizer que é existente. Não se pode negá-la. A Religião é um fato de grande peso social para a história da humanidade. Ela trouxe, e ainda traz, algum tipo de ordem social. Nesse aspecto, Durkhein acredita que, além de dever ser sempre considerada existente, religião alguma pode ser considerada como falsa em aspecto bruto, e nenhuma pode ser negada, pois sempre traz alguma utilidade social, sempre funciona e cumpre os objetivos a que se propõe. Sobre isso, Durkhein comenta que: [...] a ciência, em princípio, nega a religião. Mas a religião existe. Constituise num sistema de fatos dados. Em suma, ela é uma realidade. Como a ciência poderia negar tal realidade? Não existe religião alguma que seja falsa. Ela é uma instituição, e nenhuma instituição pode ser edificada sobre o erro ou uma mentira. Se ela não estivesse alicerçada na própria natureza das coisas, teria encontrado nos fatos uma resistência sobre a qual não poderia ter triunfado. Nosso estudo descansa inteiramente sobre o postulado de que o sentimento unânime dos crentes de todos os tempos não pode ser puramente ilusório. Admitimos que essas crenças religiosas descansam sobre uma experiência específica cujo valor demonstrativo é, sob um determinado ângulo, em nada inferior ao das experiências científicas, muito embora sejam diferentes. (apud ALVES, 1999, pp. 59 e 60). O que explica a necessidade primária que as ciências tiveram de negar as religiões é o simples fato de que as religiões representavam a ordem social. É só mais uma evidência que corrobora que a Religião foi, e ainda é, uma força coatora que atua na civilização, uma força que impede o homem de agir conforme seus desejos íntimos e desordenados, uma força que impõe que os homens convivam segundo um preceito comum a todos. A ciência sempre precisou de liberdade total para obter êxito e avanços em seus experimentos. E ainda hoje é assim. Como será abordadeo no capíltulo 3 deste trabalho, a ciência, quando precisa se inovar, costuma bater de frente com alguma norma moral de caráter religioso. E essa norma é impositiva, é uma norma de ordem social. Ainda hoje a estreita relação entre Religião e Direito pode ser confundida quando aspectos muito naturais e básicos são colocados em xeque, em ameaça. Discussões sobre a legalização do aborto, sobre a pesquisa irrestrita com células-tronco, por exemplo, passam pelo crivo da dignidade da pessoa humana e pelo direito à vida, valores considerados inalienáveis ao ser humano pela força da espiritualidade e da moral religiosa. Hoje em dia, tais direitos possuem até mesmo status constitucional no ordenamento jurídico brasileiro. É um exemplo de como a espiritualidade adentra o âmbito da ordem social e da 15 normatização jurídica positivada. Segundo a moral religiosa, direitos fundamentais como esses são vistos como de relação intrínseca ao próprio ser humano. Não podem ser simplesmente ignorados, suprimidos, desrespeitados, mesmo que isso signifique estagnação científica. É aí que entra o discurso da Religião como forma de Jusnaturalismo, ou de Direito Natural. Algumas coisas precisam ser respeitadas, sob pena de se obter um Estado autoritário e artificial, que não corresponde aos anseios de seu povo. A ciência precisou (e ainda frequentemente precisa) negar a religião pelo fato de que ela representava (e ainda de certa forma representa) algum tipo de ordem coatora13. A ciência deseja a liberdade irrestrita em prol do avanço. E o desejo é aquilo que precisa ser freado. Não há necessidade de normas que impeçam aquilo que não é desejado. Não se faz mister, por exemplo, proibir que as pessoas comam terra, pois ninguém deseja isso. No entanto, alguns podem desejar tirar a vida de um nascituro inocente (aborto), e isso não pode ser permitido. É um desejo íntimo que infringe uma ordem coletiva, uma convenção moral que serve para todos: direito à vida. A pessoa quer fazer o aborto, mas seria um crime. Não pode ser realizado. “O desejo grita: „Eu quero!‟ A sociedade responde: „Não podes!‟, „Tu deves‟. O desejo procura o prazer. A sociedade proclama a ordem”. (ALVES, 1999, p. 89). Como dito no início deste capítulo, não se sabe quando exatamente a religião surgiu, mas se sabe que surgiu como resposta à necessidade de o homem se autoconhecer, de obter respostas às dores existenciais, de atribuir sentidos ao universo, de manipular a natureza e o ambiente onde ele passou a viver, estabelecendo uma ordem social. A Religião surgiu como necessidade de imposição de uma ordem, confundindo-se, nas origens, com a noção que temos hoje daquilo que vem a ser o Direito. O homem, adquirente de uma nova forma de vida, uma forma de vida sedentária e materialista, precisou inventar uma normatização que evitasse a instauração do caos advinda dos desejos incontroláveis da psique humana. Para a Psicanálise, ciência concebida por Freud, a Religião é uma das muitas instituições capazes de manter a ordem na sociedade, servindo como válvula de escape das crises internas e dos anseios humanos, por meio de um processo psicológico chamado “sublimação”, que age na repressão dos impulsos primais dos 13 Sobre a forma como as ciência, mormente o Direito, precisam negar a Religião, ver a concepção historicista de Hegel em: COMPARATO, Fábio Konder. Ética. Direito, Moral e Religião no mundo moderno. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2006. p. 318. 16 indivíduos.14 Além de norma coatora dos impulsos institivos, a Religião se propôs a levar o ser humano a suprimir seus desejos e a entrar novamente em contato com sua origem essencial, a espiritualidade inerente ao seu próprio ser, a sensação de se estar unido a um estado original de paz e harmonia, de “não-desejo”, de completude. Dessa forma, a Religião tornou-se uma espada de dois gumes, servindo tanto à coação e à supressão dos desejos caóticos quanto ao apaziguamento da insatisfação do ser humano ao se sentir coagido por uma ordem externa, dando alívio aos sofredores do povo, e tranquilidade e paz de espírito aos que vivem à margem da sociedade. A Religião impõe ordem, mas, paradoxalmente, também alivia tensões. Sem ela, a sociedade entraria em caos, tanto por meio dos desejos descontrolados de uns quanto pelas revoluções constantes dos sofredores marginalizados. Não poderiam ser mantidos o estilo de vida sedentário e o convívio entre os homens junto à recém surgida realidade da propriedade privada. Era questão de necessidade. “Se Deus não existisse, teria de ser inventado.”15 “Se os homens já são tão maus com a Religião, como seriam sem ela?”16. A Religião é, sim, um sofrimento social, uma forma de repressão externa, de coação aos desejos íntimos. Mas é um sofrimento que também se constitui como ordem e alívio espiritual, uma proposta de retorno ao “seio materno”, às origens, ao paraíso das “não-necessidades”, ao paraíso da completude da alma e da eterna satisfação plena. Como apregoa a célebre citação de Karl Marx, “o sofrimento religioso é, ao mesmo tempo, expressão de um sofrimento real e um protesto contra o sofrimento real. Suspiro da criatura oprimida, coração de um mundo sem coração, espírito de uma situação sem espírito: a religião é o ópio do povo.” (apud ALVES, 1999, p. 68). 14 “A Ética pede a renúncia às gratificações puramente instintuais por outras em conformidade com valores racionais transcendentes. A sublimação constitui a adoção de um comportamento ou de um interesse que possa enobrecer comportamentos que são instintivos de raiz. Um homem pode encontrar uma válvula para seus impulsos agressivos, tornando-se um lutador campeão, um jogador de football ou até mesmo um cirurgião. Para Freud, as obras de arte, as ciências, a religião, a Filosofia, as técnicas e as invenções, as instituições sociais e as ações políticas, a literatura e as obras teatrais são sublimações [...]” (COBRA, Rubem Queiroz. A Psicanálise. Disponível em: <http://www.cobra.pages.nom.br/ecp-psicanalise.html>. Acesso em: 3 abr. 2009). 15 Frase atribuída à Voltaire, importante iluminista francês da Idade Moderna. (Disponível em: <http://www.mnecho.com/frases/religiao.htm>. Acesso em: 3 abr. 2009). 16 Frase atribuída à Benjamim Franklin, um dos muitos líderes da Revolução Americana. (Disponível em: <http://www.mnecho.com/frases/religiao.htm>. Acesso em: 3 abr. 2009). 17 1.2. O FENÔMENO RELIGIOSO NAS SOCIEDADES. 1.2.1. OS MITOS. O Fenômeno religioso é bastante abrangente, englobando os povos de todas as culturas, mesmo as mais primitivas. Como já dito, a religião é um fenômeno inerente à própria sociedade. Onde houver convívio entre dois ou mais humanos, se fará mister algum tipo de ordenamento, ainda que seja um ordenamento moral e principiológico. Isso serve para evitar que o homem seja senhor de sua própria vontade, ou seja, que seu interesse pessoal se sobressaia ao direito alheio. Serve para tornar possível o convívio social, sem que haja conflitos ou desavenças. Nesse aspecto, não há um só povo ou sociedade humana que não tenha desenvolvido algum tipo de religião.17 Primeiro elas surgem, geralmente, como mitos: histórias fabulosas que servem de estereótipo para a explicação de algo que o homem não pode compreender pela forma empírica ou científica. O mito é um molde pronto que serve para explicar na prática o motivo da ocorrência de determinados fenômenos da natureza e de alguns fenômenos de psique humana, como comportamentos tidos como perversos e inadequados.18 Os primeiros mitos são um exemplo cabal de como a religiosidade humana avançou no sentido de estabelecer a ordem e o convívio social. O mito, como forma primária de religião, já buscava colocar algum tipo de sentido e ordem à existência humana, apesar de não prescrever imperativos diretos de comportamento. Os mitos gregos sobre os titãs e os deuses do Olimpo, por exemplo, são manifestações intelectuais de como o homem tentava explicava os eventos que ocorriam na natureza, como maremotos, furacões, terremotos, secas, eclipses, etc. Por meio de analogias traçadas com essas histórias, o homem explicava como os eventos naturais funcionavam, apontando soluções para seu controle eficaz (assim como é 17 “O fenômeno é um fato universal; ele se encontra em todas as culturas. Em todos os tempos, lugares e povos encontramos o fenômeno religioso. Segundo Franz Bretano, a fenomenologia é a “intencionalidade da consciência humana”. A função da fenomenologia é interpretar os fenômenos que se apresentam à percepção. A fenomenologia surgiu para extinguir a separação entre “sujeito” e “objeto”. Para Emanuel Kant, o fenômeno tem duas propriedades: tempo e espaço. O tempo é a priori enquanto dedução lógica da coisa, e a posteriori enquanto identificação do objeto. Por isso, o homem como ser religioso acredita numa divindade, dentro ou fora de si.” (HELLMANN, Gilmar J.. O Fenômeno Religioso. Disponível em: <http://200.195.151.19/ciesc/arquivos//uni_3/fenomeno_1205504174.doc>. Acesso em: 3 abr. 2009). 18 Sobre o conceito de Mito, ver: GAARDER, 2002, p. 19. 18 hoje a proposta das ciências, que visam explicar tudo a fim de obter o domínio). O mito de Narciso19, por exemplo, é uma clara expressão de como o ser humano explicava a sua relação de vaidade com seu próprio ego. O homem egoísta só se preocupa consigo mesmo e com seu próprio prazer, ignorando a realidade a sua volta. Narciso se afogou em um lago, atraído por sua própria imagem espelhada na superfície. Ele ignorava a realidade alheia, a beleza alheia. Mas, inadvertido, ignorou também os perigos reais a sua volta. É uma clara advertência para o que pode acontecer às pessoas egoístas, de duro convívio social. Quem se fecha em si mesmo não só perde a beleza dos outros, mas também se expõe ao perigo mais facilmente. Torna-se um alienado, presa fácil. Com o passar do tempo, os mitos foram dando espaço a sistemas mais elaborados de explicação, como as histórias gregas de heróis e as tragédias. Histórias como a de Édipo Rei e Antígona, por exemplo, tangem questões fundamentais sobre aquilo que denominamos hoje de Direitos Humanos, mas que na época eram entendidos como normas morais de caráter natural ao homem. Era o início da reflexão do Direito como parte indissociável da religião, como algo transcendente, algo preexistente e anterior à ordem das leis positivadas. A Trilogia Tebana20, do escritor grego Sófocles, datada por volta de 450 a.C, conta-nos essa história, na qual Antígona, personagem principal da tragédia, clama ao rei por uma Lei moral e religiosa na qual poderia se justificar, independente de seus decretos reais autoritários. Antígona havia sepultado, contra as ordens do rei, o seu irmão que fora condenado a não ter sepultamento digno. Isso por ter sido morto numa guerra em que lutava contra sua própria pólis. Um caso de deserção. Como traidor da pátria, não teria direito a ser sepultado. Antígona desobedece ao decreto real, e realiza o sepultamento do irmão. O rei a interpela, perguntando sobre seus atos, julgando-os uma afronta a suas ordens. Antígona responde ao rei, invocando normas de caráter moral, anteriores ao decreto promulgado por ele. Ela diz: “Agi em nome de uma lei que é muito mais antiga do que o rei, uma lei que se perde na origem dos tempos, que ninguém sabe quando foi promulgada”. Disse isso porque acreditava ser errado que o corpo de uma pessoa fosse abandonado às feras, sem que recebesse as devidas honrarias do sepultamento. Sófocles, em Antígona, 19 Sobre o mito de Narciso, ver: Wikipédia, a enciclopédia livre. Narciso. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Narciso>. Acesso em: 3 abr. 2009. 20 SÓFOCLES. A Trilogia Tebana: Édipo Rei, Édipo em Colono, Antígona. 6. ed., Rio de Janeiro, RJ: Editora Jorge Zahar, 1997. 19 aborda o respeito à dignidade de qualquer pessoa, independentemente de sua nacionalidade ou de seus atos ilegais, como uma deserção. 1.2.2. AS RELIGIÕES. Tempos depois, com a evolução dos mitos e das tragédias heróicas, podemos apontar o surgimento das religiões propriamente ditas, como as conhecemos hoje. A transição do mito propriamente dito para a religião em si deu-se de forma gradual e lenta, não se abandonando, no entanto, alguns aspectos míticos ainda essenciais ao homem. Em todo o curso de sua história, a religião permanece indissoluvelmente ligada a elementos míticos, e impregnada deles. Por outro lado o mito, mesmo em suas formas mais grosseiras e rudimentares, traz em si alguns motivos que de certo modo antecipam os ideais religiosos superiores que chegam depois. Desde o início, o mito é religião em potencial. O que leva de um estágio para outro não é nenhuma crise repentina de pensamento, nem qualquer revolução de sentimento. Dessa forma, embora haja elementos comuns entre o mito e a religião, a forma como a religião trata esses elementos vai caracterizando seu distanciamento gradativo e, por fim, radical em relação ao pensamento mítico. [...] Dessa forma, a transição do mito para religião ocorre por um processo lento, gradual e dialético, resultante da tensão entre as forças de conservação e de transição no interior do pensamento mítico. Se ao final desse processo se pode observar elementos comuns entre o mito e a religião, o mesmo não se pode dizer em relação a sua forma. [...] Nenhuma religião pôde jamais pensar em cortar, ou sequer afrouxar, os laços entre o homem e a natureza. Mas nas grandes religiões éticas esse laço é feito e apertado em um novo sentido. A ligação simpática que encontramos na magia e na mitologia primitiva não é negada ou destruída.; mas a natureza é agora abordada do ponto de vista racional, em vez do emocional. Se a natureza contém um elemento divino, ele não 21 aparece na abundância da sua vida, mas na simplicidade da sua ordem. As religiões se diferenciam dos mitos por serem mais elaboradas, e por serem mais pragmáticas do que intelectuais. A busca pela ordem é direta, e a violação das regras traz claras consequências ao infrator. Enquanto que os mitos apenas advertiam e explicavam, as religiões já prescreviam claramente os comportamentos e estabeleciam ordenamentos. Vê-se, então, que as religiões surgiram com a evolução gradual dos primeiros mitos do homem. São uma forma mais elaborada de explicações para os acontecimentos universais, chegando a formular doutrinas, a 21 FERNANDES, Vladimir. Mito e Religião na Filosofia de Cassirer e a Moral religiosa. Disponível em: <http://www.hottopos.com/notand11/vladimir.htm>. Acesso em: 27 abr. 2009. 20 prescrever práticas ritualísticas e a estabelecer normas de convívio social mais rígidas. As religiões são mais impositivas que os mitos, pois surgiram em um período em que a ordem se fazia mais necessária. Dentre os tipos de religiões ocidental e oriental, podemos destacar as mais importantes e influentes para a História da humanidade: o hinduísmo, o budismo, o confucionismo, o taoísmo, o xintoísmo, o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. Cada qual surgindo em determinada época, com determinado propósito, e com doutrinas voltadas para a regulação do comportamento humano, numa tentativa de adequá-lo àquilo que seria o comportamento ideal, o comportamento natural e original, de acordo com a espiritualidade primitiva e essencial inerente a toda pessoa. Adiante, segue um pouco sobre cada religião e sua influência na sociedade onde brotou. 1.2.2.1. HINDUÍSMO. O hinduísmo é o conjunto das várias formas de religião que surgiram na Índia depois que os indo-europeus passaram a ocupar o Norte desse país há cerca de 3 a 4 mil anos. (GAARDER, 2002, p. 40). No entanto, o peculiar do hinduísmo é que, apesar de se apresentar por meio de várias formas de expressão religiosa e em vários estágios históricos diferentes, todas essas variações são perceptíveis simultaneamente. Apesar da complexa diversidade, ainda se pode enxergar o hinduísmo como uma religião só. As principais escrituras doutrinais são o Livro dos Vedas22, que consiste de quatro coletâneas datadas por volta de 1.500 a.C, e os Upanishads, que são os textos mais influentes e lidos na Índia. Surgidos no auge do período védico por volta de 1.000 a.C até 500 a.C, os Upanishads se constituíram sob a forma de diálogos entre discípulo e mestre, introduzindo o praticante da doutrina nos mistérios de Brahman, a força espiritual que permeia todo o Universo (GAARDER, 2002, p. 41). Com relação à influência do fenômeno religioso do hinduísmo na sociedade, pode-se claramente apontar o rígido sistema de castas. Não há dúvidas de que esse sistema é um forte exemplo de como a religião é capaz de ordenar e normatizar a vida em coletividade. Na Índia, desde tempos antigos, houve quatro castas 22 Vedas: palavra do sânscrito que significa “conhecimento” (GAARDER, 2002, p. 40). 21 principais: a casta dos brâmanes (a mais alta casta, composta por sacerdotes), a casta dos guerreiros, a casta dos agricultores, artesãos e comerciantes em geral, e por fim a casta dos servos. Dessa divisão primária surgiram outras milhares de castas, cada uma com uma especificidade ou peculiaridade diferente. Hoje em dia, calcula-se que há cerca de 3 mil castas diferentes na Índia. A importância de se saber a casta de uma pessoa está ligada à noção de “pureza” e de “impureza”. Quanto mais pura for uma casta, mais alta é sua posição na sociedade, determinando o tipo de profissão que ela pode exercer, com quem a pessoa pode se casar, o que ela pode comer, com quem ela pode interagir e as regras de conduta e de prática religiosa que ela deve observar. Além das castas normais, há um nível de casta que está totalmente à margem da sociedade indiana. Trata-se dos “párias”, ou os “sem casta”, ou ainda os “intocáveis”. É uma classe social composta por pessoas criminosas, ou que cometeram algum tipo de transgressão social muito grave, sendo de alguma forma expulsas de suas castas originais. São extremamente impuros e ocupam o mais baixo nível na sociedade. Só podem exercer profissões como de lixeiros, de varredores de rua, de limpadores de fossas e esgotos, etc. Não se pode esquecer que, na Índia, há também uma pequena porcentagem de cristãos e de muçulmanos. Mas estes ficam totalmente fora do sistema de castas. (GAARDER, 2002, pp. 41 e 42). Atualmente, a sociedade indiana passa por um processo de mudanças, que tem progredido de forma bastante lenta por causa da resistência popular. Apesar de a nova Constituição de 1947 ter proibido a discriminação de pessoas por motivos de classe social, a própria população do país resiste à mudança dos hábitos culturais que têm origem direta na religiosidade hindu. O sistema de castas continua regulando e normatizando a vida em coletividade, principalmente nas pequenas aldeias, aonde as informações chegam com mais dificuldade. (GAARDER, 2002, p. 42). Essa é uma importante constatação de que a religião influencia profundamente na forma como uma sociedade se organiza. 1.2.2.2. BUDISMO. O budismo é uma religião que foi fundada há cerca de 530 anos a.C por Sidartha Gautama, o filho de um poderoso rajá do norte da Índia. Sidartha nasceu 22 em meio ao luxo, entre fortuna e conforto. No entanto, uma antiga profecia advertia que, se o príncipe entrasse em contato com o mundo exterior, abandonaria as riquezas de sua vida por completo. Seu pai tentou de tudo para manter seu filho dentro dos limites do palácio, mas, aos 29 anos, confrontando a proibição do pai, Sidartha foge do palácio e entra em contato com um mundo exterior que até então não conhecia: um mundo de dores, sofrimentos e miséria. Tal experiência o mudou por completo. Renunciou à sua vida de príncipe e, sem se despedir, partiu para uma vida de peregrinação. Aos 35 anos, após seis anos de rígida vida ascética e de sacrifícios, sentou-se sob uma figueira durante sete dias e sete noites, alcançando a compreensão sobre as verdades universais e absolutas. A pessoa que chega a tal compreensão passa a ser chamada de “Buda”23, que significa “iluminado”, “desperto”. Após sua compreensão espiritual, Sidartha, agora Buda, decidiu difundir seus ensinamentos a todos aqueles que o quisessem ouvir, a fim de fazer o maior número possível de pessoa alcançar, por seu próprio esforço, a iluminação, se libertando do carma e das infelicidades.24 “O budismo cresceu dentro do hinduísmo como um caminho individual para a salvação. As duas religiões têm muitos conceitos em comum: as doutrinas do renascimento, do carma e da salvação.” (GAARDER, 2002, p. 54). No entanto, apesar de ensinar muitas doutrinas em comum, Buda, que também passou a ser chamado de sakiamuni (que significa “o sábio dos sakia”) provocou um choque profundo na sociedade indiana ao bater de frente com a religiosidade tradicional hinduísta, devido aos preconceitos de classe social a ela inerentes. Sidartha deixava as autoridades sociais perplexas ao transmitir seus ensinamentos para todos que o buscassem, independente de sexo, idade ou origem, e principalmente sem distinção de casta social. Ele lutou contra esse terrível flagelo, que desde a sua época até os nossos dias (apesar das novas legislações) oprime milhões de indianos. A justificativa para a eterna escravidão dos nascidos nas „castas inferiores‟ era (e ainda é) a de que na próxima encarnação haveriam [sic] novas oportunidades de renascimento melhores... A situação mais desumana era a dos "párias", nascidos à margem do sistema de castas, chamados "intocáveis", pois nenhum membro da sociedade deveria sequer tocá-los, sob o risco de se tornarem impuros e acumular sobre si karma ruim. Por 23 Buda: do sânscrito Buddha, que significa “Desperto”, “Iluminado”. É um título dado na filosofia budista àqueles que despertaram plenamente para a verdadeira natureza dos fenômenos e se puseram a divulgar tal redescoberta aos demais seres. (Wikipédia, a enciclopédia livre. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Buda>. Acesso em: 24 fev. 2009). 24 Sobre as origens do budismo, ver: Buda: biografia. Disponível em: <http://www.budismo.hpgvip.ig.com.br/biografia.html>. Acesso em: 2 abr. 2009. 23 essa razão, Sakiamuni ensinou em seu próprio idioma, um dialeto do nordeste da Índia, evitando o sânscrito empregado pelos hinduístas e eruditos, o símbolo de uma casta que na sua visão não significava necessariamente sabedoria, justamente porque os brâmanes tinham cargos 25 hereditários. Com relação à doutrina budista propriamente dita, que era transmitida sem restrições, pode-se dizer que ela atingiu profundamente as bases da sociedade indiana, modificando os hábitos da população que o seguia de dentro para fora, ou seja, a mudança proposta por Buda era de natureza subjetiva. Acontecia primeiro internamente. Em termos de Direito Natural, assemelha-se a uma auto-norma que deveria ser seguida por cada pessoa individualmente. A sua doutrina foi propagada primeiramente pela Índia, mas, devido às duras resistências de algumas castas influentes, acabou tendo que emigrar para outros países, nos quais se incluem Birmânia, Tailândia, Sri Lanka, Laos, Camboja, China, Japão, Mongólia, Tibet, Coréia e Vietnã. (GAARDER, 2002, p 67). Entre os ensinamentos mais importantes e de grande influência no modo de vida das pessoas e de sua relação com o meioambiente está a doutrina das “Quatro Nobres Verdades”26 e do “Nobre Caminho Óctuplo” 27. A primeira Nobre Verdade é chamada de “A Verdade do Sofrimento”. Segundo essa premissa, viver é um eterno sofrimento, desde o nascer, no qual perdemos o conforto e a sensação de completude do útero materno, até a morte, na qual a alma é obrigada a se desencarnar. Entre o nascimento e a morte, o ser humano estaria sujeito a todo tipo de miséria, sofrimento, doenças, envelhecimento, etc. A vida, portanto, é um conjunto de sofrimentos. Para Buda, viver é sinônimo de sofrer. A segunda Nobre Verdade é chamada de “A Verdade da Causa do Sofrimento”. Segundo esse princípio, Sidartha explicava que todo o sofrimento do ser humano ao viver tinha uma causa determinada. A causa do sofrimento seria a ignorância e o desejo, que levariam o homem a ter ganância e a estar sempre frustrado e sem paz. O desejo produz apego material, sofrimento, frustração e arrogância. É devido ao desejo que o homem sofre. Não se pode deixar de notar 25 MERTON, H.K. O Buda. Disponível em: <http://artedartes.blogspot.com/search/label/budismo>. Acesso em: 24 fev. 2009. 26 Sobre a doutrina das quatro nobre verdades, ver: DOWNEY, Rodney. As quatro nobres verdades. Disponível em: <http://nalanda.org.br/pdf/4verdades.pdf>. Acesso em: 3 abr. 2009. 27 Sobre a doutrina do nobre caminho óctuplo, ver: SCHNEIDER, David. Encontramos o caminho sob nossos pés. Disponível em: <http://www.geocities.com/sakyabr3/ocaminho.html>. Acesso em: 2 abr. 2009. 24 que essa nobre verdade budista visa a influenciar diretamente no modo de vida humano, desde que se tornou sedentário, atingindo diretamente a noção da propriedade privada, de acumulação de bens, e da forma como o ser humano deve lidar com tais realidades. Para Buda, o próprio estilo de vida materialista é a causa do sofrimento humano. É mister saber lidar com a realidade da propriedade privada, para proporcionar o desapego necessário à liberdade. A terceira Nobre Verdade é chamada de “A Verdade da Cessação do Sofrimento”. Por esse princípio doutrinário, o sofrimento só tem fim quando a pessoa deixa de se identificar com as causas do sofrer, que são o desejo e a ignorância. Quando isso acontece, se daria a extinção do ciclo infindável de reencarnação, fazendo com que a pessoa entre num estado de suprema bem-aventurança denominado Nirvana28. A quarta Nobre Verdade diz respeito ao método e regras de conduta que as pessoas devem observar para chegar ao fim do sofrimento. É chamada de “A Nobre Verdade do Caminho Óctuplo”. Por essa premissa, o budista impõe como norma de caráter natural o cumprimento de oito regras rígidas. A influência dessas regras no ordenamento jurídico é evidente, uma vez que serve de fonte à positivação do direito. Qualquer lei positiva que tente ir contra essas normas religiosas será descumprida pelo povo budista, por falta de legitimidade. Além disso, percebe-se claramente que as regras do Nobre caminho óctuplo já visam a regular o modo como o ser humano deve agir na sua relação consigo mesmo e no seu convívio com os outros e com o meio-ambiente. Talvez o descumprimento de tais normas traga consequências piores do que as que são trazidas pelo descumprimento das leis positivadas, pois as penas de caráter religioso atingem diretamente a subjetividade da pessoa, não possuem prescrição e perseguem a consciência do infrator onde quer que ele esteja, independente de o ato ser conhecido ou não pelas autoridades. É uma pena cruel, com força altamente coatora. E isso funciona para quaisquer religiões que prescrevem regras de conduta moral e social. As sanções religiosas sempre possuem as mesmas características, e é por meio delas que a imposição se realiza. Com o budismo não seria diferente. 28 Nirvana: “Essa palavra significa, na verdade, “apagar”, uma referência ao fato de que o desejo “se extingue” quando se atinge o nirvana. [...] As descrições do nirvana em textos budistas costumam ser expressas em termos negativos. Uma vez que o nirvava é o oposto direto do ciclo do renascimento, uma vez que ele não pode ser comparado a nada em nossa vida diária, só é possível dizer que o nirvana não é. Poderíamos talvez descrever o nirvana como uma quinta dimensão, divorciada de nossa existência quadridimensional.” (GAARDER, 2002, p. 59). 25 No caso do budismo, podemos citar as oito regras principais que integram a quarta Nobre Verdade e fazem parte da doutrina budista, devendo ser de observância geral. A primeira regra é a da “Correta compreensão”, na qual a pessoa deve buscar compreender as verdades universais pelo seu próprio esforço. A iluminação é consequência da dedicação pessoal, e apenas a própria pessoa pode se salvar. A segunda regra é a do “Correto pensamento”, na qual as pessoas devem buscar parar de pensar em coisas ruins, parar de premeditar atos perversos, de pensar em coisas iníquas, semeando sempre bons pensamentos, de modo a não prejudicar aos outros. A terceira regra é a do “Correto falar”, na qual a pessoa deve se abster de falar inutilmente, demasiadamente, de mentir, de levantar falso testemunho, de usar palavras ásperas, caluniosas, xingamentos. Isso tudo com o intuito de não provocar desentendimentos e conflitos desnecessários com os outros. Traçando-se um paralelo com o Direito moderno, pode-se dizer que é um tipo de norma religiosa que visa evitar condutas que se assemelham bastante aos nossos modernos crimes contra a honra, ou seja, calúnia, injúria e difamação. A quarta regra é a do “Correto agir”, na qual a pessoa deve se abster de matar, roubar, ter conduta sexual indevida, não praticando incesto, pedofilia, estupro, obscenidades, depravações, orgias, homossexualismo, etc. É desnecessário comentar que tal norma religiosa é totalmente voltada para a regulação e a normatização da vida em coletividade, pois é algo evidente. A proibição de matar, aliás, não se aplica somente aos seres humanos, mas se estende a todo ser vivo. Por esse motivo, a maioria dos budistas é vegetariana e os países de religião budista possuem economia voltada principalmente para o setor agrícola, exemplo de como uma religião influencia não só nas normas jurídicas, mas também na economia de determinada sociedade. A quinta regra é a do “Correto meio de vida”, na qual as pessoas têm a obrigação de prover seu sustento com profissões não prejudiciais à sociedade, tais como o tráfico de drogas, estelionato, corrupção, ou matança de animais. Fazendose uma analogia com o Direito moderno, é possível traçar um paralelo entre tal regra e as normas que dizem respeito ao “valor social do trabalho e da propriedade 26 privada”. No Brasil, inclusive, tais normas são princípios que possuem status constitucional.29 A sexta regra budista é a do “Correto esforço”, na qual a pessoa deve exercitar a autodisciplina para obter o controle da mente, de maneira a evitar estados mentais maléficos, visando sempre à manifestação da sanidade e do equilíbrio emocional e racional. A sétima regra diz respeito à “Correta atenção”, na qual a pessoa deve desenvolver completa consciência de todas as ações do corpo, da fala e da mente para evitar atos insanos. É um complemento da regra anterior. A oitava e última regra é um resumo conclusivo da prática das sete anteriores. É chamada de “Correta Contemplação”, na qual o budista procura obter serenidade mental e sabedoria para compreender o significado integral das Quatro Nobres Verdades. É o início da prática meditativa, tão peculiar a esta religião oriental. Apesar de parecer que o budismo só influencia na sociedade a partir da mudança interior dos praticantes, pode-se também observar uma grande influência externa na religião. “O ideal budista original era trabalhar por sua própria salvação, se valendo da meditação, algo que pouco incentiva a atividade social. Mas o budismo também realça a abnegação de si e a caridade, o que tem levado a uma participação ativa nas questões sociais e políticas contemporâneas.” (GAARDER, 2002, p. 75). 1.2.2.3. CONFUCIONISMO. O confucionismo está longe de ser uma religião com enfoque místico. Na verdade, o confucionismo é um conjunto de regras de natureza social e jurídica, desenvolvidas pelo filósofo chinês chamado Kong-Fu-Tzu, latinizado com o nome 29 Art. 1º, CF - A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; [...] Art. 5º, CF - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] XXII - é garantido o direito de propriedade; XXIII - a propriedade atenderá a sua função social; 27 Con (de Kong) fu (de Fu) e cius (de Tzu), ou seja, Confucius ou Confúcio 30. O intuito de Confúcio era educar a elite dos funcionários letrados da administração imperial, os mandarins. Por muito tempo, portanto, o confucionismo foi uma ideologia adotada pelos mandarins, ganhando aderência popular apenas quando começou a misturar elementos de natureza propriamente religiosa, como normas sobre sacrifícios e rituais. Mesmo assim, o confucionismo se manteve mais restrito às classes dominantes, pouco influenciando na vida das massas populacionais, mais devotadas ao culto dos antepassados, etc. Confúcio teve um efeito decisivo no desenvolvimento da China. Após sua morte, os discípulos começaram a difundir e ampliar suas idéias. O confucionismo acabou se tornando uma espécie de religião estatal da China, chegando muitas vezes a atacar outras religiões, como o budismo e o taoísmo. [...] Apesar disso, deve-se enfatizar que o confucionismo nunca havia sido uma religião independente. Falando-se mais precisamente: o termo abrange uma série de idéias filosóficas e políticas que formavam os pilares do governo e da burocracia da China imperial, muito embora a ética do confucionismo também permeasse amplas camadas da população chinesa. É típica dessa tradição sua visão política pragmática e seu interesse pelas questões sociológicas reais, como a educação dos filhos, o papel do indivíduo na sociedade, as regras corretas de conduta etc. Seu interesse pelas questões religiosas e metafísicas é muito menor. (GAARDER, 2002, p. 78). Com relação à doutrina confucionista, destaca-se a idéia jusnaturalista de bondade e harmonia inerente ao ser humano e ao universo inteiro. O universo, para Confúcio, está em plena harmonia com suas leis físicas. Analogicamente, o homem, ao entrar em sintonia com as forças do universo, possui a capacidade de alcançar a harmonia inerente ao Espírito universal, que ele chama de Tao. O Tao é um conceito tanto taoísta quanto confucionista. Diz respeito ao Espírito universal que rege a tudo e a todos. Literalmente, Tao significa “Caminho”, pois as filosofias orientais acreditam que Deus é um “caminho infinito”, um “modo de vida” a ser observado e cumprido para sempre. Na verdade, Confúcio utilizou-se do modelo taoísta para desenvolver sua filosofia. No entanto, há pequenas diferenças de conceitos entre as duas denominações religiosas. Enquanto que para Confúcio o Tao é uma ordem divina e natural que o homem deve seguir, podendo ser estudada e compreendida racionalmente, para o taoísmo o Tao só pode ser conhecido de forma intuitiva, e não pode nunca ser descrito de forma racional. Para o taoísmo, o Tao é totalmente transcendente. (GAARDER, 2002, p.81). 30 Confúcio foi um importante e influente filósofo chinês que viveu entre 551 e 479 a.C. (GAARDER, 2002, p. 78). 28 Para Confúcio, a harmonia do Tao seria um modelo de ordem e equilíbrio que deveria ser aplicada ao homem e à sociedade. Para tanto, o homem precisa obter conhecimento e compreensão ao estudar o passado e as tradições. Confúcio via a pessoa como um ser essencialmente bom. Nesse aspecto, todo mal gerado não passava de ignorância ou falta de conhecimento. A educação ocupa, portanto, uma posição de destaque nessa filosofia. Apenas por meio da educação e da instrução racional, o homem é capaz de manifestar sua natureza essencialmente boa. Com relação à educação confucionista, as pessoas eram instruídas no tocante ao seu lugar na sociedade, que é regulado por cinco principais relacionamentos: em primeiro está o relacionamento entre o servo e o senhor, em segundo está o relacionamento entre os mais velhos e os mais jovens, em terceiro está o relacionamento entre pais e filhos, em quarto está o relacionamento entre homem e mulher, e por último o relacionamento entre amigos. É evidente o equilíbrio entre as relações sociais no confucionismo. O senhor deve ser bondoso e o servo deve ser obediente e fiel, os pais devem ser amorosos e os filhos devem ser respeitadores, o homem deve ser justo e a mulher deve ser obediente, os amigos devem se respeitar mutuamente, etc. Para Confúcio, a base do equilíbrio social está nos relacionamentos entre as pessoas. Se há harmonia entre as pessoas, há harmonia e paz social. Em suma, pode-se dizer que os ideais mais importantes para a doutrina de Confúcio são a educação, o respeito, a reverência e o relacionamento familiar. (GAARDER, 2002, p. 79). 1.2.2.4. TAOÍSMO. O taoísmo é a mais primitiva e tradicional religião da China. Diz-se que o taoísmo foi fundado por Lao-Tsé, muito embora os preceitos e os princípios espirituais chineses já existissem há alguns séculos antes de tal marco oficial. LaoTsé foi um sábio chinês que teria vivido no século VI a.C., vindo a escrever, no fim de sua vida, um documento conhecido como “Tao-Te-Ching”. (GAARDER, 2002, p. 80). O Tao-Te-Ching (também pronunciado como Dao-De-Jing) é um livrinho que contém apenas 81 poemas. Nesse documento, Lao-Tsé evidencia o conceito de Tao, como a pessoa deve fazer para sentir e viver o Tao, e também prescreve condutas de natureza social e coletiva. Quanto a estas últimas, o que se pode dizer 29 é que seguem a filosofia oriental da passividade meditativa. Como para Lao-Tsé o Tao não pode nunca ser descrito racionalmente, o Tao que é pensado, agido, normatizado não é o verdadeiro Tao. Já que a ideologia desse sábio chinês era a busca pelo verdadeiro Tao, os ensinamentos são todos passivistas, todos de passividade ou de “não ação”. Para o taoísmo, a “não ação” (“wu-wei”, em chinês) é a verdadeira ação por meio da qual todas as coisas se realizam. Nesse aspecto, a visão de vida coletiva para o taoísmo é a de menor interferência possível em assuntos políticos. (GAARDER, 2002, p. 81). A normatização social, no taoísmo, segue uma profunda concepção jusnaturalista na qual o homem sequer precisaria de Estado, Governo ou Direito para reger a sociedade se ele soubesse viver de acordo com os princípios espirituais do Tao. Todo tipo de construção jurídica é uma tentativa artificial de regular socialmente aquilo que deveria ser regulado espiritualmente. Se o homem estiver em sintonia com a essência do Tao, o Espírito Universal, então a ordem jurídica não se faz necessária.31 Enquanto Confúcio desejava educar o homem por meio de conhecimento, Lao-Tsé preferia que as pessoas permanecessem ingênuas e simples, como crianças. Enquanto Confúcio ansiava por regras e sistemas fixos na política, Lao-Tsé acreditava que o homem deveria interferir o mínimo possível no desdobramento natural dos fatos. (GAARDER, 2002, p. 81). Para o taoísmo, a idéia de coletividade e de sociedade não passa da concepção de vida em pequenas aldeias ou cidades, aquelas tradicionais que já existiam na China antiga. Apenas nessas pequenas aldeias poderia haver paz e contentamento. Qualquer tipo de aglomeração humana maior que isso estaria fadado a ter que construir regras e normas de convívio artificiais, estando sujeito a guerras civis e entre países vizinhos. O ideal de vida taoísta é, portanto, o mais bucólico e simples possível. (GAARDER, 2002, p. 81). No tocante à questão social e jurídica, a frase de Lao-Tsé que expressa com maior clareza a sua ideologia jusnaturalista é: “A Moralidade e o Direito nasceram quando o homem deixou de viver pela alma do Universo.”32 31 LAO-TSÉ. Tao Te Ching. (Tradução e comentários: Huberto Rohden). Editora Martin Claret, São Paulo, SP, 2006, p. 60. 32 Ibidem. 30 1.2.2.5. XINTOÍSMO. O xintoísmo, diferentemente da maioria das religiões, não possui um fundador. Trata-se de uma antiga religião mítica, tradicional e primitiva do povo japonês. É, portanto, uma religião autenticamente nacional. (GAARDER, 2002, p. 82). O xintoísmo surgiu primeiramente como uma mitologia complexa e intrincada, cheia de deuses ou espíritos naturais chamados “kami”. Tal mitologia servia para explicar a origem das ilhas japonesas e do povo nipônico que nelas habitava. Explicava também a origem divina do imperador japonês, fazendo com que o mesmo fosse reconhecido como um deus (um kami) vivo sobre a Terra. Segundo a mitologia xintoísta, o imperador do Japão seria descendente direto de Amaterasu, a deusa do Sol. Portanto, todo o povo japonês, por intermédio do imperador, teria uma ascendência divina. O imperador, por muitos séculos, foi respeitado e adorado como a própria deusa do Sol. Sua vontade era incontestável e todo o povo deveria venerálo. (GAARDER, 2002, p. 83). Com o passar dos tempos, o xintoísmo foi deixando sua característica mítica e se expressando mais como religião espiritualista, envolvendo a adoração aos espíritos da natureza e o culto aos antepassados, sendo que este último ritual começou a ser feito por causa da forte influência recebida do confucionismo chinês. Muitos acreditam, inclusive, que os ascendentes, ao morrerem de forma honrada e respeitosa, se tornam kami e passam a proteger seu clã (ou família). Muitos antepassados são adorados como verdadeiros deuses, em pequenos templos levantados em sua homenagem nas próprias casas dos familiares. Já os kami da natureza são cultuados nos diversos templos públicos espalhados por todo o território. (GAARDER, 2002, p. 84). Após a derrota do Japão na segunda grande Guerra Mundial, houve uma ruptura total entre a religião xintoísta e o Estado japonês. Antes, desde a era Meiji, o xintoísmo era a única religião permitida no Japão, pois havia sido elevado à condição de religião oficial do Estado. Tal medida teve a finalidade de reforçar o caráter japonês e o nacionalismo expansionista. (GAARDER, 2002, p. 83). Com a derrota na II Guerra, no entanto, o imperador foi obrigado a fazer uma declaração na qual renunciou à sua condição divina. O xintoísmo deixou de ser a religião estatal, e o Japão voltou a ser um país com liberdade religiosa. O xintoísmo, porém, não deixou de ter praticantes, sendo, ainda hoje, a religião com maior representatividade 31 no Japão, ao lado do budismo, do confucionismo, e de pequena parcela do cristianismo católico e protestante. (GAARDER, 2002, p. 84). Essa grande variação religiosa fez do Japão o país mais sincrético do mundo e com o maior número de seitas também. 1.2.2.6. JUDAÍSMO. O judaísmo é a mais antiga das religiões monoteístas. Por ser ocidental, o judaísmo possui uma espiritualidade intimamente ligada à História e à dinâmica de um determinado povo na sua relação consigo mesmo e com os demais povos vizinhos. É uma religião que surgiu como alento e incentivo para o povo hebreu, que por muito tempo foi oprimido por outros povos da Terra. Em determinado momento da história, um Deus se revelou como sendo o único Deus vivo da Terra e se comprometeu a fazer uma aliança com esse povo oprimido, tornando-o o povo eleito. Esse povo deveria ser fiel a esse único Deus, e em troca o Deus único o tornaria o povo mais numeroso e poderoso do planeta. Deveriam espalhar aos outros povos a fé de que só há um Deus vivo no universo e também observar as leis da aliança firmada com o Divino. Devido a essa origem histórica, por muito tempo os judeus não foram vistos apenas como uma comunidade religiosa, mas também comunidade étnica. O judaísmo era inerente a um determinado povo. Hoje em dia, essa definição se tornou inexata, pois existem judeus das mais diversas etnias, espalhados por todos os países do mundo. (GAARDER, 2002, pp. 98 e 99). Apesar de o judaísmo existir como religião monoteísta desde 1.800 a.C., quando Abrão saiu de sua cidade de Ur, na Mesopotâmia, e se tornou o patriarca Abraão, o judaísmo como religião jurídica só ganhou expressão por volta de 1.300 a.C, quando Moisés libertou os israelitas do Egito e recebeu as tábuas da Lei no topo do monte Horeb, na península do Sinai, pelas mãos do próprio Deus. As tábuas da Lei são o mais antigo registro histórico da influência da religião no ordenamento jurídico positivado de um povo. Ainda que muitos povos já utilizassem os mitos e as religiões como forma de normatizar a vida em coletividade, apenas a partir de Moisés essa normatização religiosa se evidenciou de forma escrita. Dessa forma, pode-se dizer que os 10 mandamentos representam o gérmen do Direito positivado 32 ocidental, figurando entre os registros de Direito Formal mais antigos de que se tem notícia. (COMPARATO, 2006, pp. 67 e 70). A lei mosaica, como ficou conhecida, prescrevia as normas de ordem espiritual, representadas pelos 4 primeiros mandamentos, e as normas de ordem social e comunitária, representadas pelos 6 mandamentos restantes. Desses 10 mandamentos iniciais (se assemelhando ao que atualmente definimos como Constituição), surgiram outras 613 normas de caráter religioso e jurídico, que deveriam (e ainda devem) ser rigorosamente observadas pelo povo hebreu (se assemelhando aos modelos de legislação esparsa que temos hoje em dia). “Os judeus não fazem distinção nítida entre a parte ética e a parte religiosa de sua doutrina. Tudo pertence à Lei de Deus. Existem 248 ordens afirmativas e 365 proibições, totalizando 613 mandamentos.” (GAARDER, 2002, p. 111). A infração dessas leis gerava sanções tanto de ordem espiritual quanto de ordem jurídica. Um exemplo disso era as pessoas descobertas em flagrante crime de adultério. Além da sanção religiosa e espiritual, a pessoa recebia uma sanção jurídica, podendo ser apedrejada em local público, muitas vezes até a morte. Com a morte de Moisés e a chegada do povo hebreu à terra prometida, deuse o início ao Reino de Israel, cuja monarquia foi instaurada pelo rei Saul por volta do ano 1.000 a.C. Os líderes políticos e religiosos eram chamados de “juízes”, pois procuravam fiscalizar se o povo cumpria e respeitava as leis dadas por Deus e reveladas por Moisés. Com a ascensão de Davi, e depois de seu filho Salomão, ao poder, Israel encontrou seu apogeu e se tornou uma potência política, unindo todas as 12 tribos do povo hebreu sob o comando da capital Jerusalém. Nesta cidade, foi construído um grande Templo em homenagem ao Deus único, no qual foi guardada a Arca da Aliança, um recipiente destinado a guardar as sagradas tábuas da Lei recebidas por Moisés no monte Horeb. (GAARDER, 2002, p. 100). Com o passar dos anos, Israel tornou-se um povo iníquo e leviano, por muitas vezes causando a ira do Deus único ao violarem as Leis da Antiga aliança. Nesse contexto histórico, o judaísmo conheceu uma série de profetas que surgiram para advertir o povo e seus governantes sobre as maldades e as infrações que repetidamente cometiam. Falavam sobre um tempo em que viria um enviado por Deus para condenar os injustos e retomar o Reino de Israel, governando com cetro de ferro num reinado de paz que nunca mais teria fim. Todos eles previram o advento de uma era messiânica. (GAARDER, 2002, p. 103). Até hoje, os judeus 33 mais ortodoxos esperam pela vinda do Messias33 que há de governar seu povo para sempre. Para outros, esse rei já veio, e deu início ao “Reino de Deus”, não necessariamente atrelado a “este mundo”, mas sim ao “mundo espiritual”. Seus seguidores sofreram inúmeras perseguições devido a essa concepção de “messias espiritual”, conseguindo, porém, fundar a religião que conhecemos hoje como cristianismo. 1.2.2.7. CRISTIANISMO. Há cerca de 2.000 anos, entre revoluções, opressões e agitações sociais, surge o cristianismo, galgado nas ideologias de liberdade e igualdade entre os homens, pois, por sua doutrina (que veio do judaísmo), todo homem é considerado como “imagem e semelhança de Deus”, não tendo, portanto, uns mais direitos do que outros, pressupondo também que a igualdade não advinha apenas do mero usufruto dos próprios bens, mas também do dever de amor e de caridade ao próximo que não se encontre em pé de igualdade. (GAARDER, 2002, p. 141). O cristianismo foi fundado por Jesus (Yeshua ou Yashua, em aramaico), um carpinteiro judeu que iniciou seu ministério na região da Galiléia. Para muitos, Jesus era o Messias prometido nas escrituras pelos profetas. Segundo a tradição religiosa, Jesus realmente cumpriu em todos os aspectos as profecias sobre o Messias, ou seja, forma de nascimento, ascendência em linha reta com o rei Davi, entre outras peculiaridades. Cumpriu todas, exceto uma: reger o povo com cetro de ferro. Foi exatamente nesse aspecto que os judeus se dividiram. O período político foi marcado pela tirania do Império Romano, e muitos judeus esperavam que Jesus fosse tomar o poder à força, restabelecendo a liberdade ao “Reino de Israel”. (GAARDER, 2002, pp. 153 a 157). No entanto, Jesus se considerava um ser divino, o rei de um outro tipo de reinado, um reinado que não pertencia a “este mundo”. Uns acreditavam em Jesus, outros o consideravam um blasfemo. A autoridade real de 33 A palavra “messias”, que significa "ungido" (consagrado), aplicava-se a várias pessoas: aos reis de Israel, aos juízes, bem como ao Sumo Sacerdote. Messias era, portanto, alguém de quem o Espírito de Deus se apoderava, fazendo com que o eleito realizasse maravilhas e demonstrasse que sua autoridade sobre o povo. No entanto, desde há alguns séculos, a palavra Messias passou a ser aplicada apenas às profecias que se referiam à vinda do libertador de Israel, um humano “consagrado”, descendente do rei Davi, que iria reconstruir a nação de Israel e restaurar o reino de David, trazendo desta forma a paz ao mundo. (Wikipédia, a enciclopédia livre. Messias. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/ Messias_(Juda%C3% ADsmo)>. Acesso em: 26 fev. 2009). 34 Jesus, segundo ele próprio, não estava destinada a este mundo. Ela vinha direto de Deus, a quem chamava de Pai. Sua autoridade era celeste. Jesus pregava que o Pai havia lhe dado toda a autoridade sobre o Reino espiritual. Ninguém seria capaz de chegar a Deus se não ouvisse suas palavras. Ele era o “Caminho, a Verdade e a Vida”34. Com esse tipo de autoridade divina, Jesus pregou sua doutrina, com o objetivo de realizar o “Reino espiritual” na vida social terrena. Para o cristianismo, portanto, a vida em coletividade e a relação entre os seres humanos deveriam refletir a paz e a harmonia que existe incondicionalmente no Reino de Deus. Apesar de muitos terem interpretado que Jesus falava apenas de um reinado divino escatológico, a doutrina cristã é clara em afirmar que, apesar de espiritual, o Reino de Deus deve se manifestar a todo momento no reino do homens, ou seja, na sociedade, nas relações entre os homens, na política, etc. (GAARDER, 2002, p. 156). Jesus pregava: “o Reino está próximo”, mas também, “o Reino de Deus está no meio de vós”, ou ainda, “dou-vos as chaves do Reino, o que ligares na Terra estará ligado nos Céus, e o que desligares na Terra estará desligado nos Céus”. A influência do Poder de um Reino no outro é evidente. Para Jesus, o único Poder capaz de governar o mundo vem do Alto e pertence ao Alto. Se assim não for, o ser humano estará sempre fadado à opressão social, pois o homem não é capaz de guiar a si mesmo. Dizia ele: “deixai-os; são cegos guiando outros cegos. Ora, se um cego guiar outro cego, cairão ambos no barranco.”35 A ordem, portanto, era clara: o homem deve ter o compromisso de se santificar em prol de transformar o reino terreno em reino celeste, onde só reina a paz e a harmonia. Esse é o Reino do Messias. Nesse sentido, o cristianismo, desde sua origem, se empenhou no serviço da caridade como obra de justiça e paz social. A noção de igualdade entre os homens é o ensinamento mais marcante. A igualdade deve ser marcada pelas ideologias do Amor a Deus e ao próximo, inclusive aos inimigos. Um Amor incondicional. (GAARDER, 2002, pp. 161 e 162). Para introduzir na prática os ensinamentos de sua doutrina, Jesus utilizou-se de uma fenomenal pregação ao ar livre na presença de aproximadamente 7.000 pessoas, que veio a ficar conhecida como o “Sermão da 34 Bíblia Sagrada. Evangelho de Jesus Cristo segundo João, capítulo 14, versículo 6 a 11. 73 ed. Editora Ave Maria, São Paulo, SP, 1991, p. 1404. 35 Bíblia Sagrada. Evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus, capítulo 15, versículo 14. 73 ed. Editora Ave Maria, São Paulo, SP, 1991, p. 1302. 35 Montanha”. Nesse discurso, Jesus resumiu toda a sua doutrina teórica, e exortou seus seguidores a demonstrá-la na prática, por meio de atos concretos: um exemplo de como o Reino de Deus, que é espiritual, deve influenciar na vida e no reino dos homens, que é concreto. Apesar das inúmeras acusações de que tal doutrina vinha a romper com a Lei de Moisés, Jesus deixou claro que não veio para romper com a Lei, mas sim para renová-la, dando-lhe novo sentido, um sentido que há muito tempo os judeus haviam perdido e abandonado: “Não julgueis que vim abolir a lei ou os profetas. Não vim para os abolir, mas sim para levá-los à perfeição.” (Mt 5, 17)36. Sua doutrina resumiu, assim, toda a Lei dos 10 mandamentos e das 613 normas judaicas em apenas dois mandamentos, os quais teriam o poder de incluir toda a norma espiritual e jurídica imprescindível à vida pessoal e comunitária do ser humano: O primeiro de todos os mandamentos é: Ouve, Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor. Amarás, pois, ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento e com todas as tuas forças; este é o primeiro mandamento. E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Não há outro mandamento maior do que estes. (Bíblia Sagrada. Evangelho de Jesus Cristo segundo Marcos, capítulo 12, versículos de 29 a 31. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 1338). 1.2.2.8. ISLAMISMO. O islamismo, religião fundada por Maomé (ou Mohammed), teve origem na Arábia, sendo seus escritos sagrados registrados na língua árabe. Em consequência disso, ainda que o islamismo, hoje em dia, não se restrinja apenas ao mundo árabe, alcançando também vastas regiões da Ásia, da África e da Oceania, a cultura árabe se faz de grande importância para a religião. (GAARDER, 2002, p. 118). Maomé nasceu em Meca, na Arábia, por volta de 570 d.C, quando o povo árabe sofria de uma profusão de culturas de povos nômades e estrangeiros que disseminavam aos poucos a sua cultura. Muitos deuses pagãos eram adorados em inúmeros templos religiosos, e o cenário sincrético prevalecia. Nesse ambiente envolto em esoterismo e idolatria, o povo árabe foi deixando sua vida nômade e se 36 Bíblia Sagrada. Evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus, capítulo 5, versículo 17. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p.1288. 36 fixando em tribos e sociedades urbanas. Em decorrência desse fenômeno de fixação urbana, as religiões monoteístas começaram a ter mais influência sobre os árabes. Após a queda de Jerusalém e a destruição do Templo, muitos judeus e cristãos migraram para as regiões arábicas, passando a adotar a língua e os costumes árabes e introduzindo o monoteísmo. Muitos beduínos se convertiam ao cristianismo, sendo possível encontrar muitos cristãos entre as camadas inferiores de Meca. (GAARDER, 2002, pp. 119 e 120). Maomé cresceu nesse cenário movido pelas ideologias judaico-cristãs e pela noção do Juízo Final, juntamente com a forte influência esotérica e politeísta dos povos nômades. Aos 40 anos, enquanto meditava em uma caverna, Maomé teria recebido a visita do anjo Gabriel, que lhe inspirou a ler um pergaminho com as verdades monoteístas. Esse pergaminho, mais tarde, foi transformado no Corão. Seus 114 capítulos foram escritos e organizados pelos discípulos de Maomé após a sua morte. Foram agrupados de forma que os mais longos viessem antes dos mais curtos, com exceção do primeiro capítulo, que coincide com a Revelação do anjo na caverna. (GAARDER, 2002, pp. 120 e 121). Após as revelações, Maomé, que originalmente se considerava judaico-cristão, foi aos poucos se distanciando tanto de judeus quanto de cristãos. Suas idéias sobre o monoteísmo começavam a divergir em muitos pontos das idéias pregadas pelos judeus e mesmo pelos cristãos. Assim, Maomé declarou que os judeus e os cristãos haviam deturpado os ensinamentos bíblicos e que cabia a ele restaurar o monoteísmo puro fundado pelo patriarca Abraão. (GAARDER, 2002, p. 125). Maomé intitulou-se profeta e se propôs a pregar em Meca a crença em um Deus único. As autoridades viram tal atitude como uma tentativa de usurpar o poder. Maomé ganhava a aderência de alguns discípulos, mas escandalizava as camadas mais influentes de Meca. A guerra política fez com que Maomé rompesse suas raízes com Meca e partisse para Medina, no ano de 622 d.C, num ato que se assemelhou à saída de Abraão da cidade de Ur quando ouviu o chamado de Deus. Em Medina, Maomé logo se tornou um líder religioso e político, fundando a religião do islã (de íslan, palavra árabe que significa “submissão”) e dando início ao confronto com as autoridades e camadas populares de Meca que ainda se revolviam em idolatria. Tal confronto declarado ficou conhecido mais tarde como Jihad, ou guerra santa, que até hoje é utilizada como pretexto para o crescente expansionismo islâmico pelos povos da Terra. (GAARDER. 2002, p. 121). Os adeptos que se 37 agregavam ao islã passaram a ser chamados de muçulmanos, palavra que vem da mesma raiz árabe íslan, que significa “submissão”. Muitas vezes a luta por Alá se constituiu sobre uma base violenta e agressiva, ganhando precedência até mesmo sobre as tradições morais e os conceitos religiosos herdados das origens monoteístas. Ao fim de sua vida, em 632, Maomé havia conseguido subjugar Meca e unificar grande parte da Arábia sob as égides do islã (islamismo). A sucessão de Maomé por seus discípulos se deu de forma hereditária. O sucessor era chamado de califa e passava a organizar a vida dos árabes e da religião islâmica. O quarto califa, chamado Ali, primo de Maomé, foi quem deu início à cisma do islã. Sua liderança era cheia de controvérsias e causava a insatisfação de alguns seguidores de Maomé. Dessa forma, a principal dissidência do islamismo não se deu por razões ideológicas, mas por desentendimento sobre quem deveria ser o líder do islã. A facção dos sunitas, a maioria do islamismo, desejava que o islã fosse liderado por aquele que melhor soubesse utilizar o Poder. Já os xiitas, minoria, acreditavam que a liderança do islã deveria ser exercida pelos descendentes de Maomé. Após a morte de Ali, o califado teve sede em Damasco por algum tempo e a seguir instalou-se em Bagdá, onde permaneceu por um período de quinhentos anos. Depois disso, a liderança passou para o sultão turco de Istambul. O último sultão foi derrubado em 1924, e desde então o mundo islâmico deixou de ter um califa como líder. (GAARDER, 2002, p. 122). Como religião, o islã compreende tanto a esfera espiritual quanto a esfera social. Ele pretende abarcar todos os aspectos das relações humanas em coletividade, passando a fazer a interpretação das leis, do Direito e da política como um todo. Na grande parte dos países islâmicos, não existe um sacerdócio organizado, mas os líderes religiosos de grande conhecimento filosófico e religioso acumulam funções jurídicas e políticas, sendo bastante respeitados por todos. No islã, por tradição, não há de se falar em distinção entre a moral e a fé, tampouco entre a política e a religião. O Corão, a Suna e o Xariá, livros sagrados do islamismo, estabelecem todas as obrigações morais, religiosas e sociais do homem. (GAARDER, 2002, pp. 130 e 131). Com relação à economia e à propriedade privada, devido à cultura árabe herdada dos nômades, o Corão faz grande referência ao comércio como fonte de subsistência, não questionando o direito à propriedade privada. Coloca, porém, algumas limitações e restrições ao 38 enriquecimento, como a proibição de juros. Tal regra, todavia, não atinge a área das finanças internacionais, sendo que na maioria dos países árabes vigora o liberalismo no mercado e na economia. (GAARDER, 2002, p. 133). Visto como os fenômenos religiosos se manifestaram no mundo, influenciando a ordem jurídica nas sociedades onde surgiram, passa-se a compreender que é quase impossível se falar no surgimento de um Estado Moderno totalmente separado da religião como fonte de Direito. A análise histórica demonstra claramente que o fenômeno religioso acompanha a espécie humana em qualquer estágio evolutivo de organização da sociedade. A seguir, o trabalho tratará sobre as origens históricas do Estado, analisando como se deu essa passagem do Estado medieval, onde a religião se confundia com o Direito, para o Estado Moderno, que pretende ser laico, mas que não pode, conforme se depreende dos ensinamentos de Lassalle sobre os fatores reais do poder, ignorar a cultura religiosa do povo que o constitui. 1.3. A RELIGIÃO E O ESTADO MODERNO. Se levarmos em consideração apenas a história ocidental européia, pode-se dizer que o cristianismo foi a religião que mais influenciou na formação daquilo que se conhece hoje como Estado moderno de Direito. Após a morte de Jesus, seus discípulos se colocaram a espalhar sua doutrina primeiramente para as tribos de Israel e depois para os gregos e outros povos vizinhos tidos como “gentios”37. Como a doutrina sofria grande repressão pelas autoridades judaicas ortodoxas, os seguidores de Jesus sofreram uma discriminação quanto ao restante dos judeus, passando a ser chamados de “nazarenos”, ou seja, seguidores de Jesus de Nazaré. Para as altas classes judaicas, nada de bom poderia vir da aldeia de Nazaré. O nome, portanto, além de designativo, era um termo pejorativo. Os nazarenos foram 37 “A palavra gentio designa um não-israelita e deriva do termo latim „gentium’ (significando “gentes" ou “povos”) e é muitas vezes usada no plural. Os tradutores cristãos da Bíblia usaram esta palavra para designar coletivamente os povos e nações distintos do povo Israelita.” (Wikipédia, a enciclopédia livre. Gentio. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Gentio>. Acesso em: 3 mar. 2009). 39 declarados formadores de uma nova seita que, por ser herege, deveria ser perseguida e exterminada.38 A fuga da perseguição judaica foi um dos fatores decisivos para a expansão do cristianismo em outros lugares do mundo. A evangelização dos gentios teve, dessa forma, dois principais propósitos: fugir da perseguição dos judeus, evitando que os ensinamentos se perdessem para sempre, e tornar a doutrina de Jesus universalmente conhecida e praticada por todos os povos do planeta. Os primeiros seguidores gregos de Jesus se puseram a pregar a doutrina na Antióquia, uma cidade do Império Romano que reunia cerca de 500 mil habitantes. Foi lá que os nazarenos passaram a ser chamados, pela primeira vez, de “cristãos”39. Foi nessa época que Saulo, um dos perseguidores de cristãos, teve uma experiência mística com Jesus e se converteu ao cristianismo, sendo batizado com o nome de Paulo, tornando-se um dos principais divulgadores da doutrina de Jesus entre os povos gentios. A conversão de Saulo foi o maior exemplo de que o cristianismo poderia ser praticado por qualquer tipo de povo, e não estaria restrito à observância de todas as leis judaicas, como as de restrição alimentar e a da circuncisão. Esse foi um dos fatores decisivos para a propagação do cristianismo entre os gregos e demais povos, que consideravam tais leis uma transgressão à dignidade do homem. A despeito de ser uma importante jogada política expansionista, a doutrina de Jesus enfatizou que, mais importante do que o cumprimento de rituais externos, era aquilo que o homem deveria trazer no coração, pois era isso que ele iria manifestar aos outros. A destruição do Templo de Jerusalém, no ano 70 d.C., separou definitivamente os cristãos da religião judaica, reforçando a sua tendência "católica" (isto é, “universal”). Missionários cristãos ultrapassaram as fronteiras do Império Romano, chegando a lugares até então inexplorados pela cultura monoteísta. O cristianismo se espalhou por grande parte da Arábia, da Grécia, do Egito, da Ásia menor e da Europa central. (MERTON, 2009). Tal expansão foi narrada e documentada pelos escritos que vieram a ficar conhecidos como os “Atos dos Apóstolos”, hoje um dos principais livros que compõem a Bíblia. Foi nesse período também que começaram a surgir os primeiros documentos escritos que narram a 38 MERTON, H.K. História do Cristianismo: um legado de 2 mil anos. Disponível em: <http://artedartes.blogspot.com/search/label/cristianismo>. Acesso em: 7 abr. 2009. 39 Ibidem. 40 vida e obra de Jesus. Tais documentos passaram a ser chamados de Evangelhos, palavra grega que significa “Boa nova”, ou “Novidade”. Isso porque o cristianismo seria a doutrina tida como novidade a todos os povos que quisessem ser livres. Os primeiros evangelhos, escritos em língua copta e grega, são datados por volta de 70 d.C., sendo que o apocalipse de João foi o último documento a ser escrito, mediante a inspiração de revelações que o apóstolo João teria tido no fim de sua vida enquanto esteve preso e exilado na ilha de Pátmos, na Grécia, por volta de 95 d.C..40 Apesar das controvérsias quanto à autenticidade e à datação dos documentos cristãos, muitos cientistas historiadores os consideram uma importante fonte histórica de como a religião monoteísta influenciou na sociedade daquela época, fazendo surgir o que se denominou de a “queda do Império Romano do ocidente” e a ascensão do “Império Bizantino do oriente”. Após a perseguição dos cristãos, com a ascensão de Constantino ao trono, o cristianismo passou a ser permitido na Grécia e em outros locais sob o jugo do Império Romano. Tal evento se deveu a um acontecimento histórico no qual Constantino, na Batalha da Ponte Mílvio, em 28 de outubro de 312 d.C., perto de Roma, obteve uma vitória esmagadora sobre as tropas do inimigo, sendo tal feito atribuído ao Deus cristão. Segundo a tradição, na noite anterior à batalha, Constantino havia sonhado com uma cruz, e nela estava escrito em latim "In hoc signo vinces" ("sob este símbolo vencerás"). Pela manhã, um pouco antes da batalha, mandou que pintassem uma cruz nos escudos dos soldados, conseguindo a vitória logo em seguida. Em 313 d.C., Constantino subiu ao trono do Império Romano e outorgou o Édito de Milão, que declarou a liberdade de culto ao cristianismo e estabeleceu uma segunda capital para o império em Bizâncio, que passou a ser chamada de Constantinopla. (VICENTINO, 2001, p. 91). O cristianismo estava livre da perseguição, mas era obrigado a coexistir com a profusão dos deuses gregos e romanos, adotados pelos imperadores e por grande parte da população. Jesus e o Deus único eram apenas mais uma das divindades do panteão adotado pelo povo. Essa situação, porém, viria a mudar por volta de 391 d.C., quando Teodósio, o imperador que sucedeu a Constantino no Poder, assinou o Édito de Tessalônica, 40 MERTON, H.K. Cristianismo: fontes documentais. Disponível em: <http://artedartes.blogspot.com/search/label/cristianismo?updated-max=2008-0815T11%3A39%3A00-03%3A00&max-results=20>. Acesso em: 7 abr. 2009. 41 estabelecendo que o cristianismo se tornasse a religião oficial do Império Romano, impondo a toda população a sua doutrina e abolindo as práticas politeístas em todas as terras abrangidas pelo Império. Assim, os romanos passaram a ter uma só religião, o cristianismo. (VICENTINO, 2001, p. 91). No governo de Teodósio, porém, o Império Romano começou a entrar em declínio. A intensificação dos ataques bárbaros e o enfraquecimento da economia escravista geraram grande debilidade às cidades do Império. O Império Romano, enfraquecido economicamente pela crise do escravismo e pela expansão do cristianismo, não teve condições de se defender dos ataques externos. A ascensão do cristianismo correspondeu à queda do Império Romano. Esse seria o começo do cristianismo e da Igreja Católica como os grandes formadores da mentalidade jurídica e social do período histórico que se seguiu: a Idade Média. (VICENTINO, 2001, p. 90). Depois da ascensão da Igreja, o cristianismo passou a ter um papel fundamental na ordem jurídica da sociedade ocidental medieval à medida que exercia o papel de “Estado”. Nesse aspecto, a Igreja se utilizou de sua doutrina religiosa junto com elementos jurídicos romanos para formar uma nova ordem social. Assim, pode-se dizer que o maior legado romano àquela posteridade foram os conjuntos de leis conhecidos como Codex41 romano. Esse código de leis abrangia o Jus Naturale (Direito Natural), o Jus Gentium (Direito das gentes), aplicado a todos os povos, e o Jus Civile (Direito Civil), aplicado aos cidadãos romanos. (VICENTINO, 2001, p. 92). Com essa base jurídica romana, a Igreja pôde continuar a organizar a sociedade da época, evitando a decadência total da economia. Aos poucos foi introduzindo elementos e normas advindas da própria doutrina cristã. Foi o período medieval denominado como “A Alta Idade Média”, um período marcado pela coexistência entre a Igreja Católica como o “Estado” do Ocidente e o Império Romano do Oriente como o “Estado” do Oriente. Ao contrário do que se haveria de esperar, o colapso do Império Romano do ocidente não foi acompanhado na parte oriental do Império, cuja economia era baseada no comércio e não no escravismo. Dessa forma, Constantinopla tornou-se o centro do Império Romano do Oriente, passando a ser conhecido como Império Bizantino. Nessa metade do Império, prevalecia o idioma grego e não o latim. A autoridade máxima era o imperador, 41 Códice: “da palavra em latim Codex, que significa "livro" ou "bloco de madeira. [...] É um avanço do rolo de pergaminho, e gradativamente substituiu este último como suporte da escrita. O códice, por sua vez, foi substituído pelo livro impresso.” (Wikipédia, a enciclopédia livre. Códice. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Codex>. Acesso em: 3 mar. 2009). 42 considerado ao mesmo tempo chefe do exército e chefe da Igreja. (VICENTINO, 2001, p. 106). Aqui se deu a divisão da Igreja Católica, conhecida como a “Cisma do Oriente”. Na parte ocidental, o chefe político e religioso era o chefe da Igreja Católica, o bispo de Roma, que passou a ser chamado de Papa. Na parte oriental, o chefe político e religioso do Império e da Igreja Católica era o próprio imperador. Assim, a Igreja Católica era o Poder estatal no ocidente, cuja capital era Roma. O Império Bizantino era o Poder estatal no oriente, cuja capital era Constantinopla (antiga Bizâncio). O principal imperador bizantino foi Justiniano (527-565), responsável pela temporária reconquista de grande parte do Império Romano do Ocidente, incluindo a própria cidade de Roma. Seu maior legado, na verdade, foi a compilação das leis romanas desde o século II, o corpus Juris Civilis (Corpo do Direito Civil), uma revisão e atualização do direito romano que serviu de base para os códigos civis de diversas nações na atualidade. O Codex Justinianus, depois chamado de Corpus Juris Civilis, foi redigido por uma comissão de dez juristas e era composto das constituições imperiais, da compilação de normas jurídicas (chamada Digesto ou Pandectas), de um resumo para os estudantes de direito (chamada Institutas) e de novas leis para solucionar controvérsias jurídicas (chamadas Novelas ou Autênticas). (VICENTINO, 2001, pp. 106 e 107). Após o auge do governo justiniano, o Império Bizantino também começou a entrar em declínio, devido à pressão econômica nas fronteiras orientais, aos gastos com as guerras e à expansão ocidental marcada especialmente pelas cruzadas, culminando com a queda definitiva do Império em 1453, quando os turco-otomanos tomaram a cidade de Constantinopla, mudando seu nome para Istambul e transformando-a na capital do Império Otomano. Apenas em 1930, no entanto, a cidade mudou oficialmente de nome, passando a ser considerada a capital da atual Turquia. (VICENTINO, 2001, p. 107). Mesmo com o palco formado pela “Cisma Católica”, o cristianismo predominou tanto na sociedade feudal do ocidente europeu quanto no Império Bizantino na parte oriental da Europa, constituindo-se como doutrina religiosa que mais influenciou na história e no Direito da sociedade moderna do mundo Ocidental. Como visto, em 476 deu-se a queda do Império Romano do ocidente e a ascensão da Igreja como Poder estatal. Para muitos historiadores, esses fatos deram início à Idade Média e à transição da economia escravista greco-romana para a economia feudal. O modo feudal de produção predominou na Europa ocidental durante cerca de 1000 anos, sendo fortemente influenciada pelas ideologias da doutrina cristã. Ao contrário do comércio oriental do Império Bizantino, o comércio 43 ocidental e a utilização das moedas de troca entraram em decadência com a instabilidade causada pelas inúmeras guerras, sendo aos poucos substituídos pelo modo feudal de sociedade. (MORAES, J., 1998, p. 109). Nesse “modo de produção”42, ocorreu um forte movimento de êxodo urbano em direção às regiões rurais, onde havia mais proteção contra os ataques bárbaros. Essa unidade de produção agrária que reunia em si uma estrutura societária ficou conhecida como feudo. O feudo pertencia a uma camada de senhores da nobreza ou do alto clero da Igreja. A servidão era o sistema de trabalho que predominou nesse período histórico, e era marcado pelo trabalho realizado no feudo em troca de uma pequena parcela da produção, de um pedaço de terra para moradia dentro do feudo e da proteção dos nobres que detinham as terras. Essa condição de trabalho era incentivada e apoiada pela Igreja, que disseminava a mentalidade de que cada classe da sociedade estava destinada a um determinado tipo de ofício. O dos servos seria o trabalho na terra, o do clero seria rezar pela produção, pelo desenvolvimento e pela proteção de todos dentro do feudo, e a da nobreza seria a de proteger militarmente as propriedades. Dessa forma, todo o modo de produção feudal que vingou na Europa durante a Idade Média estava baseado num sistema de sociedade tripartido em Clero, Nobreza e Servos. (MORAES, J., 1998, p. 111). Havia ainda outro sistema de classes sociais estabelecida especialmente entre os senhores feudais, determinando relações de suserania e vassalagem. Nessas relações, o senhor feudal mais poderoso cedia terras ou outros privilégios a um nobre menos poderoso em troca de proteção militar e outros tipos de favores convenientes para o feudo. O senhor que doava as terras ou privilégios se tornava o suserano, e o nobre que se comprometia com o feudo era chamado de vassalo. (VICENTINO, 2001, p. 120). Como, após a queda o Império Romano do ocidente, o cristianismo assumiu o Poder, o período medieval inteiro foi marcado por uma forte religiosidade cristã, cujos objetivos era zelar pela homogeneidade dos princípios espirituais e promover a conversão dos pagãos. Presentes em todos os níveis de uma sociedade marcada pela religiosidade, os membros da Igreja medieval cimentaram valores como a 42 “Modo de produção significa a forma como se organiza a produção de riquezas numa sociedade, o que implica um conjunto de relações econômicas, mas também sociais, políticas e culturais, intimamente ligadas entre si e interferindo umas nas outras.” (VICENTINO, 2001, p.117). 44 passividade e a subordinação dos homens comuns perante o senhor espiritual, encarregado de proteger as almas, quanto o senhor feudal da terra, que protegia os corpos. O poder da Igreja, portanto, não estava restrito ao plano espiritual, por mais importante que este fosse para as sociedades medievais; também era temporal. Isso porque a Igreja pouco a pouco foi-se transformando na maior proprietária de terras da Idade Média e construindo fortes vínculos com a estrutura feudal. [...] Apesar de todo seu poder e influência, a estrutura da Igreja medieval encontrou dificuldades de manter a homogeneidade da doutrina cristã, em meio à insegurança do período. Era comum o surgimento de seitas, facções ou orientações, que, embora fundadas em princípios cristãos, eram contrárias à doutrina oficial da Igreja – eram as chamadas heresias. [...] Entretanto, durante a Alta Idade Média, o crescimento vertiginoso de seu patrimônio e o alcance da influência da instituição sobre o conjunto da sociedade medieval sobrepujaram as dificuldades enfrentadas pela Igreja. A instituição tornou-se a mais importante e poderosa do período. Os poderes locais dos senhores feudais integravam-se ao poder universal da Igreja, ambos visando, em última instância, manter a organização econômica e social feudal que lhes era favorável. (VICENTINO, 2001, pp. 122 e123). Culturalmente, o período medieval conheceu um pequeno estágio de estagnação em relação à produção greco-romana, sendo pejorativamente chamada por muitos estudiosos de “A Idade das Trevas”. No entanto, parte dessa estagnação se deveu à escassez de recursos e às péssimas condições materiais, aliadas ao analfabetismo crônico das grandes massas. (VICENTINO, 2001, p. 136). A Igreja, para não deixar perder a cultura greco-romana, monopolizou todo o conhecimento em monastérios e bibliotecas restritas ao clero. Tais conhecimentos, aliados à intensa religiosidade que acabou se refletindo na produção econômica, social, cultural e artística do período, passaram a ser denominados de “teocentrismo cultural”. Toda a cultura medieval tinha Deus como o centro da produção. E como Deus era um conceito imutável, a moral religiosa impedia muitos dos avanços tecnológicos e científicos. A produção era quase que voltada restritamente para a área agrícola (para o cultivo dos feudos), bélica (para a proteção das terras) e filosófica. (VICENTINO, 2001, p. 137). Nesse sentido, os principais pensadores e filósofos, inclusive juristas, eram do meio clerical e religioso. Como exemplo, sabe-se que os monges da Idade Média resgataram os conhecimentos de Santo Agostinho, um dos doutores da Igreja que viveu entre os anos 354 e 430, durante o período de declínio do Império Romano. Tendo por inspiração as obras de Platão, Santo Agostinho foi um dos maiores filósofos e também juristas de sua época, reunindo e sintetizando grande parte da Filosofia clássica e sistematizando a doutrina teológica do cristianismo a fim de combater o paganismo e as heresias. Mesmo durante a Baixa Idade Média o pensamento religioso predominava na produção intelectual. A concepção 45 agostiniana foi aos poucos sendo substituída pela ideologia de São Tomás de Aquino, representante da filosofia escolástica. O conjunto de idéias e concepções filosóficas de São Tomás de Aquino, que retomava as tendências aristotélicas, ficou conhecido como tomismo, e envolvia assuntos como o “livre arbítrio”, o uso da “razão” humana como fonte de progresso, e o “esforço” do homem na construção de seu destino. O tomismo era uma filosofia que buscava conciliar a “fé e a razão” em prol do progresso científico que esteve estagnado durante a Alta Idade Média. (VICENTINO, 2001, p. 140). Junto com essas idéias e com o renascimento urbano provocado pelas cruzadas expansionistas, surgiram as primeiras universidades voltadas à produção de conhecimentos. Embora restrita aos membros do clero e a alguns nobres admitidos, as universidades passaram a difundir pouco a pouco o conhecimento. Os cursos básicos eram compostos pelo chamado trivium, formado pelo estudo da lógica, da gramática e da retórica, e pelo chamado quadrivium, formado pelo estudo da astronomia, da música, da aritmética e da geometria. Após o curso básico, os estudantes poderiam ingressar nos “cursos liberais”, voltados para o exercício de um ofício específico como Medicina, Teologia ou Direito. (VICENTINO, 2001, p. 139). Na produção de arte arquitetônica, prevaleceram as construções de estilos românico e gótico, caracterizadas por igrejas e templos de torres altas, pela verticalidade das construções e pela utilização de rosetas e vitrais decorativos. Na pintura e na escultura, houve pouca inovação, exceto pela arte das iluminuras que estava presentes em documentos religiosos como missais e bíblias. (VICENTINO, 2001, p. 138). O sistema feudal de produção começou a entrar em colapso com o início dos movimentos cruzadistas. Com o crescimento demográfico, a economia agrícola tornou-se insuficiente para o sustento das pessoas que viviam nos feudos. A saída encontrada pelos senhores feudais foi esvaziar as terras, enviando o maior número de pessoas possível em expedições à Terra Santa com o objetivo de proteger as rotas de peregrinação e libertar Jerusalém do domínio árabe, detendo a expansão e as conquistas dos califas do islã. (BRAICK, 1997, p. 88). Em 1095, o papa Urbano II pronunciou, no Concílio de Clermont, o tão famoso discurso incitando os cristãos a ingressassem nas expedições cruzadistas rumo à Terra Santa, em troca do perdão de todos os pecados. Entre 1096 e 1270, partiram oito cruzadas européias em direção ao oriente. Nesses quase duzentos anos de emigrações, houve um 46 crescente reavivamento do comércio e o ressurgimento de algumas poucas cidades. Tal renascimento urbano e comercial fez emergir uma nova classe social: a burguesia. (VICENTINO, 2001, pp. 128 e 129). A ascensão da burguesia e as novas ideologias sobre o comércio e o lucro, combinadas com a centralização do Poder nas mãos dos reis, fez a Baixa Idade Média entrar cada vez mais em declínio, dando espaço para a Idade Moderna, marcada pela expansão marítima européia, pelo renascimento cultural, pela reforma protestante e pelo absolutismo, um sistema de sociedade em que todo o Poder estatal se concentrava nas mãos dos reis. As monarquias da Idade Moderna, mesmo em frente à nova realidade do capitalismo, eram baseadas nas doutrinas religiosas formuladas pelo clero, como a Teoria do Direito Divino, na qual o rei seria o representante de Deus na Terra. (BRAICK, 1997, p. 102). Como a ideologia cristã dizia que todo o poder sobre os homens vinha do Alto, a interpretação das palavras de Jesus foi deturpada para legitimar o poder absoluto da nobreza. A figura do Rei se confundia com a do próprio Estado. O Rei era o Estado. No entanto, após o declínio das monarquias absolutistas, a Igreja saiu oficialmente do palco estatal. Houve uma verdadeira ruptura entre o Estado e Igreja, dando origem ao Estado laico iluminista. A ideologia religiosa cristã, por muito tempo deturpada, retorna às origens, deixando de se identificar com as classes dominantes e se aliando aos dominados. Dessa forma, hoje em dia, principalmente após a Revolução Industrial, a doutrina católica sobre o “Reino de Deus” que influencia no “reino da terra” está mais para uma interpretação sociológica do que aristocrática. Em tal renovação ideológica católica, as pessoas devem se comprometer a realizar a paz e a harmonia social através da partilha dos bens e das riquezas. Após a Revolução Industrial e a Revolução Francesa, que acabaram de vez com o poder absolutista e firmaram os alicerces do Estado Moderno de Direito, galgado em ideologias iluministas, o altruísmo e a caridade voltaram a ser a ideologia religiosa predominante na Igreja Católica em resposta ao crescente capitalismo mercantilista, de modo que, mesmo no período pós-medieval e pós-moderno, a religião cristã continuou influenciando na produção de normas jurídicas reguladoras da sociedade. No entanto, a influência se tornou uma oposição ao crescente Poder da burguesia e do capitalismo em prol das classes desfavorecidas. Na Idade Contemporânea, a Igreja, estimulada pela contrareforma protestante e interessada em não perder adeptos, buscou ideologias religiosas mais condizentes com o cristianismo primitivo, permitindo que a religião se 47 voltasse para a proteção dos direitos do povo e das massas proletariadas constantemente exploradas pelo poder econômico capitalista, ao invés de proteger as altas classes burguesas da sociedade. A mentalidade religiosa precisou sofrer essa mudança de mentalidade para não entrar em colapso.43 Um exemplo de como a Igreja influenciou na produção de leis que favorecessem as massas foi a edição da carta-encíclica Rerum Novarum, na qual o Papa Leão XIII visava estimular a elaboração de leis estatais que abrandassem as ações praticadas pelos donos das indústrias, baseando-se em princípios cristãos de igualdade, fraternidade, etc. Isso tudo porque, na época da Revolução Industrial, os trabalhadores eram explorados nas indústrias, com cargas horárias que chegavam a até 18 horas diárias. Havia a exploração do trabalho proletariado em condições subumanas de vida, como jornadas de trabalho excessivas, exposição a ambientes sujos, insalubres, escuros, sem higiene, alojamentos mal estruturados e o aliciamento de mulheres e crianças como mão-de-obra mais barata.44 Mulheres e crianças morriam nas fábricas sem as menores condições humanas de trabalho. O aparecimento da encíclica papal Rerum Novarum e da lei de Peel45 traduziu-se em medidas que tentaram resgatar a noção de Direitos Humanos em contraposição à lógica capitalista de produção desenfreada. Nesse estágio de evolução histórica, surgiram em grande proporção outras ideologias humanitárias, como o socialismo, o comunismo e os movimentos anarquistas. Nesse ínterim, viu-se cada vez mais forte a necessidade de se positivar normas gerais sobre a dignidade e os direitos fundamentais do ser humano, todos também baseados e influenciados por ideologias religiosas de igualdade, fraternidade, direito à vida, etc. Essa positivação seria a manifestação mais sublime de um Direito Natural inerente ao ser humano que vem sido conservado desde os mais remotos tempos históricos. Estavam sendo traçadas as primeiras idéias referentes aos Direitos Humanos. 43 IGREJA CATÓLICA. Constituição Pastoral Gaudium et Spes. Sobre a Igreja no mundo atual. Roma, Vaticano, 1965. Disponível em: <http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vatii_const_19651207_gaudium-et-spes_po.html> Acesso em: 23 fev. 2009. 44 ARANHA, Maria Lúcia de Arruda e MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando, introdução à Filosofia. 2. ed., São Paulo: Editora Moderna, 1993. p. 10. 45 “Foi uma das primeiras leis trabalhistas que surgiram para proibir o trabalho em determinadas condições, como o dos menores até certa idade e o de mulheres em ambientes ou sob condições incompatíveis.” (NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Iniciação ao Direito do Trabalho. 30. ed., São Paulo, SP: Editora LTR, 2004. p. 48). 48 Após os horrores da Primeira e da Segunda Guerras mundiais, na qual o planeta conheceu todo o tipo de desrespeito e maus tratos ao ser humano motivado por regimes totalitaristas de extrema direita (fascismo, nazismo, etc), finalmente surgiu a positivação dos direitos fundamentais inerentes a todo ser humano. A Declaração Universal dos Direitos do Homem traduziu todos os anseios de Direito Natural que permeavam a consciência coletiva, social e religiosa do povo, entrando no ordenamento jurídico e constitucional de muitos países, inclusive no do Brasil, por meio de ratificações de tratados internacionais. São os famosos Direitos Humanos.46 Vê-se, portanto, que as religiões, mormente o cristianismo para a sociedade ocidental, foram de grande influência para a formação dos atuais Estados de Direito, participando direta e/ou indiretamente na ordem normatizadora das nações de inúmeras maneiras ao longo da evolução histórica da humanidade. 2. DO DIREITO NATURAL. 2.1 . O QUE É JUSNATURALISMO. Quando se fala em jusnaturalismo, se está falando de um ramo da Filosofia do Direito que coloca o homem como o centro do conhecimento em prol do próprio homem. A Filosofia do Direito, como um todo, possui um aspecto antropológico, no qual o ser humano é colocado em destaque. As vantagens de se desenvolver uma ciência com essas características é a valorização do aspecto cognoscente da ciência, ou seja, o aspecto capaz de formular, a partir da essência, os conceitos jurídicos que formam o ordenamento social.47 Não se pode reduzir o conceito de Direito ao que prega a definição de uma ciência jurídica em particular, como o Direito Civil ou o Direito Penal, pois a espécie não pode abranger o todo. A competência para definir o conceito de Direito pertence ao âmbito da Filosofia do Direito, tendo o homem como seu principal fundamento.48 O homem é tão importante para a Filosofia do Direito que, de certa forma, a visão que se tem do Direito é a mesma REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. Adaptado ao Novo Código Civil – Lei Nº 10.406/02. 27. ed., São Paulo, SP: Editora Saraiva, 2004. pp. 268 e 269. 47 Sobre a Filosofia do Direito, ver: NADER, Paulo. Filosofia do Direito. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2003. p. 12. 48 REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. Adaptado ao Novo Código Civil – Lei Nº 10.406/02. 27. ed., São Paulo, SP: Editora Saraiva, 2004. p. 15. 46 49 visão que o homem tem de si mesmo. O Direito é um reflexo da essência humana. O jusnaturalismo consiste, dessa forma, numa vertente jurídica que vai até essa fonte essencial buscar o sentido e a compreensão sobre as normas jurídicas internas e intuitivas a todo ser humano.49 A pergunta que se pode fazer, portanto, é: “será possível ir até essa fonte essencial sem antes passar pelo prisma da espiritualidade e da religiosidade humana? Existe alguma relação entre o que é religioso e o que é juridicamente essencial?” O estudo sobre os aspectos cognoscentes da Filosofia do Direito e do jusnaturalismo antropológico pode oferecer algumas respostas. O jusnaturalismo, como ciência que analisa as origens jurídicas, não se restringe aos aspectos puramente positivos da lei. O conceito de Direito que o jusnaturalismo pretende obter passa por questões muito mais amplas, como a moral, a ética, a religião, os valores pessoais e espirituais, sem, no entanto, descartar a reflexão concreta e positiva do Direito. O jusnaturalismo busca uma realidade mais profunda para o homem e para o ordenamento jurídico, se firmando como uma doutrina que busca idealizar um Direito Natural galgado num sistema de condutas entre as pessoas de uma determinada sociedade mais amplo e profundo do que o sistema formado unicamente pelas leis e pelas normas positivadas do Estado Moderno de Direito. A busca por esse Direito Natural se faz necessária pelo fato de tal Direito ter uma validade natural em si mesmo, sendo superior e anterior a qualquer ordem jurídica positivada. Portanto, em casos de conflitos de normas, o jusnaturalismo busca prevalecer sobre a norma positivada por se relacionar diretamente com a essência formadora do ser humano. Por esse ponto de vista, qualquer Estado ou ordenamento jurídico que se oponha diretamente aos princípios basilares do Direito Natural podem ser considerados ilegítimos perante a sua sociedade e ao seu próprio povo. O jusnaturalismo prega que, embora toda lei seja legal, nem toda lei é justa. Dessa forma, nem toda lei merece ser obedecida, mas tão somente aquelas que são justas, as que estão de acordo com os princípios fundamentais inerentes à natureza e à dignidade do ser humano.50 O Direito Natural, historicamente, se divide em duas grandes vertentes: a do Direito Natural Clásssico e a do Direito Natural Racionalista. A Primeira vertente possui como características o aspecto objetivo da Lei, sua postura divina e seu 49 Sobre o jusnaturalismo como a corrente filosófico-jurídica que busca o caráter imutável e essencial das leis, ver: CICCO, Cláudio de. História do Pensamento Jurídico e da Filosofia do Direito. 3. ed., São Paulo, SP: Editora Saraiva, 2006. p. 21. 50 RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. (tradução: Marlene Holzhausen). São Paulo, SP: Martins Fontes, 2004. pp. 25 e 26. 50 conteúdo cosmológico imutável. Já a segunda vertente possui como características o aspecto subjetivo e antropológico da Lei, colocando o homem e a razão como fonte da moralidade jurídica. O foco sai do aspecto divino e adentra a esfera do puramente humano. A vertente clássica foi desenvolvida pelos filósofos gregoromanos e pelos cristãos desde a antiguidade clássica até a Idade Média. A vertente racionalista passou a ser desenvolvida a partir da Idade moderna com o surgimento dos movimentos iluministas inerentes ao renascimento urbano e cultural do mundo ocidental.51 Ambas vertentes filosóficas do jusnaturalismo possuem pontos fortes e críticas peculiares a si mesmas, sendo que ainda resistem ao passar dos séculos, não sendo inteiramente abandonadas, apesar de estarem praticamente em desuso nos dias atuais, devido à positivação inevitável e definitiva do Estado Moderno de Direito que se deu pela herança do sistema jurídico romano-germânico. Os principais pensadores do jusnaturalismo, desde as épocas mais remotas até as mais atuais, são Aristóteles, Marco Túlio Cícero, Santo Agostinho, São Tomás de Aquino, Hugo Grócio, Thomas Hobbes, John Locke, Montesquieu, Jean Jacques Rosseau e Immanuel Kant, todos em contraposição quase absoluta aos pensadores puramente historicistas ou positivitas, como Hegel, Karl Marx, Augusto Comte e Hans Kelsen. 2.2. OS TEÓRICOS DO DIREITO NATURAL. 2.2.1. TEÓRICOS DO JUSNATURALISMO CLÁSSICO. 2.2.1.1. ARISTÓTELES. Aristóteles foi um filósofo grego nascido em Estagira, na Calcídica, por volta de 384 a.C., morrendo em 322 a.C.. Foi aluno de Platão, superando em muitos aspectos o seu mestre, tornando-se professor e preceptor de muitas pessoas importantes, como Alexandre, o Grande. Seus pensamentos influenciaram de tal modo as ideologias pós-socráticas e cristãs que é considerado o pai do pensamento 51 STEUDEL, Adelângela de Arruda Moura, Jusnaturalismo clássico e Jusnaturalismo racionalista: aspectos destacados para acadêmicos do curso de Direito. Disponível em: <http://www.propesp. uepg.br/publicatio/hum/2007_1/Adelangela.pdf>. Acesso em: 8 abr. 2009. 51 lógico ocidental. A Filosofia de Aristóteles permeia vários campos de conhecimento científico, como a Lógica, a Retórica, a Física, a Psicologia, a Biologia, a Metafísica, a Ética, a Poética, a Política e o Direito. Com relação ao Direito, a tônica da filosofia aristotélica gira em torno da noção de “aequitas” (equidade, em grego). Nesse aspecto, Aristóteles acreditava que a “equidade” era o verdadeiro Direito. A noção de equidade passa pela noção de justiça. A preocupação aristotélica está no sentido de definir aquilo que é justo. O verdadeiro Direito é aquilo que é justo. A definição do que é justo está nas leis de caráter imutável, inerentes ao ser humano e estabelecidos por uma fonte anterior à razão humana, ou seja, à uma fonte Divina. Segundo Aristóteles, a razão humana não pode ser fonte de si mesma, visto que é historicamente mutável. Se a história está em constante movimento, seria necessário existir um motor externo e existencialmente anterior à ela que fosse capaz de propulsionar a sociedade à sua organização, ou seja, o motor externo, natural e imutável seria a própria Divindade. Para Aristóteles, o tempo é inexistente em Deus, de modo que a noção de moral e de virtude é um conceito sempre constante, podendo estar apto a formar a base durável da justiça humana. Nesse aspecto, a virtude formadora da equidade e da justiça é um fenômeno que só pode ser apreendido no cotidiano da pólis (cidade). Para Aristóteles, o homem é um ser social que não consegue viver isoladamente. A vida ideal e virtuosa é aquela em que há multiplicidade de funções sociais numa cidade. Se a pólis não existisse, a sociedade reduzir-se-ia à condição de família ou clã, o que é uma situação indesejável para o desenvolvimento das virtudes e, consequentemente, da Justiça. Em último aspecto, o Direito Natural Divino concebido por Aristóteles deve ser a base de uma legislação coerente e condizente com os princípios naturais e imutáveis, conduzindo o ser humano ao seu destino último: a felicidade. Portanto, em tal concepção jusnaturalista, a Lei possui como finalidade teleológica a própria felicidade do homem, levando o Direito para um campo mais místico da antropologia. No entanto, só é justo aquilo que satisfaz a alma do ser humano numa visão macro de pólis, e não numa visão micro e individualista. A satisfação das vontades individuais em detrimento da coletividade são definidas como tirania na filosofia aristotélica. Portanto, a cosmologia cosmopolita é a verdadeira justiça capaz de trazer felicidade a todos ao mesmo tempo, e não a apenas determinados indivíduos. 52 2.2.1.2. CÍCERO. Marco Túlio Cícero foi um advogado romano, jurisconsulto e político do período pós-estóico, que viveu entre 106 a.C. e 43 a.C.. Foi o autor de inúmeros tratados filosóficos sobre as Leis, a Política, o bem, o mal, os deveres, as proibições, a velhice, a amizade e o Estado, transmitindo a tradição grega para a sua posteridade. Sua doutrina jusnaturalista se assemelha bastante à ideologia aristotélica do Direito Natural, sendo também muito influenciado pelo estoicismo52 da época, pelas idéias de Platão e de Sócrates. Tal sincretismo filosófico é característica marcante nos discursos de Cícero. Seu escrito que mais destaca a ideologia do Direito Natural é o De Legibus, no qual ele prega a supremacia do ordenamento divino sobre a Lei humana, sendo esta válida ou não apenas a partir do ponto de vista da justiça natural. Se a Lei humana não refletisse a natureza prima dos princípios da amizade e das virtudes em si mesmas, ela até poderia ser escrita e positivada, de acordo com o processo romano formal, mas não seria justa. Assim, mesmo que os tiranos obrigassem as pessoas a cumprirem uma lei escrita, e esta estivesse em desacordo com os princípios naturais inerentes ao ser humano, tal lei seria injusta. Da mesma forma, Cícero ensinava que não era a Lei escrita que possuía a força para dizer o que deveria ser feito ou para proibir aquilo que não deveria ser feito, pois logo a coação da Lei deixasse de existir, ela não seria mais cumprida. Para Cícero, o verdadeiro Direito é aquele que é cumprido por si mesmo, e não pelo medo da coação, ou pela promessa da recompensa, ou por qualquer outro motivo inteiramente pessoal. A Lei natural deve ser cumprida por possuir um valor intrínseco a si mesma. Um valor natural e superior que é a prova da sua ligação com a Divindade. Essa mesma relação natural, por ser herdada dos deuses, deveria ser aplicada não só ao Direito, mas também naturalmente a todos os âmbitos das relações humanas, como as relações de amizade, de família, etc. 52 “O estoicismo propõe viver de acordo com a lei racional da natureza e aconselha a indiferença (apathea) em relação a tudo que é externo ao ser. O homem sábio obedece à lei natural, reconhecendo-se como uma peça na grande ordem e propósito do universo.” (Wikipédia, a enciclopédia livre. Estoicismo. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Est%C3%B3ico>. Acesso em: 12 mar. 2009). 53 2.2.1.3. SANTO AGOSTINHO. Santo Agostinho foi um importante doutor da Igreja Católica, nascido em 354 d.C. em Tagaste, na Argélia. Viveu, durante sua mocidade, uma vida desregrada e inconsequente, se convertendo ao cristianismo após ouvir a pregação de Santo Ambrósio, bispo de Milão na época. Logo após, fundou uma ordem monástica, tornou-se sacerdote cristão e, em 395, foi ordenado Bispo de Hipona, na Argélia, onde morreu em 430. Santo Agostinho foi um dos maiores filósofos e também juristas de sua época. Sua filosofia retomava as ideologias de Platão, reunindo e sintetizando grande parte da Filosofia Clássica e da Teologia católica, com o propósito pessoal de combater as heresias e o paganismo. Nessa retomada platônica, Agostinho dividia o universo em dois grandes planos ordenados: o plano ideológico e abstrato, formado pela “cidade de Deus”, e o plano real e concreto, formado pela “cidade dos homens”. A “cidade de Deus”, idealizada por Agostinho, reflete o antigo “mundo das idéias” de Platão. Nesses planos de ordenamento, a Justiça Divina prevalecia sempre, pois pertencia a um plano abstrato imutável, um mundo ideário a ser sempre buscado. No “mundo das idéias”, tudo se explicava por meio de conceitos sempre existentes e eternos. Esse ideário deveria ser aplicado ao mundo do homens a fim de modelá-lo de acordo com a própria Justiça Divina. Nesse aspecto, Agostinho retoma o “mito da caverna” de Platão, no qual as pessoas justas, ao conhecer o verdadeiro mundo da justiça, são mortas pelas pessoas injustas que se recusam a conhecer o mundo superior, dizendo que tal mundo não existe. Tanto para Agostinho quanto para Platão, viver preso ao mundo dos homens é o mesmo que permanecer cego no fundo de uma caverna. No entanto, enquanto que para Platão a virtude da justiça já é pré-existente no mundo das idéias, para Agostinho, é possível que o homem construa esse ideário de justiça a partir do seu dia a dia, ou seja, na prática correta das virtudes nos relacionamentos interpessoais na “cidade dos homens”. A ideologia neo-platônica de Agostinho passou a ser chamada de patrística, ou seja, a filosofia dos santos padres, à medida que foi sendo adotada pelos sacerdotes católicos como filosofia básica. Com relação ao Direito propriamente dito, Agostinho falava sobre a Lex Aeterna de origem divina, ao qual o homem não 54 poderia corromper, e na qual o homem deveria se espelhar. Para Agostinho, todo ser humano é um ser nascido com uma predisposição corrupta, voltada para a má índole. Nesse sentido, a Lei Eterna é totalmente desvinculada da razão humana, posto que esta é corruptível. O Estado já nasce imerso na idéia de pecado, o que era uma concepção pessimista. No entanto, sua doutrina dava um norte preciso para a superação da corrupção moral do homem. A Lei Eterna só encontra sua base na natureza, que é Divina. Assim, a Lex Aeterna é a única fonte verdadeira da Justiça e do Direito. Dando ênfase à necessidade da praxis, Agostinho estabelecia o ideal de sociedade justa na fusão entre a “cidade de Deus” (o ideário imutável) e a “cidade dos homens” (a realidade historicamente mutável e corrupta). 2.2.1.4. SÃO TOMÁS DE AQUINO. São Tomás de Aquino foi um frade dominicano nascido na Itália, em 1225, durante o período da baixa Idade Média. Sendo um importante expoente da escolástica53, suas idéias coincidiam com o surgimento de uma nova mentalidade mais aberta que surgia ao final da Idade Média, deixando um pouco de lado o teocentrismo e começando a colocar o homem no centro da produção cultural e científica. O tomismo, como ficou conhecido o conjunto de ideologias de São Tomás, dava grande importância à razão humana, revendo assuntos controversos como o destino, o livre arbítrio e a importância da vontade humana no contexto social. Para São Tomás de Aquino, era totalmente possível conciliar a fé e a razão em prol do ordenamento jurídico da sociedade. A idéia que São Tomás faz do jusnaturalismo retoma as principais idéias aristotélicas sobre a Lex Aeterna, sobre a natureza da verdade e sobre a necessidade de se conhecer a verdade para se poder amá-la. O tomismo prega que a Natureza revela o perfil daquela que a criou, ou seja, estudar e imitar a Natureza é viver de acordo com a Justiça de Deus, a verdadeira Justiça. A fé seria o instrumento capaz de conciliar a razão humana com a verdade natural de Deus. Portanto, nem fé nem razão devem ser consideradas separadamente, mas ambas devem levar o homem à experiência da verdadeira 53 “A Escolástica (ou Escolasticismo) é uma linha dentro da filosofia medieval, de acentos notadamente cristãos, surgida da necessidade de responder às exigências da fé, ensinada pela Igreja, considerada então como a guardiã dos valores espirituais e morais de toda a Cristandade.” (Wikipédia, a enciclopédia livre. Escolástica. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Escol%C3%A1stica> Acesso em: 13 mar. 2009). 55 Justiça social. Quanto à Ética, pregava que todo homem era naturalmente bom, visto que participava da essência divina, mas devia vigiar os próprios atos para praticar somente o bem, que é natural e divino, e evitar o mal, que não é natural e não é divino. A Lei humana, sob esse aspecto, deveria se subordinar à Lei natural, devendo ser boa para todos. A Lei humana que não é boa, não é natural, não tem legitimidade e é de observância duvidosa, assim como todos os jusnaturalistas pregam. Em suma, São Tomás se destacou por unificar em uma única ideologia a visão teológica cristã de mundo com a visão filosófica de Aristóteles sobre o mundo. Se com a escolástica e com São Tomás de Aquino o período medieval já começava a mostrar os gérmens de uma sociedade e um Direito mais baseados na racionalidade humana do que na fé, no período moderno que se seguiu, o racionalismo passou a ser a regra do jusnaturalismo filosófico. A fé não deixou de ter seu valor, e ainda participava da apologética cristã arraigada na mentalidade da sociedade. Assim, a Natureza Divina não deixou de ser objeto de conhecimento dos filósofos, posto que a construção do Direito ainda era carregada de jusnaturalismo. No entanto, o foco deixou de ser dado à divindade em si, passando a ser dado à própria razão humana, na construção de um pensamento metafísico antropológico (ou ontológico). Era o início do crescimento do Estado com base na racionalidade. Os representantes mais notáveis dessa nova vertente mais racional do jusnaturalismo foram Hugo Grócio, Thomas Hobbes, John Locke, Montesquieu, Jean Jacques Rosseau e Immanuel Kant. 2.2.2. TEÓRICOS DO JUSNATURALISMO RACIONAL. 2.2.2.1. GRÓCIO. Hugo Grócio, nascido em 1583 nos Países Baixos, foi um importante jurista, muito célebre por ter se destacado precocemente no ramo do Direito, doutorando-se pela Universidade de Orleans quando tinha apenas 15 anos. A visão jusnaturalista de Grócio definia o Direito Natural como uma percepção jurídica em que as coisas e/ou pessoas são boas ou más por sua própria natureza. Assim, Grócio rompe a união indissolúvel entre a vontade Divina e a vontade do homem. Não era um 56 rompimento com a crença na existência de Deus, mas com a idéia de que Deus quer se envolver nos problemas humanos do cotidiano. Ambas as vontades, a humana e a divina, existiam, ambas eram independentes e ambas poderiam ser naturais. Sua doutrina jurídica levava em consideração a crescente importância das leis em âmbito internacional, tratando sobre a questão bélica inserida no direito de autodefesa do Estado, sendo sua mais importante obra o De iure belli ac pacis (Do direito da guerra e da paz). Grócio não acreditava que a guerra e a coação fosse um meio legítimo de manter a ordem jurídica. Ele pregava que a coação era uma medida de defesa, dando mais foco à vontade do homem em si e criando o civilismo jurídico, ou seja, colocando o homem como sujeito capaz de contrair direitos subjetivos, e não apenas punitivos. A única ocasião em que a guerra e a repressão seria juridicamente aceitável seria no caso da autodefesa. O foco da filosofia de Grócio deixava, portanto, de ser a lei em si, o “dever ser” (a coação), para ser a “vontade do homem” (o civilismo). Nesse aspecto, a Lei Natural devia estar a serviço da satisfação e da vontade do homem. Tais pensamentos influenciaram bastante, posteriormente, na construção da idéia do Estado Liberal e de sua laicização. 2.2.2.2. THOMAS HOBBES. Thomas Hobbes foi um importante político, que também se destacou nas áreas da Matemática e da Filosofia, vivendo entre 1588 e 1679. Quanto à sua doutrina jusnaturalista, era um empirista que formulou a teoria de que o homem é um ser em constante conflito interno entre o bem e o mal, sendo incapaz de viver inteiramente sozinho ou inteiramente em sociedade. É a famosa teoria do “bellum omnium contra omnes”, que significa em latim “a guerra de todos contra todos”. É necessário ao homem que exista uma ordem coatora que lhe imponha limites e dite as normas de convivência. Tal norma coatora seria uma força externa repressora necessária ao desenvolvimento da paz social. Ou seja, a força externa coatora é o Estado. Para Hobbes, assim como o homem possui um corpo físico e natural, o Estado também deve possuir um corpo físico, porém artificial, de organismos reguladores. E tanto o corpo humano quanto o corpo estatal devem estar imbuídos de um espírito vital de “auto-conservação”. No corpo humano, a força vital se expressa pela vontade própria de direitos subjetivos infinitos em constante conflito 57 com os direitos de outrem, concomitante com o desejo de paz entre si. No corpo estatal, a força vital se expressa como a vontade imperante, capaz de manter a ordem e a paz social. Para Hobbes, portanto, a vontade humana deve ser limitada pela vontade estatal, posto que o homem está em constante tensão e conflito interno, o que deu origem ao famoso ditado “o homem é lobo do próprio homem”. Tal concepção jusnaturalista coloca o Estado como uma instituição de existência natural e essencial à vida em coletividade. A Lei natural é a constante busca pela Paz na agregação humana, que só pode ser obtida por meio da existência de um ente superior que imponha a ordem. É necessária e natural a existência do Estado, que se dá por meio de um contrato social. Em prol da paz social, o homem naturalmente abdica de alguns direitos e liberdades, dando origem ao Estado natural. Se o conflito interno é natural ao homem, o desejo pela paz também o é. O contrato social é a autoridade que as próprias pessoas outorgam ao Estado, para que este lhes proporcione a paz. O corpo estatal, em Hobbes, assume, numa analogia, a forma corporal do Leviatã, um monstro que possuía seus membros formados por pessoas, uma representação do mal. Para Hobbes, o Estado era um “mal necessário”. Quanto à relação entre Estado e Igreja, sua doutrina, ao contrário da de Grócio, ainda era favorável ao absolutismo monárquico e à sua coligação com o Poder papal. Thomas Hobbes defendia a idéia segundo a qual os homens só podem viver em paz se concordarem em submeter-se a um poder absoluto e centralizado. Para ele, a Igreja cristã e o Estado cristão formavam um mesmo corpo, encabeçado pelo monarca, que teria o direito de interpretar as Escrituras, decidir questões religiosas e presidir o culto. Neste sentido, critica a livre-interpretação da Bíblia na Reforma Protestante por, de certa forma, enfraquecer o monarca. (Wikipédia, a enciclopédia livre. Thomas Hobbes. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/ Thomas_Hobbes> Acesso em: 16 mar. 2009). 2.2.2.3. LOCKE. No entanto, John Locke, um filósofo empirista inglês que viveu entre 1632 e 1704, possuía uma concepção diferente para o contrato social. Apesar de pregar a mesma idéia da auto-conservação da sociedade, Locke acreditava que, pela Lei natural, a conservação se daria de forma “livre”, sem que fossem necessárias normas coatoras por parte do Estado. Foi o maior pregador do liberalismo estatal, 58 formulando a teoria de que o Estado deveria ser mínimo. A paz social seria garantida pelo livre exercício dos direitos naturais pessoais, tais como o direito à vida, à liberdade e à propriedade. Afirmava que o acesso à propriedade privada só poderia se dar por meio do trabalho, que é o único instituto que poderia justificar a origem da riqueza monetária. Apesar de pregar a liberdade e a igualdade entre os homens, era a favor da escravidão originária do ônus da guerra. Para Locke, a escravidão racial não era aceitável, mas os prisioneiros de guerra que deveriam ser mortos em batalha, não sendo mortos, arcariam com o ônus da servidão em troca da vida. 2.2.2.4. MONTESQUIEU. Após o período dos filósofos empiristas, surge uma nova corrente filosófica chamada iluminismo. Entre os filósofos mais importantes que integraram essa vertente encontrava-se Montesquieu, filósofo francês que viveu entre 1689 e 1755. Em sua obra mais importante, intitulada “O Espírito das Leis”, formulou a teoria de que as leis estatais eram necessárias, pois os seres humanos são indivíduos diferentes, com vontades pessoais diferentes e conflitantes, não sendo capazes de se organizarem sem uma norma superior. Retomando a ideologia de Hobbes sobre o constante estado de tensão entre os homens, Montesquieu vai mais além, conceituando os diferentes tipos de Estados e apontando qual deles é o mais adequado à ordenação jurídica da sociedade. Assim, diferenciava três formas de Estados: o despotismo, no qual o governante domina a sociedade através do medo, a monarquia, na qual o governante domina a sociedade por meio de sua honra adquirida ou herdada, e a república, na qual o governante não possui um poder absoluto, mas equilibrado e harmonizado com outros poderes. A tripartição do Poder entre Executivo, Legislativo e Judiciário é uma doutrina típica de Montesquieu, sendo apontada por ele mesmo como a melhor forma de se formar um Estado. Além disso, Montesquieu conceituou fatores importantes que poderiam ser usados para se definir um Estado e diferenciá-lo de outros, como a natureza do território, o tipo de clima, a história e a política do povo, bem como sua cultura, religião e idioma. Como iluminista, foi um crítico feroz da monarquia absolutista e da influência clerical nos assuntos do poder estatal. Apesar de retomar algumas idéias de Hobbes, se opôs a elas no tocante à natureza das leis. Para o 59 jusnaturalismo de Montesquieu, a Lei natural é inerente ao próprio povo, e à sua própria história, não havendo leis mais justas ou injustas que outras, mas apenas leis adequadas à determinada situação de um povo. Nesse sentido, a Lei surge naturalmente pela força da história do povo e não da vontade estatal sobre a vontade das pessoas. A tripartição dos poderes excluía a idéia de submissão incondicional e apresentava a idéia de um Direito baseado na virtude, na naturalidade do espírito das leis. 2.2.2.5. ROSSEAU. Jean Jacques Rosseau, filósofo suíço que viveu entre 1712 e 1778, foi uma das figuras mais marcantes para o iluminismo francês. Sua ideologia naturalista aborda questões como a liberdade natural e a liberdade social. Na liberdade natural, o homem só visa à satisfação de seus instintos, não se preocupando com as consequencias de suas ações. Na liberdade social, o homem deve se pautar num trato feito de comum acordo, para que a liberdade natural de cada um não venha a prejudicar a do outro. Tal pacto é feito mediante a vontade geral de todos, que teria o poder de submeter ao seu ordenamento tanto as pessoas do povo quanto o próprio governo. A Lei, portanto, nasce de um consenso ao qual todos estão submetidos. É a noção do Direito natural como um contrato social. Para Rosseau, o Direito Natural se revela em um tipo de democracia simples e clara, na qual é necessário haver uma verdadeira comunhão entre os aspectos culturais, religiosos, históricos e jurídicos de um povo para que a vontade geral fosse aplicada tanto às pessoas quanto ao governo de forma eficaz. Com relação ao período de sua vida em que esteve em contato com o cristianismo, Rosseau desenvolveu a teoria de que todo o ser humano é essencialmente bom, retomando a idéia do amor próprio e ao próximo e a da valorização do sentimento de piedade (teosébeia) de se viver em comunidade com os outros. Pregava o livre acesso a Deus, sem a necessidade das instituições religiosas como mediadoras, o que gerava o descontentamento tanto dos católicos quanto dos protestantes, tendo algumas de suas obras queimadas. Rosseau rejeitava a religião revelada. Como iluminista, acreditava que todo o ser humano, 60 nascido essencialmente bom, teria a capacidade para buscar Deus pessoalmente em seu próprio coração. 2.2.2.6. KANT. Immanuel Kant, um alemão que viveu entre 1724 e 1804, foi o filósofo moderno que mais contribuiu para a ideologia jurídica moderna e para a Revolução francesa. Kant foi um dos iluministas mais brilhantes de sua época, inaugurando a ideologia do moralismo jurídico. A principal contribuição de Kant para o jusnaturalismo foi retomar a idéia da Moral e inseri-la no contesto da fé racional. Nesse aspecto, pregava que a fé eclesiástica (a revelada) daria lugar à verdadeira religião, que seria a “fé pura” ou a “fé racional”. No âmbito desta última fé, não estaria excluída a moral. Levando tais conceitos religiosos para o âmbito social, Kant formula um Direito Natural altamente imbuído de moral. Para Kant, a norma moral também possui natureza coatora, e não apenas a norma positivada. Assim, para que uma ação humana se tornasse o princípio de uma legislação natural e universal, era necessário que se agisse por meio dos imperativos categóricos, que incluem em si as normas morais, jurídicas e religiosas. Ao contrário do imperativo hipotético intrínseco à razão pura, no qual a moral existe apenas como uma norma provável e incriada, o imperativo categórico (intrínseco à razão prática) exige que a ação se dê de forma legal e moral, constituindo-se como obrigação incondicional, independente das vontades e desejos de foro íntimo. Assim, Kant transforma a moral numa Razão prática, sem a qual a lei positivada perde sentido, tornando-se apenas externa e superficial, não indo ao âmago da subjetividade humana. A moral, como atributo da consciência humana, é uma lei imperativa de vontade autônoma, ou seja, existente na natureza do homem. É a lei moral que imbui de Valor as ações dos homens. Já a lei puramente positiva se constitui como uma vontade heterônoma, externa ao homem. A crítica que Kant faz para a validação da norma jurídica é a análise entre a eficácia da norma jurídica e a sua repercussão na vontade autônoma, ou seja, na moral subjetiva. Para Kant, a natureza do Direito de “dever ser” só é válida e legítima se houver a harmonia entre a vontade autônoma e a vontade heterônoma, isto é, entre a norma coatora externa e a norma moral interna. Se o comando for moral, é um comando puro. Se não for, 61 não é puro. A filosofia jusnaturalista de Kant dá praticidade ao sistema jurídico moderno, uma vez que utiliza a norma moral como norma igualmente cogente e necessária para se obter a eficácia jurídica sobre a sociedade. Se a norma jurídica estiver em perfeita harmonia com a Razão prática, então a distinção entre Direito e Moral se torna meramente didática, uma vez que ambas adquirem a mesma natureza. 2.3. O JUSNATURALISMO E O DIREITO ATUAL. Com o advento do iluminismo, movimento intelectual altamente racionalista, com o surgimento dos primeiros Estados laicos vindos dos idos da Revolução Francesa e com os códigos napoleônicos, o Direito ocidental foi se tornando cada vez mais positivado, dando origem a pensadores que legitimavam única e exclusivamente uma experiência objetiva da Lei escrita sobre a sociedade. Foi o movimento do positivismo, representado por figuras como Augusto Comte e Hans Kelsen. Aspectos como a moral e a natureza humana ficaram em segundo plano. O reducionismo jurídico tornou-se a regra cotidiana, uma vez que o jusnaturalismo clássico demonstrou não ser efetivo na prática e estava mais identificado com as ideologias socialistas do que capitalistas. Os pensadores começaram a negar que se pudesse recorrer a um Direito Natural em caso de lacuna no ordenamento jurídico, pois o positivismo deveria ser exauriente.54 Assim, o Direito Natural caiu em total desuso durante o século XIX, permanecendo apenas na forma católica do Direito Canônico, que se fundamentava em doutrinas como as de Santo Agostinho e as de São Tomás de Aquino. O adjetivo jusnaturalista começou a ser usado em sentido depreciativo pelos juristas desse século, para denominar fenômenos ou argumentos externos ou alheios ao da pura juridicidade positivada.55 Dando continuidade ao andamento do processo histórico, a humanidade passou pelos horrores e tormentos da I e da II Guerras Mundiais, em cujos contextos conheceram-se todo o tipo de humilhação e degradação da dignidade humana, principalmente por meio dos genocídios e barbaridades cometidos em ampla escala 54 GHIDOLIN, Clodoveo. Jusnaturalismo ou positivismo: uma breve aproximação. Disponível em: <http://www.fadisma.com.br/arquivos/ghidolinpdf.pdf>. Acesso em: 13 mar. 2009). 55 ANDRADE, Hamilton Rodrigo Araújo Freire de. Jusnaturalismo. Formas da doutrina do Direito Natural. Disponível em: <http://direitoepaz.blogspot.com/2008/09/jusnaturalismo.html>. Acesso em: 13 mar. 2009). 62 por regimes totalitários, como os fascismos, e o nazismo. Por causa disso, sentiu-se a necessidade de se criar algo que impedisse a repetição desses acontecimentos. Segundo Radbruch, importante jurista alemão do século passado, após as guerras mundiais, o jusnaturalismo voltou a ser cogitado como uma saída para se humanizar as relações jurídicas entre as pessoas. De todos os meios acadêmicos, o Direito Natural se firmou mais fortemente no âmbito da cultura católica, em universidades alemãs de ideologia protestante e, de forma mais razoável, no mundo laico estatal, sobretudo como limites ao crescente poder dos estatismos de extrema direita. 56 Os movimentos jusnaturalistas pressionaram os órgãos de Direito Público Internacional a elaborarem cartilhas sobre os direitos e garantias fundamentais inerentes a todos os homens. Todos esses preceitos naturais estavam, obviamente, imbuídos de ideologia religiosa e humanitária, de forma que se pode afirmar que a Religião teve grande participação na elaboração da carta de Declaração Universal dos Direitos do Homem, que se constitui nos dias de hoje, paradoxalmente, como a mais autêntica fonte positiva do Direito Natural. Portanto, pode-se dizer que a história constitucional dos Direitos Humanos como fonte positiva do jusnaturalismo começou basicamente após o período do Pósguerra, estendendo-se aos países por meio da ratificação e da constitucionalização, total ou parcial, de convenções internacionais da ONU pelos países membros. 3. DA INFLUÊNCIA DA RELIGIÃO NO PANORAMA JURÍDICO ATUAL. 3.1 . OS DIREITOS HUMANOS. Os Direitos Humanos representam os direitos fundamentais que todo ser humano goza, independente de ser pessoa ou não (no sentido jurídico da palavra57). Todo ser humano, nascido com vida ou ainda nascituro, goza dos Direitos Humanos por estes se tratarem de normas intrínsecas e básicas a toda espécie humana, sendo teoricamente inalienáveis e imprescritíveis. Por exemplo, no caso do ordenamento jurídico brasileiro, o nascituro, mesmo não possuindo personalidade 56 Ibidem. Sobre a definição jurídica do termo “pessoa”, ver os artigos 1º e 2º da Lei nº 10.406 (Código Civil o Brasileiro), que dispõe o instituto nos seguintes termos: “Art. 1 Toda pessoa é capaz de direitos e o deveres na ordem civil. Art. 2 A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.” 57 63 jurídica e não podendo ser juridicamente chamado de pessoa, possui direito à vida, etc. Se a Justiça consiste em sua essência, como ressaltaram os antigos, em reconhecer a todos e a cada um dos homens o que lhes é devido, esse princípio traduz-se, logicamente, no dever de integral e escrupuloso respeito àquilo que, sendo comum a todos os humanos, distingue-os radicalmente das demais espécies de seres vivos: a sua transcendente dignidade. Os direitos humanos em sua totalidade – não só os direitos civis e políticos, mas também os econômicos, sociais e culturais; não apenas os direitos dos povos, mas ainda os de toda a humanidade, compreendida hoje como um novo sujeito de direitos no plano mundial – representam a cristalização do supremo princípio da dignidade humana. (COMPARATO, 2006, p. 622). Sendo a dignidade inerente a todo homem, independente de possuir ou não personalidade jurídica, a essência do conceito de Direitos Humanos esbarra, portanto, nos principais fundamentos daquilo que vem a ser o fenômeno da espiritualidade humana e da sua indissociável relação com o conceito de Direito Natural58, como se deduz por meio de todo o processo histórico já exposto neste trabalho. Historicamente, os Direitos Humanos são o resultado de um longo debate entre filósofos, religiosos e juristas de diferentes épocas e culturas ao longo dos séculos, como já tratado por este trabalho em seu tópico 2.2. Nesse afã, a dialética girava em torno daquilo que podia ser considerado justo e daquilo que deveria ser considerado como injusto, tendo como parâmetros e argumentos os próprios princípios religiosos e as normas morais. O cristianismo, por exemplo, muito contribuiu para a noção da igualdade entre pessoas e da liberdade como fator de dignidade humana concedida por Deus. E, mesmo após o período medieval, a construção racional do Direito não abandonou a noção da Moral como fundamento da norma jurídica, como bem pontifica Kant59. E assim, o Direito Natural veio caminhando através dos séculos até ganhar, após a crise de valores vivida no período das guerras mundiais, a denominação que atualmente possui, ou seja, a denominação sob a etiqueta de “Declaração Universal dos Direitos do Homem”, ou simplesmente “Direitos Humanos”. 58 Sobre os Direitos humanos e sua relação com o jusnaturalismo e a religião, ver: Wikipédia, a enciclopédia livre, Direitos Humanos. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Direitos_humanos>. Acesso em: 31 mar. 2009. 59 KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos costumes e outros escritos. São Paulo, SP: Editora Martin Claret, 2003. pp. 37 a 71. 64 Foi no período do pós-guerra que se viu a necessidade de se estabelecer diretrizes referentes aos direitos dos homens que não poderiam ser violados sob qualquer circunstância ou justificativa. As cartilhas elaboradas pela ONU, como a “Declaração Universal dos Direitos do Homem”, proclamada em 10 de dezembro de 1948, constituem-se como a base jurídica para todo Estado de Direito que pretender ratificar as normas jusnaturalistas em seus ordenamentos jurídicos, inserindo, pela primeira vez na História, um direito natural dentro de um sistema positivado. A elaboração das diversas cartilhas referentes aos direitos inalienáveis do ser humano levou em consideração o advento das chamadas gerações históricas de Direitos Humanos. Como ensina Alexandre de Moraes, cada uma das gerações de Direitos Humanos veio em um momento histórico diferente e, por isso, representa a proteção dos direitos que estavam sendo ameaçados no decorrer de tal época. Apenas didaticamente, especialistas em Direito Constitucional reconhecem três grandes gerações históricas de Direitos Humanos, embora correntes atuais venham analisando o provável surgimento de uma quarta geração.60 As três gerações de Direitos Humanos, apesar de surgirem em momentos históricos diferentes, não são divergentes entre si, mas se complementam mutuamente na integralidade do que vêm a ser entendidas como a dignidade e a liberdade da pessoa humana. Dessa forma, faz-se necessário analisar cada uma das gerações separadamente para se ter noção do que representa os Direitos Humanos em sua totalidade. Os direitos humanos de primeira geração são aqueles correspondentes aos direitos civis e políticos, intimamente ligados às liberdades individuais, ao direito à vida, à segurança, à igualdade de tratamento perante a lei e ao direito de propriedade.61 É importante ressaltar que o advento desses direitos de primeira geração são uma reação às ideologias jurídicas que estavam em voga nos períodos do absolutismo e, depois, dos regimes estatais totalitários, como as ditaduras e os fascismos de extrema direita. Ou seja, os direitos de primeira geração são prerrogativas que pedem uma “não ação” (uma não intervenção) do Estado nos direitos e garantias individuais. Portanto, quando se fala em direito à vida, à propriedade e à liberdade, por exemplo, quer se ter a garantia de que o Estado não 60 Sobre as gerações de Direitos Humanos: MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 15. ed., São Paulo: Editora Atlas S.A., 2004. p. 61. 61 FERREIRA, Pinto. Curso de Direito Constitucional. 12. ed., São Paulo: Editora Saraiva, 2002. p. 99. 65 irá suprimir esses direitos dos cidadãos, privando-os de sua liberdade de locomoção e expressão, confiscando seus bens materiais arbitrariamente, ou matando-os em nome de uma artificial “ordem pública”. Por resguardarem os direitos humanos perante a prerrogativa de não-ação do Estado Moderno, são também chamados de direitos humanos negativos. Os direitos de segunda geração são aqueles chamados de direitos econômicos, sociais e culturais, como o direito à saúde, à educação, à moradia, ao trabalho, ao lazer e aos direitos trabalhistas (FERREIRA, 2002, p. 100). Por surgirem como uma reação aos acontecimentos provenientes do período histórico em que a humanidade conheceu um momento de misérias e de grande escassez de bens, principalmente no período da quebra da bolsa de valores de Nova York, da depressão americana e do pós-guerra, são direitos que pedem uma atuação direta do Estado (uma intervenção direta) que vise a um certo grau de assistencialismo humano, evitando que a população se encontre em situações subumanas devido à superveniência de fatores externos e casos fortuitos, ou mesmo sob condições normais. Em países liberais, essa geração de direitos é menos ampla, intervindo o Estado apenas em situações de extrema necessidade, embora na maioria dos outros países o desenvolvimento igualitário seja praticamente impossível sem essa intervenção. Por pedir uma atuação direta (uma ação social) do Estado ao invés de uma abstenção de uma provável ação abusiva, são também chamados de direitos humanos positivos. Por fim, os direitos de terceira geração são aqueles chamados de direitos de todos, correspondendo aos direitos básicos dos povos do mundo em sua totalidade una, como os direitos ao desenvolvimento, à autodeterminação dos povos, à paz internacional, ao meio ambiente equilibrado, a uma qualidade de vida saudável e à participação de todos no patrimônio comum da humanidade. (FERREIRA, 2002, p. 101). Por serem provenientes do moderno processo de Globalização, visam regular o respeito mútuo entre os países de modo que nenhum ser humano seja prejudicado em prol de interesses internacionais. Toda pessoa, independente de país ou nação, tem direito a um meio ambiente limpo e bem cuidado e de estar em paz com os demais povos e nações, por exemplo. A Globalização deve servir, portanto, à interação, à cooperação e ao mútuo respeito entre as nações, e não simplesmente 66 aos interesses econômicos, que, na maioria das vezes, só vêm a deteriorar e a subjugar os Direitos Humanos. Vistas as três gerações de Direitos Humanos, pode-se claramente traçar um paralelo entre os direitos fundamentais do homem e os princípios jurídicos do Direito Natural, bem como entre estes e os princípios de natureza religiosa. Há um quê de aspecto religioso em toda a sistematização dos Direitos Humanos no ordenamento jurídico brasileiro. É indissociável a idéia dos direitos fundamentais da idéia do Direito Natural e da humanização religiosa. Como conclui Miguel Reale, o Estado Democrático de Direito brasileiro só pode existir se se respeitar tais espécies de direitos supraestatais, como requisito para o florescimento da dignidade humana: A partir da invariante axiológica primordial representada pela pessoa humana configura-se todo um sistema de valores fundantes, como o ecológico e o de uma forma de vida compatível com a dignidade humana em termos de habitação, alimentação, educação e segurança etc., em função dos quais se impõem imperativamente deveres ao Estado, com a correspondente constelação de direitos subjetivos públicos. Somente assim se realiza o Estado Democrático de Direito proclamado logo no artigo primeiro da Constituição Federal. (REALE, 2004, p. 276). Porém, para que a análise do paralelo entre os Direitos Humanos e os princípios religiosos seja de certo modo eficiente, restringir-se-á ao Direito brasileiro atual. No Direito brasileiro, os Direitos Humanos traduziram-se em direitos subjetivos públicos (MORAES, A., 2004, p. 60), que, após todo o árduo processo histórico de democratização política no país, finalmente encontraram um lugar especial no “berço esplêndido” da Constituição Federal de 1988. O discurso de Ulysses Guimarães, na sessão da Assembléia Nacional Constituinte, já prenuncia, antes mesmo da abertura do texto constitucional, uma idéia da dimensão que os Direitos Humanos tomaram no ordenamento jurídico brasileiro: Esta será a Constituição cidadã, porque recuperará como cidadãos milhões de brasileiros, vítimas da pior das discriminações: a miséria. Cidadão é o usuário de bens e serviços do desenvolvimento. Isso hoje não acontece com milhões de brasileiros, segregados nos guetos da perseguição social. Esta Constituição, o povo brasileiro me autoriza a proclamá-la, não ficará como bela estátua inacabada, mutilada ou profanada. O povo nos mandou 62 aqui para fazê-la, não para ter medo. Viva a Constituição de 1988! 62 Discurso pronunciado pelo Presidente da Câmara dos Deputados, Ulysses Guimarães, na Sessão da Assembléia Nacional Constituinte, em 27 de julho de 1988. Disponível em: <http://www.fugpmdb.org.br/ c_cidada.htm>. Acesso em: 10 de junho, 2006. 67 Nessas palavras de Ulysses Guimarães, pode-se sentir toda a disposição de se elaborar o que foi chamada de “a Constituição cidadã”. Como será analisado a seguir, tal cidadania pretende ser conquistada por meio da proclamação e do cumprimento dos direitos e garantias fundamentais das pessoas. Essa espécie de direitos encontra-se sistematizada no artigo 5º da Constituição de 88 e nos seus 78 incisos seguintes. O caput do artigo 5º da Constituição concretiza, de forma clara, os preceitos morais e éticos defendidos pelo jusnaturalismo e pelos princípios religiosos: Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...] O artigo cita a vida, a liberdade, a igualdade, a segurança e a propriedade como prerrogativas inerentes à dignidade humana. Se são prerrogativas humanas de dignidade conferidas por um Direito Natural, então são superiores ao Estado, de modo que a regra constitucional obrigue e submeta o próprio Estado ao seu cumprimento. O Estado não pode, em tempos normais e de paz, inviabilizar o exercício das liberdades (de locomoção, de expressão, etc.), desrespeitar o direito à vida, deixar de oferecer segurança ou praticar ele mesmo atos de abuso à integridade física e psicológica das pessoas, e não pode confiscar arbitrariamente os bens pessoais que constituam o patrimônio dos civis. O Estado brasileiro se limita a si mesmo ao promulgar tal enunciado em sua Carta Magna. Tal fenômeno pode ser justificado pela “Teoria da Autolimitação” desenvolvida por Rudolf Von Jhering, em sua inacabada obra clássica “O Fim do Direito”. Jhering sustenta que a Soberania atuante nos ordenamentos jurídicos precisa ir discriminando esferas de ação e inação entre os indivíduos e grupos. Nessa discriminação, o Estado precisa se autolimitar para reconhecer que os cidadãos possam ser detentores de direitos subjetivos oponíveis ao próprio Estado. O Estado se autolimita ao declarar e reconhecer os direitos das pessoas. No entanto, a teoria de Jhering sofreu várias críticas pelos juristas de sua época por causa do uso equivocado da palavra “autolimitação”. Apesar de a idéia central se conservar na teoria de Jhering, a palavra “autolimitação” se torna inadequada, uma vez que se compreende que não é o Estado que traça seus próprios limites, mas sim que a realidade jurídica se desenvolve de um processo de 68 natureza histórico-cultural. (REALE, 2004, p. 274). Nesse sentido, pode-se dizer que o desenvolvimento histórico-cultural consolidou-se em costumes morais de caráter religioso e nas normas universais jusnaturalistas cristalizadas na declaração dos Direitos Humanos. Sendo assim, o Estado encontra seu limite nos próprios fatores reais que constituem a base do Poder soberano, corroborando a “teoria dos fatores reais do Poder”, de Ferdinand Lassalle. O Estado que não respeita tais limites naturais pode ser justificadamente declarado autoritário e artificial. 3.2. A NORMA JURÍDICA E A MORAL RELIGIOSA. Pode-se perceber que a influência da moral religiosa no ordenamento jurídico brasileiro começa, positivamente falando, antes mesmo do texto constitucional em si, ou seja, no preâmbulo da Carta Magna. Juridicamente, o preâmbulo não possui poder de Lei, não integrando valor jurídico autônomo, mas nem por isso é irrelevante, pois representa as intenções do diploma legal, podendo muitas vezes ser usado para a interpretação finalística e para a integração da norma jurídica constitucional. O preâmbulo, apesar de não se constituir como norma constitucional propriamente dita, traça diretrizes políticas, filosóficas e ideológicas que o Estado brasileiro adotará em todo seu ordenamento, sendo uma das principais linhas mestras interpretativas. (MORAES, A., 2004, p. 51). A influência do fenômeno religioso no Direito brasileiro se evidencia quando, mesmo antes do texto jurídico em si, os legisladores constituintes promulgam a Constituição Federal de 1988 sob a proteção de Deus, deixando clara a forma como a moral religiosa é importante para a interpretação da norma constitucional brasileira. E, mesmo que indiretamente, os constituintes de 1988 também atribuíram proteção divina a todo o conjunto de leis esparsas, visto que toda a legislação infraconstitucional deve estar de acordo com a Carta Magna. Segue abaixo a transcrição integral do preâmbulo constitucional, com negrito especial incluído por parte do trabalho, dando ênfase ao que se quer destacar: Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir em Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bemestar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia 69 social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Voltando à análise do artigo 5º da Constituição brasileira, pode-se perceber claramente o paralelo que existe entre os direitos tutelados pela Carta Magna e os direitos defendidos pelos jusnaturalistas, bem como a estrita relação entre os mesmos direitos e os ensinamentos de natureza religiosa. Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...] A - “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza [...]”: Neste preceito constitucional, encontra-se o princípio da isonomia, no qual, perante o Estado, todas as pessoas recebem um tratamento isonômico, igualando os iguais e desigualando os desiguais na medida em que se desigualam. (MORAES, A., 2004, p. 66). Como já tratado no capítulo anterior no tópico 2.2., a igualdade é também um preceito jusnaturalista, na medida em que traduz uma característica natural a todo ser humano. Assim, Aristóteles traduz a Justiça como sinônimo de aequitas, ou equidade. A Equidade, segundo Aristóteles, é a justa relação interpessoal no ambiente da pólis, onde as pessoas, iguais entre si pelo atributo da dignidade, exercem faculdades sociais diversas apenas conforme sua função específica na comunidade. A diversidade é a alma da pólis para Aristóteles, sendo o fator determinante que impede a redução da sociedade à unidade familiar. No entanto, a pluralidade de funções deve se dar de forma igualitária e justa, conforme a disposição e a felicidade de cada pessoa. Para Aristóteles, portanto, da mesma forma como que para a Constituição brasileira, a existência de tratamento desigual para os desiguais não é contrária à idéia de igualdade (isonomia), mas antes a corrobora. No mesmo sentido, os pensadores jusnaturalistas do iluminismo se baseavam fortemente nas ideologias de igualdade, liberdade e fraternidade entre os homens. No âmbito do cristianismo, São Paulo prega: “Porque todos sois filhos de Deus pela fé em Jesus Cristo. Porque todos quantos fostes batizados em Cristo já vos revestistes de Cristo. Já não há judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem 70 homem nem mulher, pois todos vós sois Um em Jesus Cristo” (Gl 3, 26-28)63. A forma como todos os homens possuem a mesma dignidade perante os olhos de Deus é uma característica marcante em todo o sistema religioso cristão que influenciou na história do pensamento jurídico ocidental, ainda que diversa seja a disposição religiosa da cultura oriental hinduísta, que ainda hoje mantém discriminações de ordem social no rígido sistema de castas64. No entanto, o pensamento jurídico ocidental vem influenciando uma mudança de flexibilização nas leis indianas em prol da humanização das relações na Índia atual, cuja Constituição já proíbe a discriminação de pessoas por motivos de castas sociais. B – “garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade [...]” (dos direitos fundamentais): A Constituição, neste preceito, concede direitos fundamentais tanto a brasileiros quanto a estrangeiros residentes no país. No entanto, pela interpretação finalística da Lei, preceitua Paulo Bonavides que os direitos fundamentais são universais e se estendem aos estrangeiros em trânsito pelo país: A nova universalidade procura, enfim, subjetivar de forma concreta e positiva os direitos da tríplice geração na titularidade de um indivíduo que antes de ser o homem deste ou daquele país, de uma sociedade desenvolvida ou subdesenvolvida, é pela sua condição de pessoa um ente qualificado por sua pertinência ao gênero humano, objeto daquela 65 universalidade. Dessa forma, a interpretação do artigo 5º, caput, da Constituição Federal deve ser feita de modo extensivo, permitindo que o estrangeiro em trânsito no País possa também invocar os direitos e garantias fundamentais no Brasil. De modo idêntico, Vidal Serrano Nunes Júnior e Luiz Alberto David Araújo ensinam que as liberdades constitucionais são para todos, inclusive aos estrangeiros em trânsito: Os direitos fundamentais têm um forte sentido de proteção do ser humano, e mesmo o próprio caput do art. 5º faz advertência de que essa proteção realiza-se „sem distinção de qualquer natureza‟. Logo, a interpretação sistemática e finalística do texto constitucional não deixa dúvidas de que os 63 Bíblia Sagrada. Carta de São Paulo aos Gálatas, capítulo 3, versículo 26 a 28. 73. ed. São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 1495. 64 MERTON, H. K. O sistema de castas da Índia. Disponível em: <http://artedartes.blogspot.com/ 2008/01/sistema-de-castas.html>. Acesso em: 02 mai. 2009. 65 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 14. ed. rev. e atual., São Paulo, SP: Editora Malheiros, 2004. p. 574. 71 direitos fundamentais destinam-se a todos os indivíduos, 66 independentemente de sua nacionalidade ou situação no Brasil. Com relação ao sentido que o legislador constituinte queria dar ao termo “residentes no país”, Alexandre de Moraes elucida que: [...] a expressão residentes no Brasil deve ser interpretada no sentido de que a Carta Federal só pode assegurar a validade e gozo dos direitos fundamentais dentro do território brasileiro, não excluindo, pois, o estrangeiro em trânsito pelo território nacional, que possui igualmente acesso às ações, como mandado de segurança e demais remédios constitucionais. (MORAES, A., 2004, p. 65). Traçando-se um paralelo com os princípios religiosos, descobre-se que o respeito ao estrangeiro se deve ao princípio da igualdade entre os homens, de modo que a todos se impõe o dever de amar ao próximo. Assim, em inúmeras passagens bíblicas, aconselha-se o respeito e o dever de Amor ao estrangeiro, como se demonstra a seguir: Não oprimas o estrangeiro; vós sabeis o que é ser estrangeiro, pois fostes 67 estrangeiros no Egito. (Êx 23, 9) . O estrangeiro que mora convosco seja para vós como o nativo do país. Ama-o como a ti mesmo, pois vós também fostes estrangeiros na terra do 68 Egito. [...]. (Lv 19, 33 e 34) . Portanto, amai o estrangeiro, porque vós também fostes estrangeiros no 69 Egito. (Dt 10, 19) . Pelo princípio da alteridade religiosa, as pessoas devem fazer às outras tudo aquilo que desejam que os outros façam a elas. Cristo disse: “Portanto, tudo quanto quereis que os homens vos façam, assim fazei vós a eles; porque esta é a Lei e os Profetas”. (Mt 7, 12)70. Se o povo hebreu foi estrangeiro em países vizinhos e teve princípios humanos respeitados, da mesma forma devem agir ao terem estrangeiros em seu território. Esse princípio religioso da alteridade, além de ter sido uma importante influência do mundo religioso no mundo jurídico, formou o fundamento para um importante princípio jurídico aplicado atualmente no Direito Internacional 66 NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano; e ARAÚJO, Luiz Alberto David. Curso de Direito Constitucional. 10. ed. rev. e atual., São Paulo: Saraiva, 2006. p. 128. 67 Bíblia Sagrada. Livro do Êxodo, capítulo 23, versículo 9. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 124. 68 Bíblia Sagrada. Levítico, capítulo 19, versículo 34. 73. ed. São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p.164. 69 Bíblia Sagrada. Livro do Deuteronômio, capítulo 10, versículo 19. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 226. 70 Bíblia Sagrada. Evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus, capítulo 7, versículo 12. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 1291. 72 Público: o princípio da reciprocidade71, no qual o tratamento dispensado a um sujeito em determinado país no qual ele é estrangeiro serve de parâmetro para o tratamento jurídico que as pessoas desse determinado país receberão quando forem estrangeiras no país daquele sujeito. C – Direito à vida: No ensinamento de Alexandre de Moraes, o direito à vida é “o mais fundamental de todos os direitos, já que se constitui em pré-requisito à existência e exercício de todos os demais direitos”. (MORAES, A., 2004, p. 65). O direito à vida é tão especial ao mundo jurídico atual, que engloba toda a integridade física e psicológica da pessoa, como características intrínsecas da manifestação da vida humana, surgindo daí um extenso rol de direitos e deveres subjetivos, como a tipificação dos crimes de homicídio, infanticídio, genocídio, aborto, auxílio ao suicídio, lesão corporal, crimes de periclitação da vida e da saúde, abandono de incapaz, abandono de recém-nascido, omissão de socorro, crime de maus-tratos, crimes de tortura e terrorismo, crimes contra a honra da pessoa como a calúnia, a injúria e a difamação, etc. Na seara civil, também protege-se toda a integridade física e psicológica da vida humana com os direitos à indenização por danos materiais, danos morais e lucros cessantes. Com relação ao direito à vida, e consequentemente à integridade física e psicológica da pessoa humana, os preceitos devem igualmente ser oponíveis ao Estado em sua função administrativa, legislativa e judiciária, entendendo-se que o país se submete ao respeito à vida humana da mesma forma como as pessoas do povo se submetem a esse direitodever. No Estado, é proibida constitucionalmente a aplicação de penas de morte (salvo em caso de guerra declarada), penas de caráter perpétuo, penas de trabalho forçado, penas de banimento, de tortura e de tratamentos cruéis, bem como a obtenção de provas processuais por meios ilícitos, como as obtidas por meio de torturas, ameaças e tratamentos cruéis, etc. Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] III - ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante; 71 SILVA, Roberto Luiz. Direito Internacional Público. 2. ed., Belo Horizonte, MG: Editora Del Rey, 2005. p. 114. 73 [...] XLVII - não haverá penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX; b) de caráter perpétuo; c) de trabalhos forçados; d) de banimento; e) cruéis; XLVIII - a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado; XLIX - é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral; L - às presidiárias serão asseguradas condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação; [...] LVI - são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos; Da mesma forma, não há como negar que o direito à vida é, para as correntes jusnaturalistas, o bem jurídico mais transcendente a ser tutelado. Como visto no tópico 2.1 deste trabalho, para o Direito Natural, a vida humana é o próprio fundamento da Filosofia do Direito. Do mesmo modo, o a vida humana é fundamental ao próprio Estado, dando ao mundo jurídico toda uma ênfase antropológica sem a qual a discussão das normas jurídicas perdem todo o sentido. O Direito não existe sem a vida humana. (MORAES, A., 2004, p. 65). É inegável a relação que existe entre a consciência jusnaturalista, que fundamentou o direito à vida como um dos Direitos Humanos, e o ingresso do direito à vida no rol dos direitos e garantias fundamentais asseguradas pelo Estado brasileiro, uma vez que todo o artigo 5º da Constituição Federal baseia-se na “Declaração Universal do Direitos do Homem” proclamada pela ONU, que por sua vez representa a tendência do Direito Natural no panorama jurídico contemporâneo. A religião também compartilha da mesma concepção jusnaturalista do direito à vida, uma vez que atribui à vida um status de Lex Aeterna72, superior ao Estado, um direito preexistente e anterior à própria Lei, não cabendo a ninguém, nem mesmo ao Estado, dispor de tal prerrogativa humana, como se vê a seguir: Os direitos inalienáveis da pessoa devem ser reconhecidos e respeitados pela sociedade civil e pela autoridade política. Os direitos do homem não dependem nem dos indivíduos, nem dos pais, e também não representam uma concessão da sociedade e do Estado. Pertencem à natureza humana e são inerentes à pessoa em razão do ato criador do qual esta se origina. Entre estes direitos fundamentais é preciso citar o direito à vida e à 73 integridade física de todo se humano, desde a concepção até a morte. 72 Para saber mais sobre a Lex Aeterna, ver sobre o tomismo. Disponível em: <http://www.stelle.com.br/pt/purgatorio/notas_26.html>. Acesso em: 2 mai. 2009. 73 IGREJA CATÓLICA, Catecismo da Igreja Católica, edição típica vaticana, São Paulo: Edições Loyola, 2000. §2272, p. 592. 74 No âmbito religioso, o direito à vida está diretamente associado ao respeito ao Summum Bonum, ou seja, ao “Dom Supremo”. Configurando-se como o presente mais precioso recebido de Deus, a vida humana é o mais alto bem jurídico a ser tutelado. Algumas religiões orientais consideram que, não apenas a vida humana, mas toda a vida terrestre, como a dos animais e a das plantas, são manifestações da vida divina, como é o caso do hinduísmo, budismo e taoísmo. Em muitas delas, os adeptos são contra o sacrifício de animais e a ingestão de proteína animal, fazendo com que muitos adotem o estilo de vida vegetariano (GAARDER, 2002, pp. 43 e 61). Na tradição judaico-cristã, “o corpo do homem participa da dignidade da „imagem de Deus‟”. (Catecismo da Igreja Católica, 2000, §364, p. 105). Nesse mesmo sentido, a Igreja Católica declara que a dignidade da vida humana se deve à união entre o corpo material e a alma imortal recebida por Deus, que constituem uma única natureza humana: A unidade da alma e do corpo é tão profunda que se deve considerar a alma como a "forma" do corpo; ou seja, é graças à alma espiritual que o corpo constituído de matéria é um corpo humano e vivo; o espírito e a matéria no homem não são duas naturezas unidas, mas a união deles forma uma única natureza. (Catecismo da Igreja Católica, 2000, §365, p. 105). A vida humana é sagrada porque é recebida de Deus, é dom de Deus. Sendo apenas Deus o dono da vida, cabe apenas a Ele dá-la e tirá-la. A ninguém cabe o poder sobre a vida humana, nem mesmo à própria pessoa sobre sua própria vida. Apenas a Deus cabe o ministério sobre a vida humana, pois Ele é considerado, na tradição judaico-cristã, o “Senhor da Vida”. E o SENHOR Deus formou o homem do pó da terra, e soprou em suas 74 narinas o fôlego da vida; e o homem foi feito alma vivente. (Gn 2, 7) . Na mesma concepção, o catecismo da Igreja Católica afirma que: A vida humana é sagrada porque desde sua origem ela encerra a ação criadora de Deus e permanece para sempre numa relação especial com o Criador, seu único fim. Só Deus é o dono da vida, do começo ao fim; ninguém, em nenhuma circunstância, pode reivindicar para si o direito de destruir diretamente um ser humano inocente. (Catecismo da Igreja Católica, 2000, §2258, p. 588). 74 Bíblia Sagrada. Livro do Gênesis, capítulo 2, versículo 7. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 50. 75 Toda a tradição judaica é avessa ao desrespeito à vida humana. No decálogo, a ordem de não tirar a vida humana é tão clara e direta (como o é na Lei Penal brasileira) que é inegável a relação entre a norma religiosa e a norma jurídica, bem como a influência de uma na outra: Religião: 75 Não matarás (Êx 20, 13) . Estado brasileiro: Art 121, CP. Matar alguém: Pena - reclusão, de seis a vinte anos. Religião: Não haverá mulher que aborte, nem estéril na tua terra; o número dos teus 76 dias cumprirei. (Êx 23, 26) . Não mate, não cometa adultério, [...] Não mate a criança no seio de sua 77 mãe e nem depois que ela tenha nascido. (Didaqué 2, 2) . Estado brasileiro: Art. 123, CP - Matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após: Pena - detenção, de dois a seis anos. Art. 124, CP - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque: Pena - detenção, de um a três anos. Art. 125, CP - Provocar aborto, sem o consentimento da gestante: Pena - reclusão, de três a dez anos. Art. 126, CP - Provocar aborto com o consentimento da gestante: Pena - reclusão, de um a quatro anos. De certo modo, a concepção de “vida” na tradição cristã evoluiu a tal ponto que a vida deixa de ser considerada apenas como o “bem supremo” recebido de Deus, mas passa a ser a Sua própria essência divina, ou seja, Deus em si mesmo. Deus é Vida, e, sendo Vida, dá a vida a toda criatura. A vida, portanto, é o Dom e o Doador, pois Deus doa a Si mesmo. Assim, Jesus Cristo afirma: “Eu sou o Caminho a Verdade e a Vida”. (Jo 14, 6)78. “Porque, como o Pai tem a vida em si mesmo, assim deu também ao Filho ter a vida em si mesmo” (Jo 5, 26)79. Nesse aspecto, a vida deixa de ser apenas a manifestação corporal do ser humano, e passa a ser a 75 Bíblia Sagrada. Livro do Êxodo, capítulo 20, versículo 13. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 121. 76 Bíblia Sagrada. Livro do Êxodo, capítulo 23, versículo 26. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 125. 77 MERTON H.K. O mais antigo documento cristão. Disponível em: <http://artedartes.blogspot.com/search/label/cristianismo>. Acesso em: 13 abr. 2009. 78 Bíblia Sagrada. Evangelho de Jesus Cristo segundo João, capítulo 14, versículo 6. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p.1404. 79 Bíblia Sagrada. Evangelho de Jesus Cristo segundo João, capítulo 5, versículo 26. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 1390. 76 manifestação do corpo, da alma e do espírito humano, que encontram o seu fundamento na própria essência de Deus, na própria Vida de Deus. “Porque Nele vivemos, nos movemos e temos o nosso ser [...]”. (At 17, 28) 80. A vida, para o cristianismo, é mais do que um presente de Deus: é o próprio Deus em si mesmo. D – Direito à liberdade: O direito à liberdade assegurado pela Constituição Federal, como se vê no parágrafo especial a seguir, engloba uma série de liberdades individuais e subjetivas que devem ser respeitadas e garantidas pelo Estado e pelos indivíduos entre si. Entre os direitos de liberdade mais famosos assegurados pelo ordenamento constitucional brasileiro estão o direito à liberdade de expressão, à liberdade de culto religioso, à liberdade de produção intelectual, à liberdade de exercer qualquer trabalho lícito, à liberdade de locomoção (direito de ir e vir), à liberdade de reunir-se para fins pacíficos e à liberdade de associação, como se vê a seguir: Art. 5º, CF - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem; VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; VII - é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva; VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei; IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença; [...] XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer; [...] XV - é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens; XVI - todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente; 80 Bíblia Sagrada. Livro dos Atos dos Apóstolos, capítulo 17, versículo 28. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 1435. 77 XVII - é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar; [...] LXI - ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei; [...] LXVIII - conceder-se-á "habeas-corpus" sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder; Em toda a corrente jusnaturalista racionalista, inspirada majoritariamente pelo movimento iluminista, preza-se a liberdade individual como um direito fundamental a ser resguardado. O lema mais famoso do iluminismo, que influenciou a Revolução Francesa, prega claramente os direitos de igualdade e liberdade para todas as pessoas: “Liberté, Igualité, Fraternité”. A própria Déclaration de Droits de l’Homme81 (Declaração dos Direitos do Homem), precursora da “Declaração Universal dos Direitos do Homem” proclamada pela ONU, foi formulada sob a inspiração do ideário iluminista, que por sua vez era influenciado por ideologias jusnaturalistas e religiosas, como se vê na figura seguinte (ressaltando-se o detalhe artístico inspirado em motivos religiosos, como a imagem do anjo, e a do triângulo dourado com o olho ao centro, representando a presença divina): 81 Sobre a Declaração dos Direitos do Homem, ver: Wikipédia, a enciclopédia livre. Déclaration des Droits de l'Homme et du Citoyen de 1789. Disponível em: <http://fr.wikipedia.org/wiki/D%C3%A9claration_ des_droits_de_l'homme_et_du_citoyen_de_1789>. Acesso em: 14 abr. 2009. 78 Figura 1 - Declaração dos Direitos Humanos, França, 1789, um dos muitos documentos políticos produzidos no século XVIII sob a inspiração do ideário iluminista. Fonte: Wikipédia, a enciclopédia livre. Iluminismo. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Ilumin ismo>. Acesso em: 14 abr. 2009. Assim como sofreu influência do jusnaturalismo iluminista, o texto constitucional também foi influenciado pelos princípios religiosos e espirituais no tocante ao direito fundamental à liberdade. Para as religiões, mormente as de tradição judaico-cristã, o ser humano foi criado por Deus dotado de livre arbítrio, ou seja, dotado da capacidade de ser livre para exercer a sua vontade livremente. Nesse sentido, pode-se citar a doutrina que a Igreja Católica prega sobre o assunto: A liberdade é o poder, baseado na razão e na vontade, de agir ou não agir, de fazer isto ou aquilo, portanto, de praticar atos deliberados. Pelo livrearbítrio, cada qual dispõe sobre si mesmo. A liberdade é, no homem, uma força de crescimento e amadurecimento na verdade e na bondade. A liberdade alcança sua perfeição quando está ordenada para Deus, nossa bem-aventurança. (Catecismo da Igreja Católica, 2000, §1731, p. 472). 79 A liberdade se exerce no relacionamento entre os seres humanos. Toda pessoa humana, criada à imagem de Deus, tem o direito natural de ser reconhecida como ser livre e responsável. Todos devem a cada um esta obrigação de respeito. O direito ao exercício da liberdade é uma exigência inseparável da dignidade da pessoa humana, sobretudo em matéria moral e religiosa. Este direito deve ser reconhecido civilmente e protegido nos limites do bem comum e da ordem pública. (Catecismo da Igreja Católica, 2000, §1738, p. 473). O exercício da liberdade individual, no entanto, encontra o seu limite no direito de liberdade de outrem e também nos limites da ordem pública e do bem comum, sob pena de se tornar um ato imoral e abusivo. Tanto a religião quanto o Estado brasileiro limitam o exercício das liberdades individuais, imbuindo ao indivíduo a total responsabilidade sobre seus atos. Ou seja, é permitido ao homem ser livre, desde que ele possa ser responsabilizado por essa liberdade. O exercício das liberdades, portanto, exige um compromisso com a moral religiosa, no caso da espiritualidade, e com a moral jurídica e os princípios da boa-fé objetiva, no caso do ordenamento jurídico: Religião: O exercício da liberdade não implica o direito de dizer e fazer tudo. É falso pretender que "o homem, sujeito da liberdade, baste a si mesmo, tendo por fim a satisfação de seu próprio interesse no gozo dos bens terrenos. Por sua vez, as condições de ordem econômica e social, política e cultural requeridas para um justo exercício da liberdade são muitas vezes desprezadas e violadas. Estas situações de cegueira e injustiça prejudicam a vida moral e levam tanto os fortes como os fracos à tentação de pecar contra a caridade. Fugindo da lei moral, o homem prejudica sua própria liberdade, acorrenta-se a si mesmo, rompe a fraternidade com seus semelhantes e rebela-se contra a verdade divina. (Catecismo da Igreja Católica, 2000, §1740, p. 474). A liberdade torna o homem responsável por seus atos, na medida em que forem voluntários. O progresso na virtude, o conhecimento do bem e a ascese aumentam o domínio da vontade sobre seus atos. (Catecismo da Igreja Católica, 2000, §1734, p. 473). Porque vós, irmãos, fostes chamados à liberdade. Não useis então da liberdade para dar ocasião à carne, mas servi-vos uns aos outros pelo amor. Porque toda a lei se cumpre numa só palavra, nesta: Amarás ao teu 82 próximo como a ti mesmo. (Gl 5, 13-14) . Aquele que procura meditar com atenção a lei perfeita da liberdade e nela persevera, não como ouvinte que facilmente se esquece, mas como 83 cumpridor fiel do preceito, este será feliz no seu proceder. (Tg 1, 25) . Estado brasileiro: Art. 187, CC - Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. Art. 927, CC - Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. 82 Bíblia Sagrada. Carta de São Paulo aos Gálatas, capítulo 5, versículos 13 e 14. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 1497. 83 Bíblia Sagrada. Carta de São Tiago, capítulo 1, versículo 25. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 1539. 80 Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem. Art. 5º, CF - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem; O exercício da liberdade de expressão no Brasil possui correlato religioso no discurso cristão de proclamar a ideologia do evangelho, mesmo em meio a toda repressão e perseguição que a doutrina sofreu no início da Igreja. Os cristãos foram considerados rebeldes, contra a ordem do Império Romano, agitadores políticos, mas não pararam de exercer seu direito fundamental de manifestar livremente seus pensamentos. Da mesma forma, durante o período da ditadura militar no Brasil, havia muita repressão e perseguição por causa de manifestações públicas de opiniões contrárias ao governo totalitário. Quando a Constituição Federal proclamou o Estado Democrático de Direito, rompeu com a tradição totalitária de repressão à manifestação livre do pensamento e assegurou às pessoas a liberdade de expressão, afeiçoando-se aos preceitos jusnaturalistas e religiosos já bastante conhecidos no ocidente: Religião: O que vos digo privativamente dizei-o em plena luz; e o que escutais ao 84 ouvido pregai-o sobre os telhados. (Mt 10, 27) . Estado brasileiro: Art. 5º, CF - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem; A liberdade de expressão no Brasil também carrega uma carga negativa com relação à geração de Direito Humano, uma vez que não apenas assegura a possibilidade ativa de se poder expressar livremente os pensamentos, mas também 84 Bíblia Sagrada. Evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus, capítulo 10, versículo 27. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 1295. 81 a garantia de que ninguém poderá sofrer repressão, censura, restrição de direitos, etc, por motivos de convicção religiosa, intelectual, cultural ou científica. A liberdade de expressão é, portanto, tanto uma garantia de se poder manifestar livremente o pensamento quanto uma garantia de que a livre manifestação das ideologias não será justificativa legal (jurídica) para o cerceamento de direitos, discriminação, tratamento jurídico desigual, repressão, censura, etc. No mesmo sentido, a Igreja Católica declara que o homem, ao exercer a liberdade de expressão, não pode sofrer coação em sua consciência. Para o Estado, a consciência humana se traduz em lei positiva, sendo que a coação na consciência pode, dependendo do caso, ser tipificado como crime de “constrangimento ilegal”, por exemplo. Assim, traça-se o seguinte paralelo: Religião: O homem tem o direito de agir com consciência e liberdade, a fim de tomar pessoalmente as decisões morais. "O homem não pode ser forçado a agir contra a própria consciência. Mas também não há de ser impedido de proceder segundo a consciência, sobretudo em matéria religiosa. (Catecismo da Igreja Católica, 2000, §1782, p. 482). Por isso, a criação aguarda ansiosamente a manifestação dos filhos de Deus, [...] na esperança de que também a mesma criatura será libertada do cativeiro da corrupção, para a liberdade gloriosa dos filhos de Deus. (Rm 8, 85 19 e 21) . Estado brasileiro: Art. 5º, CF - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; [...] VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei; IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença; [...] LII - não será concedida extradição de estrangeiro por crime político ou de opinião; Crimes contra a liberdade individual. Constrangimento ilegal Art. 146, CP - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda: Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa. 85 Bíblia Sagrada. Carta de São Paulo aos Romanos, capítulo 8, versículo 19 e 21. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 1457. 82 § 1º - As penas aplicam-se cumulativamente e em dobro, quando, para a execução do crime, se reúnem mais de três pessoas, ou há emprego de armas. § 2º - Além das penas cominadas, aplicam-se as correspondentes à violência. § 3º - Não se compreendem na disposição deste artigo: I - a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida; II - a coação exercida para impedir suicídio. Outra das liberdades subjetivas que possui estritos paralelos entre os preceitos de moral religiosa é a liberdade de locomoção, ou seja, liberdade de ir e vir, que, em última análise, é o direito de estar fisicamente no lugar que se deseja, conforme a consciência pessoal e o respeito ao bem comum e à propriedade privada alheia. Religião: Até os adolescentes podem se esgotar, e os jovens robustos podem cambalear, mas os que esperam no Senhor renovarão suas forças, subirão com asas de águia, correrão e não se cansarão; caminharão e não se 86 fatigarão. (Is 40, 30-31) . Eis o que diz o Senhor dos Exércitos: se andares nos meus caminhos e fores fiel às minhas ordens, governarás a minha casa, guardarás os meus átrios e te darei livre acesso entre os que estão aqui diante de mim. (Zc 3, 87 7) . Estado brasileiro: Art. 5º, CF - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] XV - é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens; XVI - todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente; XVII - é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar; A liberdade de locomoção também se traduz num direito humano negativo ao ser oponível ao Estado, uma vez que se quer garantir que o mesmo não irá cercear o direito de ir e vir dos indivíduos arbitrariamente, sem respeito ao princípio do contraditório e da ampla defesa e ao princípio do devido processo legal. Quando assim não procede o Poder público, ocorre um abuso de Poder. Ocorrendo a prisão 86 Bíblia Sagrada. Isaías, capítulo 40, versículo 30 e 31. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 992. 87 Bíblia Sagrada. Zacarias, capítulo 3, versículo 7. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 1272. 83 de alguém de forma abusiva e contra as normas de processo penal, é cabível a garantia constitucional do habeas corpus, que possui o condão de livrar o preso do cerceamento indevido de sua liberdade de locomoção. A religião também possui precedentes condizentes com a ideologia do habeas corpus, pregando que os inocentes e oprimidos são logo livrados e colocados em liberdade pelo Senhor. Dessa forma, assim como o habeas corpus é a garantia constitucional de que ninguém sofrerá restrição abusiva de seu direito de locomoção, o Espírito de Deus é a garantia de que o homem que está cativo injustamente será colocado em liberdade pela força da Verdade. Se tal liberdade religiosa ora se considera como a libertação do cárcere espiritual dos pecados ou ora se considera como libertação literal do corpo daqueles que se encontram presos e oprimidos injustamente pela força dos poderosos, não há relevância alguma, uma vez que o princípio da libertação dos injustiçados se conserva como ideologia capaz de influenciar a produção de normas jurídicas. Assim, considera-se o paralelo que pode ser traçado entre a religião e o ordenamento jurídico brasileiro neste caso: Religião: O espírito do Senhor DEUS está sobre mim; porque o SENHOR me ungiu, para pregar boas novas aos mansos; enviou-me a restaurar os contritos de coração, a proclamar liberdade aos cativos, e a abertura de prisão aos 88 presos. (Is 61, 1) . O Espírito do Senhor é sobre mim, Pois que me ungiu para evangelizar os pobres. Enviou-me a curar os quebrantados do coração, a pregar liberdade aos cativos, e restauração da vista aos cegos, a pôr em liberdade os 89 oprimidos, a anunciar o ano da graça do Senhor. (Lc 4, 18-19) . Pai de órfãos e juiz de viúvas é Deus, no seu lugar santo. Deus faz com que o solitário viva em família; liberta aqueles que estão presos em grilhões; 90 mas os rebeldes habitam em terra seca. (Sl 67, 5-6) . Estado brasileiro: Art. 5º, CF - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; [...] LXI - ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei; [...] 88 Bíblia Sagrada. Isaías, capítulo 61, versículo 1. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 1023. 89 Bíblia Sagrada. Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas, capítulo 4, versículo 18 e 19. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 1351. 90 Bíblia Sagrada. Salmo 67 (hebr. 68), versículos 6 e 7. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 706. 84 LXVIII - conceder-se-á "habeas-corpus" sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder; Quando o Poder público procede à prisão com abuso de Poder, comete uma prisão ilegal, a qual será imediatamente relaxada pela autoridade competente, posto que priva pessoa inocente do seu direito de locomoção. Da mesma forma, quando ocorre prisão por condenação de pessoa inocente por erro judicial, o Estado se obriga à reparação dos danos por meio de indenização. Assim, considera-se o paralelo que pode ser traçado entre a religião e o ordenamento jurídico brasileiro neste caso: Religião: E, sendo já dia, os magistrados mandaram quadrilheiros, dizendo: Soltai aqueles homens. E o carcereiro anunciou a Paulo estas palavras, dizendo: Os magistrados mandaram que vos soltasse; agora, pois, saí e ide em paz. Mas Paulo replicou: Açoitaram-nos publicamente e, sem sermos condenados, sendo homens romanos, nos lançaram na prisão, e agora encobertamente nos lançam fora? Não será assim; mas venham eles mesmos e tirem-nos para fora. E os quadrilheiros foram dizer aos magistrados estas palavras; e eles temeram, ouvindo que eram romanos. E, vindo, lhes dirigiram súplicas; e, tirando-os para fora, lhes pediram que saíssem da cidade. E, saindo da prisão, entraram em casa de Lídia e, vendo 91 os irmãos, os confortaram, e depois partiram. (At, 16, 35-40) . Estado brasileiro: Art. 5º, CF - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] LXV - a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária; [...] LXVIII - conceder-se-á "habeas-corpus" sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder; [...] LXXV - o Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença; [...] Art. 954, CC - A indenização por ofensa à liberdade pessoal consistirá no pagamento das perdas e danos que sobrevierem ao ofendido, e se este não puder provar prejuízo, tem aplicação o disposto no parágrafo único do artigo antecedente. Parágrafo único. Consideram-se ofensivos da liberdade pessoal: I - o cárcere privado; II - a prisão por queixa ou denúncia falsa e de má-fé; III - a prisão ilegal. 91 Bíblia Sagrada. Atos dos Apóstolos, capítulo 16, versículos de 35 a 40. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 1434. 85 Quanto à liberdade de locomoção e aos atos criminosos de indivíduos que controlam à força o direito de ir e vir de outrem a fim de obter vantagens pecuniárias à custa da degradação da dignidade humana, tanto a tradição cristã quanto o Estado brasileiro atual possuem uma dogmática a favor do respeito ao ser humano e da aversão à exploração econômica em detrimento da liberdade humana. Tal exploração econômica é, religiosamente, considerada como roubo, indo diretamente contra a lei do decálogo (Os dez mandamentos). A religião entende dessa forma porque a liberdade de locomoção é um dos atributos da dignidade humana, constituindo-se como bem infungível e não podendo ser explorada comercialmente, como se demonstra a seguir: Religião: Porque não recebestes o espírito de escravidão, para outra vez estardes em temor, mas recebestes o Espírito de adoção de filhos, pelo qual clamamos: 92 Aba, Pai. (Rm 8, 15) . 93 Não roubarás (Êx 20, 15) . O sétimo mandamento proíbe os atos ou empreendimentos que, por qualquer razão que seja, egoísta ou ideológica, mercantil ou totalitária, levam a escravizar seres humanos, a desconhecer sua dignidade pessoal, a comprá-los, a vendê-los e a trocá-los como mercadorias. É um pecado contra a dignidade das pessoas e contra seus direitos fundamentais reduzilas, pela violência, a um valor de uso ou a uma fonte lucro. S. Paulo ordenava a um patrão cristão que tratasse seu escravo cristão "não mais corno escravo, mas como um irmão [...], como um homem, no Senhor" (Fm 16). (Catecismo da Igreja Católica, 2000, §2414, p. 624). Estado brasileiro: Crime de seqüestro e cárcere privado. Art. 148, CP - Privar alguém de sua liberdade, mediante seqüestro ou cárcere privado: Pena - reclusão, de um a três anos. § 1º - A pena é de reclusão, de dois a cinco anos: I - se a vítima é ascendente, descendente, cônjuge ou companheiro do agente ou maior de 60 (sessenta) anos; II - se o crime é praticado mediante internação da vítima em casa de saúde ou hospital; III - se a privação da liberdade dura mais de 15 (quinze) dias. IV - se o crime é praticado contra menor de 18 (dezoito) anos; V - se o crime é praticado com fins libidinosos. § 2º - Se resulta à vítima, em razão de maus-tratos ou da natureza da detenção, grave sofrimento físico ou moral: Pena - reclusão, de dois a oito anos. Crime de redução à condição análoga a de escravo. Art. 149, CP - Reduzir alguém à condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitandoo a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: 92 Bíblia Sagrada. Carta de São Paulo aos Romanos, capítulo 8, versículo 15. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 1457. 93 Bíblia Sagrada. Livro do Êxodo, capítulo 20, versículo 15. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 121. 86 Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência. (Redação dada pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003) § 1o Nas mesmas penas incorre quem: I - cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; II - mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho. § 2o A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido: I - contra criança ou adolescente; II - por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem. E – Direito à igualdade: O direito à igualdade, como já dito anteriormente, está juridicamente pautado no princípio da isonomia, no qual o Estado deve tratar com igualdade as pessoas que se encontram em situações jurídicas iguais e tratar com desigualdade as pessoas que se encontram em situações jurídicas diferentes. Sem o tratamento desigual, não pode haver a isonomia, posto que faz parte da própria essência de igualdade. (MORAES, A., 2004, p. 66). Tal tratamento diferenciado visa estabelecer um equilíbrio entre essas duas realidades distintas. Se o tratamento fosse igual, em qualquer situação, o equilíbrio se despedaçaria. Assim, seres humanos que se encontram em situações jurídicas idênticas devem ser tratados de forma igual. Como núcleo do direito de igualdade, a carta constitucional estabelece a igualdade de direitos entre homens e mulheres. Dessa mesma forma, pode-se perceber uma ideologia que caminha em igual sentido em âmbito religioso, espiritual e sociológico. Pelas religiões de tradição judaico-cristã, homens e mulheres foram criados conforme a mesma dignidade atribuída por Deus, ambos sendo criados “à imagem e semelhança” da divindade. Assim, observa-se o seguinte paralelo quanto à igualdade entre homem e mulher: Religião: Deus criou o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou, homem e 94 mulher os criou. (Gn 1, 27) . O Senhor Deus disse: “Não é bom que o homem esteja só; vou dar-lhe uma ajuda que lhe seja adequada.” [...] Então o Senhor Deus mandou ao homem um profundo sono; e enquanto ele dormia, tomou-lhe uma costela e fechou com carne o seu lugar. E da costela que tinha tomado do homem, o Senhor Deus fez uma mulher, e levou-a para junto do homem. “Eis agora aqui, disse o homem, o osso de meus ossos e a carne de minha carne; ela se chamará mulher, porque foi tomada do homem.” Por isso o homem deixa o 94 Bíblia Sagrada. Gênesis, capítulo 1, versículo 27. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 49. 87 seu pai e sua mãe para se unir à sua mulher; e já não são mais que uma só 95 carne. (Gn 2, 18-24) . Ao criar o ser humano, homem e mulher, Deus dá a dignidade pessoal de modo igual ao homem e à mulher. O homem é uma pessoa, e isto na mesma medida para o homem e para a mulher, pois ambos são criados à imagem e à semelhança de um Deus pessoal. (Catecismo da Igreja Católica, §2334, p. 605). Que o homem e a mulher tenham sido criados um para o outro, a sagrada Escritura o afirma: "Não é bom que O homem esteja só" (Gn 2,18). A mulher, "carne de sua carne", é, igual a ele, bem próxima dele, lhe foi dada por Deus como um "auxilio", representando, assim, "Deus, em quem está o nosso socorro". "Por isso um homem deixa seu pai e sua mãe, se une à sua mulher, e eles se tornam uma só carne" (Gn 2,24). Que isto significa uma unidade indefectível de suas duas vidas, o próprio Senhor no-lo mostra lembrando qual foi, 'na origem", o desígnio do Criador (Cf Mt 19,4): "De modo que já não são dois, mas uma só carne" (Mt 19,6). (Catecismo da Igreja Católica, §1605, p. 439). O homem e a mulher são criados, isto é, são queridos por Deus: por um lado, em perfeita igualdade como pessoas humanas e, por outro, em seu ser respectivo de homem e de mulher. "Ser homem, 'ser mulher" é uma realidade boa e querida por Deus: o homem e a mulher têm uma dignidade inamissível que lhes vem diretamente de Deus, seu Criador. O homem e a mulher são criados em idêntica dignidade, "à imagem de Deus". Em seu "ser-homem" e seu "ser-mulher" refletem a sabedoria e a bondade do Criador.(Catecismo da Igreja Católica, §369, p. 106). Deus não é de modo algum à imagem do homem. Não é nem homem nem mulher. Deus é puro espírito, não havendo nele lugar para a diferença dos sexos. Mas as "perfeições" do homem e da mulher refletem algo da infinita perfeição de Deus: as de uma mãe e as de um pai e esposo. (Catecismo da Igreja Católica, §370, p. 106). Cabe a cada um, homem e mulher, reconhecer e aceitar sua identidade sexual. A diferença e a complementaridade físicas, morais e espirituais estão orientadas para os bens do casamento e para o desabrochar da vida familiar. A harmonia do casal e da sociedade depende, em parte, da maneira como se vivem entre os sexos a complementaridade, a necessidade e o apoio mútuos. (Catecismo da Igreja Católica, §2333, p. 605). Estado brasileiro: Art. 5º, CF - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição; No atual Estado brasileiro, o homem e a mulher são considerados pessoas de mesma situação jurídica, ou seja, são iguais perante a lei, recebendo tratamento igual na maioria das situações. Há casos, porém, em que homem e mulher recebem tratamentos diferenciados em face da condição biológica inerentes a cada um. Há de se observar, no entanto, que o tratamento diferenciado entre homens e mulheres não se dá devido à diferença de dignidade humana, pois ambos possuem a mesma dignidade. Nem podem ser discriminados por motivos de sexo, crença ou concepção 95 Bíblia Sagrada. Gênesis, capítulo 2, versículo 18 a 24. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 50. 88 intelectual, conforme a própria Constituição (Art. 5º, VIII, CF). O tratamento desigual, quando previsto pela Constituição, só ocorre em face de justificativas específicas, conforme a limitação natural de cada gênero da espécie humana. Assim, há tratamento diferenciado quanto à concessão legal de licença maternidade/paternidade, quanto aos critérios de aposentadoria no serviço público e no Regime Geral de Previdência Social, quanto à isenção do serviço militar obrigatório à mulher em tempo de paz, etc. Nessa perspectiva, Alexandre de Moraes, ao interpretar o princípio da igualdade entre homem e mulher presente no inciso I do artigo 5º da Constituição, esclarece que: A correta interpretação desse dispositivo torna inaceitável a utilização do discrímen sexo, sempre que o mesmo seja eleito com o propósito de desnivelar materialmente o homem da mulher; aceitando-o, porém, quando a finalidade pretendida for atenuar os desníveis. Conseqüentemente, além de tratamentos diferenciados entre homens e mulheres previstos pela própria constituição (arts. 7º, XVIII e XIX; 40, § 1º, 143, §§ 1º e 2º; 201, § 7º), poderá a legislação infraconstitucional pretender atenuar os desníveis de tratamento em razão do sexo. (MORAES, A., 2004, p. 69). Homens e mulheres são iguais em dignidade tanto em âmbito jurídico quanto no religioso. No entanto, quanto ao tratamento em razão do gênero humano, podem receber tratamento diferenciado tanto em âmbito jurídico quanto no religioso. Ao longo das escrituras, pode-se perceber certo tratamento diferenciado no tocante às funções específicas de cada gênero na sociedade. Essas raízes históricas podem ter influenciado de maneira significativa nas normas jurídicas atuais. Dessa forma, observa-se o seguinte paralelo: Religião: O Senhor disse a Moisés: “Dize aos israelitas o seguinte: quando uma mulher der à luz um menino será impura durante sete dias, como nos dias de sua menstruação. No oitavo dia far-se-á a circuncisão do menino. Ela ficará ainda trinta e três dias no sangue de sua purificação; não tocará coisa alguma santa, e não irá ao santuário até que se acabem os dias de sua purificação. Se ela der á luz uma menina, será impura durante duas semanas, como nos dias de sua menstruação, e ficará sessenta e seis dias 96 no sangue de sua purificação. (Lv 12, 1-5) . O Senhor disse a Moisés: “Dize aos israelitas o seguinte: se alguém fizer um voto, as pessoas serão do Senhor segundo a tua avaliação. Se se tratar de um homem de vinte a sessenta anos, o valor será de cinqüenta siclos de prata, segundo o siclo do santuário; se for uma mulher, o valor será de trinta siclos. Para a idade de cinco a vinte anos, o valor será de vinte siclos para o menino, e dez siclos para a menina. De um mês até cinco anos, o valor será de cinco siclos de prata para um menino, e três para uma menina. Aos 96 Bíblia Sagrada. Levítico, capítulo 12, versículos de 1 a 5. 73. ed. São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 154. 89 sessenta anos, e daí para cima, a estimação será de quinze siclos para um 97 homem e dez siclos para uma mulher. (Lv 27, 1-7) . Estado brasileiro: Art. 7º, CF - São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: [...] XVIII - licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de cento e vinte dias; XIX - licença-paternidade, nos termos fixados em lei; [...] Art. 10, ADCT, § 1º - Até que a lei venha a disciplinar o disposto no art. 7º, XIX, da Constituição, o prazo da licença-paternidade a que se refere o inciso é de cinco dias. Art. 40, CF - Aos servidores titulares de cargos efetivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, é assegurado regime de previdência de caráter contributivo e solidário, mediante contribuição do respectivo ente público, dos servidores ativos e inativos e dos pensionistas, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial e o disposto neste artigo. § 1º Os servidores abrangidos pelo regime de previdência de que trata este artigo serão aposentados, calculados os seus proventos a partir dos valores fixados na forma dos §§ 3º e 17: [...] III - voluntariamente, desde que cumprido tempo mínimo de dez anos de efetivo exercício no serviço público e cinco anos no cargo efetivo em que se dará a aposentadoria, observadas as seguintes condições: a) sessenta anos de idade e trinta e cinco de contribuição, se homem, e cinqüenta e cinco anos de idade e trinta de contribuição, se mulher; b) sessenta e cinco anos de idade, se homem, e sessenta anos de idade, se mulher, com proventos proporcionais ao tempo de contribuição. Art. 201, CF - A previdência social será organizada sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, nos termos da lei, a: [...] § 7º É assegurada aposentadoria no regime geral de previdência social, nos termos da lei, obedecidas as seguintes condições: I - trinta e cinco anos de contribuição, se homem, e trinta anos de contribuição, se mulher; II - sessenta e cinco anos de idade, se homem, e sessenta anos de idade, se mulher, reduzido em cinco anos o limite para os trabalhadores rurais de ambos os sexos e para os que exerçam suas atividades em regime de economia familiar, nestes incluídos o produtor rural, o garimpeiro e o pescador artesanal. Art. 143, CF - O serviço militar é obrigatório nos termos da lei. [...] § 2º - As mulheres e os eclesiásticos ficam isentos do serviço militar obrigatório em tempo de paz, sujeitos, porém, a outros encargos que a lei lhes atribuir. O direito de igualdade refere-se também à acessibilidade sócio-jurídica a todas as pessoas independente de poder aquisitivo ou capacidade econômica, ou seja, nenhum indivíduo pode ser privado dos atos básicos da vida civil por não ter dinheiro. Assim, juridicamente, um pobre e um rico não podem ser tratados de forma 97 Bíblia Sagrada. Levítico, capítulo 27, versículos de 1 a 7. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991, p. 172. 90 igual, pois se encontram em situações jurídicas diferentes. O pobre, para se igualar ao rico, deve ser tratado com certos privilégios jurídicos que não podem ser aplicados ao rico. Assim, o tratamento diferenciado, em certos casos, entre pobres e ricos, traduz-se no estrito cumprimento do preceito legal da isonomia. De maneira semelhante, o mesmo preceito isonômico encontra-se consubstanciado pela tradição espiritual, na qual os pobres e oprimidos são constantemente objetos da proteção divina. Vislumbra-se, então, o paralelo seguinte: Religião: O Reino pertence aos pobres e aos pequenos, isto é, aos que o acolheram com um coração humilde. Jesus é enviado para "evangelizar os pobres" (Lc 4,18). Declara-os bem-aventurados, pois "o Reino dos Céus é deles" (Mt 5,3); foi aos "pequenos" que o Pai se dignou revelar o que permanece escondido aos sábios e aos entendidos. Jesus compartilha a vida dos pobres desde a manjedoura até a cruz; conhece a fome, a sede e a indigência. Mais ainda: identifica-se com os pobres de todos os tipos e faz do amor ativo para com eles a condição para se entrar em seu Reino. (Catecismo da Igreja Católica, §544, p. 154). Deus abençoa aqueles que ajudam os pobres e reprova aqueles que se afastam deles: "Dá ao que te pede e não voltes as costas ao que te pede emprestado" (Mt 5,42). "De graça recebestes, de graça dai" (Mt 10,8). Jesus Cristo reconhecerá seus eleitos pelo que tiverem feito pelos pobres. Temos o sinal da presença de Cristo quando "os pobres são evangelizados" (Mt 11,53). (Catecismo da Igreja Católica, §2443, p. 631). O Senhor disse a Moisés: “Dize aos israelitas o seguinte: [...] se aquele que tiver feito o voto for demasiado pobre e não puder pagar o valor que avaliaste, apresentar-se-á ao sacerdote, que fixará o valor segundo as 98 posses daquele que fez o voto. (Lv 12, 1 e 8) . 99 Não atentarás contra o direito do pobre em sua causa. (Êx 23, 6) . Ser for pobre, e suas posses não lhe permitirem trazer tanto, tomará um só cordeiro em sacrifício de reparação, como oferta agitada, para fazer a expiação em seu favor: tomará um décimo de efá de flor de farinha 100 amassada com óleo em oblação, e uma medida de óleo. (Lv 14, 21) . “Se teu irmão se tornar pobre junto de ti, e as suas mãos se enfraquecerem, sustentá-lo-ás, mesmo que se trate de um estrangeiro ou de um hóspede, a 101 fim de que ele viva contigo. (Lv. 25, 35) . Se houver no meio de ti um pobre entre os teus irmãos, em uma de tuas cidades, na terra que te dá o Senhor, teu Deus, não endurecerás o teu 102 coração e não fecharás a mão diante de teu irmão pobre; (Dt 15, 7) . Ele não tem preferência pelos grandes, e não tem mais consideração pelos ricos do que pelos pobres, porque são todos obras de suas mãos. (Jó 34, 103 19) . 98 Bíblia Sagrada. Levítico, capítulo 12, versículos 1 e 8. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 154. 99 Bíblia Sagrada. Livro do Êxodo, capítulo 23, versículo 6. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 124. 100 Bíblia Sagrada. Levítico, capítulo 14, versículo 21. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 157. 101 Bíblia Sagrada. Levítico, capítulo 25, versículo 35. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 170. 102 Bíblia Sagrada. Deuteronômio, capítulo 15, versículo 7. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 231. 103 Bíblia Sagrada. Livro de Jó, capítulo 34, versículo 19. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 647. 91 Mas Deus salvará o pobre pela sua miséria, e o instrui pelo sofrimento. (Jó 104 36, 15) . Responde, porém, o Senhor: Por causa da aflição dos humildes e dos gemidos dos pobres, levantar-me-ei para lhes dar a salvação que desejam. 105 (Sl 11, 6) . Os pobres comerão e serão saciados; louvarão o Senhor aqueles que o 106 procuram: Vivam para sempre os nossos corações. (Sl 21, 27) . Não abandoneis ao abutre a vida de vossa pomba, não esqueçais para 107 sempre a vida de vossos pobres. (Sl 73, 19) . Defendei o oprimido e o órfão, fazei justiça ao humilde e ao pobre, livrai o 108 oprimido e o necessitado, tirai-o das garras dos ímpios. (Sl 81, 3-4) . Estado brasileiro: Art. 5º, CF - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] LXXIV - o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos; [...] LXXVI - são gratuitos para os reconhecidamente pobres, na forma da lei: a) o registro civil de nascimento; b) a certidão de óbito; LXXVII - são gratuitas as ações de "habeas-corpus" e "habeas-data", e, na forma da lei, os atos necessários ao exercício da cidadania. LXXVIII - a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação. F – Direito à segurança: Quanto ao direito à segurança, apesar de, nas origens, tal garantia advir da 1ª geração dos direitos fundamentais, pode-se dizer que o Estado brasileiro atual adota uma concepção bivalente, ou seja, tanto positiva quanto negativa. O Estado é responsável por garantir a segurança e a paz da sociedade, se comprometendo ele mesmo a não violar tal direito fundamental. Portanto, atualmente o direito à segurança pede uma intervenção estatal ativa (direito humano positivo) no caso das organizações militares e policiais, quanto uma abstenção estatal negativa (direito humano negativo), que visa obter a garantia de que o Estado não irá colocar em xeque os direitos fundamentais, como o direito à vida, à propriedade privada, à liberdade de locomoção, etc, evitando prisões arbitrárias, ilegais, autoritárias e sem motivação. (MORAES, A., 2004, p. 124). Nesse 104 Bíblia Sagrada. Livro de Jó, capítulo 36, versículo 15. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 649. 105 Bíblia Sagrada. Salmo 11 (Hebr. 12), versículo 6. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 664. 106 Bíblia Sagrada. Salmo 21 (Hebr. 22), versículo 27. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 672. 107 Bíblia Sagrada. Salmo 73 (Hebr. 74), versículo 19. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 714. 108 Bíblia Sagrada. Salmo 81 (Hebr. 82), versículos 3 e 4. 73. ed. São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 722. 92 sentido, a norma constitucional também sabiamente prevê, como corolário do direito à segurança, os direitos processuais da presunção de inocência, do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, nos quais o indivíduo se vê protegido de alguma possível ação abusiva do Estado. (MORAES, A., 2004, p. 125). Historicamente, o direito à segurança entrou no rol dos Direitos Humanos por influência das correntes jusnaturalistas racionais, que consideravam qualquer abuso estatal sobre as pessoas um ato ilícito e não condizente com o Direito Natural, violando claramente a liberdade e a dignidade humanas. O direito à segurança era a garantia de que a dignidade humana seria respeitada por todos, inclusive pelo Estado. Portanto, a inclusão da segurança no rol dos Direitos Humanos foi um evento histórico natural, que decorreu dos inúmeros abusos que os Estados fascistas cometiam contra as pessoas durante os períodos das duas guerras mundiais. (VICENTINO, 2004, pp. 503 a 508). No Brasil, os abusos estatais que mais marcaram a população foram os decorrentes do período totalitário de extrema direita e também do período da ditadura militar. A repressão e os abusos eram frequentes. (VICENTINO, 2004, pp. 533 a 538 e 597 a 614). Assim, pode-se dizer que a inclusão do direito à segurança na Constituição de 1988 nada mais foi do que uma reação natural a esse período conturbado. Os ideais jusnaturalistas e iluministas de liberdade, igualdade e fraternidade só seriam viáveis em um pretenso Estado Democrático de Direito com uma forte ferramenta capaz de assegurá-los: o direito constitucional à segurança. Em âmbito religioso, a segurança se traduz em proteção divina contra os males corriqueiros, como as doenças, as pestes, as guerras e a repressão dos povos vizinhos. Na tradição judaica, a observância das leis e da aliança feita com Deus garantiria a proteção, a segurança e a certeza de que o povo hebreu, um povo historicamente pequeno, vulnerável e perseguido, não seria subjugado. (GAARDER, 2002, pp. 102 e 103). Por isso, em muitas passagens bíblicas, Deus assume uma identidade específica chamada “O Senhor dos Exércitos”, que remete a essa característica protecionista que a divindade dos hebreus assumia. Já na era cristã, a preocupação com a segurança corporal, ou seja, estritamente material, passou para um segundo plano na doutrina religiosa, que considerava mais importante a segurança espiritual do que a da carne. Assim, Deus passou a ser lembrado menos como “O Senhor dos Exércitos” e passou a ser mais conhecido como “O Paráclito” ou “O Consolador” ou “Espírito de Fortaleza”. Na tradição cristã, convencionou-se 93 que a preocupação maior não recairia sobre aqueles que “matam o corpo, mas não matam a alma” (Mt 10, 28). Dessa forma, a preocupação no cristianismo é com a salvação espiritual, e não puramente a salvação material. No entanto, tal diferença não prejudica na forma como tais ideologias influenciam na produção de normas jurídicas protecionistas, posto que o ser humano é considerado, para a religião, corpo e espírito unidos109. A proteção do espírito traz como conseqüência a proteção do corpo, e vice versa. Logo, o paralelo entre religião e a norma jurídica brasileira que pode ser traçado é a seguinte: Religião: Eis o que diz o Senhor dos Exércitos: se andares nos meus caminhos e fores fiel às minhas ordens, governarás a minha casa, guardarás os meus átrios e te darei livre acesso entre os que estão aqui diante de mim. (Zc 3, 110 7) . Davi, porém, disse ao filisteu: Tu vens a mim com espada, e com lança, e com escudo; porém eu vou contra ti em nome do SENHOR dos Exércitos, o 111 Deus dos exércitos de Israel, a quem tens afrontado. (1 Sm 17, 45) . Já se ouve a gritaria da multidão sobre os montes, como a de muito povo; o som do rebuliço de reinos e de nações congregados. O SENHOR dos 112 Exércitos passa em revista suas tropas para a batalha. (Is 13, 4) . Porque me levantarei contra eles, diz o SENHOR dos Exércitos, e extirparei o nome e os vestígios de babilônia, sua raça e sua posteridade, diz o 113 SENHOR. (Is 14, 22) . Porque este dia é o dia do Senhor DEUS dos Exércitos, dia de vingança para ele se vingar dos seus adversários; e a espada devorará, e fartar-se-á, e embriagar-se-á com o sangue deles; porque o Senhor DEUS dos Exércitos tem um sacrifício na terra do norte, junto ao rio Eufrates. (Jr 46, 114 10) . Sê tu a minha habitação forte, à qual possa recorrer continuamente. Deste um mandamento que me salva, pois tu és a minha rocha e a minha 115 fortaleza. (Sl 70, 3) . Porque vós sois o refúgio para o fraco, e a fortaleza do necessitado na sua angústia; abrigo contra a tempestade, e sombra contra o calor (porque o sopro dos opressores é como uma tempestade de inverno, como o calor sobre a terra árida. Vós fazeis cessar o clamor dos tiranos, assim como cessa o calor à sombra de uma nuvem. O canto triunfal dos tiranos 116 extinguir-se-á. (Is 25, 4 e 5) . 109 AGOSTINHO, Santo. A Trindade. 2. ed., São Paulo: Editora Paulus, 1994. p. 322 a 324. Bíblia Sagrada. Zacarias, capítulo 3, versículo 7. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 1272. 111 Bíblia Sagrada. I Samuel, capítulo 17, versículo 45. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 322. 112 Bíblia Sagrada. Isaías, capítulo 13, versículo 4. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 955. 113 Bíblia Sagrada. Livro do Êxodo, capítulo 20, versículo 15. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 121. 114 Bíblia Sagrada. Jeremias, capítulo 46, versículo 10. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 1094. 115 Bíblia Sagrada. Salmo 70 (hebr. 71), versículo 3. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 710. 116 Bíblia Sagrada. Isaías, capítulo 25, versículo 4 e 5. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 970. 110 94 O SENHOR é o meu rochedo, e o meu lugar forte, e o meu libertador; o meu Deus, a minha fortaleza, em quem confio; o meu escudo, a força da minha salvação, e o meu alto refúgio. Invoco o SENHOR digno de todo o louvor, e 117 fico livre dos meus inimigos (Sl 17, 3 e 4) . Tu que habitas sob a proteção do Altíssimo, que moras à sombra do Onipotente, Dize ao SENHOR: “Sois o meu refúgio, e a minha fortaleza, Meu Deus, em quem eu confio”. E Ele te livrará do laço do caçador, e da peste perniciosa. Ele te cobrirá com as suas penas, e debaixo das suas asas encontrarás refúgio; Sua fidelidade te será um escudo de proteção. Não temerás os terrores noturnos, nem a flecha que voa de dia, nem a peste que se propaga nas trevas, nem a mortandade que assola ao meiodia. Caiam mil homens à tua esquerda, e dez mil à tua direita, mas tu não 118 serás atingido. (Sl 90, 1 a 7) . E repousará sobre ele o Espírito do SENHOR, o espírito de sabedoria e de entendimento, o espírito de conselho e de fortaleza, o espírito de 119 conhecimento e de temor do SENHOR. (Is 11, 2) . E eu rogarei ao Pai, e ele vos dará outro Consolador, para que fique 120 convosco para sempre; (Jo 14, 16) . Sou Eu, sou Eu quem vos consola; Como podes temer o homem que é 121 mortal, ou um filho do homem, que acabará com a erva? (Is 51, 12) . Clama outra vez, dizendo: Assim diz o SENHOR dos Exércitos: As minhas cidades ainda aumentarão e prosperarão; porque o SENHOR ainda 122 consolará a Sião e ainda escolherá a Jerusalém. (Zc 1, 17) . Estado brasileiro: Art. 5º, CF - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] XLI - a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais; [...] LIII - ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente; LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes; LVI - são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos; LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória; [...] LXI - ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei; [...] 117 Bíblia Sagrada. Salmo 17 (Hebr. 18), versículos 3 e 4. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 667. 118 Bíblia Sagrada. Salmo 90 (Hebr. 91), versículos de 1 a 7. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 730. 119 Bíblia Sagrada. Isaías, capítulo 11, versículo 2. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 954. 120 Bíblia Sagrada. Evangelho de Jesus Cristo segundo João, capítulo 14, versículo 16. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 1404. 121 Bíblia Sagrada. Isaías, capítulo 51, versículo 12. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 1010. 122 Bíblia Sagrada. Zacarias, capítulo 1, versículo 17. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 1271. 95 LXV - a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária; [...] LXVIII - conceder-se-á "habeas-corpus" sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder; [...] Art. 142, CF - As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem. [...] Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: I - polícia federal; II - polícia rodoviária federal; III - polícia ferroviária federal; IV - polícias civis; V - polícias militares e corpos de bombeiros militares. G – Direito à propriedade: Como já exposto no tópico 1.1 deste trabalho, pesquisadores situam a provável origem dos primeiros fenômenos religiosos junto com o surgimento do sedentarismo e da propriedade privada. Consideram que as primeiras religiões surgiram como uma forma de normatizar as relações interpessoais entre os indivíduos e suas propriedades privadas. No entanto, esse aspecto das religiões foi evoluindo com o passar dos tempos e se transformando em algo mais profundo, como o abordado nos tópicos subsequentes deste trabalho. Portanto, há estrita relação entre a religiosidade e o direito de propriedade. Para a tradição judaico-cristã, a propriedade dos bens materiais é garantida a partir da criação do Universo, desde que o homem saiba usufruir dos bens de modo equilibrado e voltando-os para o bem comum. O uso da propriedade de modo desordenado, o acumulo excessivo de bens materiais, e o uso ilegal das posses sempre foi reprovável religiosamente, sendo uma exceção ao direito de propriedade. No direito brasileiro, tal ideologia traduz-se no princípio da função social da propriedade, a qual é consagrada na Constituição Federal como limite ao direito subjetivo de propriedade. Ou seja, a propriedade é assegurada, desde que voltada à sua função social. (MORAES, A., 2004, p. 683). A propriedade atende sua função social quando não é destinada para a prática de atos ilícitos e quando é utilizada regularmente conforme a legislação, e quando está em conformidade com as normas de Direito Administrativo, que prioriza o interesse coletivo sobre o privado, o que justifica casos de desapropriação no direito brasileiro. 96 Em âmbito religioso, a propriedade possui o fim de levar condições materiais de vida condizentes com a inalienável dignidade humana. A não acumulação exarcebada de bens materiais visa à justa distribuição equânime das riquezas produzidas, objetivando a manutenção da dignidade humana, que é direito de todos. Assim, para a religião, o ideal é que cada pessoa possua apenas o necessário para satisfazer suas necessidades e viver confortavelmente. Tudo o que passa disso é considerado um acumulo prejudicial à própria pessoa e à comunidade, que se vê privada da circulação das riquezas. Num Estado Democrático e liberal, essa visão sobre a propriedade é de certo modo compartilhada, pois o capitalismo sobrevive da livre circulação do capital. Se as pessoas resolvem apenas acumular riquezas e não colocam o dinheiro em circulação, a economia geral entra em crise, gerando índices alarmantes de desemprego, baixa produtividade, baixo consumo, acúmulo de produtos em estoques, etc.123 Dessa forma, pode-se observar um interessante paralelo entre o direito de propriedade assegurado pela religião (com a condenação do mal uso e do acúmulo indevido da propriedade) e o direito de propriedade no direito constitucional brasileiro (com seus limites fincados no princípio da função social da propriedade): Religião: Então Deus disse: "Façamos o homem à nossa imagem e semelhança. Que ele reine sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais domésticos e sobre toda a terra, e sobre todos os répteis que se arrastem sobre a terra." [...] Deus os abençoou: "Frutificai, disse ele, e multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a. Dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todos os animais que se arrastam sobre a terra." Deus disse: "Eis que eu vos dou toda a erva que dá semente sobre a terra, e todas as árvores frutíferas que contêm em si mesmas a sua semente, para 124 que vos sirvam de alimento. (Gn 1, 26-29) . Da destinação universal e a propriedade privada dos bens. No começo, Deus confiou a terra e seus recursos à administração comum da humanidade, para que cuidasse dela, a dominasse por seu trabalho e dela desfrutasse. Os bens da criação são destinados a todo o gênero humano. A terra está, contudo, repartida entre os homens para garantir a segurança de sua vida, exposta à penúria e ameaçada pela violência. A apropriação dos bens é legítima para garantir a liberdade e a dignidade das pessoas, para ajudar cada um a prover suas necessidades fundamentais e as daqueles de quem está encarregado. Deve também permitir que se manifeste uma solidariedade natural entre os homens. (Catecismo da Igreja Católica, 2000, §2402, p. 621). 123 Sobre as leis econômicas de circulação de riquezas, ver: GOMES, Carlos. Antecedentes do capitalismo. Circulação de capital. Edição eletrônica gratuita. Disponível em: <http://www.eumed.net/libros/2008a/372/CIRCULACAO%20DE%20CAPITAL.htm>. Acesso em: 21 abr. 2009. 124 Bíblia Sagrada. Gênesis, capítulo 1, versículos de 26 a 29. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. pp. 49 e 50. 97 Não ajunteis para vós tesouros na terra, onde os ladrões furam e roubam. Ajuntai para vós tesouros no céu, onde não os consomem nem as traças, 125 nem a ferrugem, e os ladrões não furam nem roubam. (Mt 6, 19 e 20) . Perguntava-lhe a multidão: “que devemos fazer?” Ele respondia: “aquele que tiver duas túnicas dê uma a quem não tem; e quem tem o que comer 126 faça o mesmo”. (Lc 3, 10 e 11) . "Usando aqueles bens, o homem que possui legitimamente as coisas materiais não as deve ter só como próprias dele, mas também como comuns, no sentido de que elas possam ser úteis não somente a ele, mas também aos outros." A propriedade de um bem faz de seu detentor um administrador da Providência, para fazê-los frutificar e para repartir os benefícios dessa administração a outros, a seus parentes, em primeiro lugar. (Catecismo da Igreja Católica, §2404, p. 621). A autoridade política tem o direito e o dever de regulamentar, em função do bem comum, o exercício legítimo do direito de propriedade. (Catecismo da igreja Católica, §2406, p. 622). Não cobiçarás a casa do teu próximo; não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem seu escravo, nem sua escrava, nem seu boi, nem seu 127 jumento, nem nada do que lhe pertence. (Êx 20, 17) . O décimo mandamento proíbe a avidez e o desejo de uma apropriação desmedida dos bens terrenos; proíbe a cupidez desmedida nascida da paixão imoderada das riquezas e de seu poder. Proíbe ainda o desejo de cometer uma injustiça pela qual se prejudicaria o próximo em seus bens temporais: Quando a Lei nos diz: "Não cobiçarás", ordena-nos, em outros termos, que afastemos nossos desejos de tudo aquilo que não nos pertence. Pois a sede dos bens do próximo é imensa, infinita e nunca saciada, como está escrito: "Quem ama o dinheiro nunca se fartará de dinheiro" (Ecl 5, 9). (Catecismo da Igreja Católica, §2536, p. 650). Estado brasileiro: Art. 5º, CF - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] XXII - é garantido o direito de propriedade; XXIII - a propriedade atenderá à sua função social; XXIV - a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição; Quanto à proteção jurídica que a propriedade privada recebe, tanto a religião judaico-cristã quanto o direito atual brasileiro reprovam as condutas atentatórias contra os bens materiais alheios. Assim, observa-se o curioso paralelo seguinte: Religião: 128 Não roubarás (Êx 20, 15) . 125 Bíblia Sagrada. Evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus, capítulo 6, versículos 19 e 20. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 1290. 126 Bíblia Sagrada. Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas, capítulo 3, versículos 10 e 11. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 1349. 127 Bíblia Sagrada. Livro do Êxodo, capítulo 20, versículo 17. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 121. 128 Bíblia Sagrada. Livro do Êxodo, capítulo 20, versículo 15. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 121. 98 Não cobiçarás a casa do teu próximo; não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem seu escravo, nem sua escrava, nem seu boi, nem seu 129 jumento, nem nada do que lhe pertence. (Êx 20, 17) . Não roubarás (Ex 20, 15; Cf Dt 5, 19). Não roubarás (Mt 19, 18). O sétimo mandamento proíbe tomar ou reter injustamente os bens do próximo ou lesá-lo, de qualquer modo, nos mesmos bens. Prescreve a justiça e a caridade na gestão dos bens terrestres e dos frutos do trabalho dos homens. Exige, em vista do bem comum, o respeito à destinação universal dos bens e ao direito de propriedade privada. A vida cristã procura ordenar para Deus e para a caridade fraterna os bens deste mundo. (Catecismo da Igreja Católica, §2401, p. 620). Toda maneira de tomar e de reter injustamente o bem do outro, mesmo que não contrarie as disposições da lei civil, é contrária ao sétimo mandamento. Assim, também, reter deliberadamente os bens emprestados ou objetos perdidos, defraudar no comércio, pagar salários injustos, elevar os preços especulando sobre a ignorância ou a miséria alheia. São ainda moralmente ilícitos a especulação, pela qual se faz variar artificialmente a avaliação dos bens, visando levar vantagem em detrimento do outro; a corrupção, pela qual se "compra" o julgamento daqueles que devem tomar decisões de acordo com o direito; a apropriação e uso privados dos bens sociais de uma empresa; os trabalhos malfeitos; a fraude fiscal; a falsificação de cheques e de faturas; os gastos excessivos; o desperdício. Infligir voluntariamente um prejuízo aos proprietários privados ou públicos é contrário à lei moral e exige reparação. (Catecismo da Igreja Católica, §2409, p. 622). Estado brasileiro: Crimes contra o patrimônio. Furto Art. 155, CP - Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel: Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa. Roubo Art. 157, CP - Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência: Pena - reclusão, de quatro a dez anos, e multa. Extorsão Art. 158, CP - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, e com o intuito de obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica, a fazer, tolerar que se faça ou deixar fazer alguma coisa: Pena - reclusão, de quatro a dez anos, e multa. Extorsão indireta Art. 160, CP - Exigir ou receber, como garantia de dívida, abusando da situação de alguém, documento que pode dar causa a procedimento criminal contra a vítima ou contra terceiro: Pena - reclusão, de um a três anos, e multa. Alteração de limites Art. 161, CP - Suprimir ou deslocar tapume, marco, ou qualquer outro sinal indicativo de linha divisória, para apropriar-se, no todo ou em parte, de coisa imóvel alheia: Pena - detenção, de um a seis meses, e multa. Dano Art. 163, CP - Destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia: Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa. 129 Bíblia Sagrada. Livro do Êxodo, capítulo 20, versículo 17. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 121. 99 3.3. OS EFEITOS DA RELIGIÃO NO DIREITO ATUAL. Vista a forma como os princípios religiosos, mormente os de tradição ocidental monoteísta, estabelecem curiosos paralelos de influência na formação dos direitos e garantias fundamentais na Constituição Federal brasileira de 1988, resta analisar a forma como tais movimentos religiosos continuam atuando no ordenamento jurídico atual. A problemática passa em torno de questões fundamentais que abordam temas polêmicos, principalmente em torno do direito à vida, como a pesquisa com células-tronco embrionárias e a legalização do aborto. Com relação à pesquisa científica com células-tronco embrionárias, a discussão atual acalorou-se entre as opiniões das alas religiosas de grande representação na sociedade e as dos cientistas brasileiros, que visavam obter permissão legal para o desenvolvimento e o progresso nas pesquisas com tais células. A opinião religiosa, nesse caso, representou uma força de influência contra a tendência governamental de se permitir tais tipos de experiências com seres humanos, inicialmente previstas na Lei nº 11.105/05 (Lei de Biossegurança). O artigo 5º da referida lei prescreve em seu caput que “é permitida para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização 'in vitro' e não utilizados no respectivo procedimento”. Tal dispositivo foi objeto de Ação Direta de inconstitucionalidade por ferir teoricamente o direito à vida garantido pela Carta Magna brasileira. Além da proteção da vida humana como direito inalienável, o Direito brasileiro protege todos os direitos da pessoa, desde a concepção até a sua morte, como se depreende da inteligência do artigo 2º do Código Cívil, que diz: “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.” Assim, embora nascituro e isento de personalidade jurídica, os embriões e/ou fetos gozariam de direitos para com o Estado, e dentre eles o de ter segura a sua vida e a sua dignidade humana. O conceito da concepção como início 100 da vida humana é próprio da Ciência Médica e da Biologia 130, tendo sido abarcada por muito tempo pela Ciência Jurídica brasileira (Art. 2º, CC). Juridicamente, portanto, a vida humana teria início na concepção, fenômeno no qual há a união da célula reprodutora masculina com a feminina, gozando o ser humano de proteção jurídica a partir de tal fenômeno até a sua morte. A discussão que se deu em torno do assunto era, dessa forma, estritamente jurídico. No entanto, envolveu também a opinião dos espiritualistas, uma vez que a manipulação da vida humana seria um ato imoral do ponto de vista religioso e ilegal do ponto de vista jurídico. Assim, pôde ser observada a forma como as ideologias religiosas influenciaram fortemente nos argumentos a favor da Adin em trâmite no Supremo Tribunal Federal. Apesar de ser uma discussão tecnicamente jurídica, setores religiosos da Igreja Católica131 e de algumas das igrejas protestantes132 reagiram fortemente à problemática, emitindo opiniões públicas em favor do direito à vida e do respeito à dignidade humana. Para os religiosos, a Bíblia afirma categoricamente em várias passagens que o início da vida se dá antes do nascimento, mais especificamente quando ocorre o que a Medicina chama hoje em dia de concepção. Uma das passagens preferidas dos religiosos situa-se no livro de Jeremias, em que Deus diz ao seu profeta: “Antes que eu te formasse no ventre materno, eu já te conhecia; antes do teu nascimento, Eu já te havia consagrado, e te havia designado profeta das nações." (Jr 1, 5)133. Há de se espantar que na Bíblia há passagens que fornecem argumentos da existência da vida antes mesmo da concepção carnal, pois para Deus o homem é também e principalmente espírito, e não somente carne. Assim, passagens como 130 “Um novo indivíduo biológico humano, original em relação a todos os exemplares de sua espécie, inicia o seu ciclo vital no momento da penetração do espermatozóide no ovócito. A fusão dos gâmetas masculino e feminino (chamada também "singamia") marca o primeiro "passo generacional", isto é, a transição entre os gâmetas - que podem considerar-se "uma ponte" entre as gerações - e o organismo humano não-formado. A fusão dos gâmetas representa um evento "crítico" de "descontinuidade" porque marca a constituição de uma nova individualidade biológica, qualitativamente diferente dos gâmetas que a geraram.” (GIULI, Anna. Bases biológicas do início da vida humana. Disponível em: <http://www.minhocomvida.org/site/index.php?option=com_content&task=view&id=46&Itemid=45>. Acesso em: 26 abr. 2009). 131 ABARCA, Gerson. Células-tronco, ciência e religião. Disponível em: <http://blog.cancaonova.com/ pensandobem/2008/03/12/celulas-tronco-ciencia-religiao/>. Acesso em: 26 abr. 2009. 132 MAGALHÃES, Ageu (Pr.). Resistência protestante. Pesquisas com células-tronco embrionárias: o que a mídia omitiu. Disponível em: <http://resistenciaprotestante.blogspot.com/2008/06/pesquisas-com-clulas-tronco-embrionrias.html>. Acesso em: 26 abr. 2009. 133 Bíblia Sagrada. Jeremias, capítulo 1, versículo 5. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 1032. 101 “Em verdade vos digo, antes que Abraão fosse, Eu sou” (Jo 8, 58)134 ampliam mais ainda a idéia que a religião faz da vida humana como participante da vida divina, e por isso mesmo cheia de uma dignidade inerente a si mesma. Mais estranho ainda é observar que há precedentes no Direito brasileiro que corroboram essa existência da vida humana mesmo antes da concepção, protegendo direitos de pessoas que ainda não nasceram e sequer foram concebidas carnalmente. São os chamados direitos hereditários de prole eventual, que encontram respaldo jurídico nos artigos 1.799 e 1.800 do Código Civil: Art. 1.799, CC - Na sucessão testamentária podem ainda ser chamados a suceder: I - os filhos, ainda não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador, desde que vivas estas ao abrir-se a sucessão; [...] Art. 1.800, CC - No caso do inciso I do artigo antecedente, os bens da herança serão confiados, após a liquidação ou partilha, a curador nomeado pelo juiz. [...] o § 4 Se, decorridos dois anos após a abertura da sucessão, não for concebido o herdeiro esperado, os bens reservados, salvo disposição em contrário do testador, caberão aos herdeiros legítimos. Apesar de toda a influência que a religião possui, neste caso específico o Estado brasileiro, por meio da declaração do Supremo Tribunal Federal, julgou improcedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade em 28 de maio de 2008, dando permissão jurídica para a continuidade das pesquisas com células-tronco embrionárias, o que parece contraditório em um ordenamento jurídico que protege a vida e a dignidade humanas desde a concepção, e algumas vezes até mesmo antes da concepção, até a morte. O então presidente do STF, Excelentíssimo Sr. Ministro Gilmar Mendes, foi o último a apresentar seu voto no julgamento, decidindo a questão por 6 votos contra 5 vencidos. No entanto, o julgamento improcedente da Adin e a conseqüente permissão da pesquisa com as células-tronco se deram de forma parcial, pois seriam consideradas lícitas desde que se observassem algumas ressalvas como as que já estão previstas na lei de biossegurança: O texto impõe como condições que os embriões sejam "inviáveis ou congelados há três anos ou mais, na data da publicação da Lei, ou que, já congelados na data da publicação desta Lei, depois de completarem três anos, contados a partir da data de congelamento." Em qualquer caso, prevê 134 Bíblia Sagrada. Evangelho de Jesus Cristo segundo João, capítulo 8, versículo 58. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 1397. 102 a lei, "é necessário o consentimento dos genitores." E as instituições de pesquisa e serviços de saúde devem "submeter seus projetos à apreciação e aprovação dos respectivos comitês de ética em pesquisa." Também 135 proíbe a "comercialização do material biológico". Mesmo assim, como pôde ser observado, houve certa influência da moral religiosa neste permissivo legal, posto que as restrições que já haviam sido previstas em lei estabelecem limites à ampla pesquisa com as células-tronco em face da proteção da dignidade humana. Além disso, não se pode negar que a discussão fática em torno do tema desenvolveu-se praticamente entre as posições jurídicas, médicas e religiosas, onde todas essas áreas do conhecimento humano omitiam suas opiniões fervorosamente, visando influenciar no julgamento da Adin pelo STF. Foi um exemplo claro de como a religião, mesmo nos dias atuais, continua a exercer influência de opinião no ordenamento jurídico. Além das pesquisas com as células-tronco embrionárias, pode-se citar um outro tema jurídico que vem sido debatido calorosamente nos dias atuais com forte influência da opinião religiosa: a questão da legalização do aborto. Inclusive, diz-se que muito da oposição religiosa contrária à permissão das pesquisas com célulastronco embrionárias se deu pelo fato de que tal permissivo legal abriria precedentes jurídicos para a legalização do aborto, o que é uma tática de permissão progressiva, como afirmou o jurista Rodrigo Rodrigues Pedroso, da Comissão de Defesa da República e da Democracia da seção paulista da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), dirigindo-se a estudantes em um debate relatado pelo jornalista Paulo Montoia da Agência Brasil: O que se fez com a Lei da Biossegurança é a tática de “comer a sopa pela beirada”. Ele acredita que, se mantida a autorização na lei, será aberto caminho para o aborto e para a clonagem de seres humanos. Isso é um pretexto para a liberalização do aborto. E uma vez que você permita a pesquisa de células-tronco, estará aberto o caminho também para a 136 clonagem humana terapêutica. 135 ANDRADE, Cláudia. UOL últimas notícia, ciência e saúde. STF aprova pesquisas com célulastronco embrionárias. Disponível em: <http://cienciaesaude.uol.com.br/ultnot/2008/05/29/ult4477u692. jhtm>. Acesso em: 26 abr. 2009. 136 MONTOIA, Paulo. Agência Brasil. Decisão do STF sobre células-tronco pode ampliar debate sobre aborto, afirmam juristas. Disponível em: <http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2008/03/04/ materia.2008-03-04.8895409735/view>. Acesso em: 26 abr. 2009. 103 A questão do aborto é antiga no Brasil, e até hoje movimentos feministas e também de outras áreas logram obter a descriminalização do aborto. No entanto, o Estado brasileiro em sua Constituição Federal garante a proteção do direito à vida, e pune, conforme o Código Penal, a realização de aborto, sendo ele consentido ou não pela mãe. Tal posicionamento, como já abordado por este trabalho, vem das ideologias religiosas, que consideram a vida como maior bem do ser humano, gozando de dignidade desde a sua concepção no útero materno até a sua morte natural. Tanto para o Estado brasileiro quanto para a Religião, a vida humana intrauterina não se difere da vida humana personalizada. No entanto, no Direito brasileiro, o Código Penal não pune certos tipos de aborto, como o “aborto necessário” e o “aborto no caso de gravidez resultante de estupro”, não obstante seja necessário esclarecer que é apenas uma excludente de punibilidade, e não de antijuridicidade, ou seja, o aborto ainda se constitui no Brasil como crime em qualquer situação. Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico: Aborto necessário I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante; Aborto no caso de gravidez resultante de estupro II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal. Apesar de grande parte das opiniões religiosas protestantes possuir essa mesma tolerância com relação ao chamado “aborto necessário”137, o mesmo não ocorre com a opinião da Igreja Católica, que condena qualquer tipo de prática abortiva. “A Igreja Católica [sic] baseada na afirmativa de Santo Agostinho de que o aborto é dos crimes o mais odioso, vez que é praticado contra um ser que não pode se defender, não o justifica em nenhum caso e nem mesmo acolhe o chamado aborto terapêutico”.138 Quanto ao aborto por motivo de gravidez resultante de estupro, tanto a doutrina protestante quanto a católica consideram tal atitude reprovável e condenável, posto que acreditam na proteção irrestrita da vida humana, na superação dos traumas humanos pela força divina, e na suportação dos fardos como vocação de vida cristã, como se observa a seguir: 137 Ver discurso do Pr. Silas Malafaia. (MERTON, H. K. Pastor evangélico fala sobre aborto. Disponível em: <http://artedartes.blogspot.com/2009/03/pastor-evangelico-fala-sobre-aborto.html>. Acesso em: 26 abr. 2006). 138 ARAÚJO, Luis Ivani de Amorim. Direito Internacional Penal. Delicta Iuris Gentium. Rio de Janeiro, RJ: Editora Forense, 2000. p. 89. 104 A postura das igrejas protestantes em geral (batista, luterana, metodista, presbiteriana, episcopal e unitária) parece ser um pouco menos rígida que a da Igreja Católica, uma vez que admite o aborto terapêutico, embora jamais encare o aborto como método de controle da natalidade. De qualquer forma, dá-se grande importância à vida da mãe, devendo a questão ser resolvida 139 entre médico, pastor e paciente. A mulher brutalizada pelo estupro, não é uma criminosa, é apenas uma infeliz vítima de crime hediondo, mas quando decide provocar o aborto, ela assume também o ônus da culpa pela eliminação da segunda vítima, que é uma criança que não pediu para estar envolvida nesta desgraça toda. O trauma pode ser tratado com o competente acompanhamento médico e psicológico, e, simultaneamente com ajuda espiritual da igreja, através da 140 comunhão, oração e orientação espiritual, ministrada por quem de direito. Então disse Jesus aos seus discípulos: Se alguém quiser vir comigo, renuncie-se a si mesmo, tome a sua cruz e me siga. Porque aquele que quiser salvar a sua vida, perdê-la-á, mas aquele que tiver sacrificado a sua 141 vida pela minha causa, recobra-la-á. (Mt 16, 24-25) . O caminho da perfeição passa pela cruz. Não existe santidade sem renúncia e sem combate espiritual. O progresso espiritual envolve ascese e mortificação, que levam gradualmente a viver na paz e na alegria das bemaventuranças: Aquele que vai subindo jamais cessa de progredir de começo em começo, por começos que não têm fim. Aquele que jamais cessa de desejar aquilo que já conhece. (Catecismo da Igreja Católica, §2015, p. 532). Os pais devem considerar seus filhos como filhos de Deus e respeitá-los como pessoas humanas. Educar os filhos no cumprimento da Lei de Deus, mostrando-se eles mesmos obedientes à vontade do Pai dos Céus. (Catecismo da Igreja Católica, §2222, p. 580). Desde o século I, a Igreja afirmou a maldade moral de todo aborto provocado. Este ensinamento não mudou. Continua invariável. O aborto direto, quer dizer, querido como um fim ou como um meio, é gravemente contrário à lei moral: Não matarás o embrião por aborto e não farás perecer o recém-nascido. Deus, senhor da vida, confiou aos homens o nobre encargo d preservar a vida, para ser exercido de maneira condigna ao homem. Por isso a vida deve ser protegida com o máximo cuidado desde a concepção. O aborto e o infanticídio são crimes nefandos. (Catecismo da Igreja Católica, §2271, p. 592). O diagnóstico pré-natal é moralmente licito "se respeitar a vida e a integridade do embrião e do feto humano, e se está orientado para sua salvaguarda ou sua cura individual... Está gravemente em oposição com a lei moral quando prevê, em função dos resultados, a eventualidade de provocar um aborto. Um diagnóstico não deve ser o equivalente de uma sentença de morte". (Catecismo da Igreja Católica, § 2274, p. 593). Assim, o aborto é prática ilícita tanto em âmbito religioso quanto em âmbito jurídico, mesmo que haja tolerância religiosa nas doutrinas protestantes em alguns casos específicos e que haja previsão jurídica de excludente de punibilidade em dois casos específicos no Direito brasileiro. No entanto, a discussão ainda se faz atual 139 ALVARENGA, Augusta T. de. SCHOR, Néia. O aboto: um resgate histórico e outros dados. Disponível em: <http://www.fsp.usp.br/SCHOR.HTM>. Acesso em: 26 abr. 2009. 140 VENTURA, Paulo. Os evangélicos e o aborto. Disponível em: <http://pt.shvoong.com/ humanities/religious-studies/1806244-os-evang%C3%A9licos-aborto/>. Acesso em: 26 abr. 2009. 141 Bíblia Sagrada. Evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus, capítulo 16, versículos 24 e 25. 73. ed., São Paulo, SP: Editora Ave Maria, 1991. p. 1304. 105 pelo fato de existirem tendências que visam amplificar a permissão do aborto, legalizando sua prática sob argumentos que tangem a questão da saúde pública, etc. Atualmente, entraram em pauta de discussão da Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF) da Câmara dos Deputados dois projetos de lei sobre o aborto, o PL nº 1135/91 e o PL nº 176/95, ambos visando lograr a descriminalização do aborto em geral. O atual Ministro da Saúde, o Sr. José Gomes Temporão, é a favor da descriminalização do aborto, pois afirma ter dados estatísticos que há no Brasil inúmeras mortes de mulheres que se submetem a procedimentos abortivos ilegais. A descriminalização seria uma questão de saúde pública que visa evitar a quantidade de óbitos devido a tratamentos inadequados. Em seu discurso, Temporão diz: “Quem não reconhece que aborto é questão de saúde pública está delirando” e “não se pode prescrever dogmas de uma religião para a sociedade inteira”.142 No entanto, católicos e protestantes se unem, cada vez mais, em prol da defesa da vida contra a prática do aborto. Realizam passeatas, movimentos ecumênicos de protesto contra tais projetos de lei, etc. Para reforçar a opinião da Igreja Católica sobre o assunto, a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) deram à campanha da fraternidade do ano de 2008 o tema “Fraternidade e defesa da vida”, sob o lema “Escolhe, pois, a vida”, retirado de uma passagem bíblica do livro Deuteronômio, capítulo 30, versículo 19. O secretário-geral do órgão, Dom Odilo Scherer, enviou carta à presidência da República, órgão exercido na época pelo Sr. Luiz Inácio Lula da Silva, esclarecendo que “proteger, defender e promover a vida é tarefa primordial do Estado, sobretudo a vida indefesa e frágil, como a dos seres humanos ainda não nascidos”.143 De acordo com pesquisa do instituto Datafolha, divulgada em 2007, a maioria da população brasileira, representada por 87% dos entrevistados, se posiciona contra a legalização do aborto, abrangendo todas as diferentes classes sociais e de variados níveis de escolaridade, indicando que a oposição não se restringe ao âmbito teológico do alto clero, mas envolve também a religiosidade e a moral populares. O maior apoio à legalização é observado nas famílias com renda superior a 20 salários mínimos por mês, indicando que os dados do Ministério da Saúde sobre os alarmantes índices 142 GONÇALVES JÚNIOR, Valter. Posição marcada. Católicos e evangélicos se unem contra a legalização do aborto. Disponível em: <http://www.cristianismohoje.com.br/retrancas/Cat%C3%B3licos+e+evang%C3%A9licos+se+unem+c ontra+o+aborto/33586/rss>. Acesso em: 26 abr. 2006). 143 Ibidem. 106 precários da saúde pública talvez não diga respeito exatamente à parte da população mais carente.144 Ainda no mesmo sentido, vale ressaltar que a influência do pensamento religioso nesse assunto é tão grande que mobilizou vários atos sociais públicos em prol da vida humana intra-uterina, principalmente na cidade de São Paulo, que possui uma grande concentração de pessoas e a maior densidade populacional urbana do país, como pôde ser observado na publicação dos folders seguintes: Figura 2 – Folder de convocação para o 3º Ato Público em defesa da vida, que foi realizado na cidade de São Paulo em 28 de março de 2009. Fonte: Imagem retirada do Portal da Família. Disponível em: <http://www.portaldafamilia.org.br/eventos/vidadefesa2009.s html>. Acesso em: 26 abr. 2009. 144 Ibidem. 107 Figura 3 – Verso do folder de convocação para o 3º Ato Público em defesa da vida, que foi realizado na cidade de São Paulo em 28 de março de 2009. Fonte: Imagem retirada do Portal da Família. Disponível em: <http://www.portalda familia.org.br/eventos/vidadefesa2009.shtml>. Acesso em: 26 abr. 2009. Ainda que tais projetos de leis fossem aprovados, não faltariam proposituras de Ações Diretas de inconstitucionalidade, uma vez que permitem a prática de aborto em qualquer momento da gestação e que, além disso, obrigam o Sistema Único de Saúde (SUS) e toda a rede conveniada a interromper a gravidez da mulher que reivindicar esse tipo de intervenção, desde que o faça durante os primeiros três meses de gestação.145 Tais projetos de leis não vão apenas contra a moral religiosa e os bons costumes, mas afrontam também diretamente a tutela jurídica dada à vida humana pela Constituição Federal, pelo Código Civil e pelo Código Penal. O objetivo deste tópico 3.3 do trabalho, ao analisar esses casos polêmicos em torno da pesquisa em células-tronco embrionárias e da descriminalização do aborto, é evidenciar, mais uma vez, a forma como as religiões e a espiritualidade ainda 145 GONÇALVES JÚNIOR, Valter. Posição marcada. Católicos e evangélicos se unem contra a legalização do aborto. Disponível em: <http://www.cristianismohoje.com.br/retrancas/Cat%C3%B3licos+e+evang%C3%A9licos+se+unem+c ontra+o+aborto/33586/rss>. Acesso em: 26 abr. 2006). 108 influenciam no ordenamento jurídico brasileiro, mesmo na atualidade onde o Estado se diz laico. A ação das religiões promove debates, incentiva reflexões e compele a população a tomar atitudes públicas de protesto que visem pressionar as autoridades legislativas a fazerem valer a vontade da maioria, conforme o princípio da democracia. 109 CONCLUSÃO Ao chegar ao fim deste trabalho, conclui-se que a Religião e a Espiritualidade humana são um fenômeno abrangente que invade a cultura, a forma de viver e, principalmente, a estrutura jurídica das sociedades. Analisando o fenômeno com mais critério, observa-se que há estreitos laços de semelhanças entre as normas jurídicas constantes da Constituição Federal brasileira de 1988 e os princípios de natureza religiosa, mormente os de tradição judaico-cristã ocidental. Segundo Ferdinand Lassalle em sua teoria dos fatores reais de Poder (LASSALLE, 2008, p. 10), o Estado e seus legisladores não podem negar as raízes espirituais profundamente instaladas na mentalidade do Povo, sob pena de se obter um Estado ilegítimo, artificial e autoritário. Assim, apesar de o Brasil se constituir atualmente como um Estado laico, sua legislação, devido ao decurso do processo histórico, é profundamente marcada pela influência religiosa e espiritual, que conduz as leis mais ou menos no mesmo senso de justiça, direito e dever que a população média possui. Observa-se que, por se autodenominar “a constituição cidadã”, a atual Constituição Federal precisou abarcar todos os princípios e anseios populares referentes à dignidade da pessoa humana que um indivíduo possui em seu próprio território nacional. Abarcar tais princípios significou, consequentemente, não negar as influências religiosas na produção das normas jurídicas, ainda que tal influência não se dê de forma explícita. Conclui-se deste trabalho, portanto, que negar os costumes e a cultura populares não foi a opção escolhida pelos legisladores constituintes quando da confecção da Carta Magna brasileira de 1988, e que a religião continua promovendo a reflexão jurídica também no tocante às leis infraconstitucionais que afetam o dia a dia das pessoas. 110 REFERÊNCIAS AGOSTINHO, Santo. A Trindade. 2. ed., São Paulo: Editora Paulus, 1994. AGOSTINHO, Santo. Diálogo sobre a Ordem. (tradução, introdução e notas de Paula Oliveira e Silva). Edição bilíngue. São Paulo: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2000. ALTAFIN, Juarez. O Cristianismo e a Constituição. Belo Horizonte, MG: Del Rey editora, 2007. ALTANER, Berthold e STUIBER, Alfred. Patrologia. São Paulo: Edições Paulinas, 1972. ALVARENGA, Augusta T. de. SCHOR, Néia. O aboto: um resgate histórico e outros dados. Disponível em: <http://www.fsp.usp.br/SCHOR.HTM>. Acesso em: 26 abr. 2009. ALVES, Rubem. 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