Carta de Apresentação.
Aos Organizadores do Congresso.
Eu, Maria Teresa Bertoncini Zogaib, CRP 06/49082-8, Mestre em Psicologia da
Saúde e Supervisora de Psicoterapia Breve Infantil da Universidade Paulista – UNIP,
Campos Rangel, cidade de Santos, SP, recomendo a inscrição do trabalho de Adriana
Marques Gomes para participar da homenagem póstuma à professora Silvia Lane.
Ressalto que Adriana, foi minha supervisanda na Clínica Escola estagiando nas
áreas de Psicodiagnóstico Infantil e Atendimento Breve Infantil, onde foi possível
observar no transcorrer do estágio sua postura ética, responsável e um grande
envolvimento tanto com seus clientes como para as supervisões.
Adriana demonstrou no transcorrer dos estágios grande interesse pela abordagem
psicanalítica tendo atitude de pesquisa para maior aprendizagem e melhor atendimento
psicoterápico.
Acredito que ela atenda aos requisitos exigidos para inscrição de seu trabalho.
Coloco-me à disposição para maiores informações.
Santos, 27 de março de 2007.
__________________________________________
Maria Teresa Bertoncini Zogaib
Mestre em Psicologia da Saúde
CRP 06/49082-8
Tel: (13) 3235-7512
Memorial.
Quando nos deparamos com questões como do que trata a psicologia
encontramos um conhecimento que não é único, pronto e acabado; fruto da produção
humana a psicologia pode ser definida como reflexo de seus criadores (estudiosos) e
legitimadores (sociedade).
Este trabalho trata de uma forma dentre muitas outras o fenômeno psicológico
humano. Essa forma de conceber os fenômenos carregam implícitos uma certa visão de
homem e de mundo que vai se transformando durante o curso.
Ao escolher a forma de atuação, diante de tanta diversidade, o estudante de
psicologia constrói e participa de sua obra. Os personagens: pacientes, seus familiares,
alunos, supervisores, professores e coordenadores assumem inestimável importância na
trajetória profissional e pessoal: levam o estudante do caos e da desorganização ao
reconhecimento da auteridade e da criatividade humana.
Ainda estudante do segundo ano do curso a autora desse trabalho já demonstrava
interesse pela psicologia clínica como modelo de atuação. Um certo dia uma colega fez
a seguinte afirmação:”O que escolhemos para nossa vida é a profissão de fé”.
Os dias, meses e anos se passaram e com a profissão da fé a autora viu a
concretização de pequenos milagres: o convite e a viabilização para análise pessoal de
um ex-professor foi o primeiro, o acolhimento na supervisão operou o milagre da
constante indagação e indignação, o menino Samuel operou o milagre da mudança e
finalmente o diploma do curso superior, mas do que um milagre pessoal, um milagre
social e uma superação dos aspectos econômicos e sociais envolvidos.
Convido o leitor a testemunhar uma pequena trilha de um imenso caminho para
que possa tomar posse e refletir sobre um fazer psicológico que atenda as necessidades
de toda uma sociedade.
Nos armemos com indignação, inconformismo e curiosidade para que possamos
operar pequenos milagres em benefício de todos, ou melhor dizendo transformar a
realidade social.
ADRIANA MARQUES GOMES
O BRINCAR COMO OFÍCIO DO PSICÓLOGO E SEU PAPEL ESTRUTURANTE
Trabalho
retirado
dos
relatórios do estágio de
Psicoterapia Breve Infantil,
sob a supervisão de Maria
Teresa Zogaib.
Santos
2007
Resumo
A prática de estágio obrigatório, realizado durante o curso de graduação em
Psicologia enfoca a instrumentalização da atitude clínica do estagiário em relação ao
cliente. A comunidade oportuniza ao estudante a utilização e integração da teoria
estudada em sala de aula e a instituição universitária representada pela clínica-escola,
objetiva além de fornecer embasamento para o atendimento, garantir uma prestação de
serviço de qualidade á demanda atendida pelos alunos ainda em formação. Como
partes do enquadramento exigido do aluno pela instituição e pelo corpo docente, são
elaborados relatórios semanais dos atendimentos realizados, sendo posteriormente
enriquecido com o supervisor, com o grupo de dez alunos quinto anistas e com as
tarefas de leituras individualizadas. Esse relatório é revisado pelo aluno e supervisor
até que ambos estejam satisfeitos com a impressão de um documento que será
arquivado. A sessão timbrada no papel é vista por muitos alunos como um
procedimento burocrático que, apesar de difícil e cansativo irá garantir o tão
perseguido diploma. O fato é que os relatórios documentam a delicada transição do
estudante de uma profissão á profissional atuante. E é disto que trata esse trabalho: da
apavorante e enriquecedora tarefa da escrita feita por mãos inexperientes que tem a
pretensão de convidar supervisores, professores, psicólogos, estagiários e alunos a
compartilhar mais do que uma experiência clínica obrigatória para a habilitação
profissional, mas um verdadeiro e inesquecível rito de passagem em termos
profissionais e pessoais.
Palavras chaves: estágio, clínica – escola e atendimento individual.
1) Introdução.
O presente artigo reproduz a articulação entre a teoria e a prática proporcionada
pela experiência de estágio supervisionado em Psicoterapia Breve Infantil, que utiliza
como base a teoria de fundamentação psicanalítica. O artigo visa fornecer informações a
fim de esclarecer questões relacionadas ao fenômeno da regressão e seu papel
estruturante no setting terapêutico. Têm como base o relato do atendimento lúdico de
um paciente atendido na Clinica Escola de Psicologia e revisão bibliográfica dos temas
abordados no discorrer do texto abaixo apresentado.
2) Apresentação do local e condições em que o estágio ocorreu.
Esse artigo foi fundamentado no estágio realizado no Centro de Psicologia
Aplicada da Universidade Paulista - UNIP de Santos no primeiro semestre de 2006,
durante o atendimento de um menino de oito anos a quem a estagiária denominou
Samuel.
A porta de entrada na clínica para a criança ocorre através de um serviço de
triagem. Os responsáveis pela criança que procuram o serviço preenchem uma ficha
cadastral e fica sob responsabilidade da clínica o convite via telefone para uma primeira
entrevista realizada por alunos do terceiro ano do curso de psicologia em supervisão.
A entrevista com a avó materna do menino foi realizada pela supervisora
responsável do serviço de triagem.
Foi diagnosticado na triagem que a criança e seus familiares se beneficiariam
com o trabalho clínico desenvolvido pelos alunos do quinto ano e supervisor
responsável, denominado Psicoterapia Breve Infantil.
O estagiário recebe então uma ficha preenchida pela triagem com dados pessoais
como filiação, idade, sexo, escolarização, endereço e queixa principal.
A queixa veio resumida como: comportamento agressivo em casa e na escola,
mas no decorrer dos atendimentos a díade supervisora-estagiária pode observar que a
queixa explicitava uma relativa ausência de expectativas primitivas ocasionada pelas
privações sofridas em tenra idade.
As dificuldades vivenciadas no contexto familiar não foram impeditivos para a
provisão da saúde durante o breve tratamento.
Samuel preenchia um requisito básico e necessário para ser beneficiado pela
Psicoterapia Breve Infantil: nesse modelo de atendimento, ambos, terapeuta e paciente
devem concordar quanto a meta do tratamento e o paciente deverá estar motivado para
mudar.
Para o menino não faltaram vontade de participar, nem de explorar, de mudar e
fazer sacrifícios para estabelecer relações mais produtivas e gratificantes.
O adulto em miniatura foi surgindo e saindo do isolamento: brincava escondido
atrás da caixa lúdica nas primeiras sessões e sempre sozinho. Esse adulto foi
desaparecendo diante dos olhos da estagiária: na medida em que o menino se
aproximava fisicamente ou que questionava quanto ás outras crianças atendidas pela
estagiária ou ainda quando precisava ter a certeza de que a caixa lhe era exclusiva.
Em uma das sessões fez um boneco com palitos de sorvete sobre o papel e o
preencheu com cola: dividido entre cabeça e corpo o boneco era terrivelmente estático,
sem braços, boca, olhos ou qualquer outra coisa que representasse um desejo de contato
com o mundo externo.
Em outro atendimento pede para jogar seu boneco no lixo junto com suas outras
produções gráficas e de argila. O papel representado pelo menino não estava mais lhe
servindo, suas defesas uma a uma caíram, o adulto desapareceu e surgiu o bebê sadio
através do processo descrito abaixo.
3) Descrição do trabalho.
Disciplina fundada por Freud, a psicanálise é considerada como um “método de
investigação e tratamento” (Laplanche e Potalis, 1993) que re-significa as relações
humanas. Freud criou um método revolucionário, a partir da experiência vivida com
seus pacientes e durante o processo de tratamento se deparou com as manifestações do
inconsciente
alicerçando
sua
teoria
e
práxis.
Sonhos,
lapsos,
sintomas
e
comportamentos estranhos ganharam status de manifestação psíquica. O paciente trazia
em seu sofrimento e em sua fala algo de sua experiência de vida, ou melhor, o modo
como vivencia suas relações.
As psicoterapias breves psicanalíticas têm duração largamente inferior à de uma
psicanálise clássica, surgiu pelo interesse do próprio Freud em tornar sua prática clínica,
ainda construção, universal e adequada á realidade vivenciada.
Muitos foram os autores os quais contribuíram para desenvolver teorias e
técnicas de caráter breve comprometidas com a realidade brasileira.
A prática tem se revelado necessária para uma ampla faixa da população que
precisa encontrar soluções mais adequadas para suas situações problemas.
Atualmente, vem ocupando destaque como recurso utilizado com sucesso em
instituições e clínicas-escolas, devido á necessidade de disponibilizar atendimento para
a crescente demanda.
É comum se fixar a sua duração previamente, essa limitação temporal confere à
terapia uma estrutura mais definida em termos de “princípio, meio e fim”. O
atendimento psicanalítico realizado com crianças nos faz deparar com uma questão
fundamental, referente ao papel da brincadeira nas sessões analíticas. Desde Freud
houveram várias alterações e complementações significativas na maneira como os
estudiosos da psicanálise passaram a compreender e atuar diante das brincadeiras
produzidas no setting analítico e é sobre o olhar winnicotianno que a estagiária propõe
entender a dinâmica de seu paciente e lhe proporcionar mudanças significativas.
O psicólogo se privilegia do espaço potencial suscitado no setting terapêutico
para oportunizar ao paciente uma gradativa retomada do seu processo de
desenvolvimento pessoal. A terapia reproduz as mais antigas técnicas de maternagem,
convida o paciente á facilitar seus gestos e a entrar em contato com as experiências que
anteriormente vivenciadas como traumáticas, podem ser atualizadas de maneiras
absorvíveis e integrativas. O psicólogo serve de suporte para o restabelecimento da
confiança no ambiente e seu trabalho foca o que o paciente requer, a partir das
necessidades explicitadas no brincar. Em resumo o manejo ocorre centrado na
permissividade, para que o paciente seja apenas o que é.
Entre os estudiosos que contribuíram para o estudo e a prática da Psicoterapia
Breve com Crianças, destacam-se Cramer (1974) e Palácio-Espasa (1993), os quais
construíram com um referencial teórico calcado na importância da dinâmica familiar.
Os sintomas e dificuldades das crianças destacadas pelos pais são entendidos sob esse
prisma como resultado do interjogo de projeções, introjeções, e identificações entre os
pais e a criança, que resultam numa área de conflito mútuo. O conflito surge quando a
criança em processo de individuação atinge um estágio de desenvolvimento que irá de
encontro com as etapas não bem resolvidas por seus pais. Em termos de manejo,
consiste em um processo bastante flexível em que são atendidos as crianças e os pais, de
acordo com a necessidade de cada caso e as intervenções são de certa maneira
interpretativas e diretivas.
A primeira fase do processo é diagnóstica e de enquadramento. A entrevista de
anamnese com os pais, o contato com a criança através de material lúdico ou realização
de testes psicológicos visam investigar a queixa no que se refere ao seu histórico com os
pais. Os pais recebem orientações quanto ao conjunto de regras que envolvem o
processo (número de sessões, dias, horários, faltas, atrasos e término) e são
participativos na definição do foco.
A segunda fase é a terapêutica e deve ser centrada no que foi definido
como foco ou trabalho dirigido para objetivos propostos. No encerramento o terapeuta
se responsabiliza pela devolutiva para os pais e para a criança e são feitos os
encaminhamentos quando necessários.
As experiências clínicas vivenciadas com as crianças impulsionaram Winnicott
(1975) para um setor mais específico da condição humana, a teoria desenvolvida pelo
autor parte do princípio de que a brincadeira é primária, é a priori uma forma básica de
viver, universal, própria da saúde, facilita o desenvolvimento e prepara para os
relacionamentos grupais. Para ele o brincar tem sua origem no contexto da relação mãebebê e está intimamente relacionado ás etapas do desenvolvimento, o qual segue uma
seqüência que se atualiza se o ambiente permitir o livre desenrolar desses processos.
Inicialmente o bebê nasce indefeso, desintegrado e recebe os estímulos do meio
de forma desorganizada. A mãe sensível e orientada serve de suporte nesse estágio de
dependência extrema e desenvolve um estado que Winnicott (1975) denominou
preocupação materna primária. Neste estado a mãe serve de instrumento para que as
tendências inatas comecem a se desdobrar e o bebê começa a experimentar movimentos
espontâneos. O ambiente suficientemente bom, ou a mãe suficientemente boa concretiza
nesse estágio de desenvolvimento em especial, o que o bebê está pronto para encontrar.
A mãe é então percebida com objeto subjetivo e possibilita a experiência de ilusão e
controle onipotente, onde ele e o meio são uma coisa só.
Em um segundo estágio, ocorre um interjogo entre a realidade psíquica pessoal e
a experiência de controle de objetos reais onde se desenvolve um espaço potencial entre
a mãe e o bebê. O bebê percebe a mãe como objeto externo nesse momento e é ai que a
brincadeira se inicia. Num estágio subseqüente a criança é capaz de ficar sozinha na
presença da mãe, pois acredita que quando necessitar ela estará disponível. Finalmente a
criança esta preparada para que a mãe introduza seu próprio brincar.
A brincadeira se dá em uma área intermediária entre a realidade externa e o
mundo interno denominado espaço transicional onde os objetos e fenômenos
originários da realidade externa são usados á serviço de alguma mostra derivada da
realidade interna. (Winnicott, 1975). Resumidamente, é no espaço potencial que se
oficia a experiência de vida, é um espaço de uma atividade em constante processo e seu
surgimento esta intimamente ligada à constituição do self.
O ambiente não faz a criança, na melhor das hipóteses a possibilita a concretizar
seu potencial, é a partir da provisão ambiental que se desenvolve a vida de fantasia da
criança um mundo sentido com só seu, aonde mais tarde vai se alojar um aparelho
psíquico e uma organização dos processos de pensamento. Pode ocorrer uma falha do
ambiente no que se refere ás necessidades da criança e isso a obriga a reagir á essa
experiência sentida como invasiva: seu desenvolvimento emocional é barrado e suas
vicissitudes estarão intimamente ligadas às falhas ocorridas em determinado estágio do
desenvolvimento. A experiência clínica é uma oportunidade de compreender como se
deram os processos iniciais da vida humana responsável pela constituição e
estabelecimento da condição de ser. É no brincar que se desvela a fragmentação da
criança diante das situações ambientais adversas.
Em uma visão revolucionária do estado de saúde e doença Winnicott preconiza
que todos estamos imersos na patologia e na saúde ao mesmo tempo. A sujeição ao
ambiente causa sofrimento e adoecimento.
A avó materna de Samuel contou para a estagiária, durante a primeira
entrevista vários episódios, onde o menino se descontrola em situações de frustrações
“Ele se atira no chão, grita, uiva, e se debate quando não deixam ele ir brincar na hora
em que ele quer... tive que ir buscá-lo em uma festinha na casa de seu amiguinho porque
a mãe dele me ligou dizendo que Samuel estava descontrolado... chegando lá eu o
segurei em meus braços e depois de um tempo ele me disse que o amigo escolheu seis
colegas para dar o pedaço de bolo e a vez dele não chegou”.
Disse também que o menino reclama de um amigo imaginário chamado Bruno, o
qual aparece no banheiro da escola, é grande e bate muito nele, e que por muitas vezes
Samuel diz querer morrer.
Não soube esclarecer como foi o primeiro ano de vida e a primeira infância do
menino.
Relaciona os sintomas do neto aos seguintes fatos: a mãe de Samuel foi trabalhar
no Japão, conheceu um nissei que também trabalhava na mesma empresa, vindo a ter
um relacionamento e a engravidar. Voltou para o Brasil para ganhar o bebê e se queixou
com a mãe sobre seu companheiro, dizendo que ele era agressivo, egoísta, preguiçoso e
mau caráter.
Quando o menino completava um mês de vida o companheiro da mãe apareceu
de surpresa, eles reataram e voltaram com o bebê para o Japão.
Na última visita á mãe, Denise deixou o menino já com oito anos de idade sob os
cuidados da tia e depois da avó para retornar para o exterior para juntar dinheiro para
comprar uma casa própria.
Ainda segundo a avó, a criança não tem problema de aprendizado e as
reclamações por parte dos professores falam da dificuldade de Samuel em aceitar
regras, manter amigos e em procurar levar alguma vantagem em tudo que faz.
Outro comportamento que assusta a avó é o jeito de amar as amiguinhas da
escola. Acha um sentimento exagerado e precoce por parte do menino: “tem um amor
louco e descontrolado quando elege uma namoradinha, manda bilhetes durante a aula e
bate nos meninos que se aproxima”.
Pelo discurso da avó, a vida familiar de Samuel pode ter afetado sensivelmente a
psique do menino: recebeu apoio egóico inadequado e patológico, apresentando patrões
de comportamento semelhantes aos vivenciados (agressão, descontrole e motivações
regidas mais pelo princípio do prazer).
Os episódios lembram surtos psicóticos, bem como a maneira de se relacionar
com os objetos, mostram uma tendência anti – social.
Já a partir desse recorte, a estagiária levanta a hipótese de que provavelmente a
criança passou por situações no início da vida que pode ter prejudicado sua
personalidade, podendo inclusive desenvolver alguma patologia que prejudique seu
desenvolvimento, principalmente o social.
Essas hipóteses se confirmaram na brincadeira reproduzida por Samuel no
setting terapêutico.
Samuel brincava na lousa da sala durante os primeiros atendimentos ao invés de
optar pela caixa lúdica e escrevia várias palavras erradas e desconexas até que num dado
momento forma a seguinte e única frase: “A sereia feia namora com meu inimigo”.
A figura mitológica da sereia representa simbolicamente como se deu a
maternagem: a sereia é um personagem, que segundo as estórias atrai os homens para o
fundo do mar com um falso encantamento e os mata sem deixá-los retornar para a terra
firme. Podemos fazer a comparação do mar que inundou o verdadeiro self da criança
pela invasão da mãe representado pelo canto aonde o menino se sente preso olhando a
terra firme de longe, a qual representa seu verdadeiro self.
Quanto ao inimigo, o menino se refere á figura introjetada do pai, o qual falhou
em suprir a falta materna.
Durante todo o processo, as sessões psicoterápicas seguiram caminhos
intimamente ligados á história de vida da criança e a privação sofrida em tenra idade, e
o foco da terapia seria fazer com que o menino entrasse em contato com seu verdadeiro
self.
Quando começou a brincar com a caixa lúdica escolhia os bonecos de mocinhos
e bandidos, brincava sozinho e escondido, não falava nem respondia nenhum tipo de
pergunta e demonstrava uma incansável agitação psicomotora.
No setting terapêutico o menino encontrou na atitude da estagiária uma relação
de afeto muito diferenciada da que o menino tinha tido contato até então, tudo era
permitido com exceção de agressões físicas. Suas brincadeiras simbolizavam o vínculo
perdido com a mãe, uma necessidade de ser tocado, tomado e contido.
A regressão é um conceito que teve sua origem na psicanálise e é
freqüentemente utilizado na psicologia contemporânea, é entendido como um retorno a
formas anteriores do pensamento e desenvolvimento, das relações de objeto e da própria
estruturação do pensamento. Regredir significa voltar para trás e Freud introduziu esse
termo pela primeira vez em “A Interpretação dos Sonhos” (1900) para explicar como se
apresentam os pensamentos e imagens que se colocam diante do sujeito que sonha. Na
medida em que Freud foi avançando em sua clínica precisou retomar o conceito de
regressão e acrescentou em 1914 em “A interpretação dos Sonhos” três diferentes
sentidos de regressão (lógico, espacial e temporal).
Segundo Laplanche e Pontalis (1983) a regressão é:
“Tópica, no sentido do esquema de aparelho psíquico”: a regressão exprime a
característica primordial do sonho. No estado de vigília o pensamento não tem acesso á
motilidade e por isso regridem até o sistema de percepção. Na sucessão das etapas no
que se refere á hierarquia das funções a memória é muito mais ampla nos sonhos,
reproduzem impressões da tenra infância e trazem consigo uma herança arcaica, tendo
sua fonte na pré-história da humanidade. Essa regressão é encontrada em processos
patológicos, onde é menos global e não se processa até o fim (alucinação) e nos
processos normais, aonde vai menos longe (memória).
“Formal, quando os modos de expressão e de figuração habituais são
substituídos por modos primitivos”: explica que em certos estados psicopatológicos a
regressão que ocorre de um modo realista, na esquizofrenia, por exemplo, o sujeito se
comporta com um lactente e o catatônico volta ao estado fetal. É visto também na
transferência, onde a regressão é interpretada pelo analista com uma reposição em jogo
do que foi anteriormente inscrito. A transferência, nesse sentido, é um fragmento da
repetição do que ocorreu no passado esquecido.
“Temporal, em que são retomadas formações psíquicas mais antigas”: Freud faz
a distinção da regressão em diversas linhas genéticas, sendo discrepantes e tipificadas:
regressão quanto ao objeto, regressão quanto á fase libidinal e regressão na evolução do
ego. Essas formações psíquicas não apenas classificam como ajudam a entender os
efeitos nas atitudes e em especial no tratamento.
Estas três diferenciações são em sua base apenas uma e na maioria dos casos
coincidem entre si. Essas diferenciações apenas apontam para a noção de que o
fenômeno da regressão não é algo maciço, estanque e limitado. Seu destino culmina no
discurso do analisando e assumem forma na linguagem, adquirindo um status passível
de compreensão no que se refere ao funcionamento psíquico.
Ferenczi (1909) explica o fenômeno da regressão de maneira poética e didática:
“o adulto é aquele que só faz se repetir, por meios mais ou menos sofisticados, mudando
os atores em quem cola os personagens antigos de sua pré-história (...) Arranhe o adulto
e você encontrará a criança”.
Winnicott seguiu as tradições ferenczianas e atribuiu uma dimensão temporal na
regressão.
É favorecida pelo setting terapêutico e funciona como um ponto de retomada de
crescimento nas estruturas onde ocorreram fraturas e o desenvolvimento de um falso
self como defesa.
O grau de integração psíquica atingida pela criança é algo a ser considerado
como possibilidade de manejo, ou seja, o psicólogo precisa ser capaz de aceitar o estado
de regressão e a dependência que ela implica, adaptando a situação em terapia de modo
á responder ás reais necessidades mostradas.
A regressão ganha um status diferenciado no processo de cura e pode ser
relacionado ao provimento, transpondo para a situação analítica condições para que o
próprio paciente se sinta seguro para seguir o curso natural de suas possibilidades de
saúde.
O respeito e a proteção encontrada pelo menino através da substituta da mãe,
permitiram que a criança reduzisse seu nível de persecutoriedade e as defesas tão rígidas
e primitivas já não eram mais necessárias:
“Após travarem mais uma luta sanguinolenta e cruel – índios, soldados e seus
cavalos foram decapitados, suas vísceras extirpadas e suas entranhas perfuradas...
gritos de dor e misericórdia quebravam o silêncio e a tinta vermelha espalhada pelo
chão coloria ainda mais a cena... de repente algo de novo acontece... o menino deposita
seus mortos na caixa lúdica, a arrasta para o lado e se deita no chão... Dois dedos
separavam a estagiária de Samuel... exausto e em posição fetal o menino descansa na
direção de seu útero... doze minutos de silêncio invadem a sala, ainda deitado o menino
estica um dos braços para acariciar e furar com o indicador a caixa lúdica esquecida
ao lado. De súbito o menino corre até a porta e pergunta: ‘Está na hora de ir
embora?”. Seu pedido foi aceito e Samuel sai da sala deixando sua caixa para trás”.
Posteriormente a observação da situação analítica, foram levantadas hipóteses de
que a mãe falhou na maternagem.
A mãe não atendeu as necessidades de apoio que o menino precisava, ainda em
tenra idade Samuel não pôde contar com um ambiente que propiciasse apoio adequado e
é isso que ele mostra nessa sessão, ou seja, sente que esta só no mundo e esse mundo é
violento, o persegue. Samuel não consegue contar com o apoio de nenhum adulto ao seu
redor.
O acúmulo das experiências retratadas pelo menino nas sessões lúdicas, aponta
para uma falha que atrapalhara o desenvolvimento da capacidade de se relacionar e de
sentir-se real.
No brincar Samuel manifesta uma necessidade de quebrar e destruir todos os
brinquedos, pois inconscientemente ele procura algo bom no ambiente que sente como
perdido, procurando algo que valha a pena destruir mostrando os padrões de
desintegração vivenciados na família.
O meio ambiente criado e subjetivado pela criança transforma-se em algo
suficientemente semelhante ao ambiente percebido. Essa é uma etapa especialmente
delicada do desenvolvimento e de seu sucesso depende o estabelecimento da saúde.
No caso de Samuel a experiência foi sentida como invasiva, e o sentido do self
se perdeu, o menino organizara suas experiências sensoriais marcado por uma perda de
sua auteridade.
4) Apreciação sobre o desenrolar das atividades e os desafios enfrentados.
Apreciação e desafios podem ser tomados como complementares para que o
estagiário esteja engajado em cumprir com seu ofício.
O desafio nos impulsiona para a procura de soluções e a tomada de consciência
de que elas se constroem na práxis é mais do que um momento de apreciação, é algo
que precisa ser disseminado.
A experiência na Clínica – Escola traz de maneira intrínseca um desafio
histórico para a Psicologia: o tratamento aberto à comunidade oportuniza ao futuro
profissional uma reflexão sobre sua importância no que se refere ao bem estar sóciopsicológico da sociedade.
Somente será possível modificar o modelo classista do atendimento psicológico
quando este for atuado de maneira coletiva, junto á comunidade visando proporcionar
melhores condições, das quais tenha como produto final a construção de um
conhecimento científico adequado á realidade atual.
A maior ênfase da atuação profissional preventiva deve estar pautada sobre a
população e suas dificuldades enfrentadas em seu cotidiano, e não somente sobre os
indivíduos. Observar o dia a dia da comunidade como também seus reflexos nas
famílias è importante para o psicólogo entender a cultura com seus costumes e suas
formas de lidar com situações diárias.
Atender a criança em pleno processo de desenvolvimento é transitar em dois
níveis de atuação, o coletivo e o individual. A queixa trazida pelos pais demonstra um
conflito social no primeiro grupo humano instituído e legitimado por toda a sociedade: a
família.
Durante a experiência dos estudos de casos na clínica, os estagiários tiveram que
enfrentar e refletir sobre problemáticas como os efeitos da economia neo-liberal:o
acesso precário aos serviços de saúde, desajustes inter e intra-familiares fomentados
pela exclusão social, situações de maus-tratos, abandono, preconceito, etc.
Um dos desafios enfrentados pela estagiária com o menino Samuel, foi lidar
com a angústia do caráter breve da psicoterapia. Adotada como forma de atendimento
pela instituição, esse tipo de intervenção objetiva se adaptar ao grande número de
demanda com um atendimento de maior velocidade e sustentada na queixa inicial.
O desafio estava em não atingir os núcleos psicóticos da criança para que não
houvesse regressão devida á própria técnica da Psicoterapia Breve.
A experiência vivida, porém, se mostrava diferente dos livros e manuais: a
relação transferêncial arremessava o menino para as etapas mais anteriores de seu
desenvolvimento e a cada sessão lúdica a estagiária vivenciava a prática concreta da
maternagem de acordo com as necessidades da criança.
Sob um olhar engessado e cristalizado a terapia a priori não seria indicada para o
caso da criança, entretanto foi preciso pensar no que ocorreu durante as sessões: a
criança entrou em contato com sua solidão e abandono materno, situação de extrema
angústia para um self infantil.
Não houve tempo hábil para o menino se desembaraçar dos entraves do seu
desenvolvimento sadio e em conseqüência disto não houve remissão dos sintomas a não
ser por episódios curtos. O que a estagiária levanta a hipótese do que ocorreu, foi que
durante algum tempo o menino pode ter experimentado a lembrança de uma mãe viva e
continente em sua mente e assim entrou em contato com suas potencialidades inerentes.
Os apontamentos do supervisor com relação à contratransferência e suas
nuances: impressões pessoais, sentimentos suscitados, projeções em massa, reações
somáticas, também nortearam experiências profundamente desafiadoras e necessárias
para o entendimento de uma prática desalienada do psicólogo: saber o que do outro esta
em mim.
O estágio realizado na Clínica–Escola aberto para toda a comunidade é em sua
essência a construção de um saber histórico e coletivo compartilhado. Suscita uma
compreensão do papel ativo do aluno na construção de uma psicologia que é elaborada
num constante devir relacional, a qual deve resolver questões que respondam de
maneira significativa nossa própria subjetividade.
5) Considerações finais.
Essa experiência é denominada por Winnicott (1963) de holding. Representa um
retorno á provisão num estágio em que o bebê ainda não separou o self do cuidado
materno e necessitava do cuidado com essas características: a estagiária tinha diante de
si um bebê que necessitava ser ninado por alguém de verdade, necessitava de um adulto
previsível em seu amor, disposto apenas a aceitar para somente depois introduzir
mudanças graduais.
O menino foi encaminhado para terapia e a mãe e a avó participaram do
programa de Plantão Psicológico oferecido pala Clínica-Escola.
Samuel demonstrou ter se beneficiado com a terapia, porém foi indicado um
processo psicoterápico com prazo indeterminado para que possa desenvolver suas
capacidades nascentes negadas pelo ambiente.
Este trabalho destaca aspectos vivenciados na prática no que se refere ao
processo de ensino e aprendizado em psicologia clínica.
É na clínica que o estagiário fundamenta sua atitude: os casos até então
encontrados dentro dos livros se apresentam diante dos olhos do aluno. O sujeito que
sofre aguarda na sala de espera e oportuniza ao futuro psicólogo uma experiência
enriquecedora em termos profissionais e pessoais.
Freud escreveu que ele mesmo se surpreendia como seus escritos podiam ser
lidos como romances.E poderiam ser tomados assim se esse estudioso não se mostrasse
incansável na busca do desconhecido, do inacabado e do mutante em si mesmo e no
mundo.
Essa experiência pode ser tomada como uma grande estória por muitos
psicólogos e não é isso o que realmente esta em jogo para a autora desse trabalho.
O que ganha relevância para a autora não é a busca da verdade e sim o relato das
relações oportunizadas, as quais alicerçam a teoria e a prática.
No contexto clínico, o estágio é a oportunidade de se apropriar do papel de
psicólogo fomentado pelo movimento dialético: a leitura constante, as discussões com o
grupo, o supervisor continente e a elaboração dos relatórios se tornam rotina e
instrumentos de mudança interna.
E a realização desta tarefa trouxe a oportunidade de uma maior aprendizagem e
porque não dizer uma comemoração em um espaço de troca e interlocuções que
concretizam um continum na produção do saber psi.
Referências Bibliográficas:
FERENCZI, S. (1909) Transferência e introjeção. Psicanálise I.
FREUD, S. (1969) Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental.
Edição Standart das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago.
LAPLANCHE, J e PONTALIS, T. (1997) Vocabulário da Psicanálise. São Paulo:
Martins Fontes.
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Carta de Apresentação. Aos Organizadores do Congresso. Eu