O Bem e o Mal revisitados. O discurso do choque de
civilizações em quatro blogues portugueses
I – Blogues portugueses do mainstream e a apropriação do discurso do
choque de civilizações
«Estou contente com a notícia [da anulação do rali
Lisboa-Dacar, nota nossa]: muitos deram-se conta,
ontem, de que estamos em guerra.
E, acreditem, ainda é só a fase suave da guerra»
Ferreira Fernandes, Diário de Notícias, 5 de Janeiro
de 2008
Os blogues têm-se tornado, segundo algumas concepções, uma das
ferramentas mais bem sucedidas na revitalização da discussão política e
teórica num plano alargado de difusão, reflexão e discussão. A presença de
bloggers (autores de blogues na língua inglesa) em cada vez mais espaços
televisivos e jornalísticos de opinião e de debate tem expandido a penetração
desse espaço internáutico no seio do campo mediático mais vasto.
A temática do choque de civilizações e do terrorismo islâmico não foge a essa
regra. Porquanto a blogosfera se apresente e represente como um campo
idilicamente democrático e plural, não deixa de ser sintomática a coincidência
de os blogues com maior número de leitores internáuticos partilharem
significativa parte do ideário neoliberal veiculado pelos grandes meios de
comunicação social, por políticos, por think tanks e por empresários. Neste
aspecto, o poder da ideologia dominante possibilita-lhe atravessar todos os
tabuleiros de produção cultural e simbólica, mantendo a sua posição
hegemónica no e sobre o conjunto da sociedade. Do nosso ponto de vista, o
que poderemos chamar de mainstream da blogosfera portuguesa padece de
uma incapacidade para reflectir fora do modelo formatado do neoliberalismo,
fechando a maioria das discussões do mesmo espectro ideológico a tendências
de aplicação, efectivação e legitimação desse ideário.
Como procuraremos mostrar nesta secção, tanto blogues auto-definidos como
de esquerda como blogues assumidamente de direita raramente discordam em
torno da substância da sua visão do mundo. O caso do choque de civilizações
é, a todos os títulos, evidente. Nenhum dos quatros blogues em análise [1]
(Tugir e Kontratempos auto-apresentados como de esquerda, O Insurgente e
Atlântico auto-apresentados como de direita) fogem ou sequer questionam nos
seus textos as teses do choque de civilizações e do papel missionário dos EUA
e do Ocidente no mundo. Na verdade, o ocidentalocentrismo das propostas de
Huntington é, em muitos casos, quase liminarmente repetido nas suas linhas
mestras. Noutros casos, é inter-relacionado com a legitimação da violência
indiscriminada sobre povos e países, bem como se assiste a uma ligação a um
discurso moralista do Bem contra o Mal, independentemente destes dois pólos
não se encontrarem de forma explícita nos textos. Aliás, boa parte do sucesso
dos argumentos expressos na blogosfera prende-se com a capacidade que os
«intelectuais orgânicos» (Gramsci, 1976, p.25) do neoliberalismo e do choque
de civilizações têm para sub-repticiamente construírem um discurso dualista
assente em proposições morais, parciais e para-religiosas (o Bem contra o Mal;
os ocidentais civilizados contra os islâmicos bárbaros, etc.).
O primeiro procedimento da aplicação das teses do choque de civilizações
encontrado no blogue Tugir – nomeadamente no respeitante à dicotomia
Ocidente versus Islão – centra-se na assunção de que nos encontramos numa
situação de guerra. A citação que colocamos em epígrafe, retirada de um dos
jornais com maior circulação e maior influência na formação de opinião em
Portugal, é esclarecedora. Assim, para os opinion makers da blogosfera, num
contexto de guerra só respostas firmes tomadas por governos ainda mais
“firmes” e “corajosos” (leia-se, autoritários) poderão estar à altura dos
acontecimentos. Múltiplos exemplos podem ser referidos:
«Israel soube que estava a surgir uma central nuclear, em território sírio junto
da fronteira com o Iraque. Uma central que contava com apoio técnico da
Coreia do Norte. Ora, os aviões israelitas foram à Síria destruir a central, numa
operação que nem israelitas nem sírios confirmam ou desmentem, cada uma,
pelas razões óbvias que se pode deduzir. Os perigos estão a alastrar e de duas
uma, ou se previnem as ameaças ou estas podem mostrar-se da pior forma»
(Tugir, 18 de Setembro de 2007a) [itálicos nossos].
«Muitos assustam-se com a referência de uma possível intervenção militar no
Irão (e há razões para isso), mas ninguém se assusta com a ameaça nuclear
iraniana?» (Tugir, 18 de Setembro de 2007b).
«A ameaça é real. No Irão quase todos sabem para que servirá um projecto
nuclear. Há momentos em que se deve prevenir, antes de remediar» (Tugir,17
de Setembro de 2007a) [itálicos nossos].
«Israel dá, assim, uma mensagem clara não só ao regime de Damasco mas
também de Teerão, de que se for necessário a segurança nacional israelita é
garantida fora do território de Israel» (Tugir, 17 de Setembro de 2007b).
O Irão é imediatamente catalogado como sendo uma terrível ameaça à
humanidade, como um Estado em vias de lançar o Ocidente em chamas. O
grau de diabolização desse Estado soberano é tal que os autores do blogue
Tugir não se coíbem de reproduzir um cartoon do Irão como um malévolo polvo
que estende os seus tentáculos a todo o Médio Oriente, sublinhado com a
frase: «O polvo cresce e estende-se quanto maior liberdade lhe derem. É o que
está a acontecer» (Tugir, 19 de Junho de 2007).
Neste blogue a persistência num discurso de firmeza e de força perante o
inimigo chega a ser, portanto, obsessiva. Em simultâneo, ressalve-se que se
denota a presença da formação de uma arena onde o Ocidente se confronta
com um dos mais poderosos estados islâmicos:
«o G-8 anunciou hoje que apoiará novas medidas se o Irão não cumprir as
resoluções das Nações Unidas (ONU) que exigem que o país suspenda o
respectivo programa de enriquecimento de urânio» (Tugir, 30 de Maio de 2007)
«”Se o Irão continuar a ignorar as exigências do Conselho de Segurança
apoiaremos mais medidas apropriadas, conforme acordado pela resolução
1747”, afirmaram os ministros do G-8 em comunicado conjunto. O tempo de
ingenuidade e hesitações da Comunidade Internacional parece estar a terminar
em relação ao projecto nuclear iraniano. Já não era sem tempo» (idem).
Na última frase percebe-se ainda mais nitidamente a defesa do princípio
dominante e hegemónico dos EUA e seus aliados mais poderosos na cena
internacional, quando se coincide a Comunidade Internacional – um termo
nebuloso mas que procura funcionar como equivalente de sociedade civil
mundial – com os interesses dessas mesmas potências, na sua maioria
ocidentais. Por outro lado, neste blogue a situação de guerra entre civilizações
não só é real como evidente. «Como qualquer pessoa, mesmo sem saber
pouco mais do que a sua língua nativa, percebe-se o que pretende o flamejante
de Teerão. Basta somar um mais um. Está tudo escarrapachado, preto no
branco. Ninguém desmentiu as palavras» (Tugir, 30 de Março de 2007).
Presumem então os autores do blogue que existe uma verdade absoluta
relativamente ao dossier da suposta tentativa de construção de um arsenal
nuclear por parte do Irão? Pelos vistos sim, sendo, dessa maneira,
inquestionável a construção de uma imagem dual, de uma imagem a preto e
branco, entre “bons” e “maus”, entre evidências não comprovadas e
comprovadas intenções de legitimação de um ataque militar sobre um Estado
soberano e onde não existem provas cabais sobre o teor supostamente
armamentista do seu programa nuclear. O exercício puramente ideológico e
manipulador de unilateralmente rotular o Estado em questão como a única
nação da região com intenções nucleares e expansionistas é esquecer, por
exemplo, o Estado de Israel e a ocupação que tem vindo a efectuar dos
territórios palestinianos que já resultou na morte de milhares de civis de ambos
os lados, os seus sucessivos incumprimentos de resoluções das Nações
Unidas, dos Acordos de Oslo e a posse de armamento nuclear.
Na mesma senda ideológica, um outro blogue auto-proclamado de “esquerda”
apresenta, em larga medida, as mesmas teses mas com um grau de
sofisticação ideológica mais refinado, ao mesmo tempo que exacerba a
componente da luta civilizacional do Ocidente contra o Islão na repetida
dicotomia entre o Bem e o Mal. Aliás, a linguagem utilizada quase que chega a
apelar a sentimentos de profecia e de apocalipse: «os integristas posicionamse para restaurar o grande califado. Caindo a Argélia, caem todos em redor.
Esse poderá ser um dos piores pesadelos da Europa e o actual Estado
militarizado argelino acaba por ser um mal menor na geopolítica deste tempo»
(Kontratempos, 13 de Dezembro de 2007). No mesmo tom, «depois de Bhutto
e da delapidação do apoio popular ao ditador Musharraf, falta pouco para os
islamistas tomarem o poder no Paquistão. E, com ele, a bomba nuclear. É só
uma questão de tempo, cada vez menos tempo» (Kontratempos, 27 de
Dezembro de 2007). Basicamente, o realce na tecla profética atinge nesta
última frase foros apocalípticos onde o avanço dos islamitas surge como que
uma revivescência das atrocidades de Átila, da Mongólia até Roma! Para este
discípulo acéfalo da nova ordem do pensamento único neoliberal e imperialista,
o avanço do Mal islâmico seria quase irreversível. Quase dizemos nós, na
medida em que o autor do blogue considera, mais uma vez, que só a força e a
violência militar poderia fazer recuar o avanço islâmico sobre o Ocidente!
«Na resposta ao terror cego, o Ocidente tem falhado. Guntánamo, o Iraque,
os voos da CIA, a suspensão da Convenção de Genebra: tudo isso são
derrotas cavadas. Depois, há os viveiros de integristas. No Afeganistão,
George W. Bush desviou preciosos recursos financeiros e militares para o
pântano de Bagdade e abriu terreno ao alastramento da mancha taliban»
(Kontratempos, 12 de Setembro de 2007) [negritos e itálicos do autor].
O problema não estaria, segundo este autor, na invasão norte-americana do
Iraque e que, segundo a revista Lancet, causou centenas de milhares de
mortos (Hicks, 2007). O que se aponta de errado na política seguida pela
Administração Bush não é, portanto, a sua linha intervencionista e militarista,
mas por ter errado no alvo geopolítico de actuação principal.
Assim, para o autor do blogue Kontratempos, só uma acção bélica e sem
contemplações para os inimigos do Ocidente aparenta ser solução. Para isso,
cita David Harris, director executivo do Comité Judeu Americano que descreve
com precisão a forma como o Estado de Israel vê e actua em relação aos seus
vizinhos islâmicos:
«Quando um líder terrorista coloca rampas de lançamento de mísseis em
casas, hospitais, escolas e mesquitas, o que pode fazer um exército? Ataca-se
a plataforma de mísseis, mesmo sabendo-se que pode haver lá mulheres e
crianças, ou não se ataca, correndo o risco de que esses mesmos mísseis vão
matar os nossos civis? A questão não é simples. (...) Viver num país mais
pequeno que a Bélgica, sabendo quotidianamente que naquele dia pode
haver um ataque terrorista, que pode haver um ataque militar. É normal,
esta situação? Perante ela, é preciso, primeiro: ter um poder militar forte.
Não há escolha nesta parte do mundo» (David Harris citado em
Kontratempos, 14 de Setembro de 2006) [negritos do autor do blogue].
A transcrição é longa mas fornece importantíssimas pistas para a compreensão
do fenómeno da apropriação e posterior efectivação concreta das teses do
choque de civilizações pelos seus mais acérrimos defensores. Neste trecho –
abertamente comungado pelo autor do blogue – os chamados danos colaterais
são plenamente justificados do ponto de vista humano e militar. O pragmatismo
da acção de matar um terrorista justifica plenamente a destruição de bairros
civis inteiros de Beirute e de Sídon no Líbano ou do puro e simples
esmagamento de casas palestinianos pelas lagartas dos tanques israelitas?
Para os apologistas da Guerra Santa inter-civilizacional parece que sim.
É igualmente nítida a justificação e a aceitação tácita da violência mais cruel
contra povos e Estados islâmicos – e que pouco afectam os chamados
terroristas – no excerto de um artigo de Vasco Pulido Valente citado no mesmo
blogue: «os políticos que se dedicam a louvar e a mimar os "moderados" do
islão não percebem uma realidade básica: o extremismo é o único caminho
para uma civilização falhada e o extremismo ganha» (Vasco Pulido Valente
citado em Kontratempos, 23 de Setembro de 2007). Por conseguinte, a saída
advogada passa por somar níveis de eficácia estratégica e militar e apostar
cada vez mais em tentativas de constituir executivos governamentais coesos,
unidos e dispostos a enfrentar tenazmente o que denominam de “inimigo
islâmico”:
«nesta fase, deve exigir-se mais do governo israelita. A nível externo, duas
guerras civis em potência -- entre palestinianos e entre libaneses -- obrigam ao
isolamento dos radicais e ao apoio dos moderados. A nível doméstico, uma
liderança política que não consiga unificar o país e o pesadelo de um exército
dividido é tudo o Israel não precisa para enfrentar o desafio fundamental dos
próximos meses: um Irão nuclear» (Kontratempos, 29 de Janeiro de 2007).
Gostaríamos ainda de aflorar a operação teórico-ideológica de construção da
categoria do “Mal”. Atentemos na descrição que o autor do referido blogue
realiza acerca dos terroristas islâmicos. «O objectivo [dos terroristas, nota
nossa] foi sempre matar matar matar. Para a vertigem fundamentalista, nunca
ninguém teve nem terá qualquer opção» (Kontratempos, 13 de Dezembro de
2007). Assiste-se, assim, à criação de um estereótipo do terrorista islâmico,
fazendo dele uma pura encarnação do Mal, possuído por uma lógica de
actuação estritamente irracional e perpassada por uma pulsão irresistível pelo
assassinato. Ou seja, o fenómeno terrorista existiria apenas e tão-somente em
si e para si mesmo, despojado de qualquer tipo de determinação complexa,
multidimensional e/ou sócio-histórica. Esse seria, consequentemente, um
fenómeno isolado de todos os outros (por exemplo, entre vários outros, da
lógica do sistema internacional capitalista) e operando como mero depósito
psicologista de intenções maquiavélicas. Aliás, essa é uma faceta evidenciada
a toda a hora pelos opinion makers mais favoráveis às teses do choque de
civilizações.
Ainda neste mesmo blogue pode-se ler que:
«Os terroristas não têm perfil. Não são “éticos”. Usam a multidão, a tecla do
totalitarismo de Arendt, e nenhuma categoria ideológica parece ser capaz de os
sustentar. Os integristas que se explodiram contra o WTC não eram pobres,
nem excluídos, nem oprimidos. Viviam antes como toupeiras nas sociedades
ocidentais, tal como os antigos agentes do KGB, levando uma vida
estupidamente integrada, pacata, tolerante. Um dia, explodem. E explodem-se.
Levam com eles ódio e pregos, o máximo de mortos para um terror
maximalista. (…) Por mais que queiramos perceber de onde eles vêm, como
vivem e onde vão actuar, nenhuma das respostas parece chegar com a
limpidez e a rapidez necessárias. (…) Mas um dia, inevitavelmente, o relógio
estará atrasado e desprevenido» (Kontratempos, 12 de Setembro de 2007).
Por aqui se vê que até o esforço de compreensão do fenómeno terrorista é
veiculado como algo moroso e, mais grave do que isso, pouco relevante para
actuar convenientemente sobre o assunto. Os terroristas atacam e cometem
atentados porque sim, ponto. Procurar encontrar fundamentos de determinação
causal dos mesmos pareceria ser um empreendimento ineficaz e desfasado da
necessidade de actuações militares sobre eventuais alvos terroristas. Quer
dizer, o terrorismo seria apenas uma perversidade malévola de gente imoral
(ou amoral) – os “terroristas não têm perfil. Não são éticos”. Ficando a análise
da origem do terrorismo assente numa base de índole moral, facilmente se
pode descambar para, por um lado, pulverizar qualquer tipo de pensamento
que se proponha perscrutar a natureza sociológica e histórica do terrorismo e,
por outro lado, assumir que os fins (a chamada “guerra ao terrorismo”)
justificam inteiramente os meios (utilizar a força bélica e medidas securitárias
como únicas formas de enfrentar o terrorismo islâmico). Assim, se se quisesse
entravar o terrorismo não valeria a pena interrogar e inquirir as origens do
fenómeno, diz-nos este discurso. A resposta é muito simples e, como já se viu,
só pode ser uma: o uso da força militar e bélica, procedimento que afecta
principalmente as populações civis dos países atingidos e muito menos as ditas
(para não dizer, inventadas pelos media dominantes) organizações terroristas.
Quando aldeias afegãs ou curdas são bombardeadas, quando cidades
iraquianas ou libanesas são arrasadas ou quando edifícios civis, da Cruz
Vermelha ou outros são destruídos pelas nuke bombs, não parece de todo
crível e intelectualmente honesto afirmar que a conduta dos EUA e seus
aliados seja, no mínimo, democrática e humanitária. Por outro lado, atente-se
que as chamadas “organizações terroristas”, das duas uma:
a) referem-se a criações orgânicas protagonizadas pelos serviços secretos
ocidentais e norte-americanos para justificar a invasão e pilhagem das riquezas
de outros povos.
b) referem-se a organizações progressistas, patrióticas ou revolucionárias que
lutam contra o imperialismo norte-americano. Este último quando se defronta
com a resistência dos povos, classifica imediatamente as suas organizações
sociais, políticas e militares mais consequentes como “terroristas”. O exemplo
calunioso das FARC, entre outros, é o mais actual e elucidativo da lógica
perversa do imperialismo estadunidense e dos media ocidentais em
catalogarem perversamente organizações populares de criminosas e
terroristas.
Em jeito de parêntesis gostaríamos apenas de referir que chega a ser inegável
a proximidade entre o discurso fascista do uso da força como único programa
político a executar e a apologia da violência física e militar como única resposta
política para conter um inimigo simultaneamente interno e externo. Já Mussolini
afirmava que «o Estado deve estar limitado às suas funções políticas e
jurídicas. O Estado deve ter apenas polícia para proteger as pessoas decentes
dos vilões, um sistema de justiça, um exército pronto para qualquer
eventualidade e uma política externa para servir o interesse nacional contra
forças terroristas exteriores» (Mussolini citado por Poulantzas, 1970, p.112). A
afirmação de Mussolini apesar de não ser directamente relacionada com esta
questão chama a atenção para um dos pontos comuns entre o fascismo e as
correntes liberais e conservadoras. Na prática, a ênfase colocada na redução
do aparelho de Estado a um papel puramente securitário, policial e militar é de
uma profunda similitude entre todas as correntes, sem com isto querer afirmar
a sua identificação política tácita, mas “tão-somente” a partilha de
determinados aspectos sobre o Estado e sobre as formas de resposta política
deste último. É partindo do pressuposto que o Estado deveria reduzir o seu
papel à esfera do seu aparelho repressivo, policial e militar que deriva a defesa
tácita do uso da violência como única ou principal forma de actuação sobre o
terrorismo. A política (e as ideologias políticas) não mais seriam do que
ilustrações simbólicas de uma real virtude pragmática de aplicação da violência
física e militar para resolver questões de ordem política. Só colocando o
aparelho de Estado nesta perspectiva de estrutura quase exclusivamente
repressora, se poderá lançar luz sobre o papel subsequente da violência como
principal instrumento político de actuação interna e/ou externa.
Neste domínio como em muitos outros, é muito difícil destrinçar qualquer tipo
de distinção conceptual e/ou ideológica de fundo entre todos os quatro blogues
o que nos levaria a perguntar onde está a direita e onde está a esquerda, de
acordo com a terminologia mais em voga no campo político. Quase que
apetece perguntar até que ponto é que uma esquerda que não se distingue em
praticamente nada da direita política se pode continuar a chamar de esquerda.
De facto, o sistema poder imperialista parece viver da necessidade de se
legitimar criando “esquerdas” e “direitas” fictícias e que se resumem a aplicar
os ditames de organização e regulação do sistema contra os direitos dos
trabalhadores e dos povos.
Nos blogues que se afirmam de direita, começando pelo O Insurgente,
manifesta-se a última aresta de pensamento veiculada na análise empreendida
ao pretérito blogue. Na mesma bitola, o discurso (da apologia) da força
continua a receber forte aplauso por parte da blogosfera mainstream. Senão
vejamos.
«O Irão afirma-se cada vez mais em sua posição de “rogue state” e requer
respostas mais duras da parte do Ocidente. Diante da necessidade imperativa
de neutralizar uma ameaça concreta à sobrevivência de algum de seus aliados,
os Estados Unidos, que são a maior potência militar do mundo, dispõem de
condições de agir, porém a um custo possivelmente muito elevado perante a
opinião pública internacional» (O Insurgente, 15 de Abril de 2007) [itálicos
nossos].
As afirmações em itálicos demonstram mais do mesmo sumo argumentativo
que temos vindo a dar conta pelo que não nos debruçaremos detidamente
sobre isso. Ressalte-se apenas a última parte do trecho, onde cinicamente se
declara que o maior obstáculo para uma possível intervenção militar dos EUA
no Irão é o custo mediático e de popularidade para aqueles. Das vidas
humanas dos soldados de ambas as partes e de prováveis milhares de civis
mortos nada é referenciado no texto – e em nenhum dos que lemos de todos
os blogues. A eficácia bélica e o pragmatismo funcional ditam as regras.
No mesmo texto, a Europa é criticada por não seguir o exemplo norteamericano e por não se fortalecer militarmente. Assim, a «Europa dedicou-se a
construir um paraíso onírico kantiano onde a utilização da força é praticamente
impensável e toda e qualquer ameaça deve ser enfrentada através do diálogo e
do multilateralismo institucionalizado» (idem). Não é de todo verdade que os
países europeus tenham adoptado na sua história métodos exclusivamente
diplomáticos para resolver conflitos. Porém, o que há de mais relevante nesta
afirmação tem que ver com a desvalorização do factor negocial em detrimento
(do elogio aberto e tácito) do recurso da força como o procedimento mais
legítimo e racionalmente razoável. No seguimento, reafirma-se, quase de forma
obsessiva, a mesma motivação:
«Se queres a paz, prepara-te para a guerra (“si vis pacem, para bellum”), já
dizia o escritor militar romano Vegetius, por volta de 390 a.C. Assim, deve-se
primeiro garantir a sobrevivência através do fortalecimento das capacidades de
poder perante os outros Estados da região. Depois, pode-se começar a pensar
nos benefícios da paz para o desenvolvimento de relações económicas que
promovam o bem-estar e a prosperidade» (idem).
Estes dois aspectos – o elogio da força bélica e a criação de um estereótipo do
terrorista como agente do Mal – conjugam-se perfeitamente.
Um artigo de Rui Ramos, previamente publicado no jornal Público, é muito
esclarecedor de como estes dois eixos temáticos se interligam e conciliam na
perfeição. Acompanhado por um cartaz de terroristas islâmicos com chamas
infernais como pano de fundo, o artigo começa por criticar os contestatários
das teses do choque de civilizações – «há quem não tenha desistido de
“iraquizar” o Ocidente» (O Insurgente, 12 de Julho de 2007), o que significaria
que qualquer opositor à política intervencionista dos EUA seria um colaborador
dos extremistas islâmicos.
Logo de seguida o autor procede por via da ridicularização desses oponentes:
«Não lhes basta conter os terroristas. Querem compreendê-los. É possível
contê-los. Mas compreendê-los? Compreender, para os Ocidentais, não é
apenas entender: é detectar as causas e razões, e ficar assim habilitado para
as eliminar de uma vez e para sempre. O grande princípio ocidental é o de que
se há um problema, tem de haver uma solução – de preferência, imediata e
sem dor. (…) É a maneira ocidental de compreender os outros: ou são
atrasados, ou somos nós próprios. Mas os terroristas não são uma coisa nem
outra. São, como sugere o estudo de Shiv Malik sobre a carnicifina de Londres
em Julho de 2005, jovens afastados da tradição e alienados das suas famílias
e comunidades de origem, mas que não querem integrar-se na versão
ocidental da modernidade. Procuram uma ordem nova garantida pela revelação
divina. E visto que não parecemos capazes de levar a sério esta dimensão
religiosa, como compreendê-los?» (idem).
Mais uma vez, tudo o que se assemelhe a um qualquer exercício de indagação
teórica é imediatamente cunhado como algo infrutífero e, indo mais além,
desnecessário. Para este autor, para conter o terrorismo só «poderemos contar
com duas coisas»:
1) «com o debate ideológico dentro das comunidades islâmicas. Não está ao
alcance dos que estão de fora fazer muita coisa aí»;
2) «nenhum truque dispensará a força – a força prudentemente usada, mas a
força necessária para tornar evidente que a opção terrorista leva à prisão e não
à glória, e que dirigir e albergar terroristas é o caminho para grutas em
montanhas remotas, e não para os palácios de qualquer capital» (idem).
Não só há, novamente, uma desvalorização de todo e qualquer método nãoviolento, como, por outro lado, o artigo encerra vincando uma tirada de tom
jocoso sobre os que contestam a política intervencionista dos EUA e seus
aliados, e o correlativo enquadramento ideológico do choque de civilizações: «é
reconfortante constatar que as polícias, com a sorte do seu lado, se têm
mostrado mais eficazes que os nossos sábios para lidar com os terroristas»
(idem).
Um outro texto publicado no mesmo blogue e da autoria de Claudio Vellez cola
metonimicamente o terrorismo ao colectivismo.
«Mais do que um embate civilizacional, o terrorismo, no século XXI, volta-se
contra todo um modo de vida e representa o que poderíamos chamar de “braço
armado” de uma complexa estratégia de construção de um mundo alternativo
através da recuperação de um ideal de cunho colectivista que exige a
aniquilação gradativa das liberdades individuais» (O Insurgente, 11 de Junho
de 2007).
O autor diverge de Huntington apenas na contextualização do terrorismo na
evolução histórica da humanidade. Onde para Huntington o choque de
civilizações surge como um fenómeno trans-histórico, para Vellez é o
colectivismo que está na base matricial do terrorismo, islâmico na sua
modalidade mais actual. Com efeito, «o pano de fundo ideológico que alimenta
os grupos terroristas e as actividades extremistas, contudo, tem a sua origem
no holismo que dilui a expressão das individualidades na concepção
colectivista que se manifesta, inclusive, na aberração política do totalitarismo»
(idem).
Apreende-se nestas palavras a interpenetração de três conceitos: colectivismo,
terrorismo e totalitarismo como se ambos caminhassem passo a passo desde
sempre. Por exemplo, se é verdade que a Alemanha nazi era um Estado
totalitário não se pode afirmar pela existência de colectivismo na vigência
desse regime. No extremo político da Alemanha hitleriana, a União Soviética se
teve uma forte componente colectivista (no sentido de procurar construir uma
sociedade alicerçada no primado do colectivo sobre o indivíduo singularizado),
muito dificilmente se pode afirmar que houve totalitarismo.
O objectivo do autor do blogue O Insurgente parece, assim, claro. Criar uma
amalgama confusa de conceitos, colocando no mesmo tabuleiro elementos
políticos claramente distintos entre si como os fascismos, o movimento
socialista e comunista e o terrorismo islâmico.
No blogue Atlântico, propriedade da revista com o mesmo título, o mesmo teor
temático encontra-se espelhado nos seus textos. O mesmo tipo de juízos
acerca da indeterminação das causas do terrorismo e do carácter de exclusão
e niilista dos terroristas é novamente abordado:
«Quase todas as conspirações do terrorismo islâmico – desde a revolução xiita
no Irão até aos atentados de 11 de Setembro – foram preparadas no Ocidente
por muhajiroun (sic) que vivem, muitas vezes ao abrigo das leis de asilo,
aparentemente satisfeitos e integrados no seio de comunidade instaladas. Mas
como nenhum elo de pertença os poderá jamais vincular a estas comunidades,
nunca chegam a adquirir a lealdade nacional de quem os acolheu. (…)
Impotentes para organizar uma oposição no país de origem e incapazes de
aderir à sociedade em que vivem, acabam por ser atraídos pela violência como
prova derradeira da sua identidade (Atlântico, 10 de Setembro de 2007).
Assim, a única explicação relativamente à causalidade do fenómeno terrorista
fica-se pela atribuição a um único factor (a não inserção de membros das
comunidades muçulmanas no Ocidente no restante tecido social externo)
nunca desenvolvido e sem nunca colocar em causa o dualismo Bem/Mal.
Um último ponto que gostaríamos de focar tem que ver com a avaliação que os
intelectuais defensores dos fundamentos do choque de civilizações fazem dos
seus contendores e dos que questionam a actual escalada internacional de
guerras levadas avante pelos EUA e pelo Ocidente. Num longo texto, Paulo
Tunhas (PT) vai criticar o que considera ser o estado de impunidade com que
os terroristas islâmicos gozam de «uma boa quantidade de políticos e
intelectuais ocidentais» (Atlântico, 10 de Dezembro de 2007). Para o autor só
há uma explicação possível e ela só poderá ser de ordem psicológica e mental.
Recortando o pensamento de Freud sobre as neuroses em citações
descontextualizadas, Paulo Tunhas compara o crítico ou céptico à ortodoxia
eurocentrista do choque de civilizações a um indivíduo vivendo num estado
neurótico:
«Como escreve Freud: “Em cada uma das neuroses, não é a realidade da
experiência, mas antes a realidade do pensamento, que forma a base da
formação do sintoma”. A intensidade e o afecto são fundamentais no mundo
neurótico: apenas as “coisas intensamente pensadas ou afectivamente
concebidas” contam para o neurótico, independentemente de estarem ou não
de acordo com a realidade exterior. Tal como no caso do primitivo, crê-se que o
mundo exterior pode ser mudado por um simples acto de pensamento» (idem).
A isto o autor chama de «omnipotência do pensamento» (idem). Mais uma vez
o processo de intelecção e de busca pela compreensão do fenómeno em
causa é considerado pejorativamente. Na prática, tal comportamento autocentrado na reflexão especulativa resultaria numa confusão entre vítimas e
culpados, como se a discussão do fenómeno do terrorismo e dos conflitos no
Médio Oriente se engendrasse em termos estritamente morais, ou seja, entre
bons e maus, entre justos e injustos, entre culpados e inocentes.
Uma consequência verdadeiramente interessante desta atitude é, de facto, a
posição singular que ela engendra face à culpa e à inocência. Aqueles a quem
é atribuída uma passividade ontológica radical não são, por definição,
susceptíveis de culpa. São naturalmente inocentes. São, pelo contrário, estritos
depositários da culpabilidade aqueles a quem é exclusivamente atribuída a
actividade. Logo a seguir ao 11 de Setembro de 2001, os EUA foram
imediatamente considerados por muita gente como os verdadeiros fautores do
ataque às Torres Gémeas e ao Pentágono (sem esquecer o alvo falhado do
avião que caiu na Pensilvânia)» (idem).
A responsabilidade dos EUA no apoio à Al-Qaeda e aos taliban durante a
guerra no Afeganistão (1979-1989) e no fomento do integrismo islâmico
durante as décadas de 60 a 80 parecem estar esquecidos ou pura e
simplesmente omitidos do discurso mais amplamente favorável às
administrações norte-americanas.
Assim, a discursividade típica destes intelectuais também procura responder às
críticas que lhes são endereçadas, o que é perfeitamente legítimo, justo e
expectável. Porém, a sua contra-resposta raramente aborda o conteúdo das
proposições dos seus contendores, preferindo reduzir as suas réplicas a
enunciados de tipo psicologistas. Se no blogue Kontratempos os críticos não
passam de uma «brigada de alienados» (Kontratempos, 12 de Setembro de
2007), PT envereda pela mesma formulação teórica, se bem que esculpida e
justificada em pormenores pretensamente científicos como a teoria de Freud.
Portanto, para Paulo Tunhas o delineamento de críticas como, entre muitas
outras, a ligação da Al-Qaeda aos EUA ou o facto de o terrorismo islâmico
surgir como contra-efeito da dinâmica da actual globalização capitalista em
formações sociais de população maioritariamente muçulmanas, mais não
seriam do que fetiches para «satisfazer inconscientemente essa crença infantil,
regressiva e narcísica na omnipotência da actividade ocidental» (Atlântico, 10
de Dezembro de 2007). Desenvolvendo a sua análise alavancada na psicologia
freudiana aplicada à política internacional, PT aproxima as críticas à grelha
ideológica do choque de civilizações e à sua efectivação prática ao que veicula
ser o «racismo altruísta» (idem). Ou seja, o crítico está equivocado quanto mais
não seja porque considera o islâmico como «estruturalmente passivo e
radicalmente inocente, movendo-se apenas por reacção e pecando por
angélica ausência de responsabilidade» (idem). Em rigor, para o autor, o crítico
das teses do choque de civilizações encerraria o islâmico numa singularidade
cultural. O islâmico mais do que uma particularidade cultural, seria, no caso do
terrorista, um fanático, um diabólico portador do Mal. Segundo Tunhas, o
racismo altruísta derivaria de uma plataforma histórico-psicológica muito
precisa: a hiper-reflexividade.
«Aquilo que chamei “racismo altruísta” não representa uma tara sem origens
determinadas. Ele exibe antes um dos aspectos actuais do desenvolvimento de
certas condições sociais e históricas que remontam, pelo menos, à Aufklärung.
Pensemos na importância da reflexividade no pensamento de Kant – mas
poder-se-ia voltar a Montaigne, e, nos inícios, a Platão, não apenas autores
mas símbolos de momentos reflexivos das sociedades. Essa reflexividade
evoluiu parcialmente para uma hiper-reflexividade e conduziu à galáxia
imprecisa do que se convencionou chamar pós-modernismo. A crença na
omnipotência do pensamento coincide com a negação de tudo o que nos
provoque desprazer: à realidade é substituído o pensamento, ou, melhor, a
projecção do pensamento na realidade, projecção tanto mais eficaz quanto nos
provoca um alívio psíquico. No mesmo gesto, nega-se tudo aquilo que pode
pôr em causa o nosso narcisismo» (idem).
À primeira vista Tunhas parece estar a criticar tão simplesmente o idealismo
filosófico, domínio da Filosofia e do pensamento perpassado pela reflexão
especulativa e metafísica. Na verdade, Paulo Tunhas critica o racionalismo de
um modo geral e a importância histórica da construção de pensamentos
explicativos e reflexivos sobre as sociedades dos seus respectivos tempos
históricos. Quer dizer, Tunhas desacredita o idealismo filosófico e especulativo
no sentido de considerar toda e qualquer postura de interrogação do fenómeno
do terrorismo islâmico como uma negação da realidade tal e qual ela é. No
fundo, ao uso da racionalidade (seja ela especulativa ou não) Paulo Tunhas
contrapõe o irracionalismo da força física, o irracionalismo no uso e recurso da
violência bélica e militar sobre o chamado mundo muçulmano.
Por conseguinte, toda esta explicação desagua na assunção de que os que
procuram compreender o Islão não passam pela prova da realidade. Isto é,
todo e qualquer empreendimento teórico e intelectual seria uma «recusa do
perigo real» e uma «invenção de perigos substitutos» (idem). Perante este
cenário, a dita sociedade civil mais não teria de fazer do que enfrentar o
princípio da realidade: combater com tenacidade e, acima de tudo, com
violência o terrorismo islâmico. O mesmo é dizer que as guerras, invasões e
bombardeamentos dos EUA e seus aliados sobre populações maioritariamente
muçulmanas seriam actos perfeitamente legítimos, aceitáveis e sem os quais a
dita civilização ocidental correria o risco de ser destruída. Na realidade, trata-se
de justificar ideologicamente a intervenção militar em busca de recursos
naturais, expansão geoestratégica e de defesa do dólar como moeda mundial,
travestida de uma guerra do Bem contra o Mal, do Ocidente contra o Islão.
II – Contradições e ambiguidades do discurso do choque de civilizações:
algumas coordenadas teóricas sobre a teoria do capitalismo neoliberal
As teses do choque de civilizações, tanto na sua versão original de Huntington
como na versão adaptada dos blogues portugueses do mainstream, não
comportam uma série de elementos que nos parecem essenciais para a
compreensão do actual cenário internacional. De facto, mais do que uma
tentativa de compreensão e/ou explicação do mundo, o paradigma do choque
de civilizações constitui-se como um empreendimento ideológico de justificação
e legitimação da política externa dos EUA e seus aliados mais próximos e
poderosos.
Podemos então relacionar o eurocentrismo, nomeadamente na sua formulação
mais ocidentalocêntrica, com as teses do choque de civilizações, na medida
em que este último não se distingue da defesa de um projecto político mundial
de dominação. De facto, pode-se afirmar que tanto no modelo do choque de
civilizações, como no eurocentrismo clássico, inventou-se um Ocidente de
sempre, único e singular desde a sua origem. Ora, a construção de um
Ocidente imutável e com características próprias e únicas aí existentes desde
tempos quase imemoriais, implica igualmente a construção de um antagonista
com características próprias e intemporais, apesar de opostas e consideradas
como irreconciliáveis com os valores e vivências ocidentais. Por outras
palavras, esta construção, arbitrária e mítica do Ocidente impunha em
simultâneo a construção também artificial de outras (os Orientes ou o Oriente)
em bases igualmente míticas, mas necessárias para a afirmação da
preeminência dos factores de continuidade sobre a mudança.
O eurocentrismo/ocidentalcentrismo presente no modelo do choque de
civilizações reproduz uma lógica que em alguns aspectos se pode considerar
como nova. Na verdade, a sua vertente mais recente concentra-se mais na
atribuição de dimensões e propriedades inatas a um universo geográficocultural, consagrando a passagem de um racismo genético e biologizante
(Alemanha nazi) para um racismo geográfico e cultural. Desmontadas e
desconstruídas por boa parte da evolução da Genética e da Biologia as noções
da hierarquização biológica de raças e povos, o eurocentrismo reconverteu-se
em novos moldes, sem nunca perder a sua trave-mestra – a pretensa
superioridade civilizacional do Ocidente sobre as restantes civilizações. Esta
assunção da superioridade do Ocidente mantém-se.
Explicitando, o que a nosso ver é factor de novidade prende-se com o menor
enfoque dado à dimensão biológica, mas com o maior peso da proveniência
cultural e da identidade cultural subjacente a uma determinada região do globo.
Onde antes o cultivo de ódios em relação ao mundo exterior ao Ocidente
assentava numa discursividade preponderantemente biológica, hoje o seu mais
forte instrumento de transmissão é a fetichização da cultura. Se no colonialismo
do século XIX as loas poéticas de Ruyard Kipling relativamente ao “fardo do
homem branco” em dominar a periferia do sistema-mundo assentavam na
inferioridade biológica dos povos não-ocidentais (considerando os negros e os
índios como seres mais próximos dos animais do que dos seres humanos), a
versão mais recente do ocidentalcentrismo aborda tudo o que diz respeito à
subjectividade de uma determinada comunidade humana – religião, costumes,
hábitos, visões do mundo, arte, linguagem, modos de sociabilidade, tradições,
etc. – como algo congelado num circuito fechado, inscrevendo um carácter de
perenidade e imutabilidade a essa mesma comunidade humana. Por outro
lado, e de modo simultâneo, comunidades culturais com traços culturais e
sociais distintos, são facilmente amalgamados num conjunto religioso-cultural
mais vasto, como por exemplo, o Islão ou o Ocidente. Desta forma, dá-se
apenas importância a um ou dois conjuntos de variáveis culturais –
nomeadamente a religião – para obscurecer as diferenças enormes ao nível
cultural, económico, político e social que comporta o chamado mundo
muçulmano. No fundo, a uma variável generalizante – no caso do Islão, a
religião muçulmana – reduzem-se e omitem-se todas as outras diferenças
culturais, políticas e sociais dentro da chamada civilização islâmica. Estamos
perante um método superficial que consiste em retirar conclusões totalizantes a
partir de um detalhe unilateralmente captado. Mesmo o reconhecimento de
diferenças e divergências internas no seio do Islão é invariavelmente
subsumido e tomado como irrelevante no quadro do choque de civilizações.
O racismo geográfico e cultural do imperialismo em relação ao chamado Islão
ancora-se, portanto, na assunção de que nenhuma sociedade pertencente a
este bloco civilizacional foi, é e será alguma vez capaz, por si só, de
implementar valores democráticos e de liberdade. Neste ponto podemos
afirmar que duas arestas ideológicas se tocam inequivocamente: o liberalismo
e o eurocentrismo/ocidentalcentrismo. Por um lado, este racismo geográfico e
cultural resgata teses assentes na equivalência imediata e inquestionável entre
democracia, liberdade e liberalismo. Fora do mercado, do trabalho assalariado
e do Estado dominado e controlado por elites [2] que se revezam entre si para
controlarem o poder político, nada é democrático e portador de mecanismos de
construção democrática da sociedade. Logo, qualquer modelo alternativo que
fuja aos mecanismos liberais e capitalistas de ordenamento das sociedades é
inevitável e imediatamente classificado de não-democrático.
Por outro lado, se se reconhecer que ao Islão está vedado qualquer papel
autónomo na construção das suas sociedades em termos de democracia e
liberdade, então só o Ocidente o poderá levar a cabo. No fundo, a construção
ideológica de um Oriente mítico, que tanto pode ser o Islão, o Japão, a Índia ou
a China e cujas características são tratadas como definitivas e definidas
simplesmente por oposição às características atribuídas ao Ocidente
capitalista, pavimenta uma visão e um discurso que abona pela intervenção
“missionária” do Ocidente naqueles territórios e populações.
O pai ideológica das teses do choque de civilizações, Samuel Huntington, é
inteligente o suficiente para não abraçar de forma irracional e imediata as teses
eurocêntricas do século passado que propugnavam pela homogeneização de
todo o planeta à imagem e semelhança do Ocidente. O autor do choque de
civilizações compreende que esse é um objectivo que, no curto e médio prazo,
não está ao alcance dos EUA e dos seus aliados europeus. Contudo, isso não
significa que haja um afrouxamento da assunção da superioridade do Ocidente
sobre as outras civilizações. Na realidade, a defesa dos EUA e do Ocidente
como potência e civilização hegemónicas, respectivamente, mantém-se intacta.
O que Huntington e todos os autores pró-imperialistas chamam a atenção é
para os limites actuais (e assumidos como meramente conjunturais) da
dominação capitalista – incapaz de criar um mercado mundial homogéneo – e
da dominação imperialista – incapaz de submeter pelas armas todas as
populações e Estados não-ocidentais a um controlo absoluto e inquestionável
por parte do Ocidente capitalista.
De um ponto de vista sócio-económico, onde o colonialismo era a modalidade
de expropriação directa e abertamente violenta dos recursos sociais de
produção, a partir das duas últimas décadas, neoliberalismo e
ocidentalcentrismo combinam-se como uma nova forma de reconfiguração da
dominação económica e política das periferias do sistema capitalista
internacional. Basicamente, o controlo económico da periferia passa pelo
amarrar das dinâmicas internas do mercado em cada território (os mercados
nacionais da periferia) ao funcionamento do mercado mundial. Nesse sentido, o
controlo da periferia sustenta-se no reforço das relações económicas que
subterrânea e invisivelmente reconvertem e reconfiguram os mercados
nacionais periféricos, transformando-os em zonas especializadas de produção
de excedente económico, de acordo com os interesses dos grandes
conglomerados económicos e dos Estados do Ocidente.
No que toca ao Islão, registe-se o impacto das dinâmicas neoliberais nos
países do Médio Oriente. De facto, naquelas formações sociais existe uma
evidente degradação do seu padrão de desenvolvimento. Na sua generalidade,
são países com uma estrutura económica fundamentalmente assente na
exploração e exportação de petróleo e gás natural e quase sem outro tipo de
indústria, como vastas áreas do Norte de África e do Médio Oriente. Mesmo
que em partes deste segmento da economia internacional as relações
capitalistas de produção não sejam preponderantes, o seu grau de ligação aos
mercados internacionais é inquestionável. Tão ou mais importante que o
fornecimento de matérias-primas para o centro – que é, sem dúvida, um
importante ramo de actividade destes países –, o que está aqui em causa é o
bloqueamento do desenvolvimento destes países. De facto, este componente
da periferia é atravessado por modos de produção não-capitalistas que têm um
papel essencial a dois níveis: a) na equalização da taxa de lucro médio
internacional a partir da competição entre capitais com diferentes composições
orgânicas; b) no fornecimento de uma força de trabalho que se produziu de
forma praticamente gratuita para o centro do sistema capitalista internacional,
particularmente provenientes dos países do Magrebe.
Num outro ângulo, importa referir que os EUA e as principais nações da Europa
ocidental lutaram activamente contra projectos de libertação e desenvolvimento
nacional (Egipto de Nasser, Argélia de Ben Bella, Iraque antes de Saddam,
Líbia de Kadhafi, Síria do Baas, Afeganistão e o Partido Democrático e
Popular, Indonésia e a aliança do Partido Comunista Indonésio com sectores
democratas daquele país, etc.). Todos esses projectos desenvolvimentistas ou
populares, com evidentes diferenças entre todos eles, foram levados a cabo
com o intuito de criar economias que permitissem estreitar o fosso na produção
e distribuição de recursos económicos à escala mundial. Por intermédio da
aposta em vias próprias de industrialização com sectores económicos
diversificados e autosustentados, e com a tentativa de construção de aparelhos
de Estado autónomos das directrizes das embaixadas dos anteriores países
colonizadores, os projectos nacionalistas (e por vezes pró-socialistas) árabes e
muçulmanos eram alavancas essenciais para quebrar a lógica de expropriação
e de subdesenvolvimento que a organização capitalista da economia
internacional lhes impunha. O apoio incondicional do chamado Ocidente a
grupos integristas islâmicos nos anos 70 (Afeganistão) ou a futuros inimigos
(como Saddam Hussein no Iraque) provam que a ofensiva contra a criação de
um modelo nacional de desenvolvimento nos países muçulmanos, é uma peçachave para se compreender o afundamento das burguesias nacionais e laicas
daqueles Estados bem como da possibilidade de se ter implementado modelos
alternativos e democráticos de desenvolvimento económico, político e social. O
mesmo se passou com as forças e camadas sociais populares que
participaram activamente nesses projectos. Ao invés, o imperialismo apostou
sempre em fomentar o crescimento de classes dominantes locais compradoras,
isto é, desligadas de um projecto de desenvolvimento industrial e provenientes
do sector económico mais atrasado (a agricultura) e com uma cultura religiosa
fanática. No fundo, classes dominantes sem objectivos económicos de criar um
padrão de desenvolvimento económico e social autónomo, mas que se cingem
à partilha da exploração de recursos energéticos com as classes dominantes
ocidentais e a sectores de monocultura agrícola ou industrial. São estas
classes dominantes locais que em países como a Arábia Saudita apoiam a
linha política definida por Washington. São estas mesmas elites árabes locais
que, em contextos de uma mais desigual partilha da pilhagem dos recursos e
das riquezas, se transformam em talibans ou em grupos fomentadores do
extremismo islâmico contra os antigos comparsas de pilhagem e opressão.
Conclusão
Toda a argumentação exposta no discurso imperialista do choque de
civilizações e dos blogues analisados conduz para uma série de itens que vale
a pena resenhar brevemente.
•
A civilização ocidental seria a única formadora e a única agência portadora dos
valores da democracia e da liberdade. Fora deste espaço geocultural não
haveria capacidade autónoma dos restantes países para desenvolver qualquer
tipo de valores e práticas emancipadoras. Por outro lado, só são tomados como
aceites os valores do mercado, do chamado “comércio livre” e da democracia
representativa não-participativa e bipolarizada entre uma esquerda e uma
direita que apenas diferem na forma e nunca na substância das suas
orientações programáticas.
•
Não tendo condições para colonizar e ocupar territorialmente e para
evangelizar (religiosa e culturalmente) todo o espaço islâmico, a saída para o
Ocidente seria, neste momento, fortalecer a sua unidade ideológica em torno
dos princípios enunciados no item anterior e, por outro lado, enveredar por
acções militares que possam esmagar militarmente ou neutralizar o seu
inimigo.
•
Sendo os valores do Ocidente tomados como os mais aptos ao
desenvolvimento de uma humanidade tolerante e harmoniosa, torna-se muito
fácil deduzir daqui que a chamada civilização ocidental se personifica no Bem.
Ao inverso, o Islão – ainda por cima tomado no seu conjunto, englobando
populações civis, Estados e organizações terroristas – seria um inimigo visceral
dos valores do Ocidente, logo, do Bem. Com a mesma facilidade, o Islão
encarna o Mal.
•
Todo e qualquer esforço intelectual de indagação do fenómeno e que,
minimamente, confronte toda esta construção teórico-ideológica do choque de
civilizações é imediatamente taxado de irrealista e insensato. Um verniz antiintelectualista e abertamente defensor do uso da violência e da força militar
reveste todos os blogues do mainstream português.
•
Nenhum dos blogues rejeitou o ocidentalcentrismo impresso nas teses do
choque de civilizações. Pelo contrário, aprofundam e expandem o seu espectro
ideológico a mais camadas da população. Ao mesmo tempo, não se encontra
qualquer tipo de desenvolvimento teórico que equacione o funcionamento do
sistema internacional capitalista nas suas bases materiais, portanto,
económicas e políticas. No fundo, toda a problematização realizada nos
blogues aludidos (amostra que nos parece real e definidora de boa parte da
blogosfera mainstream) centra-se, a mais das vezes, na construção de
estereótipos. Toda a problematização teórica relativiza o debate em termos de
coordenadas matriciais das Ciências Sociais, privilegiando a explanação de
enunciados morais e moralizantes. Dessa forma, simples questões
relacionadas com a organização internacional do sistema capitalista como as
que expusemos na secção anterior, são completamente passadas ao lado. Em
jeito de remate, não deixa de revelar uma forte ambiguidade o facto de a) os
maiores apologistas das virtudes da economia global e competitiva e que
justificam todo o tipo de regressões de direitos sociais como inevitabilidades da
vivência no seio dessa mesma economia global, b) serem precisamente os
mesmos que cindem o sistema capitalista internacional em duas partes
estanques, mutuamente exclusivas e sem quaisquer tipo de veios de
interacções económicas, sociais e políticas que não sejam choques interreligiosos ou inter-civilizacionais.
Notas:
[1] Gostaríamos de justificar a escolha cronológica dos posts analisados, bem
como dos próprios blogues. Sobre este ponto, interessou-nos analisar blogues
que partilhassem disposições com o espectro político do chamado arco
governativo e que, ao mesmo tempo, consagrassem boa parte da sua
produção textual a assuntos de política internacional, particularmente às
questões do terrorismo islâmico. Com efeito, a análise, em blogues
portugueses, de fenómenos de política internacional a partir de uma
perspectiva que se afirmasse próximo de uma visão neoliberal afirmou-se como
decisiva para a escolha dos blogues referidos. Por outro lado, a concentração
da maioria dos posts no ano de 2007 teve que ver com dois acontecimentos
relevantes sucedidos nesse ano. Em primeiro lugar, a evocação (e
proximidade) dos seis anos dos atentados às Torres Gémeas do World Trade
Center em Nova Iorque. Em segundo lugar, por causa do exacerbar das
relações tensas entre os EUA e o Irão no mesmo período.
[2] Elites políticas subordinadas às classes dominantes numa formação social e
económica.
* Sociólogo
Download

Carregue aqui para ler o texto