A cidade que liberta, não deixa andar:
o caso dos passeios públicos do Bairro dos Estados-JP-PB, Brasil
Ana Laura Rosas Brito (1), Yasmin Ramos Peregrino (2), José Augusto Ribeiro da Silveira (3),
Milena Dutra da Silva (4)
(1) Doutoranda, PPGAU/UFPB, Brasil. E-mail: [email protected]
(2) Mestranda, PPGAU/UFPB, Brasil. E-mail: [email protected]
(3) Prof. Dr. do PPGAU/UFPB, Coordenador do LAURBE/UFPB. E-mail: [email protected]
(4) Profº Dra. pelo PPGEO/ UFPE. E-mail: [email protected]
Resumo: Os índices de crescimento da população urbana mundial demonstram que as cidades são
atratores para diversas conquistas. Entretanto, essa cidade que "liberta" é também um complexo
sistema de relações e conflitos. A morfologia e apropriação do espaço conduzem esse artigo aos
passeios públicos intraurbanos. Como objeto empírico de estudo, adotou-se o Bairro dos Estados-JPPB-Brasil, tendo por objetivo discutir como seus passeios públicos são mantidos e apropriados pela
administração pública e pelos cidadãos. Enquanto hipótese tem-se que, mesmo em espaços urbanos
de renda elevada, é deficiente o entendimento do caráter público e da necessidade de manutenção
das calçadas de maneira que sejam protagonistas da vitalidade urbana. O presente artigo se justifica
pelo fato de que as inúmeras possibilidades de arranjo urbano, de ruas e calçadas, trazem
informações culturais importantes acerca de determinado lugar, e que os passeios públicos são
fundamentais para o bem estar citadino e para o direito de ir e vir do cidadão. Utiliza-se como
método de pesquisa e análise, a inserção dos pesquisadores nos ambientes estudados, a captação de
imagens e impressões, e as categorias do Portal Mobilize Brasil. As conclusões apontam para um
quadro de má gerência das calçadas, tanto pelo poder público quanto pela população usuária.
Palavras chave: Cidade; calçadas; apropriação.
Abstract: The growth rates of the world's urban population demonstrate that cities are attractors for
various achievements. However, this city that "releases" is also a complex system of relationships and
conflicts. The morphology and appropriation of space leads this article to the intra-urban sidewalks.
As empirical object of study, it adopts the neighbourhood, Bairro dos Estados, in the city of João
Pessoa-PB-Brazil, aiming to discuss how its sidewalks are maintained and appropriated by public
administration and citizens. The hypothesis is that, even in urban areas with high incomes, it is faulty
the understanding of the public character and the need to maintain the sidewalks while protagonists
of urban vitality. This article is justified by the fact that, the possibilities of urban arrangement of
streets and sidewalks provide important cultural information about certain place and that, sidewalks
are fundamental to the welfare city and to the right of movement of citizens. It is used as a research
and analysis method, the insertion of researchers in the study sites, capturing images and
impressions, and the categories of Portal Mobilize Brazil. The results point to a bad management
framework of sidewalks, both by the government as by the population.
Key-words: city; sidewalks; appropriation.
1. INTRODUÇÃO
A expressão "O ar da cidade liberta" ou, em sua língua original, "Stadtluft macht frei" é um
provérbio alemão utilizado para compreender o desenvolvimento da dinâmica citadina e da migração
campo/cidade dada a partir de seu florescimento, no período medieval. Mesmo que apenas no sentido
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de sua expressão, o seu significado é mencionado por autores e eventos científicos 1 ligados ao estudo
do urbano da era moderna e contemporânea (BRANDÃO & ROLNIK, 2004). A expressão é válida
para explicar que, a cada ano, pessoas inflam as cidades pelo mundo, pois acreditam que tais 'cidades'
as libertarão da pobreza, da falta de oportunidades para uma vida mais 'moderna' e aberta à conquista
intelectual e poder econômico. Assim, o crescimento dessa população urbana dá-se de forma
vertiginosa, como revelam os dados da Organização das Nações Unidas (ONU), que em 1945
contabilizou dois terços da população do mundo vivendo em zonas rurais, ao passo que, em 2050,
dois terços da população mundial viverão em cidades. (ONU, 2015)
Da mesma forma que a cidade é considerada um centro de produção e consumo, é também o local de
um complexo sistema de relações e conflitos, especialmente em países de economias em expansão,
como é o caso do Brasil. Isso porque, o espaço das cidades é a "localização e suporte das relações
sociais, de produção e de propriedade, condição e meio de realização concreta da produção,
distribuição, troca e consumo, fluxos e fixos, materialidade e movimento" (CARLOS, 1994, pg.67).
Desse modo, a sociedade produz o espaço, tornando o processo de produção socializado, enquanto dáse a apropriação privada do espaço. Assim, são gerados e mantidos conflitos inerentes a uma
sociedade desigual, majoritariamente composta por classes sociais.
Tais conflitos são observados, também, nas questões referentes à acessibilidade enquanto suporte
físico à mobilidade. O acesso desigual a serviços, produtos e informações, se estende ao meio
intraurbano, espacializando os embates socioeconômicos e intensificando-se com o espraiamento
urbano. Um dos pontos fundamentais questionados acerca do espraiamento é a intensificação da
complexidade de percursos para execução das atividades diárias. Visando amenizar tal complexidade,
soluções tem sido buscadas por parte do Estado para implementação de melhorias no deslocamento de
pessoas dentro da cidade, por meio da qualidade nos serviços oferecidos, estabelecimento de custos
razoáveis e meios não poluentes, e redução de tempo para as jornadas (IPEA, 2011).
No contexto das cidades brasileiras, embora as ações em prol da mobilidade urbana ainda sejam
esparsas, tem se debatido a importância das faixas exclusivas para ônibus, metrôs, trams elétricos e
ciclovias. Entretanto, ainda são pontuais os debates sobre a importância e a qualidade das calçadas
nestas cidades e suas funções em prol da acessibilidade. Isso, embora 38% da população de cidades
brasileiras com mais de 60 mil habitantes utilize o deslocamento a pé nos seus percursos (Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, 2011). Além disso, os dados do ultimo senso do IBGE (2010)
revelam que, no Brasil cerca de 30% das viagens cotidianas são realizadas a pé, principalmente em
função do alto custo do transporte público.
Mesmo diante dos altos números de usuários das calçadas, a ineficiência desses espaços que deveriam
ser acessíveis a todos os pedestres, potencializa o jogo de interesses entre público e privado,
contribuindo para uma elitização das calçadas através de seu design espacial. O conceito de design
espacial vai no encontro da concepção de que, “o espaço não é apenas parte das forças e meios de
produção, mas constitui também um produto dessas mesmas relações” (LEFEBVRE apud
GOTTDIENER, 1993, pg. 129). Assim, o espaço pode ser tido como local e objeto de consumo,
convertendo o design espacial em mercadoria. Nesse sentido, Gottdiener (1993) afirma que o meio
ambiente é de fato consumido, e isso se dá através de recriações e localização de negócios arranjados
de maneira a potencializar seu consumo.
No tocante às calçadas, o Estado não atua de maneira a transformá-las em objeto de consumo, salvo
algumas exceções, a exemplo dos calçadões de orla. Entretanto, ainda que a calçada não seja um bem
vendável, algumas incorporações para habitação, comércio e serviço existentes em inúmeras cidades
1
A esse respeito destacamos a seção temática do Seminário Pensamento Crítico Contemporâneo e Cidade, intitulada de «o
ar da cidade liberta?»:urbs, civitas e a circunstancialidade histórica do urbano, ocorrida em setembro de 2013 em Lisboa, no
âmbito do programa 'New Publics', da Trienal de Arquitetura de Lisboa 2013. (http://www.unipop.info/seminario-pcc/158seminario-pensamento-critico-contemporaneo-e-cidade.html)
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brasileiras despertaram para a utilização do recurso do design espacial nas calçadas de seus
condomínios, de maneira a criar um entorno agradável e apropriado, visando a valorização dos
espaços que estão sendo comercializados intramuros.
Em busca dessa valorização imobiliária, incorporadoras e construtoras tem executado passeios
públicos respeitando a ergonomia e a legislação vigente, com recursos como pisos táteis, rampas
acessíveis, paisagismo com espécies arbóreas e arbustivas adequadas, e revestimentos duráveis. Essas
situações espalham-se pelas cidades brasileiras de maneira descontínua, guiada pela especulação
imobiliária e corroborando para a segregação socioespacial, gerando a expectativa de que um dia
essas calçadas se encontrem com o restante dos passeios públicos, criando a pretendida uniformidade
de 'calçadas eficientes'.
Assim, nesse contexto da espacialização de conflitos sociais, estão os passeios públicos, usualmente
chamados de calçadas, que, sendo um espaço de transição público-privado, explicitam os interesses
socioespaciais desiguais, mas também sendo imprescindíveis para a vitalidade urbana, acessibilidade
e mobilidade. Esse artigo objetiva, portanto, discutir o caráter público das calçadas em seu processo
de apropriação e manutenção, por parte da administração pública e da sociedade. Enquanto objeto
empírico de estudo, adotou-se o Bairro dos Estados-JP-PB-Brasil, onde predominam residentes de
classe média alta. Isso, considerando a hipótese de que, mesmo em espaços urbanos de renda elevada,
é deficiente o entendimento do caráter público e da necessidade de manutenção das calçadas de
maneira que sejam protagonistas da vitalidade urbana.
O presente artigo se justifica pelo fato de que as inúmeras possibilidades de arranjo urbano, de ruas e
calçadas, trazem informações culturais importantes acerca de determinado lugar, e que os passeios
públicos são fundamentais para o bem estar citadino e para o direito de ir e vir do cidadão. Utiliza-se
como método de pesquisa e análise, a inserção nos ambientes estudados, a captação de imagens e
impressões, e as categorias do Portal Mobilize Brasil. A estrutura do artigo, traz uma breve discussão
teórico/filosófica a repeito das ruas e calçadas, na sequencia, expõe o código urbanístico da cidade de
João Pessoa e após, apresenta a área estudada com as análises, seguidas do capitulo de conclusão.
2. UMA BREVE DISCUSSÃO SOBRE RUAS E SUAS CALÇADAS
As vias e suas possibilidades de arranjos urbanos trazem informações importantes acerca de como
uma cultura trata seus cidadãos e os espaços públicos. Camille Martin (1992, apud SITTE, 1992),
comenta acerca da estética das ruas e de como isso é importante para conferir qualidades de deleite e
contemplação, de bem estar citadino e até mesmo atração turística. O autor destaca a particularidade
de cada rua como sendo associada a eixos, desvios, perspectivas, escala, e presença de arquiteturas
simétricas. Nesse contexto, as calçadas são parte fundamental dessa abordagem, pois é através delas
que as pessoas, especialmente à pé, conseguem apreender tais qualidades citadinas.
Vale ressaltar que é nesse espaço, o das calçadas, onde se dá não apenas o deslocamento, mas também
o encontro, aquele destacado por Lefebvre (1999), quando afirma que a rua na maioria das cidades
pelo mundo, tem priorizado ainda os automóveis, multiplicando os estacionamentos e aumentando a
velocidade da circulação, assim prejudicando estabelecimento da vida social e urbana. Embora
algumas cidades já apontem soluções em prol do pedestre como prioridade, ainda são
posicionamentos pontuais que precisam ser estendidos as demais localidades do mundo.
Nesse sentido, Jacobs (2000) alerta que o uso apropriado das calçadas contribui para segurança
pública e destaca que, ruas e calçadas são os órgãos mais vitais de uma cidade, porque é nesse espaço
que se dá o 'contato', muito próximo do 'encontro' de Lefebvre (1999), cooperando com a vitalidade
urbana e inibindo práticas ilícitas. Jacobs (2000, pg. 61) destaca ainda que "ruas impessoais geram
pessoas anônimas, e não se trata da qualidade estética [...]. Trata-se do tipo de empreendimento
palpável que as calçadas possuem e, portanto, de como as pessoas utilizam as calçadas na vida diária,
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cotidiana". Em lembrança disso, dois casos exemplificam a dificuldade de uso extensivo das calçadas
e valorização do automóvel: Brasília, capital federal do Brasil e Los Angeles, nos Estados Unidos da
América.
Numa visão mais poética, mas não menos pertinente, Certeau (1994, p. 177) coloca que caminhar pela
cidade é um descobrimento diário, além de afirmar que "o ato de caminhar está para o sistema urbano
como a enunciação (o speech act) está para a língua ou para os enunciados proferidos". Assim, da
mesma forma que o locutor se apropria da língua, o caminhar faz do caminhante um locutor na sua
cidade e estabelece, no espaço da rua-calçada, o diálogo entre os vários interlocutores.
Diante disso, autores ligados ao urbanismo tratam da qualidade do ambiente urbano e assuntos
relacionados ao pedestre. Nesse sentido, são notáveis as contribuições de Gehl (1971, 2010, 2013)
especialmente sua última publicação, 'Como estudar a vida pública'2 que preza pelos esclarecimentos
e compartilhamento das técnicas de seu grupo de pesquisa de como observar, analisar e contribuir
para a vida pública nas cidades. Destacam-se também Alexander et al. (1977), White (2009) e seu
PPS - Project for Public Spaces (Projeto para espaços Públicos) desenvolvido originalmente para a
cidade de Nova York. Já no panorama nacional é possível destacar Holanda (2013), que sugere e
reflexões e análises sobre o espaço público utilizando-se de exemplos desses ao redor do mundo. Tais
contribuições corroboram para avanços em prol da qualidade do espaço urbano.
Nesse contexto, embora se reconheça a importância de que as calçadas sejam agradáveis, com
jardineiras e cafés, como recomendam alguns autores citados, sobretudo necessitam ser trafegáveis e
sem obstáculos para totalidade da população. Isso porque as calçadas são fundamentais para a
mobilidade aos demais espaços livres públicos (ELPs), como praças e parques. Entretanto, na
realidade da maioria das cidades de pequeno e médio porte brasileiras, são encontradas inúmeras
deficiências, de infraestrutura básica, que dificultam o acesso e a mobilidade urbana.
3. A CIDADE DE JOÃO PESSOA E SUA LEGISLAÇÃO URBANÍSTICA VIGENTE
A cidade de João Pessoa, capital do estado da Paraíba, desde a década de 1970 tem produzido
normativas e legislações voltadas à produção do espaço urbano. Alguns dos principais documentos
gerados, nesse contexto, são o Plano Diretor (2009), o Código de Urbanismo(2001) e o Código de
Obras (2001), todos revisados e editados pela Prefeitura Municipal de João Pessoa (PMJP) através a
Secretaria de Planejamento, visando normatizar a produção e expansão da cidade. O Código de
Urbanismo, por sua vez, traz recomendações para o disciplinamento urbano sob diversos aspectos,
dentre os quais predomina a organização das vias, incluindo o leito carroçável e os passeios públicos.
Os tópicos abordados neste documento, relativos às vias, referem-se principalmente ao
dimensionamento, comunicação visual, muros, paisagismo, mobiliário urbano e estacionamento.
Além do disciplinamento, a prefeitura prevê providências punitivas àqueles que infringirem o Código
de Urbanismo. A exemplo disso tem-se a Lei N.º 6.017 de junho 1989 que 'Introduz normas
suplementares aos Códigos de Posturas e Urbanismo do município no que tange à limpeza nos
imóveis fechamento de terrenos não edificados e a construção de passeios', que afirma que:
"Art. 20 - Aquele que colocar ou ordenar a colocação de lixo domiciliar, podas de arvores e ou
restos e detritos de qualquer espécie ou natureza, em passeios, vias ou logradouros públicos e
terrenos vazios de propriedade pública ou privada, será imediatamente notificado para num prazo
de 24 horas regularizar a infração. Parágrafo Único - O não atendimento à notificação prevista no
caput deste artigo, Implicarão na lavratura competente auto de infração e aplicação das
penalidades previstas no artigo 200 , desta lei.(...)" (CÓDIGO DE URBANISMO, 2001, pg. 122)
2
How to Study Public Lif, de 2013, titulo ainda sem tradução no Brasil.
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O Capítulo III, dessa mesma lei, estabelece a regularização das calçadas, responsabilizando o
proprietário do lote pela construção e manutenção dos respectivos passeios públicos da extensão das
testada de seus lotes, destacando a observância de instalação de mobiliário, obstruções e acessos de
pedestres, e dimensões mínimas para a larguras dos passeios.
"Parágrafo 30 - Para os efeitos do disposto neste artigo são considerados passíveis de sanção: I Os passeios construídos ou reconstruídos em desacordo com as especificações técnicas ou
regulamentares, excepcionando aqueles executados de conformidade com a legislação vigente até
a data da regulamentação desta lei. II - Se o mal estado de preservação exceder 1/5 (um quinto)
de sua área total, Art. 110 - Os passeios obedecerão as normas técnicas existentes conjugadamente
com os regulamentos a serem expedidos em razão desta lei. / Art. 120 - A instalação de mobiliário
urbano ou de qualquer outro elemento fixo nos passeios, tais como telefones públicos, caixas de
correios, cestos de lixo, bancas de jornal, fiteiros, barracas o outros, não deverão bloquear,
obstruir ou dificultar o acesso de veículos, o livre trânsito dos pedestres, em especial dos
deficientes físicos, nem a visibilidade dos motoristas na confluências de vias. / Parágrafo único Qualquer que seja a largura dos passeios, dever-se-á respeitar a faixa mínima de 1,20m (um metro
e vinte centímetros), ou 50% da largura do passeio" (CÓDIGO DE URBANISMO, 2001, pg. 124)
O Capítulo III alerta que concessionárias de serviços públicos ou entidades equiparadas são obrigadas
a reparar os passeios danificados na execução de obras ou serviços públicos e vai além, na sua rigidez
de conduta regulatória, quando cita a concessão do HABITE-SE, termo que confere a autorização
para ocupar e usar o imóvel, condicionada à construção do passeio nos termos da Lei N.º 6.017.
Diante de tal rigor, nota-se que João Pessoa conta com leis e regulamentações acerca dos passeios
públicos e, ainda que sujeitas a recorrente necessidade de atualização, apontam para a produção de
uma cidade voltada também para o pedestre.
Contudo, mesmo contando com uma legislação abrangente, são notadas deficiências nas calçadas da
cidade. Todavia, a falta de infraestrutura devida nos passeios públicos não se restringe a áreas
específicas, afetando bairros residenciais de renda baixa à alta, importantes corredores de
deslocamento, e áreas de interesse turístico e comercial, como a orla marítima. Irregularidades de
piso, falta de pavimentação e barreiras físicas são os problemas mais recorrentes (Fig. 1).
Figura 1: Calçadas de importantes corredores viários de João Pessoa. Fonte: Ana Laura Rosas (2014).
4. O CASO DO BAIRRO DOS ESTADOS
Tendo em vista essa precariedade de infraestrutura observada nas calçadas da cidade de João Pessoa,
foi definido um objeto empírico de estudo, o Bairro dos Estados. Tal objeto conta com acesso
facilitado aos automóveis, bem como uma rede de transporte coletivo de relativa eficácia. Além disso,
dispõe de ruas calçadas, sistema de esgoto, instalações elétricas e de telefonia, coleta de lixo em dias
regulares, e ampla rede de comércio e de serviços bem distribuída por todo seu território. O bairro em
questão se destaca por abrigar sedes de serviços públicos diversos, como Tribunal de Justiça Federal e
Ministério da Fazenda, Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), Fundação
para Assistência aos Portadores de Necessidades Especiais (FUNADE), posto de atendimento da
previdência social e a Vila Olímpica Parahyba, centro de desporto reinaugurado em março de 2015.
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Figura 2: Localização do estado da Paraíba, João Pessoa e Bairro dos Estados em João Pessoa-PB-Brasil.
Fonte: Modificado a partir de base cartoráfica da PMJP (2015).
As vias internas ao objeto auxiliam na acessibilidade entre bairros, visto que interligam corredores
importantes da cidade, o que tem contribuído para o aumento da especulação imobiliária, que substitui
antigos casarões por condomínios fechados verticais e horizontais. Mesmo com tanta movimentação
socioeconômica em torno do Bairro dos Estados, em suas calçadas são frequentes as infrações pelos
usuários, e má gerencia da administração pública. Tal recorrência ratifica que a falta de estrutura dos
espaços das calçadas não ocorre apenas em bairros pouco visados pelo mercado imobiliário.
Assim sendo, foi realizada uma análise de amostragens das calçadas do objeto empírico em questão,
tendo como base a classificação proposta pelo Portal Mobilize Brasil, na pesquisa intitulada
Levantamento Calçadas do Brasil, que estrutura-se em 8 itens, a saber: I) Irregularidades no piso; II)
Largura mínima de 1,20 m, conforme norma ABNT; III) Degraus que dificultam a circulação; IV)
Outros obstáculos, como postes, telefones públicos, lixeiras, bancas de ambulantes e de jornais,
entulhos etc.; V) Existência de rampas de acessibilidade; VI) Iluminação adequada da calçada; VII)
Sinalização para pedestres e VIII) Paisagismo para proteção e conforto. Alguns dos quesitos
apontados pelo portal foram considerados na íntegra, enquanto outros receberam alguns adendos na
grafia, sinalizados entre colchetes (PORTAL MOBILIZE BRASIL, 2013). Assim, tem-se:
I) Irregularidades no piso: A irregularidade no piso é recorrente, a exemplo da Av. Mato Grosso
(Fig 3 a), atrás do 1º Grupamento de Engenharia e Construção do Exercito Brasileiro e a Av. Piauí
(Fig 3 b). Ao longo das calçadas destas vias, observa-se a inexistência de revestimento e da própria
calçada, levando as pessoas a andarem na faixa de rolagem dos carros.
Figura 3: Irregularidades no piso e localização no bairro. Fonte: Ana Laura Rosas (2014).
II) Largura mínima: Embora seja necessária averiguação com maior acurácia, predominam calçadas
com dimensões em conformidade com a ABNT e legislação vigente, contudo a existência de inúmeras
barreiras físicas fazem com que os passeios públicos tenham seu dimensionamento efetivo reduzido.
III) Degraus que dificultam a circulação: São encontrados inúmeros degraus entre as calçadas dos
lotes, em todo o bairro, dificultando a circulação de pedestres. A exemplo disso, observa-se o caso da
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Rua Manoel Madruga, perpendicular à Av. Acre que conecta o bairro à BR. 230, e apresenta um dos
vários casos de degraus encontrados (Fig. 4 a-b).
Figura 4: Degraus dificultando a circulação e localização no bairro.Fonte: Ana Laura Rosas (2014).
IV) Outros obstáculos: São encontrados tipos diversos de obstáculos em parte significativa das vias
do bairro (Figura 5 a-d). A exemplo disso temos o lixo depositado fora de cestos apropriados na Rua
Maria Batista Medeiros (Fig. 5 a), ou ainda os entulhos resultantes da construção civil, na calçada do
1º Grupamento de Engenharia e Construção do Exercito Brasileiro (Fig. 5 b). Outra solução usual por
moradores do bairro, é a instalação de blocos de concerto para evitar que automóveis estacionem nas
calçadas, como é visto na Rua Prof. Eudésia Vieira (Fig. 5 c). Também é recorrente o prolongamento
da rampa de acesso de automóveis da edificação até o limite da calçada com a rua, criando uma
barreira, como é visto na Av. Mato Grosso (Fig. 5 d).
Figura 5: Obstáculos nas calçadas e localização no bairro. Fonte: Ana Laura Rosas (2014).
V/VII) [Falta de] Sinalização para pedestres / [In]Existência de rampas de acessibilidade: As
rampas acessíveis e sinalização para pedestres são predominantemente inexistentes ou insuficientes
em todo o bairro. Na esquina da Av. Desportista Aurélio Rocha com a Av. Espírito Santo (Figura 6), é
possível ver o que sobrou de algumas faixas de pedestres e a inexistência de rampas de acessibilidade.
No destaque nº1, percebe-se como o mobiliário, de placa, perfis metálicos, poste para semáforo e até
mesmo o desenho do muro, atrapalham a circulação de pedestres, reduzindo a largura da calçada. No
destaque nº2 existe uma rampa para acessibilidade, mas a calçada do lado oposto da via não dispõe de
rampa, inviabilizando a acessibilidade. No destaque nº3, o formato do muro da Vila Olímpica faz,
juntamente com a placa indicativa do nome da rua, o estrangulamento da dimensão da calçada. No
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destaque nº 4, a faixa de pedestre 'encontra' a calçada em uma galeria de águas pluviais, no local onde
deveria haver uma rampa acessível.
Figura 6: Inexistência de rampas acessiveis e sinalização para pedestres e localização no bairro. Fonte: Ana
Laura Rosas (2014).
VI) Iluminação adequada da calçada: Este ponto não pôde ser averiguado com exatidão, tendo em
vista a necessidade de luxímetros e câmeras fotográficas profissionais para o registro adequado, além
da observação presencial noturna em várias ruas do bairro. Contudo, é nítida a predominância de ruas
com iluminação pública insuficiente, devido a locação incorreta do posteamento e falta de
manutenção.
VIII) Paisagismo para [agressão] proteção e [des]conforto: É recorrente o uso de vegetação
inadequada em grande parte das calçadas do bairro (Figura 7 a-c). Na Av. Pernambuco com esquina
da Av. Mato Grosso (Figura 7 a), possui vegetação de espécie inadequação para o local, pois a agave
sisalana é uma arbustiva de volume denso, de folhas com extremidades pontiagudas, podendo
alcançar até 2,00 metros de comprimento. Outra situação equivocada, na Av. Minas Gerais com Av.
Piauí (Figura 7 b), é a inadequação de espécies arbóreas de grande porte que possuem raízes
protuberantes, tabulares, e que inviabilizam a passagem dos pedestres. Além disso, nota-se a
existência de árvores de espécie adequada, tais como pau-brasil, pata de vaca, aroeira-salsa e
calistemon, porém as podas menosprezadas dificultam o fluxo, tais como as encontradas na Av.
Paraíba (Figura 7 c) (CNIP, 2015).
Figura 7: Paisagismo inapropriado e localização no bairro. Fonte: Ana Laura Rosas (2014).
No oposto dessas situações anteriores, são observados os casos isolados e, geralmente executados por
condomínios residenciais privados verticais ou horizontais, que apresentam calçadas com
pavimentação adequada, vegetação e diversos acessórios, tais como, faixas táteis para sinalização aos
deficientes visuais, rampas acessíveis, acabamentos de alta qualidade em design,etc.
4. CONCLUSÃO
A cidade continua, ainda, gerando expectativa quanto à liberdade social, cultural, econômica, política,
ou mesmo espacial. Embora nem sempre cumpra com tais anseios, a urbanização inevitavelmente
alimenta conflitos diversos que acabam por contribuir para a complexidade do meio urbano. No que
se refere à liberdade de ir e vir, a acessibilidade e a mobilidade encontram-se ligadas a diversos
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modais, dentre os quais está o pedestre e suas necessárias calçadas. Os passeios públicos traduzem
uma necessidade básica, o deslocamento à pé, que está na base da vida cotidiana de qualquer grupo
social, pois, mesmo que por alguns momentos, todos tornam-se pedestres.
Um ponto primordial na discussão sobre as calçadas é a responsabilidade imposta ao nicho privado de
construir e manter estes espaços públicos, contudo não estão estabelecidos claramente os limites e
responsabilidades referentes ao cidadão e a administração pública. As exigências do Código de
Urbanismo da cidade, quanto a construção das calçadas, não deixam claros modelos e padrões a serem
seguidos, constando apenas recomendações superficiais que referenciam outras normas, tal como a
Norma Brasileira para a Acessibilidade, a NBR 9050 da ABNT - Associação Brasileira de Normas
Técnica. Nesse caso, o cidadão leigo, esbarra em uma “dificuldade” que seria recorrer a consultoria
especializada para realizar projeto e acompanhar a execução, onerando suas despesas. Entretanto, os
proprietários não se sentem motivados investir em suas calçadas, porque comumente não entendem a
importância destes espaços para a qualidade de vida urbana.
Nota-se assim, a necessidade de conscientização quanto ao caráter público das calçadas, levando o
cidadão a ter estes espaços como um bem de todos, que exige cuidado e livre acesso. Entretanto, o que
se observa são dois posicionamentos distintos e inapropriados, o primeiro deles leva a compreensão
de que os passeios são um bem privado, uma extensão dos lotes, chegando ao extremo de delimitar o
perímetro com blocos ou jardineiras de concreto, hastes de metal, ou qualquer outro artefato que
impeça a passagem de estranhos. Outro posicionamento encontrado diz respeito aos que se eximem da
obrigação de executar e manter suas calçadas, pois entendem que estes espaços, por serem públicos,
não pertencem a “ninguém”.
Sobre o entendimento dessa relação público-privado, o sociólogo brasileiro DaMatta (1997) esclarece
que afinal em casa, somos todos 'supercidadãos' e na rua, passamos sempre a vivenciar a situação de
indivíduos anônimos e desgarrados, 'subcidadãos' sem voz, quase sempre maltratados pelas
'autoridades', e complementa:
"(...) não será exagerado observar que, por causa disso, nosso comportamento na rua (e nas coisas
públicas que ela necessariamente encerra) é igualmente negativo. Jogamos lixo para fora de nossa
calçada, portas e janelas; não obedecemos às regras de trânsito, somos até mesmo capazes de depredar
a coisa comum, utilizando aquele célebre e não analisado argumento segundo o qual tudo que fica fora
de nossa casa é um 'problema do governo'!" (DAMATTA, p. 19. 1997)
O estudo de caso do Bairro dos Estados, por sua vez, mostrou-se eficaz em refletir tais conflitos e
inadequações dos passeios públicos. Foram encontradas situações de descaso e desacordo com a
legislação vigente, tanto da parte dos proprietários dos imóveis e lotes respectivos, como também da
parte da administração pública. Isso, contudo, não significa que não existam casos de adequação, e
manutenção eficiente de calçadas no bairro em questão, mas no geral, essas situações ocorrem de
forma isolada e por “mérito” dos donos de imóveis, pois o que se percebe é a necessidade de maior
acompanhamento da administração pública, com atualização das normativas, fiscalização e
expedições de avisos e multas.
Repensar o posicionamento individual de cada cidadão e a política pública sobre as calçadas traz,
portanto, uma condição Sine qua non para que estes espaços assumam, efetivamente, seu papel de
espaço livre público. Assim, cabe concluir que a cidade, que nem sempre liberta, recorrentemente não
deixa andar, não permite acessibilidade e mobilidade igualitária, e, ainda assim, não perde sua
capacidade de gerar expectativas quanto à liberdade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALEXANDER, C; ISHIKAWA, S.; SILVERSTEIN, M. A Pattern Language. New York: Oxford University
Press, 1977.
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BRANDÃO, Leonardo de Mesquita; ROLNIK, Raquel. A cidade do capital. In: O que é cidade. São Paulo:
Brasiliense, 2004. pag.30-84.
CARLOS, Ana Fani A.. Da “Organização à Produção do Espaço”. In: A (re)produção do espaço urbano. São
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A cidade que liberta, não deixa andar: o caso dos