Competência e desempenho: a alfabetização que o Brasil precisa
“Há homens que lutam um ano
e são muito bons. (...)
Mas há aqueles que lutam a vida toda.
Esses são imprescindíveis.”
Bertold Brecht
Estou voltando de uma cidadezinha do interior brasileiro, idêntica a dezenas de
outras que têm me chamado para refletir sobre assuntos variados: alfabetização
ou letramento, avaliação, leitura, aprendizagem, educação infantil...
Um encanto de cidade tanto no aspecto geográfico como no humano. Assim é o
povo brasileiro: fantástico, acolhedor, tenaz, trabalhador, homens e mulheres de
boa vontade, como queria Jesus em seus apelos à humanidade.
Talvez por conta disso, quanto mais conheço o interior, mais me apaixono pelo
Brasil, mais o respeito, o admiro e ganho forças para estudar com mais vigor.
Essas pessoas de “boa vontade” conduzem minhas reflexões e me auxiliam a
compreender o que ainda urge ser feito. São esses seres humano que explicitam
as necessidades mais prementes e direcionam as pesquisas de muitos estudiosos
preocupados com a questão da educação brasileira.
Esses parágrafos não devem ser lidos apenas como “uma patriótica declaração de
amor” ou como um redundante ato de gratidão. Também o são, sem dúvida, mas
eles foram escritos, sobretudo, para corroborar o óbvio: as questões que
retardam a ampliação da qualidade de ensino são as mesmas em todo o país
porque são as mesmas as condições de vida do povo brasileiro. Dizendo de
outra forma: somos todos determinados pelo mesmo modo de produção. Fomos
moldados na mesma forja social que nos permite um conformismo e nos oferece
um maior direito de alienação.
Assim, às vezes é conveniente assumirmos estoicamente o papel de vítimas.
Vítimas do miserável salário, que nos faz assumir mais do que um emprego!
Vítimas do descaso político, que decreta leis que nos obrigam a ter uma titulação
que precisa ser conquistada nos períodos noturnos ou nos finais de semana!
Vítimas da irresponsabilidade dos pais de nossos alunos, que não lhes dão limites
e deixam por conta da escola a formação que as crianças deveriam trazer de
casa!
Vítimas do desrespeito que a sociedade tem pelo magistério, que está longe de
ser visto como uma profissão de relevância social!
Vítimas do sistema, das políticas públicas, dos pacotes de ensino que chegam “de
cima para baixo”, das autoridades mais próximas e daquelas que ficam no
Ministério Público.
Resumindo: há um infindo rol de razões para que a educação no Brasil não
melhore. Há muitos culpados.
São variáveis externas que determinam que tudo continue de menos ou demais:
governo pagando de menos, profissionais da educação trabalhando demais;
professores com escolaridade de menos, leis exigindo demais; alunos aprendendo
de menos, pais reclamando demais; sistemas capacitando de menos e
professores sendo exigidos demais ...
[M1] Comentário: O elas deixava
ambíguo: as pessoas ou as reflexões? Pelo
contexto acho que é pessoas, mas poderia
haver outra interpretação...
[M2] Comentário: Se a intenção é usar
a prosa poética, será mais conveniente
colocar todas estas reflexões em um
parágrafo para não ficar parecendo versos...
Antes de avançar na questão central desta reflexão, é preciso que se registre que
as questões acima descritas são reais e exercem, sim, um componente forte no
emperramento do avanço na qualidade de ensino. Não há como negá-las e, para
denunciar todas essas e outras questões similares, há um número sem fim de
pesquisas gerando teses e dissertações sobre o assunto.
O que eu gostaria de chamar a atenção é para o grave fato de se utilizar essas
questões como justificativas para a nossa ação em sala de aula não se modificar.
A gravidade do problema reside exatamente no ato de se escamotear a verdade,
travestindo-a com a roupagem que mais nos convém. Ou seja, “as coisas não
melhoram, mas não é por minha culpa. A culpa é dos outros. Eu não estou
fazendo nada para deixar as coisas assim! Só suporto estoicamente as
consequências de ações alheias”.
Intencionalmente retomei o termo “estoico”, pois ele significa “impassibilidade em
face da dor e do infortúnio”. Impassibilidade ...
Não concordamos, somos contra, lastimamos, sofremos, mas ...
Eu pergunto (e quero resposta): o que “estamos fazendo” para que as coisas
melhorem? Não basta responder que estamos cumprindo nossa obrigação, dando
nossa aula, seguindo o planejamento, entregando as notas e os relatórios em dia.
Isso não está dando resultados. Um ano antes de morrer, Mahatma Ghandi disse
que se não estamos contentes com o curso da História não podemos repeti-la,
devemos fazê-la diferente. O que estamos fazendo para que nossos alunos
gostem de ler, que queiram vir à escola com ansiedade, que pesquisem com
prazer, que perguntem com vontade de resolver questões escolares e reais, que
se posicionem frente aos fatos da vida pública e privada, que tenham a
coletividade como o fim de seus atos individuais, que saibam respeitar a vida e
colocar as questões do planeta acima das questões de consumo, que escrevam
expressando suas emoções e desejos, opiniões e juízos de valor, que se
organizem em prol do bem comum, enfim, que ajam como seres humanos?
Temos levado para refletir em sala textos literários de qualidade, de diferentes
autores e tendências, mediando adequadamente sua linguagem figurada, a
intencionalidade do autor, os valores da época de sua produção, situando-os
histórica e filosoficamente?
Em nosso planejamento há programação para a leitura de notícias bem escritas,
elucidação sobre o assunto, consequente levantamento de opiniões e o
estabelecimento de relações com outros textos lidos pelos alunos e experiências
por eles vivenciadas?
Será que temos comentado com os alunos sobre produção cultural de nossos
dias: filmes, exposições, peças teatrais, shows?
Lemos resenhas, textos publicitários de boa qualidade, campanhas de utilidade
pública, a vinheta inteligente de algum programa de TV, na classe?
Que letras de músicas (atuais e antigas) costumamos levar para que nossos
alunos cantem, conheçam e compreendam?
Será que nossos alunos já leem com autonomia textos não-verbais (sem
linguagem escrita), gráficos, charges e tiras de quadrinhos extraídos de jornais e
revistas atuais?
Quando abrimos espaço para trazer à baila a discussão sobre os graves
problemas éticos vivenciados por todos e retratados nos programas televisivos?
Afinal, que tipologia textual estamos estudando em sala de aula no ensino
fundamental?
Com esse elencamento de questões sobre atividades de leitura e oralidade talvez
possamos começar a clarificar que há situações-problemas, no processo ensinoaprendizagem, que só competem a nós, professores, resolvermos.
Houve época em que um discurso recorrente ecoava da seguinte maneira: nós
gostaríamos de fazer tudo isso, mas o “sistema é engessado”, não nos permite
criar, adaptar, relativizar. E isso era uma verdade incontestável. Eu mesma sou
testemunha cabal desse tempo. As provas bimestrais de minha rede municipal de
educação, a pretexto de garantir a unidade e a qualidade de ensino, vinham
lacradas da Secretaria de Educação e, para serem aplicadas com rigor, havia
troca de professoras e de turmas. Mas isso ocorreu há muitas décadas! E já há
muitas outras décadas existe ampla abertura para a ação de cada
estabelecimento e liberdade para cada projeto pedagógico produzido no Brasil. Já
não podemos mais alegar que não fazemos essa ou aquela atividade porque o
sistema não permite.
Destarte, talvez nos reste admitir que quando defendemos a ideia de que a
educação do Brasil não avança é por culpa “das políticas públicas”, por exemplo,
estamos desmobilizando muitos colegas que poderiam estar fazendo a mea culpa
e percebendo um fator preponderante nesse macro processo: o de que também
está faltando algo que depende de nós, da nossa consciência política, da nossa
responsabilidade social, da nossa vontade e da organização coletiva do nosso
grupo de trabalho.
Há anos escrevi a apresentação para um evento educacional, na qual cito
Saramago: “...há venenos tão lentos que só vêm a produzir efeito quando já não
nos lembrávamos de sua origem.”
Faço questão de retomar parte dela para encerrar nosso diálogo, pois em todas as
instâncias de nossas vidas, certamente, essa afirmação de Saramago é recorrente
e, no entanto, convivemos com esse fato como alguns convivem com a ideia de
milhares de pessoas dormirem com fome diariamente: sem culpa!
Todavia, quando percebemos que sua aplicabilidade também se destina à
educação, pode parecer aterrador.
O que hoje vivenciamos socialmente foi determinado pela ação educadora de
tempos idos. E a ação educadora de hoje determinará o modus vivendi de novas e
diversas gerações.
Para que o círculo vicioso se rompa, é urgente que se produzam, se não
antídotos, pelo menos remédios que atuem com a mesma força dos venenos
lentos. E para isso, inexiste outro caminho que não seja a trilha do reunir, ler,
refletir, propor, trocar, comparar, superar e produzir!
Dizendo diferente, só há uma saída honrosa para nós, educadores conscientes:
aprender mais para melhor ensinar!
Competência e desempenho de todos é a alfabetização que o povo brasileiro
merece!
Sandra Bozza
Professora de Metodologia da Língua Portuguesa
www.sandrabozza.com.br
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