XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012
A ESCRITA COMO CONSTRUÇÃO DE SI:
ESCREVENDO O PROINFANTIL EM NOVA IGUAÇU
Isabele Lacerda Queiroz Fernandes
UFRRJ
Resumo
Este trabalho trata-se de um recorte da pesquisa de mestrado em andamento, que busca
analisar os impactos do Proinfantil - Programa de Formação Inicial para Professores em
Exercício na educação infantil, no município de Nova Iguaçu/RJ. O programa faz parte
das políticas definidas no Plano Nacional de Educação (2001) e tem como principal
objetivo qualificar profissionais que já se encontram em exercício na educação infantil,
mas não possuem a formação mínima exigida pela LDBEN 9.394/1996, visto que se
trata de um curso em nível médio com habilitação em magistério. O referido município,
em parceria com estado e União, participou do programa entre os anos de 2009 e 2011,
formando 19 professores que atuavam diretamente com as crianças da educação infantil
da rede sem a formação mínima. Dos diferentes instrumentos de trabalho utilizados pelo
Proinfantil, o memorial de formação é o foco deste recorte, que busca refletir sobre a
escrita docente como construção de memória e identidade. Utiliza-se o conceito de
exotopia (Bakhtin) como norteador da pesquisa onde, numa perspectiva sociocultural,
procura-se analisar o objeto em seu contexto social, buscando uma relação dialógica
com os discursos produzidos. Walter Benjamim (1994, 1987) traz grande contribuição a
partir dos conceitos de narração, memória e experiência. As análises preliminares
apontam a escrita dos memoriais como um lugar de expressão legítima, onde é possível
dar visibilidade aos dizeres de uma classe marcada pela desvalorização, que tem na
escrita a possibilidade de se (re)construir através da narração e reflexão de sua trajetória
pessoal e profissional, sempre revisitada e reinventada.
Palavras-Chave: Proinfantil; Formação docente; Educação infantil; Narração.
Introdução
O Proinfantil é uma política de formação desenvolvida pelo Governo Federal
nos estados brasileiros desde 2005. Visa formar em nível médio, na modalidade normal,
os professores que atuam na educação infantil sem a formação mínima exigida por lei
(LDB 9.394/1996). No município de Nova Iguaçu, o Proinfantil formou 19 Professores
Cursistas (PCs) entre os anos 2009 e 2011, que agora possuem habilitação em
magistério para a educação infantil. Ao longo do curso, os PCs realizaram práticas
pedagógicas mensais e construíram um portfólio constando seus planejamentos de
atividades, registros da prática e avaliações das mesmas, além do memorial de
formação. Neste último, os cursistas registraram, de forma livre, suas percepções acerca
da formação. Este recorte busca analisar o processo da escrita do professor como
construção de memória, bem como construção de sua identidade profissional, tendo
como norteador o conceito de narração em Walter Benjamin.
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Sobre o ponto de vista teórico-metodológico, numa perspectiva sociocultural,
procura-se analisar o objeto de pesquisa em seu contexto social, assumindo, como
pesquisadora, um lugar exotópico. “Exotopia significa desdobramento de olhares a
partir de um lugar exterior. Esse lugar exterior permite, segundo Bakhtin, que se veja do
sujeito algo que o próprio sujeito nunca pode ver” (AMORIM, 2007, p. 14). O desafio é
captar o olhar do outro, colocar-me no lugar do outro, através de seus discursos, e
assumir novamente meu lugar exterior, configurando o que vejo do que ele se vê
(AMORIM, 2007). Este exercício constante de ir e vir auxiliará na compreensão das
concepções e práticas dos professores cursistas de Nova Iguaçu, buscando sempre uma
relação dialógica com os discursos produzidos.
Desta forma, a pesquisa pretende contribuir para a reflexão sobre a formação de
professores e a produção da escrita docente.
O Proinfantil e Nova Iguaçu
Após a promulgação da LDBEN em 1996, esta vem sendo regulamentada por
várias diretrizes, resoluções e pareceres que dizem respeito aos aspectos normativos que
devem ser considerados pelos sistemas educacionais ao incluírem a educação infantil ao
seu sistema, e à formação inicial dos profissionais que atuam com as crianças pequenas.
Observa-se grande preocupação quanto ao atendimento de qualidade no que diz respeito
à formação dos professores para este segmento. O Plano Nacional de Educação 20012010 trouxe um capítulo sobre a educação infantil, propondo em suas diretrizes, metas e
estratégias de formação e valorização dos profissionais que atuam nesta área. Da mesma
forma, podemos observar esta preocupação nos Parâmetros Nacionais de Qualidade
para a Educação Infantil (BRASIL, 2006).
Das políticas públicas recentes voltadas para a qualificação dos docentes da
educação infantil no Brasil, o Proinfantil, apesar de ser um programa emergencial, vem
sendo aplicado em alguns estados do país desde 2005. O Proinfantil faz parte das
políticas definidas no Plano Nacional de Educação (2001) e tem como principal
objetivo qualificar profissionais que já se encontram em exercício na educação infantil,
mas não possuem a formação adequada, visto que se trata de um curso em nível médio
com habilitação em magistério. O programa atende profissionais de educação infantil
que atuam na rede pública e na rede privada sem fins lucrativos (filantrópicas,
comunitárias ou confessionais, conveniadas ou não). O curso acontece na modalidade
semi-presencial, e as atividades presenciais ficam concentradas nos períodos de férias
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escolares (304 horas), nos Encontros Quinzenais aos sábados (256 horas), e nas fases
intermediárias (80 horas). As atividades a distância são realizadas pelos professores
cursistas com o apoio dos livros e cadernos de atividades. Os professores cursistas
também realizam práticas pedagógicas mensais nas instituições em que atuam. Ao total
o curso possui 3.392 horas, distribuídas em 4 módulos com duração de seis meses, ao
todo, o curso tem a duração de dois anos.
O currículo é composto por disciplinas básicas do Ensino Médio (Linguagens e
Códigos, Matemática e Lógica, Vida e Natureza e Língua Estrangeira) e disciplinas
pedagógicas (Fundamentos da Educação e Organização do Trabalho Pedagógico). A
avaliação é realizada através dos cadernos de aprendizagem, portfólio (planejamento
diário, memorial e registro de atividades), observações das práticas pedagógicas, provas
bimestrais e projeto de estudos. A média para a aprovação é 6,0 em cada instrumento, e
há formas de recuperação caso a pontuação mínima não seja alcançada.
O Proinfantil é uma parceria entre municípios, estados e união. Neste contexto, a
prefeitura do município de Nova Iguaçu/RJ aderiu ao programa, que funcionou de julho
de 2009 até junho de 2011, tendo 19 professores cursistas formados.
O processo de seleção foi aberto para todos os profissionais que se enquadravam
no perfil e atuavam junto às crianças pequenas nas Escolas Municipais de Educação
infantil (EMEIs) e nas creches conveniadas ao município. Vale ressaltar que os
professores cursistas das EMEIs de Nova Iguaçu são concursados para o cargo de
Agente de Desenvolvimento Infantil (ADI), e os das creches conveniadas são Monitores
de Creches. Dentre as metas definidas pelo MEC na Política Nacional de Educação
infantil (2006), está:
colocar em execução programa de formação em serviço, em cada município
ou por grupos de município, preferencialmente em articulação com
instituições de ensino superior, para a atualização permanente e o
aprofundamento dos conhecimentos dos profissionais que atuam na educação
infantil, bem como para a formação dos funcionários não-docentes (p. 22).
Desta forma, o Proinfantil atende esta demanda, uma vez que o programa “valese dos benefícios da formação em serviço, que torna possível a reflexão teórica sobre a
prática do professor cursista, considerando as características, as necessidades, os limites
e as facilidades apresentados pela instituição em que atua” (MEC, 2005, p. 15).
Os PCs de Nova Iguaçu possuem uma vasta experiência com as crianças das
unidades em que trabalham (alguns até mais de 15 anos), porém só através da
participação no Proinfantil tiveram a possibilidade de entrar em contato com o
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conhecimento teórico. Podemos perceber nos memoriais produzidos pelos PCs que o
Proinfantil tem aberto a possibilidade de se repensar as práticas sob o novo olhar
teórico. O que antes era feito por um conhecimento oriundo da prática, agora pauta-se,
fundamenta-se, e não raro modifica-se, em nome de um novo saber. É neste discurso,
revelado nos memoriais desta formação, que nos debruçamos para pensar a escrita como
processo de construção de si e do mundo.
Deixando rastros, construindo caminhos: a escrita e Benjamim
Bertold Brecht, no poema “Apague as pegadas” propõe uma reflexão em torno
do desafio contemporâneo em deixar suas marcas. “Quem não escreveu sua assinatura,
quem não deixou retrato / Quem não estava presente, quem nada falou / Como poderão
apanhá-lo? / Apague as pegadas!” Pegadas, marcas: rastros.
Consideramos um
desafio, pois, em um contexto onde a experiência encontra-se cada vez mais esvaziada e
a memória perdida, em função de um tempo que não corre macio, deixar rastros na
história torna-se deveras trabalhoso, sobretudo porque é preciso escapar à mecanização
das experiências pessoais e coletivas, fazendo emanar o extrassensível nos modos de ser
e de se perceber no mundo. Afinal, para quê se comprometer? Para quê lançar ao futuro
os fios da história? Que história?
Na contramão do poema, que é uma crítica que o poeta marxista faz ao seu
tempo (ainda nosso tempo), é urgente recuperar a história, criar memória, deixar rastros,
pegadas. Para tanto, trazemos para o nosso diálogo as ideias do filósofo Walter
Benjamin, com suas reflexões que nos auxiliam a pensar experiência, narração e
memória. Este autor nos provoca à reflexão crítica sobre a produção da memória escrita
na formação de professores.
Fica evidente a importância dada ao registro escrito, que está presente nas
diversas atividades que o Proinfantil propõe. Neste trabalho daremos especial atenção
ao memorial de formação, instrumento utilizado para que os professores cursistas
relatem suas experiências de formação e de vida no decorrer do curso. Num contexto
histórico onde prevalece a história dos “vencedores”, Benjamin (1994) nos convida a
ouvir o outro lado, as histórias silenciadas, excluídas dos documentos oficiais
(MURICY, 1999). Daí a importância de ouvir essas vozes. Para tanto, considero
essencial trazer ao texto a abordagem teórica que norteia suas ideias acerca da
linguagem e escrita, para em seguida, tecer a relação com a escrita dos professores em
formação.
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Narração: memória e experiência contando histórias
Benjamin (1994), em seus textos Experiência e pobreza (1933), O narrador
(1936) e Sobre o conceito da história (1940) já apontava a urgência de se deixar rastros
na história. Para o autor, o ato de narrar, de contar histórias, de intercambiar as
experiências, está em vias de extinção.
O texto Experiência e Pobreza inicia-se com a narração de uma parábola na qual
um velho, no momento de sua morte, revela aos filhos a existência de um tesouro
enterrado em seus vinhedos. A princípio os filhos cavam a terra em busca do tesouro,
mas após um tempo descobrem que a própria experiência na vinha, agora produtiva, era
o tesouro. Com esta ilustração Benjamin (1994) mostra o valor da experiência, contida
na narração e tradicionalmente transmitida de geração em geração. Nota-se que esta
concepção de experiência ultrapassa a ideia de vivência individual, que se encerra na
morte. Ao contrário, trata-se de “algo maior que a simples existência individual do pai,
um pobre vinhateiro, algo, porém, que é transmitido por ele, algo, portanto, que
transcende a vida e a morte particulares, mas nelas se diz algo que pertence a uma
memória viva” (GAGNEBIN, 2004).
Deste modo, a experiência além de estar
atravessada pela linguagem também é relacionada à memória e à arte de narrar.
Entretanto, o mesmo texto aponta para o que o autor chama de barbárie: a pobreza de
experiências comunicáveis, decorrente da 1ª Guerra mundial, visto que esta não
apresenta qualquer sentido humano, mas apenas econômico, trazendo o silêncio como
resposta.
Na época, já se podia notar que os combatentes tinham voltado silenciosos do
campo de batalha. Mais pobres em experiências comunicáveis, e não mais
ricos. Os livros de guerra que inundaram o mercado nos dez anos seguintes
não continha experiências transmissíveis de boca em boca. Não, o fenômeno
não é estranho. Porque nunca houve experiências mais radicalmente
desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a
experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela fome, a
experiência moral pelos governantes. (BENJAMIN, 1994, p. 115)
O declínio da experiência, “no sentido forte e substancial do termo, que repousa
sobre a possibilidade de uma tradição compartilhada por uma comunidade humana,
tradição retomada e transformada, em cada geração” (GAGNEBIN, 2004), é
intensificado com o aumento das forças produtivas a serviço do capital. A modernidade
nos convida a facilmente apagar os rastros neste mundo de vidros e aços proposto por
Scheerbart e Bauhaus (BENJAMIN, 1994). Seguir em frente, sem olhar para trás ou
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para os lados, começar do “zero” é a proposta do mundo moderno, ocultando
experiências antigas que poderiam fazer com que compreendêssemos melhor o nosso
tempo, transformando nossa história e deixando nossos rastros através da nossa própria
experiência.
Se a experiência está se extinguindo, logo a experiência da narrativa também
segue o mesmo caminho. Benjamin (1994) traz esta questão no ensaio O narrador,
através da análise da obra de Nikolai Leskov. Para o autor, Leskov foi o último a
dominar esta arte, não mais presente na modernidade.
Benjamin considera Leskov um extemporâneo, alguém que se encontra
distante de seu tempo. Ao apresentá-lo como narrador, caracteriza-o como
produto de um outro tempo que não o seu. Sua narração comporta elementos
que não se apresentam ao seu cotidiano. A experiência que adensa a narração
já não se encontra por isso mesmo disponível na época moderna. Isso explica
porque o filósofo afirma que o narrador “não está de fato presente entre nós,
em sua atualidade viva” (PEREIRA, 2006)
Em O narrador Benjamin aponta alguns aspectos imprescindíveis à verdadeira
narrativa. Para o filósofo das ruínas a narração possui uma dimensão utilitária, que pode
consistir num “ensinamento moral, seja uma sugestão prática, seja num provérbio ou
numa norma de vida – de qualquer maneira o narrador é um homem que sabe dar
conselhos” (1994, p. 200), para estes e muitos outros casos, “pois pode recorrer ao
acervo de toda uma vida (uma vida que não inclui apenas a própria experiência, mas em
grande parte a experiência alheia. O narrador assimila à sua substância mais íntima
aquilo que sabe por ouvir dizer” (1994, p.221). O conselho, neste sentido, é a sabedoria
– o lado épico da verdade – que também está em extinção.
Como as experiências têm deixado de ser comunicáveis, ninguém mais estaria
disposto a dar conselhos, estes provenientes da sabedoria contida na experiência. Outro
aspecto importante é que, no mundo moderno, os jovens também não estão dispostos a
ouvirem os conselhos dos mais velhos. A consequência desses silêncios é justamente a
morte da tradição da narração oral passada de geração para geração.
Se o sono é o ponto mais alto da distensão física, o tédio é o ponto mais alto
da distensão psíquica. O tédio é o pássaro de sonho que choca os ovos da
experiência. O menor sussurro nas folhagens o assusta. Seus ninhos – as
atividades associadas ao tédio – já se extinguiram na cidade e estão em vias
de extinção no campo. Com isso desaparece o dom de ouvir, e desaparece a
comunidade dos ouvintes. Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de
novo, e ela se perde quando as histórias não são mais conservadas.
(BENJAMIN, 1994, p. 204-205)
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Benjamin considera que um dos pontos fundamentais para a decadência da
narrativa é o surgimento do romance e a consequente invenção da imprensa, cujo objeto
é a informação. Se o romance possui um inevitável fim em si mesmo, a narração possui
uma dimensão muito mais ampla e de infinitas possibilidades, visto que o que se narra é
a própria experiência do narrador ou de outros, agregando-se a estas outras memórias.
Na narrativa, o narrador imprime suas marcas, como a mão do oleiro na argila do vaso,
e essas marcas, impressas através da experiência, transpassam as gerações. Já a
informação, produto do mundo moderno, “só tem valor no momento que é nova” (1994,
p. 204).
Ao ressaltar que o narrador é um cronista, Benjamin o difere do historiador
tradicional. A crônica narrada não precisa de explicações, como a história, pois ela se
revela por si só. Narrador e ouvinte tecem uma relação cujo interesse comum é
conservar o que foi narrado, por isso tem na memória e na reminiscência as principais
faculdades épicas da narração. Nas teses Sobre o Conceito de História, Benjamin traz à
discussão aspectos fundamentais que diferenciam o narrador cronista do historiador.
Entre as principais críticas que o autor faz ao historicismo ortodoxo, destaco três: a
ilusão à ideia de progresso, visto que a “ideia de um progresso da humanidade na
história é inseparável da ideia de sua marcha no interior de um tempo vazio e
homogêneo” (1994, p. 229); a naturalização do estado de exceção, que se torna regra ao
oprimir as histórias dos excluídos; e a empatia com os vencedores, que beneficia os
dominadores, herdeiros daqueles (1994, p. 225). Partindo do pressuposto marxista da
luta de classes, Benjamin propõe um diálogo entre o materialismo histórico e a teologia,
que têm como função escovar a história a contrapelo, ou seja, narrar a história na
perspectiva dos oprimidos que não tiveram seus nomes registrados nos livros oficiais.
Cabe ao materialismo histórico escavar essa história reconstruindo todos os
cacos que foram deixados para trás, os não ditos, dar atenção aos “pequenos”
acontecimentos, à história que fora construída sob os ombros dos excluídos.
O cronista que narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e
pequenos, leva em conta a verdade do que nada que um dia aconteceu pode
ser considerado perdido para a história. Sem dúvida, somente a humanidade
redimida poderá apropriar-se totalmente do seu passado. Isso quer dizer:
somente para a humanidade redimida o passado é citável, em cada um dos
seus momentos. (Benjamim, 1994, p. 223)
Redimir-se com este passado significa conhecê-lo além do fato em si, “significa
apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de perigo”
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(1994, p. 224). O perigo é o conformismo que a modernidade nos impõe através dos
rastros que deixa à humanidade, ou que apaga, onde não nos apropriamos do nosso
passado. O perigo é a empatia com os vencedores, que faz com que não reconheçamos
as histórias não ditas oficialmente. O perigo é a perda da capacidade de se transformar a
história, presente, passado e futuro. O perigo é o silêncio. O perigo é continuar
apagando os rastros.
Walter Benjamin propõe um movimento de resistência em que a possibilidade
do encontro secreto entre as gerações se dê pela linguagem, pela memória só possível
através da verdadeira experiência que ultrapassa as barreiras da morte, pela escrita da
história onde se revele a verdade.
O desafio da escrita: deixar rastros no papel
Podemos considerar a narração escrita uma forma de se deixar rastros na
história. Benjamin (1994) considera que “entre as narrativas escritas, as melhores são
as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores
anônimos” (p. 198). Contar sua história, narrar sua experiência, escrever, tem sido a
proposta de alguns cursos de formação de professores. No Proinfantil, a escrita aparece
como elemento fundamental na formação, abarcando vários momentos do curso. Os
memoriais produzidos pelos professores cursistas de Nova Iguaçu, nos permite pensar
como esta experiência de formação tem sido narrada através da escrita, visto que é um
dos momentos de maior liberdade de expressão, em relação às outras atividades
propostas no curso.
Foi possível perceber ao longo da formação, a grande dificuldade que os
cursistas tinham em se colocar, em narrar suas experiências, alegando dificuldades na
escrita. De fato, escrever não é nada fácil, mesmo que a narração se aproxime da
oralidade. Em um dos fragmentos de Rua de Mão Única (1987) Benjamin fala sobre o
bom escritor:
O bom escritor não diz mais do que pensa. E isso é muito importante. É
sabido que o dizer não é apenas a expressão do pensamento, mas também a
sua realização. Do mesmo modo, o caminhar não é apenas a expressão do
desejo de alcançar sua meta, mas também a sua realização. Mas a natureza da
realização – faça justa à sua meta ou se perca, luxuriante e imprecisa no
desejo – depende do treinamento de quem está a caminho. (1987, p. 268)
Neste trecho podemos considerar que o domínio da escrita se dá na própria
escrita, portanto é preciso um início, é preciso coragem, é preciso treinamento. Mas é
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preciso, sobretudo neste caso, se apropriar da escrita para dizer o que se pensa, para
expressar e realizar o pensamento, para resgatar suas experiências passadas e plantar, no
presente, os rastros que serão deixados para o futuro. Vejo nesses memoriais uma
oportunidade de apropriação da escrita e, mais que isso, um lugar onde é possível
compartilhar experiências, algo tão caro nos dias de hoje. Sobretudo tratando-se de um
grupo de profissionais (professores de educação infantil e auxiliares de creche) cujo
histórico é marcado pela desvalorização. Neste sentido, pensamos ser essencial que, em
um curso de formação inicial para professores de educação infantil, estes tenham a
possibilidade de narrar sua experiência.
Reconhecer a própria experiência como algo de valor que tem importância, é
um dos muitos desafios que a escrita de memoriais nos traz. Para os
profissionais da Educação infantil, em especial – cuja história é marcada por
um sentimento de menos valorização comparativamente aos demais – a
possibilidade de dar relevo a sua trajetória, a sua voz aos seus saberes é
tarefa, além de tudo, urgente e necessária. (GUEDES, 2007, p. 100)
Obtendo este espaço de “fala oficial”, penso ser importante observar como este
lugar tem sido utilizado. Ao serviço de quem? Dizem os professores cursistas o que
pensam? Em que medida narram suas experiências e deixam suas marcas? Recorrem ao
passado para ressignificar suas experiências no presente? Essas questões me levaram a
voltar ao acervo dos memoriais dos professores cursistas de Nova Iguaçu e tentar buscar
em suas linhas escritas alguns indícios que nos levem a refletir sobre este tema. Neste
sentido, trago alguns trechos recolhidos desta coleção. Vale ressaltar que os nomes
foram modificados em função de preservar a identidade das professoras cursistas.
A escrita aparece em alguns memoriais, ora como ponto positivo, ora como
negativo.
No início eu pensei que não ia dar conta de tanta coisa pra escrever! Mas
aos poucos fui percebendo o quanto são importantes essas atividades, pois a
gente consegue ver nossa trajetória no curso e na própria maneira de
escrever. É difícil porque a gente não tem muito tempo, mas é possível e até
prazeroso. (Daniele, março de 2010).
O Proinfantil fez isso comigo: estimulou-me, me ajudou a conhecer a mim
mesma e as minhas capacidades, ajudou-me a ultrapassar meus limites.
Agora me encontro no meio do curso, um pouco cansada e sem vontade de
continuar. O motivo é ter que escrever vários relatórios sobre a mesma
coisa. (Silvia, de abril de 2010).
Nos trechos acima, enquanto a primeira professora cursista encontra um sentido
na escrita, na possibilidade de narrar sua trajetória e poder a ela se voltar, a segunda
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professora vê a escrita como algo enfadonho e desestimulante, talvez por ainda não
compreender sua história e sua prática como algo importante.
No memorial do mês de agosto de 2010, devido à conversa sobre o trabalho com
crianças pequenas no cotidiano das creches, o grupo combinou de produzir textos sobre
a experiência de se trabalhar com essas crianças. Nesses memoriais, foi muito citada a
experiência de ser mãe como norteadora da prática profissional inicial. Ao olhar para
trás e lembrarem-se de suas experiências maternas, as professoras tiveram a
possibilidade de relacionar esta experiência passada com a formação da qual estavam
participando e assim ressignificar sua prática.
É interessante, pois como mãe eu acreditava que sabia quase tudo sobre a
educação de crianças, por isso achei que seria muito tranquilo trabalhar
numa creche. Mas pude observar logo no início que não seria tão fácil, pois
as crianças não eram todas João, Marcos e Dandara (meus filhos). Ali
estavam Pedros, Fábios, Gabrielas e muitos outros. Percebi então que eu
precisaria de muito mais que a experiência materna, eu precisava também de
conhecimento teórico, algo que me levasse além do senso comum. (Maria,
agosto de 2010).
Eu pensei: se eu tenho filhas, será fácil cuidar de crianças! Mas com o
passar do tempo fui dando conta da responsabilidade do meu papel com
aquelas crianças. Observei que meu papel vai muito além de cuidar, ou
melhor, nos meus cuidados a educação também deveria estar embutida.
(Vânia, agosto de 2010).
Em muitos momentos da formação os professores cursistas compararam as
transformações na sua trajetória profissional. Através da experiência vivida na formação
conseguem narrar as mudanças que foram sofrendo suas práticas.
Revendo meu modo de pensar e agir, hoje eu vejo meu crescimento pessoal e
profissional. Antes do Proinfantil eu entrava em pânico quando as crianças
brigavam por um brinquedo ou quando uma criança batia ou mordia a
outra. Hoje eu já sei lidar com situações deste tipo através do diálogo e com
tranquilidade, tornando mais fácil a minha vida profissional e a das
crianças. (Isabela, setembro, 2010)
Em outros momentos, o memorial foi utilizado como espaço de denúncia,
indignação e desabafo.
O Proinfantil tem nos ensinado que criança não é um adulto em miniatura, e
por isso é necessário tratá-la de maneira diferenciada, buscando sempre
estimular seu desenvolvimento nas diversas áreas do conhecimento.
Infelizmente o que eu tenho visto é uma total falta de sensibilidade. A
maioria dos professores não se preocupam em fazer um planejamento e
inventam qualquer atividade na hora. (...) trabalhos mimeografados com
áreas limitadas e pouca criatividade. Professoras que conseguem trabalhar o
tempo todo sentadas, com turmas de 2 e 3 anos. São muitos absurdos!
(Maria, novembro de 2010)
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A despeito do papel dos memoriais do Proinfantil, Guedes (2007) afirma que sua
função é a de oportunizar ao professor cursista “referenciar-se no conhecimento que
possui, cotejá-lo/compará-lo com o novo que se apresenta, buscando construir um
sentido próprio para seus estudos e trajetórias” (p. 93). Entretanto, a experiência da
escrita, a experiência da narração cuja voz é ouvida por outros, amplia as possibilidades
de se dizer. Retomar a escrita como narrativa importante na formação de professores é
um dos caminhos possíveis para ressuscitar a capacidade de narração; é buscar um
“habitar com vestígios”, deixando no caminho os rastros de uma trajetória que pode
sempre ser revisitada.
Considerações finais
Longe de concluir, penso que as possibilidades de se pensar experiência,
memória e escrita no Proinfantil não se esgotam neste trabalho e há ainda muito que se
escavar. Contudo, podemos observar que a possibilidade de narrar sua experiência de
formação faz com que professores se reencontrem com experiências anteriores
articulando sua escrita (narração) e a transformação que se opera no sujeito diante desse
resgate, que o humaniza.
Conhecer com maior profundidade a obra de Walter Benjamin pode nos auxiliar
na compreensão do mundo de hoje em seus aspectos cultural, político e social. Se
movimentar para cima e para baixo nos degraus da experiência, reavivar a memória
passada, tecer o presente olhando para o ontem, para o hoje e para o amanhã é um
exercício fundamental para que nossos rastros não sejam apagados.
Referências Bibliográficas
AMORIN, Marília. A contribuição de Mikhail Bakhtin: a tripla articulação ética,
estética, epistemológica. In Freitas, M. T. A; Jobim e Souza, S e Kramer, S. (orgs)
Ciências Humanas e Pesquisa- Leituras de Mikhail Bakhtin.São Paulo: Cortez,
2007.
______. Lei no 10.172, 09 de janeiro de 2001. Aprova o Plano Nacional de Educação
(PNE). Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF,
2001.
Disponível
http://www.inep.gov.br/download/cibec/2001/titulos_avulsos/miolo_PNE.pdf
em 10 jan. 2011.
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Livro 2 - p.004921
em:
Acesso
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BENJAMIN, Walter. Experiência e Pobreza. In: Benjamin, Walter. Magia e Técnica,
Arte e Política. Obras Escolhidas I. São Paulo: Brasiliense, 1994.
___. O Narrador. Considerações sobre a obra de Nicolai Leskov. In: ___. Magia e
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Junqueira&Marin Editores
Livro 2 - p.004922
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A ESCRITA COMO CONSTRUÇÃO DE SI: ESCREVENDO