JAMES
JOYCE
E
A
ARTE
COMO
REDENÇÃO
Carlos
João
Correia
1.
Num
filme
do
realizador
japonês,
Nagisha
Oshima
(Merry
Christmas
Mr.Lawrence),
conta‐se
a
seguinte
história:
Jack
Cellier
um
jovem
inglês,
esbelto,
louro,
de
olhos
azuis,
pleno
de
energia
física,
tinha
um
irmão
mais
novo,
criança
frágil
e
portadora
de
um
defeito
físico
(corcunda).
Mas
possuía
um
dom
prodigioso:
cantava
maravilhosamente!
O
irmão
mais
velho
sempre
o
protegeu,
batendo‐se
mesmo
fisicamente
com
outros
jovens!
Um
dia,
o
mais
novo,
é
admitido
no
colégio
interno
do
irmão
e
é
submetido
às
1
praxes
académicas
(uma
delas
era
despir‐se
em
frente
dos
outros
revelando,
neste
caso,
a
terrível
corcunda).
O
mais
velho
fica
perante
um
dilema:
ou
protege
o
seu
irmão
(mas
está
a
abrir
uma
excepção)
ou
não
faz
nada
(e
o
seu
irmão
irá
sofrer
horrivelmente)!
Toma
a
decisão
de
não
fazer
nada,
não
exigindo
um
tratamento
de
excepção
para
o
seu
irmão
(oportunidade
que
lhe
é
oferecida).
Depois
do
“ritual
de
iniciação”,
o
irmão
mais
novo
ficou
de
tal
modo
traumatizado
com
a
experiência
que
se
recusou
cantar
para
sempre!
O
mais
velho,
a
partir
daí,
decide
expiar
a
sua
culpa.
Torna‐se
um
militar,
dotado
de
uma
coragem
louca
e
insana,
defendendo
sempre
os
seus
companheiros
da
crueldade,
o
que
o
levou,
no
final,
como
castigo,
a
ficar
literalmente
enterrado
no
solo
sob
o
sol
abrasador
até
morrer,
enquanto
os
amigos
lhe
cantavam
um
dos
mais
belos
salmos
bíblicos
e
ele
interiormente
escutava
as
canções
do
irmão.
No
momento
da
morte,
uma
borboleta
branca
pousa
sobre
aqueles
cabelos
louros...Morte
por
expiação!
Com
as
devidas
distâncias,
esta
é
também,
na
nossa
interpretação,
a
história
do
Ulisses
do
Joyce,
o
desejo
de
morte
por
expiação.
Mas,
mostra‐nos
‐
o
que
é
também
tocante
e
fabuloso
‐
como
é
possível,
perante
uma
premissa
idêntica,
não
acabar
numa
situação
tão
extrema!
Este
ponto
de
partida
será
pois
esta
a
minha
proposta
global
de
leitura
da
obra
de
Joyce.
2.
Quando
um
dia
James
Joyce,
em
diálogo
com
o
seu
grande
amigo,
o
pintor
Frank
Budgen,
se
questionou
sobre
qual
seria
o
símbolo
mais
perfeito
da
humanidade
não
hesitou
em
identificá‐lo
com
uma
personagem
da
mitologia
clássica,
a
figura
lendária
2
dos
poemas
homéricos,
Ulisses.
Segundo
Joyce,
as
outras
grandes
figuras
da
literatura
universal,
como
Fausto
(enclausurado
no
seu
saber
e
levado
a
estabelecer
um
pacto
com
Mefistófeles
para
poder
sentir
o
que
era
a
vida),
Hamlet
(preso
aos
fantasmas
do
seu
pai
e
ao
seu
desejo
de
vingança),
Dom
Quixote
(combatendo
moinhos
de
vento,
julgando‐se
incarnação
de
algum
cavaleiro
do
Graal),
são
sempre
figuras
mais
ou
menos
fantasmagóricas,
presas
nos
seus
próprios
pesadelos.
Mas
se
olharmos
para
Ulisses
(versão
latina
de
Odisseu,
o
herói
da
Odisseia)
o
que
é
que
encontramos?
O
mais
comum
dos
homens
que
vai
vencendo
através
da
sua
inteligência
e
astúcia,
mas
também
da
sua
coragem,
as
dificuldades
que
o
destino
lhe
coloca.
Ulisses
é
o
bom
filho
de
Laertes
–
de
tal
forma
que
o
seu
pai
entra
em
profundo
desespero
durante
a
ausência
de
Ulisses
e
rejuvenesce
miraculosamente
quando
o
vê
de
retorno
a
casa;
Ulisses
é
o
bom
pai
de
Telémaco
–
não
só
a
pretensa
loucura
de
Ulisses,
como
forma
de
evitar
ter
de
combater
os
troianos,
é
desvendada
para
não
fazer
mal
ao
seu
filho,
como
este
último
não
descansa
enquanto
não
encontra
o
seu
pai
perdido;
Ulisses
é
o
amante
de
Calipso,
essa
ninfa
que,
ao
recolher
o
herói,
após
um
naufrágio,
fica
de
tal
forma
apaixonada
por
ele
que
o
retém
durante
uma
dezena
de
anos
junto
de
si,
só
permitindo
a
partida
do
herói
por
decisão
dos
deuses;
Ulisses
é
o
companheiro
de
armas
dos
Aqueus
(apesar
de
abominar
a
violência
e
preferir
a
diplomacia,
apesar
de
considerar
a
expedição
vingativa
a
Tróia
uma
estupidez;
mas
é
ele
que
inventa
o
cavalo
de
Tróia,
o
único
estratagema
astucioso
para
vencer
aquela
cidade);
3
Ulisses
é
aquele
que
apenas
sonha
retornar
para
junto
dos
seus,
da
sua
fidelíssima
Penélope,
do
seu
velho
cão
Argo,
do
seu
filho
e
da
sua
terra,
Ítaca.
Tal
admiração
de
Joyce
por
este
símbolo
clássico
da
humanidade
integral
condu‐lo
naturalmente
a
escolhê‐lo
como
personagem
central
do
seu
maior
romance,
precisamente
o
Ulisses
de
1922,
considerado
por
muitos
como
a
principal
obra
literária
do
século
XX.
E
na
escolha
do
nome
do
herói
como
título
da
sua
obra,
Joyce
indica‐nos
claramente
um
dos
múltiplos
sentidos
do
seu
livro:
em
face
da
fragmentação
e
da
desolação
do
mundo
moderno,
como
restaurar
a
humanidade
perdida?
3.
Só
que,
em
vez
de
um
relato
epopeico
das
aventuras
e
desventuras
de
Ulisses
em
busca
de
Ítaca,
confrontamo‐nos
com
a
narrativa
de
um
simples
judeu
de
origem
húngara,
que
vive
na
cidade
de
Dublin,
na
Irlanda,
de
nome
Leopold
Bloom
e
cujas
expedições
se
resumem
a
único
dia,
o
dia
16
de
Junho
de
1904
(conhecido
a
partir
daí
pelos
joyceanos
como
o
“Bloomsday”)
‐
melhor
dizendo,
18
horas
que
medeiam
o
seu
pequeno‐almoço
com
a
sua
mulher,
Molly
Bloom,
até
ao
retorno
a
casa
na
noite
desse
mesmo
dia.
E
os
acontecimentos
que
presencia
são
os
mais
banais
e
comuns
da
vida
do
mais
comum
dos
habitantes
de
Dublin:
as
conversas
nos
pubs,
as
discussões
políticas,
a
leitura
dos
jornais,
o
funeral
de
um
conhecido,
o
nascimento
numa
maternidade,
os
passeios
na
praia,
a
ida
a
um
famoso
bordel
da
cidade.
Nada
de
grandioso,
nada
de
sublime
–
bem
pelo
contrário:
por
vezes,
deparamos
com
relatos
bem
sórdidos
que
podem
ir
desde
a
descrição
de
um
vomitado
até
aos
problemas
de
menstruação
da
sua
“Penélope”,
Molly
Bloom
‐
o
que
explica
a
proibição
do
romance
durante
vários
anos
por
obscenidade.
O
“Ulisses”
de
Joyce
é
o
“anti‐herói”,
por
excelência,
da
literatura
contemporânea.
3.1
Porquê
esta
insistência
de
Joyce
no
relato
que,
por
vezes,
toca
as
raias
da
descrição
pormenorizada,
meticulosa
do
que
há
de
mais
vulgar
e,
por
vezes,
sórdido
da
vida?
Por
exemplo,
a
exposição
meticulosa
da
cidade
de
Dublin
é,
de
tal
modo,
precisa
que
Joyce
‐
ele
que
viveu
a
maior
parte
da
sua
vida
fora
da
Irlanda,
como
exilado
voluntário,
mas
que
só
escreveu
sobre
Irlanda
‐
se
vangloriava
do
facto
de
que,
se
algum
dia
a
cidade
desaparecesse
do
mapa,
ela
poderia
ser
reconstruída
graças
apenas
aos
seus
romances
(embora
–
é
bom
sublinhar
‐
que
os
pormenores
arquitectónicos
são
mínimos...).
Com
efeito,
apesar
de
Joyce
admirar
profundamente
Zola
(o
romancista
naturalista
francês,
autor
do
Germinal)
não
o
move
nenhum
imperativo
descritivo
de
retratar
o
mundo
que
nos
envolve,
mas
antes
o
mundo
como
ele
nos
surge
na
nossa
consciência,
na
nossa
mente.
Compreender
o
Ulisses
de
Joyce
é
decifrar
o
profundo
sentido
simbólico
da
narrativa
e
das
suas
personagens.
3.2
Porquê,
então,
a
insistência
no
comum?
Joyce
estava
convencido
que
a
arte
tinha
uma
função
redentora
num
mundo
fragmentado
e
claramente
à
deriva.
Existe
até
um
paradoxo
divertido
assinalado
por
Malcolm
Bradbury
(The
Modern
World):
os
escritores
que
nutrem
uma
especial
simpatia
pelo
mundo
moderno
(como
é
o
caso
do
conhecido
H.G.Wells
ou
Charles
Snow,
o
autor
do
magnífico
romance
Strangers
and
Brothers,
também
famoso
pelo
seu
ensaio
filosófico
2
Culturas)
têm
habitualmente
um
estilo
de
escrita
quase
positivista,
em
que
a
narrativa
escorre
sem
grandes
problemas.
Pelo
contrário,
aqueles
que
são
considerados
"modernistas"
como
T.S.Eliot,
Proust,
Virginia
4
Woolf
são
profundamente
cépticos
em
relação
ao
mundo
em
que
vivem,
e
a
escrita
torna‐se
complexa
e
difícil
para
o
comum
dos
leitores.
3.3
Para
Joyce,
a
narrativa
literária
e
a
arte
em
geral
tinham
o
poder
de
proporcionar
aquilo
que
o
autor
designava
por
“epifania”
(cf.
textos
1
e
2).
O
que
significa
uma
epifania?
É
um
termo
com
um
claro
sentido
religioso.
Joyce
teve
uma
educação
religiosa
numa
escola
jesuíta
(a
sua
mãe
era
profundamente
católica);
como
ele,
aliás,
o
descreve
no
seu
romance
autobiográfico,
Retrato
do
Artista
quando
Jovem
(1916),
chegou
mesmo
a
ser
convidado
para
ser
sacerdote
–
só
que
romperá
com
essa
visão
religiosa
do
mundo.
Ruptura
que,
de
algum
modo,
é
simbolizada
no
seu
exílio
em
relação
à
Irlanda;
com
efeito,
o
Ulisses
foi
redigido
entre
1914
e
1921,
nas
cidades
de
Trieste,
de
Zurique
e
de
Paris;
a
sua
relação
com
a
Irlanda
foi
sempre
de
uma
profunda
ambivalência;
desde
acusá‐la
de
paralisia
e
de
charlatanice
até
ao
amor
que
se
desprende
pelo
facto
de
apenas
ter
escrito
sobre
a
sua
pátria).
No
entanto,
a
sua
ruptura
com
a
educação
católica
da
sua
juventude
(ruptura
que
lhe
será
particularmente
penosa
quando
a
mãe,
a
morrer
de
cancro
‐
ele
que
lhe
tocava
peças
de
piano
para
a
consolar
‐,
lhe
solicita
que
ele,
o
escritor,
James
Joyce,
se
confesse
religiosamente,
o
que
ele
recusa
‐
deixando‐lhe
um
forte
sentimento
de
culpa;
na
minha
interpretação,
é
este
o
tema
forte
do
Ulisses).
No
entanto,
a
influência
dos
símbolos
religiosos
sobre
o
autor
é
bem
forte,
e
assim
ele
repensa
literariamente
alguns
das
imagens
centrais
da
espiritualidade
humana,
assim
como
utiliza,
aqui
e
ali,
expressões
de
raiz
indubitavelmente
mística.
Ora,
é
inegavelmente
o
caso
do
termo
“epifania”.
A
celebração
da
epifania
é
habitualmente
realizada
no
dia
6
de
Janeiro
e
procura
consagrar
o
momento
em
que
Jesus
é
visitado
pelos
três
reis
magos
(«dia
dos
reis»).
3.4
Por
que
razão
este
acontecimento
é
central
para
o
escritor
irlandês?
O
decisivo,
para
Joyce,
não
está
no
carácter
teológico
do
evento,
mas
apenas
na
conjugação,
à
primeira
vista
tão
paradoxal,
entre
a
revelação
de
um
símbolo
tão
forte
(a
incarnação
divina)
e
um
estábulo
humilde
em
Betsalém.
Da
mesma
forma
que
Proust
está
convencido
que
as
nossas
memórias
involuntárias
possibilitam
a
revelação
da
verdadeira
identidade
de
5
cada
um
de
nós,
do
mesmo
modo
Joyce
pensa
que
os
momentos
plenos
de
encanto,
beleza
e
fulgor
despontam
a
partir
de
eventos
banais
e
comuns
da
vida.
Se
assim
é,
a
literatura
pode
proporcionar
momentos
de
redenção,
de
força
e
de
criatividade
–
sobretudo
quando
aborda
temas
vulgares
e
situações
comuns
das
pessoas.
Daí
o
hábito
de
Joyce
–
hábito
totalmente
irritante
para
o
seus
amigos
–
de
andar
com
um
pequeno
caderno
de
notas
na
mão
para
tentar
surpreender
os
pequenos
gestos,
as
hesitações
da
fala,
os
actos
quotidianos
mas
irreflectidos
e,
assim,
apreender
a
verdadeira
natureza
da
vida
em
toda
a
sua
intensidade
e
beleza.
Não
deixa
de
haver
um
paralelismo
curioso
com
Freud
em
encontrar
nos
actos
falhados
da
vida
uma
das
vias
possíveis
de
acesso
ao
mundo
fundo
do
nosso
ser.
Mas,
enquanto
Freud,
está
preocupado
em
mostrar
as
raízes
pulsionais
da
existência,
pelo
contrário,
a
atenção
de
Joyce
concentra‐se
em
mostrar
como
essa
epifania
da
beleza
e
da
intensidade
da
vida
(a
sua
plenitude,
numa
palavra)
se
pode
surpreender
nos
hábitos
comuns
da
vida.
A
questão
de
Joyce
é,
no
fundo,
uma:
como
dar
sentido
à
nossa
vida
diária,
a
mais
banal,
a
mais
usual?
Que
epifania
poderá
ela
afinal
revelar?
Que
novo
tipo
de
heroísmo
se
poderá
revelar
na
figura
daqueles
que
nós
olhamos
desdenhosamente
como
pessoas
que,
numa
primeira
análise,
são
as
mais
vulgares?
4.
Qual
é
a
narrativa
do
Ulisses
de
Joyce?
Dificilmente
alguém,
no
seu
bom
senso,
consegue
dar
uma
resposta
simples
e
clara
a
esta
questão.
O
Ulisses
é
uma
das
obras
mais
complexas
(e,
em
muitos
momentos,
das
mais
difíceis
da
história
da
literatura).
São,
a
meu
ver,
três
as
razões
estilísticas
que
tornam
a
obra
particularmente
complexa
mas
que,
simultaneamente,
a
transformam
numa
das
obras
mais
inovadoras
da
criatividade
humana.
É,
senão
a
primeira,
pelo
menos
a
primeira
grande
obra
da
6
literatura
em
que
se
usa
a
técnica
literária
do
“stream
of
consciousness”,
do
“fluxo
da
consciência”.
O
objectivo
do
“stream
of
consciousness”
consiste
em
proceder
à
revelação
dos
sentimentos
das
personagens,
dos
seus
pensamentos,
sem
uma
sequência
necessariamente
lógica
(por
vezes,
descrição
tão
caótica
como
o
fluxo
usual
da
nossa
mente
saltitando
entre
impressões,
ideias,
medos,
alegrias,
etc.)
e,
por
vezes,
essa
técnica
permite
apreender
estados
“pré‐conscientes”
que
antecedem
a
formação
de
ideias.
Diga‐se
que
o
termo
«stream
of
consciousness»,
provém
de
William
James
(Principles
of
Consciousness,
1890).
Segundo
Joyce,
não
tem
nada
a
ver
com
o
inconsciente
de
Freud,
mas
antes
com
Jung
(que
ele
admirava);
para
Joyce,
a
consciência
é
já,
em
si
mesma,
um
grande
mistério!
4.1
A
segunda
razão
que
explica
a
dificuldade
de
leitura
do
Ulisses
prende‐se
com
a
variação
de
estilo
literário
dos
18
capítulos
que
compõem
este
volume
de
700
páginas.
Para
lá
desta
descrição
deste
fluxo
da
consciência,
cujo
momento
mais
alto
no
romance
‐
considerado
por
muitos,
um
dos
momentos
mais
extraordinários
da
escrita
literária,
mas,
também,
a
causa
principal
da
proibição
do
romance
‐
é
provavelmente
o
monólogo
feminino
de
Molly
Bloom
(cf.4),
no
último
capítulo
da
obra
(“Penélope”)
‐,
Joyce
varia
de
estilo
permanentemente;
certos
capítulos
são
escritos
em
forma
de
drama
teatral
(é
o
caso
da
cena
no
lupanar),
outros
sob
a
forma
da
pergunta
e
resposta
(é
o
caso
do
encontro
de
Leopold
Bloom
com
Stephen
Dedalus,
a
outra
personagem
central
deste
romance),
outros
sob
a
forma
da
dialéctica,
do
ensaio,
do
trecho
musical
(há
partes
do
Ulisses
que
poderiam
ser
tocadas
musicalmente).
Esta
variação
permanente
de
estilo
confere
à
obra
um
carácter
fragmentado,
sem
qualquer
unidade
aparente,
a
que
acresce
a
terceira
razão:
o
domínio
fabuloso
por
parte
de
Joyce
da
língua
inglesa
(e
não
só...)
e,
em
particular,
dos
dialectos
próprios
de
Dublin
e
da
Irlanda.
Esse
domínio
lexical
permite‐lhe
jogar
com
uma
miríade
de
referências
e
de
subentendidos
que
tornam
muito
complexa
a
leitura.
Apesar
destas
dificuldades,
procuremos
não
tanto
contar
a
história
(não
tem
sentido
nenhum)
mas
dar
conta
da
estrutura
narrativa
da
obra,
apontando
alguns
momentos
cruciais.
4.2
Quem
conhece
minimamente
a
Odisseia
de
Homero
sabe
que
a
história
não
se
desenrola
apenas
em
volta
da
busca
de
Ulisses
do
caminho
para
Ítaca.
Existe
uma
segunda
busca,
a
do
filho
de
Ulisses,
Telémaco,
por
seu
pai.
É
aliás,
assim,
que
se
inicia
a
Odisseia
e
essa
busca
não
é
apenas
um
procedimento
retórico,
pois
ocupa
os
primeiros
cantos
da
obra.
O
mesmo
acontece
no
Ulisses
de
Joyce
–
também
aqui
descobrimos
uma
dupla
busca,
por
um
lado,
a
de
Leopold
Bloom
(a
nova
incarnação
de
Ulisses);
e,
por
outro,
a
de
uma
outra
personagem,
central
no
romance,
a
de
Stephen
Dedalus.
Mas
o
que
é
que
eles
buscam
e,
em
particular,
o
“Telémaco”
irlandês?
Reparem:
o
pai
de
Stephen
está
vivo,
passeia‐se
em
Dublin,
e
é
até
um
conhecido
de
Leopold
Bloom...
Quem
é
este
“Stephen
Dedalus”?
Joyce
nunca
escondeu
a
dimensão
autobiográfica
da
personagem.
Stephen
Dedalus
é
o
alter
ego
de
Joyce.
Enquanto
Bloom
é
uma
personagem
criada
especificamente
para
o
Ulisses,
pelo
contrário
Stephen
Dedalus
é
uma
personagem
recorrente
na
obra
deste
escritor.
Por
exemplo,
é
a
personagem
central
de
Retrato
Artista
quando
Jovem
(o
romance
autobiográfico)
assim
como
do
romance
póstumo
Stephen
Hero
(1944,
3
anos
depois
da
morte
do
escritor).
Os
7
problemas,
as
preocupações
e
os
dramas
de
Stephen
são
os
dramas
e
os
problemas
de
Joyce.
O
Ulisses
de
Joyce
está
aliás
cheio
de
referências
biográficas
como
se
deixa
retratar
na
escolha
do
dia
em
que
toda
a
intriga
se
desenrola:
“16
de
Junho
de
1904”.
Com
efeito,
o
Bloomsday
é
um
dia
importante
na
vida
Joyce,
pois
foi
nesse
dia
que
o
escritor
encontrou
a
paixão
da
sua
vida,
Nora
Barnacle
(Nassau
Street,
Trinity
College),
que
o
acompanhará
para
sempre.
Stephen,
no
Ulisses,
é
um
jovem
intelectual
irlandês
que
estudava
em
Paris
e
que
tinha
retornado
a
Dublin
por
causa
da
saúde
da
mãe.
Stephen
acusa‐se
–
melhor
dizendo
é
acusado
pelo
seu
amigo,
Buck
Mullligan
numa
das
célebres
torres
da
costa
de
Sandymount
–
de
ter
sido
de
algum
modo
responsável
pela
morte
da
mãe,
pois
tinha‐se
recusado
a
ajoelhar‐se
religiosamente
junto
do
leito
da
doente.
Pode‐se
imaginar
a
situação
psicológica
de
um
jovem,
de
clara
formação
intelectual,
depois
de
uma
vida
um
pouco
boémia
em
Paris,
regressar
subitamente
à
Irlanda,
por
causa
da
doença
da
mãe
e
sentir‐se
responsabilizado
pelo
falecimento
da
mesma.
Retorno
de
um
filho
pródigo,
mas
que
lhe
acarreta
três
novos
exílios:
perder
a
sua
mãe,
responsabilizar‐se
por
isso
e
abandonar
a
sua
pátria
intelectual
de
eleição.
E
é
aqui
se
joga
a
terceira
situação
de
exílio
de
Stephen.
Podemos
surpreendê‐la
num
dos
momentos
fundamentais
do
romance
(também
um
dos
momentos
mais
difíceis
de
leitura,
capítulo
“Proteu”
–
deus
grego
do
mar
que
podia
assumir
qualquer
forma
pois
o
seu
corpo
é
constituído
por
água):
o
passeio
na
praia
(Sandymount),
pelas
11
horas
da
manhã,
meditando
sobre
múltiplas
coisas,
entre
elas
(cf.3)
a
“realidade
irredutível
de
tudo
o
que
existe”
e
a
nossa
captação
da
mesma
como
efemeridade
pura;
meditando
sobre
a
distinção
filosófica
entre
as
qualidades
primeiras
e
segundas
das
coisas
que
se
revela
na
“inelutável
modalidade
do
visível”,
na
“inelutável
modalidade
do
audível”
mas
que
subentende
a
nossa
“inelutável
realidade
de
nós
próprios
e
do
mundo
em
que
vivemos”.
Mas
como
apreender
essa
identidade,
essa
identidade
que
se
oculta
e
se
revela
nas
sensações,
nas
impressões
efémeras,
como
ter
essa
“epifania”
do
que
somos?
E
Stephen
sente‐se
claramente
preso
a
um
labirinto
em
que
ele
próprio
se
encerrou.
8
Não
é
por
acaso
que
é
designado
por
Dedalus
(Dedalus
é
uma
figura
da
mitologia
grega
que
conseguiu
através
do
voo
fugir
ao
labirinto
que
tinha
construído
à
sua
volta;
por
sua
vez,
Estêvão
[Stephen]
é
o
primeiro
mártir
cristão).
E
o
momento
decisivo
que
nos
aparece
como
um
enigma
da
Esfinge,
mas
no
qual
se
revela
o
segredo
do
romance:
«Toca‐me.
Suaves
olhos.
Suave,
suave,
suave
mão.
Sinto‐me
tão
só,
aqui.
Que
palavra
é
essa
que
todos
os
homens
conhecem?
Eu
aqui
estou
sozinho,
quieto.
E
triste
também.
Toca.
Toca‐me.”
O
exílio
de
uma
vida
pensada,
não
vivida,
mas
mais
do
que
isso
o
exílio
da
solidão.
E
a
busca...
Como
Telémaco,
Stephen
Dedalus
está
em
busca
de
algo...
“Qual
a
palavra
que
todos
os
homens
conhecem?”.
A
outra
personagem
central,
o
Ulisses
deste
romance,
é
Leopold
Bloom,
este
judeu
em
pátria
irlandesa,
angariador
de
anúncios,
que
logo
no
começo
deste
dia
prepara
carinhosamente
o
pequeno‐almoço
para
a
sua
mulher,
a
sua
Penélope,
Molly
Bloom,
uma
anafada
cantora
de
música
popular.
Só
que
esta,
em
vez
de
ser
a
fidelíssima
Penélope
da
narrativa
helénica
que
homericamente
resiste
aos
seus
120
pretendentes,
bem
pelo
contrário,
nessa
mesma
manhã,
recebe
uma
carta
do
seu
amante
Boylan
a
marcar
um
encontro
amoroso
para
aquele
mesmo
dia.
Na
verdade,
a
relação
entre
Leopold
Bloom
(Poldy
como
é
afectuosamente
tratado
pela
mulher)
e
Molly
tinha‐se
deteriorado
completamente
com
a
morte,
há
dez
anos
(o
tempo
de
errância
de
Ulisses),
do
seu
filho
recém‐nascido,
Rudy,
provocando
uma
autêntica
implosão
no
seio
do
casal.
9
Para
compreendermos
melhor
o
Ulisses
desta
história
observemos
uma
outra
cena
que
se
passa
num
dos
tradicionais
pubs
irlandeses.
Apesar
de
se
ter
convertido
ao
Cristianismo,
Bloom
envolve‐se
numa
discussão
violenta
sobre
o
Judaísmo
com
alguém
conhecido
como
o
“Cidadão”
(Citizen),
zarolho
como
a
figura
mítica
do
Polifemo,
aquele
monstro
com
um
só
olho
que
o
Ulisses
homérico
consegue
enganar
através
de
se
autonomear
como
“Ninguém”.
E
da
mesma
forma
que
a
cena
homérica
termina
com
o
gigante
Polifemo
a
lançar,
de
raiva,
um
pedregulho
a
Ulisses,
o
Polifemo
irlandês
(em
que
uma
só
vista
significa
simbolicamente
a
unilateralidade
e
a
visão
curta)
lança
por
cima
de
Bloom
uma
caixa
de
bolachas.
Julgo
que
é
fácil
de
compreender
que
Leopold
Bloom,
o
Ulisses
desta
história,
é
a
outra
imagem
do
exílio,
como
Stephen,
mas
por
razões
completamente
diferentes.
Há
sempre
muitas
razões
que
suscitam
a
pulsão
de
morte
(referida
por
Freud
na
fase
final
da
sua
obra).
Esta
“facilidade
sinistra
de
morrer”
(Yourcenar)
torna‐se
“trivial”
quando
se
perde
quem
se
ama....Exílio
conjugal,
exílio
por
ter
perdido
o
seu
filho,
Rudy,
exílio
por
ser
judeu
(retoma
a
figura
simbólica
do
judeu
errante),
mas
num
país
que
olha,
ainda
hoje
para
os
estrangeiros,
com
alguma
dureza....
Exilado
da
sua
religião
(converteu‐se
ao
Catolicismo),
mas
ostracizado
pela
sua
raça.
Mas,
se
Setphen
é
o
intelecto,
Bloom
é
extremamente
sensível,
bondoso,
cheio
de
ternura
(pequenos
gestos:
pequeno‐almoço
para
a
sua
mulher;
o
seu
sofrimento
pela
morte
de
um
amigo).
Bloom
é
uma
«florescência»,
uma
«flor»,
uma
razão
acrescida
do
seu
exílio.
Situação
de
alguém
totalmente
alienado
num
mundo
masculino,
brutal,
simbolizado
por
Citizen,
esse
ser
abjecto,
perfeito
bronco,
mas
também
perfeito
cidadão‐modelo
de
Dublin,
que
constrói
a
sua
pretensa
identidade
masculina
pela
negação
do
que
julgam
ser
próprio
das
mulheres
(flores).
«Bloom»
é
claramente
o
Ninguém
para
este
mundo.
E
assim
estamos
em
face
de
dois
“estrangeiros”:
Stephen
e
Bloom
totalmente
perdidos,
que
se
descobrem
num
mundo
que
não
só
lhes
é
estranho,
como
os
exila.
Mas
encontram‐se
por
acaso.
Bloom
desloca‐se
a
uma
maternidade
(Joyce
quis
claramente
assinalar
os
lugares
comuns
mas
importantes
da
vida)
para
visitar
uma
amiga
da
família
que
tinha
tido
gémeos
e
aí
encontra
Stephen
em
confraternização
com
enfermeiros.
10
Acabam
ambos
(Bloom
com
o
objectivo
de
proteger
Stephen)
no
bordel
da
cidade
(capítulo
intitulado
«Circe»,
a
feiticeira
que
transformava
os
homens
em
porcos)
em
que,
numa
cena
trágico‐cómica,
mas
cheia
de
magia
(próprio
das
feiticeiras),
deciframos
cenas
alucinatórias,
delirante
e
masoquistas.
Stephen
está
completamente
bêbado
e
é
agredido.
Bloom
socorre‐o
e
leva‐o
para
sua
casa
onde
ocorre
um
dos
momentos
mais
importantes
do
romance
‐
sob
a
forma
de
pergunta‐resposta
‐
e
se
oferece
o
verdadeiro
encontro
daqueles
dois
seres
‐
tão
diferentes
entre
si
‐
mas
que
descobrem
que
as
diferenças
longe
de
serem
factores
de
divisão
e
de
conflito
são
factores
de
enriquecimento.
Pois
o
que
está
em
jogo
aqui
não
é
a
amizade
(eles
separam‐se
como
amigos,
mas
percebe‐se
bem
que
cada
um
deles
seguirá
o
seu
caminho)
e
muito
menos
a
paixão
amorosa.
Será
uma
nova
relação
relação
filial?
Bloom
o
protector,
Stephen,
o
protegido?
Mas
Stephen
tem
um
pai
e
Bloom
uma
filha...
Será
a
relação
entre
o
Intelecto
(Stephan)
e
a
Sensibilidade
(Bloom)?
Mas
Stephen
tinha
sensibilidade
artística
e
Bloom
era
culto...
A
meu
ver,
o
decisivo
é
esse
encontro
entre
duas
pessoas
que
só
o
acaso
(destino)
as
reuniu
mas
que
souberam
encontrar‐se.
E
é
neste
encontro
que
está
a
chave
do
romance.
A
redenção
da
expiação
de
Stephen
finalmente
encontra
solução.
Alguém
perdido
como
ele,
o
acarinhou,
o
tratou,
o
levou
para
sua
casa...
Esta
Odisseia
aproxima‐se
do
fim
e
termina
com
o
retorno
de
Bloom
ao
leito
conjugal,
onde
não
só
Bloom
se
reconcilia
com
a
vida
e
com
a
sua
Penélope
(que
lhe
diz
finalmente
“sim”),
da
mesma
forma
que
esta
última
entoa
o
seu
grande
monólogo
(cf.4)
que
não
só
expressa
igualmente
a
sua
reconciliação
com
Bloom,
como
começa
e
termina
com
a
expressão
da
afirmação
incondicionada
da
vida,
bem
expressa
nesse
mesmo
yes,
símbolo
de
confiança
e
de
entrega
a
outrem.
“Qual
a
palavra
que
todos
os
homens
conhecem?”
perguntava‐se
Stephen
na
praia.
Essa
palavra
é
naturalmente
o
Amor
(como
sublinhará
Anthony
Burgess)
(cf.5).
O
Ulisses
é
um
romance
sobre
o
amor,
o
amor
entre
um
Ulisses
simbólico
e
um
Telémaco
simbólico,
mas
também
entre
um
homem
(Leopold
Bloom)
e
uma
mulher
(Molly
Bloom),
entre
dois
seres,
entre
duas
pessoas:
Bloom
e
Stephen
que
descobrem
a
sua
redenção
no
encontro,
na
relação,
isto
é,
na
entrega
e
na
confiança
recíproca
entre
duas
pessoas.
É
essa
a
epifania
que
a
vida
comum
revela
para
Joyce
e
permite
responder
afinal
à
questão:
como
dar
sentido
à
nossa
vida
tão
comum,
tão
vulgar?
Textos
de
referência
1.
Epifania
(i)
“Imagina
o
meu
olhar
pousado
naquele
relógio
como
a
tentativa
de
um
olho
espiritual
procurando
fixar‑se
num
ponto
preciso.
No
momento
em
que
esse
ponto
é
atingido,
o
objecto
é
epifanizado.
Ora,
é
nesta
epifania
que
reside,
para
mim,
a
terceira
qualidade,
a
qualidade
suprema
do
belo.”
(Joyce,
Stephen
Hero)
2.
Epifania
e
estética
(ii)
“Stephen:
As
relações
mais
satisfatórias
do
sensível
devem,
por
isso,
corresponder
às
fases
necessárias
da
apreensão
artística.
Se
as
descobrires,
terás
encontrado
as
qualidades
da
beleza
11
universal.
Aquino
diz:
ad
pulcritudinem
tria
requiruntur
integritas,
consonantia,
claritas.
Eu
traduzi
assim:
São
necessárias
três
coisas
para
a
beleza,
inteireza,
harmonia
e
claridade.
Corresponderão
elas
às
fases
de
apreensão?
[...]
Stephen
apontou
para
um
cesto
que
um
empregado
do
talho
enfiara,
invertido,
na
cabeça.
‐
Olha
para
aquele
cesto
–
disse.
‐
Estou
a
vê‐lo
–
disse
Lynch.
‐
Para
ver
aquele
cesto
–
disse
Stephen
‐,
a
tua
mente,
em
primeira
lugar,
separa
o
cesto
do
resto
do
universo
visível
que
não
seja
o
cesto.
A
primeira
fase
de
apreensão
é
uma
linha
de
delimitação
em
torno
do
objecto
a
apreender.
É‑nos
apresentada
uma
imagem
estética
tanto
no
espaço
como
no
tempo.
O
que
é
audível
é
apresentado
no
tempo,
o
que
é
visível
é
apresentado
no
espaço.
Mas,
temporal
ou
espacial,
a
imagem
estética
é,
em
primeiro
lugar,
luminosamente
apreendida
como
algo
de
autodelimitado
e
autocontido
sobre
o
fundo
incomensurável
do
espaço
ou
o
tempo
que
não
é
essa
imagem.
Capta‑la
como
uma
coisa.
Vê‑la
como
um
todo.
Apreendes
a
sua
inteireza.
Isso
é
a
integritas.
‐
Em
cheio!
–
disse
Lynch,
rindo.
–
Continua.
‐
Depois
–
disse
Stephen
‐,
passas
de
ponto
em
ponto,
seguindo
as
suas
linhas
da
forma;
apreendes
a
imagem
a
imagem
equilibrada,
parte
por
parte,
dentro
dos
seus
limites,
sentes
o
ritmo
da
sua
estrutura.
Por
outras
palavras,
à
síntese
da
percepção
imediata
segue‑se
a
análise
da
apreensão.
Tendo‑te
apercebido
em
primeiro
lugar
de
que
era
uma
coisa,
sentes
agora
que
é
uma
coisa.
Apreendeste‑a
como
algo
complexo,
múltiplo,
divisível,
separável,
constituído
por
partes,
harmonioso
no
resultado
das
partes
e
na
sua
soma.
Isso
é
a
consonantia.
‐
Em
cheio
de
novo!
–
disse
Lynch
espirituosamente.
–
Agora,
explica‐me
o
que
é
a
claritas
e
ganhas
um
charuto.
‐
A
conotação
d
palavra
é
bastante
vaga.
Aquino
utiliza
um
termo
que
parece
ser
inexacto.
Desorientou‐me
durante
algum
tempo.
[...]
Aqui
tens
como
eu
entendi
as
coisas.
Depois
de
termos
apreendido
aquele
cesto
como
uma
coisa
e
o
termos
analisado
em
conformidade
com
a
sua
forma
e
o
termos
apreendido
como
uma
coisa,
fazemos
uma
única
síntese
que
é
lógica
e
esteticamente
permissível.
Verificamos
que
ele
é
aquilo
que
é
e
não
outra
coisa.
A
claridade
de
que
fala
é
o
quidditas
escolástico,
a
característica
de
uma
coisa.
Esta
qualidade
suprema
é
sentida
pelo
artista
quando
a
imagem
estética
é
concebida
na
sua
imaginação.
Shelly
comparou,
magnificamente,
a
mente
nesse
misterioso
instante
a
uma
brasa
prestes
a
apagar‑se.
O
instante
em
que
essa
suprema
qualidade
da
beleza,
a
clara
radiação
da
imagem
estética,
é
luminosamente
apreendida
pela
mente
que
foi
impressionada
pela
sua
inteireza
e
fascinada
pela
sua
harmonia
é
a
estase
[stasis]
luminosa
e
silenciosa
do
prazer
estético,
um
estado
espiritual
muito
semelhante
àquela
condição
cardíaca
a
que
o
fisiologista
italiano
Luigi
Galvani,
usando
uma
frase
quase
tão
bela
quanto
a
de
Shelley,
chamou
o
encantamento
do
coração.
[...]
‐
O
que
eu
disse
–
recomeço
ele
–
refere‑se
à
beleza
no
sentido
mais
lato
da
palavra,
no
sentido
que
a
palavra
tem
na
tradição
literária.
Na
linguagem
comum,
tem
outro
sentido.
Quando
falo
de
beleza
no
segundo
sentido
do
termo,
o
nosso
julgamento
é
influenciado,
em
primeiro
lugar,
pela
própria
arte”
James
Joyce,
Retrato
do
Artista
quando
Jovem,
trad.port.,
Lisboa,
Europa‐América,
1993,
pp.203‑205
3.
Inelutável
realidade
"Inelutável
modalidade
do
visível:
pelo
menos,
se
não
mais,
pensado
através
dos
meus
olhos.
12
Estou
aqui
para
ler
as
assinaturas
de
todas
as
coisas,
ovas
e
sargaços,
a
maré
que
se
aproxima,
essa
bota
corroída.
Verderanho,
azul
de
prata,
ferrugem:
sinais
coloridos.
Limites
do
diáfano.
Mas
acrescenta:
nos
corpos.
Então
é
porque
tinha
consciência
deles,
corpos,
antes
deles,
coloridos.
Como?
Batendo
com
a
cachimónia
contra
eles,
é
claro.
[...]
Stephen
fechou
os
olhos
para
ouvir
as
suas
botas
triturar
crepitantes
detritos
e
conchas.
Caminhas
de
qualquer
modo
por
sobre
isso.
Eu,
passo
a
passo.
Um
muito
breve
espaço
de
tempo
através
de
muitos
breves
tempos
de
espaço.
Cinco,
seis:
o
Nacheinander.
Exactamente:
e
essa
é
a
inelutável
modalidade
do
audível.
Abre
os
olhos.
Não.
Meu
Deus!
Se
eu
cair
sobre
um
penhasco
que
está
suspenso
pela
sua
base,
caio
inelutavelmente
pelo
Nebeineinander!
[...]
Vê
agora.
Esteve
ali
todo
o
tempo
sem
ti:
e
exisitrá
sempre,
mundo
sem
fim.
[...]
Que
palavra
é
essa
que
todos
os
homens
conhecem?
Eu
aqui
estou
sozinho,
quieto.
E
triste
também.
Toca,
toca‑me.
Deitou‑se
para
trás,
estendido
ao
comprido
sobre
as
rochas
cortantes,
metendo
as
notas
rabiscadas
e
o
lápis
num
bolso,
o
chapéu
caído
sobre
os
olhos.
Esse
é
o
movimento
de
Kevin
Egan,
o
que
eu
fiz,
cabeceando
pela
sesta,
sono
sabático.
Et
vidit
Deus
et
erant
valde
bona.
Olá!
Bonjour.
Benvindo
como
as
flores
em
Maio.
Sob
a
aba
do
chapéu
ele
observou
o
sol
do
sul
através
de
pestanas
trémulas
como
o
pavão.
Estou
apanhado
nesta
cena
escaldante.
A
hora
de
Pan,
o
meio‑dia
dos
faunos.
Entre
plantas
serpentes,
pesadas
de
goma,
frutos
ressudando
leite,
as
folhas
jazem,
abertas
nas
águas
douradas.
A
dor
está
longe.
E
não
mais
de
apartes
a
cogitar.
O
seu
olhar
cogitou
nas
botas
de
biqueira
larga,
restos
de
um
peralta,
nebeneinander.
Contou
os
vincos
de
couro
enrugado
dentro
do
qual
o
pé
de
outro
se
tinha
aninhado,
quente.
O
pé
que
bate
no
chão
em
libertinagem,
pé
que
não
amo.
Mas
ficaste
deliciado
quando
o
sapato
de
Esther
Osvalt
entrou
em
ti:
rapariga
que
conheci
em
Paris.
Tiens,
quel
petit
pied!
Amigo
fixe,
alma
gémea:
amor
de
Wilde
que
não
ousa
dizer
dizer
o
seu
nome.
O
braço
dele:
o
braço
de
Cranly.
Agora
deixar‑me‑á.
E
a
culpa?
Tal
como
sou.
Tal
como
sou.
Tudo
ou
nada.
Do
lago
Cock,
em
longos
laços,
água
fluía,
cheia,
cobrindo
verdes‑douradas
lagoas
de
areia,
subindo,
fluindo.
A
minha
bengala
de
freixo
irá
a
flutuar.
Eu
aguardarei.
Não,
passarão,
passando,
roçando
as
rochas
baixas,
remoinhando,
passando.
O
melhor
é
acabar
com
isto
o
mais
depressa
possível.
Escuta:
falar
de
ondas
em
quatro
palavras:
sissu,
rrss,
rsseeis,
uuus.
Veemente
hálito
das
águas
entre
cobras
do
mar,
cavalos
empinados,
rochas.
Chapinha
em
taças
de
rocha:
flop,
flop,
slap:
metido
em
barris.
E,
gasta,
cessa
a
sua
fala.
Flui
sussurrando,
fluindo
de
largo,
flutuante
charco
de
espuma,
flor
desabrochada.
Sob
a
maré
enchente,
viu
as
ervas
contorcidas
erguerem‑se
lânguidas
a
agitar
relutantes
braços,
levantando
as
saias,
em
água
murmurante
a
oscilar
e
revirar
frondas
modestas
de
prata.
Dia
após
noite;
noite
após
noite;
erguidas,
submergidas
e
deixadas
cair.
Senhor,
estão
cansadas;
e,
perante,
o
sussurro,
elas
suspiram.
Santo
Ambrósio
ouviu‑o,
suspiro
de
folhas
e
de
ondas,
esperando,
esperando
a
plenitude
dos
seus
tempos,
diebus
ac
noctius
iniurias
patiens
ingemiscit.
Para
nenhum
fim
se
reuniram,
soltas,
depois,
em
vão,
continuam
a
fluir,
voltando
atrás:
tear
de
lua."
James
Joyce,
Ulisses,
trad.port.,
Lisboa,
Livros
do
Brasil,
1989,
pp.65‑66;
78‑79.
4.
Final
do
monólogo
de
Molly
Bloom
“sim
ele
disse
que
era
uma
flor
da
montanha
sim
isso
somos
todas
flores
um
corpo
de
mulher
sim
essa
foi
a
única
verdade
que
disse
em
toda
a
vida
e
o
sol
hoje
brilha
para
ti
sim
isso
foi
o
que
gostei
mais
porque
vi
que
entendia
ou
sentia
o
que
é
uma
mulher
e
eu
sabia
que
sempre
havia
13
de
fazer
dele
o
que
quisesse
e
dei‐lhe
todo
o
prazer
que
pude
excitando‑o
até
que
me
pediu
para
dizer
sim
ao
princípio
eu
não
quis
responder
só
olhi
ao
mar
ao
longe
e
o
céu
estava
a
pensar
em
tantas
as
coisas
que
ele
não
sabia
de
Mulvey
e
do
Senhor
Stanhope
e
Hester
e
do
papá
e
do
velho
capitão
Groves
e
os
marinheiros
a
brincar
aos
papagaios
e
ao
eixo
e
ao
lava
pratos
como
lhe
chamavam
no
cais
e
a
sentinela
diante
da
casa
do
governador
com
a
coisa
à
volta
do
capacete
branco
pobre
diabo
meio
assado
e
as
raparigas
espanholas
a
rir‐se
com
as
mantilhas
e
e
os
travessões
altos
e
os
pregões
pela
manha
os
gregos
e
os
judeus
e
os
árabes
e
não
sei
quem
demónios
mais
de
todos
os
extremos
da
Europa
e
Duke
Street
e
o
mercado
da
criação
tudo
a
cacarejar
junto
de
Larby
Sharon
e
os
pobres
burros
a
resvalar
meio
da
dormir
à
sombra
nos
degraus
e
os
vagos
enrolados
nas
mantas
a
dormir
à
sombra
nos
degraus
das
portas
e
as
grandes
rodas
das
carroças
dos
touros
e
o
velho
castelo
com
milhares
de
anos
sim
e
aqueles
mouros
tão
bonitos
todos
de
branco
e
os
turbantes
como
o
reis
pedindo
para
nos
sentarmos
um
momentinho
nas
lojecas
e
Ronda
com
as
velhas
janelas
das
posadas
2
olhos
a
espreitar
numa
gelosia
para
o
amante
beijar
as
grades
e
as
tabernas
meio
abertas
à
noite
e
as
castanholas
e
a
noite
em
que
perdemos
o
barco
em
Algeciras
o
guarda‑nocturno
a
dar
voltas
por
aí
sereno
com
a
sua
lanterna
e
oh
aquela
tremenda
profunda
corrente
oh
e
o
mar
o
mar
carmesim
às
vezes
como
fogo
e
os
gloriosos
poentes
e
as
figueiras
nos
jardins
da
Alameda
sim
e
todas
as
pequenas
ruas
estranhas
e
as
casas
vermelhas
e
azuis
e
amarelas
e
as
roseiras
e
os
jasmins
e
os
gerânios
e
os
cactos
e
Gibraltar
como
uma
rapariga
onde
eu
era
uma
Flor
das
montanhas
sim
quando
pus
a
rosa
nos
meus
cabelos
como
usavam
as
raparigas
andalusas
ou
talvez
eu
devesse
pôr
uma
vermelha
sim
e
como
ele
me
beijou
debaixo
da
muralha
e
eu
pensei
que
tanto
faz
ele
como
outro
e
depois
pedi‑lhe
com
os
olhos
para
pedir
outra
vez
sim
e
depois
ele
pediu‑me
se
eu
queria
sim
dizer
sim
minha
flor
da
montanha
e
primeiro
pus
os
braços
à
volta
dele
sim
e
puxei‑o
para
baixo
para
mim
para
que
pudesse
sentir
os
meus
seios
todos
perfume
sim
e
o
coração
batia‑lhe
como
louco
e
sim
eu
disse
sim
eu
quero
Sim.”
James
Joyce,
Ulisses,
trad.port.,
Lisboa,
Livros
do
Brasil,
1989,
pp.843‑844.
5.
A
Palavra
“(ansiosamente)
Diz‑me
a
palavra,
mãe,
se
já
a
sabes.
A
palavra
que
todos
os
homens
conhecem.”
James
Joyce,
Ulisses,
trad.port.,
Lisboa,
Livros
do
Brasil,
1989,
p.631
14

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1 JAMES JOYCE E A ARTE COMO REDENÇÃO 1. Num filme do