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CELEBRANDO A REDENÇÃO DA MISÉRIA:
AS ESTRUTURAS DO IMAGINÁRIO NOS CULTOS NEOPENTECOSTAIS
Eunice Simões Lins Gomes-UFPB-CE-PPGCR
Neide Miele –UFPB-CE-PPGCR
RESUMO
Esta pesquisa tem por finalidade desvendar as estruturas míticas do imaginário cultural brasileiro que
organizam os cultos neopentecostais. Para isso, estamos analisando as imagens litúrgicas desses cultos
pela metodologia da Hermenêutica Simbólica de Gilbert Durand, mais especificamente, com a
arquetipologia, entendemos como se estruturam os dinamismos figurativos dos “reflexos
dominantes” (deglutição, copulação e postural). São três as categorias de imagens litúrgicas utilizadas:
ações gestuais dos dirigentes dos cultos, imagens verbais construídas pelos pregadores e ações
gestuais dos cultuadores. Elaboramos como hipótese, a suspeita de encontrarmos nesses cultos uma
tensão entre os dois regimes, há tanto uma tendência ao heroísmo, ao combate aos monstros
hipoerbolizados (demônios), quanto há a experiência de um acolhimento cósmico, a vida é noite, mas
se está em comunhão com os céus, o engolir as águas, um eufemismo ao abandono.
Palavras-chave: culto, neopentecostalismo, imaginário
EN CÉLÉBRANT LA RÉDEMPTION DE LA MISÈRE :LES STRUCTURES DE
L´IMAGINAIRE DANS LES CULTES NEOPENTECÔTISTES
RESUME
Cette recherche a eu le but de rendre évidentes les structures mythiques de l´imaginaire culturel
brésilien qui rangent les cultes neopentecôtistes. On analyse les images liturgiques de ces célébrations
en utilisant la méthodologie de l´Herméneutique Symbolique de Gilbert Durant, et plus
spécifiquement l´Arquetipologie, pour comprendre la manière de structuration des dynamismes
fuguratifs des « réflèts dominantes » (déglutition, copulation et posture). Ces sont trois les catégories
d´images liturgiques qu´on utilise ici : des actions gestuelles des dirigeants des cultes, des images
verbales construites par les prêcheurs et des actions gestuelles de ceux qui accompagnent la
célébration. On a élaboré, en tant qu´hypothèse, la possibilité d´identifier dans les cultes une tension
entre les deux régimes : soit une disposition à l´héroïsme, au combat aux monstres « hipoerbolisés »
(démons), soit l´expérience d´un accueil cosmique, la vie est la nuit, mais on est en communion avec
les cieux, l´engloutir des eaux, un euphémisme à l´abandon.
Mots-clef : Cultes, neopentecôtistes, l´imaginaire.
1 INTRODUÇÃO
O nosso estudo tem como finalidade investigar a “ambiência simbólica” da cultura
brasileira, a partir das imagens plasmadas no ambiente religioso, especificamente, nos ritos do
protestantismo neopentecostal1. Estamos interessados em estabelecer a relação entre a obra litúrgica
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Os pentecostais não representam um referencial religioso homogêneo. É preciso pelo menos dividi-los em
quatro grupos distintos (MENDONÇA, 1989) Os pentecostais clássicos (Assembléias de Deus e Congregação
Cristã); 2) Os pentecostais de “cura divina” (Igreja Deus é Amor, Evangelho Quadrangular e Brasil para
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(celebrações de culto) e o imaginário coletivo do povo que o produziu; no levantamento do
repertório de imagens gestuais e verbais, desenvolvidas pelos atores do culto, em relação às intenções
litúrgicas, às seqüências da liturgia, ao material e aos espaços do culto; em mapear a trajetória
antropológica dos schémes à narrativa mítica dos regimes diurno e noturno das imagens litúrgicas
catalogadas, para encontrar a dinâmica do imaginário que está presente e subjacente a essa
organização religiosa.
Então por estarmos preocupados em desvendar as estruturas arquetípicas do imaginário
brasileiro, presentes numa das formas de religiosidade contemporânea do povo, entendemos que a
abordagem metodológica que mais se aproxima dos nossos interesses investigativos é a Teoria Geral
do Imaginário de Gilbert Durand. Isso porque entendemos, apoiados nessa teoria, que o imaginário
não é um elemento secundário do pensamento humano, mas a própria matriz do pensamento. (
GOMES, 2000).
O imaginário é um sistema dinâmico organizador de imagens, cujo papel fundador é o de
mediar a relação do homem com o mundo, com o outro e consigo mesmo. Essa função fantástica do
imaginário acompanha os empreendimentos mais concretos da sociedade, modulando até a ação
social e a obra estética. A mitologia é primeira em relação a qualquer metafísica, mas também ao
pensamento objetivo. Os mitos são manifestos nos atos simbólicos, cuja função é colocar o homem
em relação de significado com o mundo, com o outro e consigo mesmo. ( KAST, 1997).
O fenômeno religioso nos é importante para entender a cultura brasileira, porque
entendemos que é a presença mítica que organiza as práticas religiosas e as demais práticas sociais. De
modo que perscrutar as celebrações de um movimento religioso (pentecostalismo), o que mais cresce
no país, é captar as estruturas mitológicas organizadoras de um dos atuais modos de pensar, sentir e
agir da sociedade brasileira. Assim, movida pela “razão sensível”, estamos ratificando uma nova e rica
possibilidade de fazermos sociologia da cultura, através do desvendamento das “bacias semânticas”
(DURAND, 1983), das estruturas que dão sentido aos ajuntamentos coletivos nacionais.
Nessa perspectiva metodológica suspeitamos estar avançando ao esgotamento da ciência
moderna, marcada pelo racionalismo positivista, que elimina o mito e minimiza o seu papel. Ao
contrário, apostamos no “reencantamento do mundo”, no retorno do homo symbolicus (JUNG, 1982)
como organizador das relações sociais e no equilíbrio entre razão e imaginação, entre biopsíquico e
sociocultural. Essa noção e perspectiva metodológica de focar o corpus mitológico em relação aos
ajuntamentos sociais e desenvolvimento individual, é extremamente fértil para o estudo do imaginário
e da cultura em seu dinamismo e trajetividade.
2 O método da arquetipologia e da mitanálise nas imagens litúrgicas
Cristo; 3) As igrejas renovadas (Batista Nacional, Presbiteriana Renovada, Maranata, etc.); 4) Os
neopentecostais (Universal, Renascer, Igreja Internacional da Graça, etc.).
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Gilbert Durand (1997) elabora a sua Teoria Geral do Imaginário a partir da crítica que faz à
desvalorização da imagem e do imaginário no pensamento ocidental, que considera a imaginação
como “mestra do erro e da falsidade”. Esta desvalorização é fruto da ciência moderna, cujo modelo,
global e totalitário, nega o caráter racional, portanto científico, a todas as formas de conhecimento
que não se pautem pelos seus princípios epistemológicos e por suas regras metodológicas.
Ao valorizar a razão, em detrimento do imaginário, a iconoclastia ocidental pretendeu um
“pensamento sem imagem”; mas, por trás da fachada hipócrita do iconoclasmo oficial, o mito
continuou a proliferar de forma clandestina, graças à expansão literalmente fantástica da mídia que
reinstalou a imagem, em “carne e osso”, no uso cotidiano do pensamento (PITTA, 1995; SANCHEZ
TEIXEIRA, 1990;1998) . Tal fato evidencia o grande paradoxo da modernidade que, ao mesmo
tempo em que recusa a imagem em proveito da razão, é incessantemente assediada por ela. Segundo
Durand (1994, p. 10),
[...] os difusores das imagens, a mídia, estão onipresentes em todos os níveis
da representação, da psique do homem ocidental, ou ocidentalizado. Do
berço ao túmulo a imagem está lá, ditando as intenções de produtores
anônimos ou ocultos: no despertar pedagógico da criança, nas escolhas
econômicas e profissionais dos adolescentes, nas escolhas tipológicas de cada
um, nos costumes públicos ou privados a imagem midiática está presente, ora
se pretendendo como “informação”, ora ocultando a ideologia de uma
“propaganda”, ora fazendo a “publicidade” sedutora [...].
Prestando atenção aos sinais dos tempos, constatamos que o império absoluto da razão vem
perdendo gradualmente a sua força; o imaginário e o simbólico voltam a ocupar lugar de destaque na
cena social. Com isso, assiste-se, atualmente, a uma expansão dos estudos sobre o imaginário, apesar
do seu valor heurístico ainda não ser amplamente reconhecido no campo das Ciências Humanas e
Sociais. Os críticos do tema não conseguem, ainda, ver em tais estudos qualquer finalidade útil, pois
não acreditam que o imaginário desempenhe papel importante na vida social.
Mas, paradoxalmente, foi a própria razão que, ao pretender abarcar tudo, preparou o
caminho para o retorno da imagem e da sensibilidade reprimida. Por não ser sensível à força do seu
contrário, o racionalismo não conseguiu integrá-lo para temperar a sua pulsão hegemônica
(MAFFESOLI, 1998) e, com isso, foi perdendo espaço. Em outros termos, e lembrando Bachelard
(1990), poderíamos dizer que a uma “dialética da razão” se vem acrescentar uma “dialética da
imaginação”, que havia sido rejeitada pela mentalidade cientificista da modernidade.
A integração entre razão e imaginação pode ser melhor compreendida se utilizarmos,
epistemologicamente, a noção de polaridade, tal como o faz Durand (1980) para mostrar o
dinamismo do imaginário. Para Durand a separação entre razão e imaginação é falsa, pois o simbólico
se inscreve de maneira profunda na alma humana.
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As imagens são produzidas no “trajeto antropológico”, que nada mais é do que relação,
trajetividade, entre os pólos biopsíquico (pulsões subjetivas) e sociocultural (intimações do meio). De
acordo com Durand (1997), o “trajeto antropológico” é a troca incessante que existe, ao nível do
imaginário, entre as pulsões subjetivas do indivíduo e as intimações do meio cósmico e social. O
trajeto põe em relação uma representação ou atitude humana, aquilo que vem do psicofisiológico, e o
que vem da sociedade e da sua história, impedindo, “epistemologicamente”, a dominância de um
sobre o outro (DURAND, 1980).
Da mesma forma, resolve o problema da anterioridade ontológica de um dos pólos, pois
postula, de uma vez por todas, segundo Durand (1997), a gênese recíproca, que oscila do gesto
pulsional ao entorno material e social e vice-versa. É na trajetividade que a representação do objeto se
deixa assimilar e modelar pelos imperativos pulsionais do sujeito e, reciprocamente, as representações
subjetivas explicam-se pelas acomodações anteriores do sujeito ao meio objetivo. A pulsão individual
tem sempre um “leito social” no qual corre facilmente ou, pelo contrário, luta contra os obstáculos,
de modo que o sistema projetivo da libido nunca é pura criação do sujeito, uma mitologia pessoal
(DURAND, 1997).
As imagens aglutinam-se, no imaginário, em torno de núcleos organizadores da
simbolização, que são polarizados. Em cada núcleo, ou pólo, há uma força homogeneizante,
ordenadora de sentido, que organiza semanticamente as imagens, configurando-as, miticamente, em
três estruturas, que gravitam em torno de três esquemas matriciais básicos: heróico (separar), místico
(incluir) e sintético (dramatizar). O primeiro põe em ação imagens e temas de luta (do herói contra o
monstro, do Bem contra o Mal), o segundo, imagens assimiladoras, e o terceiro põe em conjunto
imagens divergentes, integrando-as numa ação.
Nessa perspectiva, o imaginário não é um simples conjunto de imagens que vagueiam
livremente na memória e na imaginação. Ele é uma rede de imagens na qual o sentido é dado na
relação entre elas; as imagens organizam-se de acordo com uma certa lógica, uma certa estruturação,
de modo que a configuração mítica do nosso imaginário depende da forma como arrumamos nele
nossas fantasias. É dessa configuração que decorre o nosso poder de melhorar o mundo, recriando-o,
cotidianamente, pois o imaginário é o denominador fundamental de todas as criações do pensamento
humano (DURAND, 1997).
Ao longo de sua obra, Durand mostra que a imaginação é reação da natureza contra a
representação da inevitabilidade da morte. O desejo fundamental buscado pela imaginação humana é
reduzir a angústia existencial face à consciência do Tempo e da Morte. Entende este autor, que esta
função (que em última instância é eufemização) não é simplesmente ópio negativo, máscara que a
consciência veste diante da figura horrível da morte, mas, ao contrário, dinamismo prospectivo que,
através do imaginário, tenta melhorar a situação do homem no mundo (DURAND, 1988). Portanto,
é para fugir da representação da morte que a imaginação cria o mundo.
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Nesse sentido, o imaginário é um dinamismo equilibrador que se apresenta como a tensão
entre duas “forças de coesão” de dois “regimes” (o diurno e o noturno), cada um relacionando as
imagens em dois universos antagonistas (o heróico e o místico); estes se acomodam, no estado médio
e normal da atividade psíquica, em um outro universo – o dramático. Neste, as imagens antagonistas
conservam a sua individualidade, a sua potencialidade, e só se reúnem no tempo, na linha narrativa,
num sistema, e não propriamente numa síntese (DURAND, 1988).
Nesse processo dinâmico, numa sociedade, encontram-se sempre confrontados os dois
regimes de imagens – o diurno e o noturno -, um sobredeterminando o outro, ditando uma sintaxe e
uma lógica que fundamentam a mentalidade dominante. O regime diurno é o da antítese, os monstros
hiperbolizados são combatidos por meio de símbolos antitéticos: as trevas são combatidas pela luz e a
queda pela ascensão. O regime noturno é o da antífrase, está constantemente sob o signo da
conversão e do eufemismo, invertendo radicalmente o sentido afetivo das imagens (DURAND,
1997).
Dessa forma, tanto no domínio mental individual, como no coletivo, só há verdadeira
polaridade quando há tensão heterogênea entre sistemas de representação separadamente
homogêneos. Estes dois regimes não podem ser entendidos como estruturas fixas, mas como linhas
de força de coesão e jamais como tipologias psicológicas ou sociológicas, que agrupam de forma
dialética as imagens simbólicas.
Para ilustrar resolvemos criar um quadro sintético, correndo o risco de simplificação, das
diversas imagens que aparecem nos dois regimes, que estão aparentemente separadas, mas que não só
se relacionam entre si solidariamente, mas também contraditoriamente e de forma ambivalente. Pois
nesses dois regimes é possível identificar uma cumplicidade entre eles, que tentam se equilibrar um
através do outro. Durand (1988) fala em uma espécie de conivência entre eles, que faz existir um pelo
outro, ou seja, cada termo antagonista tem necessidade do outro para existir e se definir.
QUADRO DAS IMAGENS DA ESTRUTURA DO IMAGINÁRIO NO REGIME DIURNO
Teriomórfico
- Formigamento (insetos, larvas...)
- Animação (cavalo, touro...)
- Mordicância: morder, devorar (leões, onças..
As Faces do
Tempo
Nictomórfico
- Depressão (trevas, cegueira, noite escura...)
- Convite ao morrer (água escura, estagnada..)
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REGIME
(Angústia)
- Engrama da queda (queda no chão da
Catamórfico
criança...)
DIURNO
Ascensionais
- Verticalidade (monte sagrado...)
Ascensão, reconquista
- Asa e angelismo (voar-pomba,águia..)
de uma potencia
Preocupado
perdida
-Soberania uraniana: (elevação, gigantismo...)
- O chefe (a cabeça, crânio, coroa...)
em
dividir e reinar
O Cetro e o
Espetaculares
- Pureza celeste (luz, sol...)
- Visão conhecimento (olho, palavra...)
Gládio
Heróica
Diaréticos
- Poder e pureza (armas do herói...)
vitória sobre o
Separação
cortante - Armas espirituais (batismo, espada, fogo,
destino e a
entre o bem e o mal
tocha, água, ar)
morte
QUADRO DAS IMAGENS DA ESTRUTURA DO IMAGINÁRIO NO REGIME NOTURNO
ESTRUTURA
MÍSTICA
- Símbolos da inversão
A descida e a
Taça
do valor afetivo atribuído as
faces do tempo
construção de
uma harmonia,
quietude, gozo
- Símbolos da intimidade
isomorfismo do retorno, da
morte e da moradia
Eufemismo
(abismo,
taça,
receptáculo...)
- Encaixamento redobramento
(engolir...)
- Hino á noite (noite de paz, valoriza
cores...)
- Mater e materna (grandes mães
aquáticas)
- Túmulo e repouso (morte...)
- Moradia e taça (casa, espaço...)
- Alimentos e substâncias (leite, mel,
água, sal...)
REGIME
ESTRUTURA
NOTURNO SINTÉTICA
Regime pleno
do
Do denário ao
eufemismo
vai se
pau
empenhar em Harmoniza os
fundir e
harmonizar
- Símbolos cíclicos
O tempo cíclico não tem
- Ciclo lunar (fases da lua, espiral,
permanência,).
- Espiral (equilíbrio dos contrários).
- Simbolismo ofidiano (serpente,
muda de pele...)
- Tecnologia do ciclo (fuso, roca
começo nem fim: uma face
desce a outra sobe.
contrários
e - Do schéme rítmico ao mito – Ritmo da
propõe
um do progresso
temperados)
natureza
(climas
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caminhar
progressista
- Sentido da árvore (verticalidade
humana: floração e frutificação)
De acordo com Durand (1983), as imagens desses dois regimes circulam ao redor do mito,
que define e descreve um conjunto social. Uma sociedade polariza sempre, no mínimo, duas
estruturas míticas que se alternam de forma cíclica2. Em outras palavras, há sempre dois mecanismos
antagonistas de motivação: um opressivo, no sentido sociológico do termo, que contamina todos os
setores da atividade mental e social, sobredeterminando ao máximo as imagens e símbolos veiculados
pela moda, e outro que se opõe, dialeticamente, a ele, suscitando a emergência de outros mitos e
outros simbolismos (cf. DURAND, 1997).
A dominância ou polarização de conjuntos míticos, numa certa época, determina uma
homologia semântica, que religa teorias científicas, estilos estéticos, gêneros literários, visões de
mundo, constituindo o que este autor chama de “bacia semântica”. Esta metáfora permite a
compreensão do percurso temporal dos mitos e suas manifestações socioculturais, expressando o
dinamismo imaginário.
Em sua origem, uma corrente mítica é um esboço confuso de um imaginário, cujos
conteúdos (mitos, sonhos, utopias, desejos) afloram timidamente. Aos poucos, ela se fortalece e se
torna oficial, “teatralizando-se” em usos sociais positivos ou negativos, que recebem a sua estrutura e
seu valor de “confluências” sociais diversas para, finalmente, se racionalizar, transformando-se em
sistemas filosóficos e ideológicos (cf. DURAND, 1994). Este é o momento da monopolização do
mito, que se torna dominante e, paradoxalmente, atinge o ponto de saturação, deixando-se penetrar
por outras correntes míticas, anunciadoras de outros mitos, geralmente aqueles que haviam sido
reprimidos e despolarizados.
Durand (1988) lembra que a função simbólica é lugar de “passagem”, de reunião de
contrários, pois o símbolo, em sua essência, é unificador de pares opostos. Para este autor (1988), o
símbolo é um signo concreto que evoca, através de uma relação natural, algo ausente ou impossível
de ser percebido, ou seja, remete a um significado invisível e indizível. O símbolo se refere ao não
sensível em todas as suas formas, é um sinal visível de uma realidade invisível. O símbolo, e o que
nele está representado, tem uma conexão interna que não pode ser desfeita, por isso, possui algo mais
que um sentido artificialmente dado. O símbolo é, então, mediação que traz em si a presença
inelutável do sentido, por isso, a imagem, por mais degradada que possa parecer, é sempre portadora
de um sentido que não deve ser procurado fora da sua significação imaginária (cf. DURAND, 1997).
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É importante observar que um sistema imaginário sociocultural destaca-se sempre como um conjunto mais
vasto e contém subconjuntos mais restritos, isto é, no interior de um esquema global há sempre microclimas
sociais (DURAND, 1994).
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Para Durand (1988), há uma energia simbólica, que percorre todo o trajeto antropológico,
razão pela qual a imaginação se revela como fator geral de equilibração psicossocial, pois uma
sociedade nunca é absolutamente homogênea em termos de representação; há elementos irredutíveis,
ilhas de sobrevivência de outros imaginários. O equilíbrio sócio-histórico de uma sociedade nada mais
é do que uma constante realização simbólica; a cada momento de uma cultura, vários mitos se
superpõem, sendo que alguns são atualizados, enquanto outros permanecem potencializados,
obrigados a permanecer na sombra. Um sistema imaginário sociocultural destaca-se sempre sobre um
conjunto mais vasto e contém conjuntos mais restritos.
3 Procedimento da Hermenêutica Simbólica
Na construção da sociedade moderna, assistiu-se a uma tentativa de supressão do símbolo,
que foi estreitado pelas ciências em signo, e pela aniquilação da pessoa e da sua energia constitutiva,
metamorfoseada em robô mecânico, animado apenas pela consciência social estabelecida ou
inteligência artificial. Nessa intentada, houve uma polarização mítica, valorizando apenas aqueles que
sustentaram a modernidade, e esgotando a possibilidade do afloramento de novas correntes míticas,
geralmente contestatórias em relação à sociedade estabelecida.
Nesse momento atual, chamado por alguns de pós-modernidade, outros mitos e outros
símbolos começam a circular. Eles são as matrizes imaginárias de uma “nova sensibilidade”, de novos
estilos, de novas visões de mundo, de um outro paradigma que, ao sapiens vem juntar o demens,
acrescentando à atividade pensante do ser humano a dimensão onírico-fantástica, possibilitando a
restauração da tensão e do equilíbrio entre esses pólos. É para entender esse novo momento histórico
que optamos pela abordagem metodológica a ser adotada na investigação das imagens litúrgicas.
É a “Hermenêutica Simbólica” de Gilbert Durand (1983) que a utilizaremos para analisar o
mundo imaginal do brasileiro, a partir do fenômeno religioso. A hermenêutica simbólica dá conta de
articular o biopsíquico e o sociocultural, porque ela pode partir indistintamente da cultura ou do
natural psicológico, uma vez que o essencial da representação e do símbolo está contido entre esses
dois marcos reversíveis. O caráter basal da linguagem simbólica induz a pistas para a construção pluri,
trans e metadisciplinar de uma Antropologia do Imaginário, apoiada num projeto de unidade da
“Ciência do Homem”.
A hermenêutica simbólica de Durand é um método próprio ao estudo do imaginário, válido
para qualquer mensagem que emana do homem e está estruturado em níveis de complexidade: a
Arquetipologia, busca entender como se estruturam os dinamismos figurativos dos “reflexos
dominantes” (deglutição, copulação e postura); a Mitanálise, busca entender o mito como o primeiro
discurso da significação, e a Bacia Semântica, que se preocupa com a duração das fases do imaginário
sociocultural.
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Aplicaremos essa hermenêutica nos cultos religiosos, particularmente os neopentecostais,
porque eles são técnicas mágicas, mediadores entre o mundo sagrado e o mundo profano. Nas
celebrações litúrgicas com orações, entrega de ofertas, entoação de cantos e outros atos de purificação
e de consagração, o homem defende seu mundo das forças da miséria, temidas ao mesmo tempo pelo
seu poder e pela sua impureza. Nesses cultos, o homem é redimido da miséria social, divindade
repugnante, fazendo-o ascender ao mundo santo da prosperidade.
Preocupados em compreender a estrutura do imaginário, organizadora dos cultos
neopentecostais, consideraremos as imagens corporais e verbais construídas durante os cultos, pelos
pregadores e fiéis, como uma das manifestações do arcabouço simbólico brasileiro, que evidencia a
trama de relações entre imaginário, cultura e sociedade.
Nessa abordagem utilizaremos o procedimento do método de convergência, ou seja,
analisaremos a maneira como se organizam as diferentes representações da narrativa mítica do culto e
elegeremos algumas séries de imagens litúrgicas, que podem ser expressivas. Tentaremos na
catalogação das imagens seguir a estrutura do “trajeto antropológico”, valorizando os schémes
(tendência geral dos gestos), os arquétipos (representação dos schémes), os símbolos (signos) e o mito
(sistema dinâmicos de símbolos). Nas palavras de Durand (2001, passim), Schémes são reflexos
dominantes e o seu prolongamento cultural ou a concomitância entre os gestos do corpo, os centros
nervosos e as representações simbólicas; Arquétipos são as substantificações dos schémes e constituem
o ponto de junção entre as imagens e os pensamentos; os Símbolos são configurações invisíveis,
localizáveis em um certo tempo e uma certa tradição cultural e, por fim, Mito é um sistema dinâmico
de símbolos, de arquétipos e de esquemas, que sob o impulso de um esquema, tende a compor-se em
narrativa.
Sendo assim, catalogamos as imagens litúrgicas de acordo com as: 1) as ações gestuais dos
dirigentes do culto e dos pregadores; 2) as imagens verbais construídas pelos pregadores; 3) as ações
gestuais dos cultuadores: gestos de vitória e de comemoração, gestos de embaraço e de inventividade,
gestos de dor e de vivência do fracasso, gestos de obediência e de rebeldia. Estas imagens foram
sendo observadas em relação: 1) às intenções litúrgicas (libertação, cura, emprego...); 2) às seqüências
da liturgia (leituras, cânticos, confissão, ofertas...); 3) ao material do culto (livros, hinários, roupas...);
4) aos espaços do culto (arquitetura, mobília).
Buscamos identificar, nessa constelação de imagens, como se estrutura a dinâmica dos
símbolos heróicos e místicos que circulam nos núcleos organizadores da cultura. A interpretação
dessa catalogação resultou numa arquetipologia e numa mitanálise, configurações capazes de traçar as
matrizes da simbolização que estrutura o pensamento simbólico, orientador do discurso mítico e da
prática dos ritos na religiosidade neopentecostal.
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Celebrando a redenção- eunice simões