Bang, Bang
2008
Texto de Nuno Ramos reproduzido por alto-falante:
VOZ A (masculina)
BANG! Chega disso. Tic-tac-tic-tac.
VOZ B (feminina)
Domingo, 27 de janeiro de dois mil e lá vai pedrada. BOA NOITE. Está
começando. BOA NOITE. Definitivamente. Estamos aqui para. Olha lá. Agora.
VOZ A
BANG! BANG! Sino. Morte. Sino. Estou vindo. Chegando. Sou eu. Eu. Nasci.
Morri. Fui vindo. Tiro. Bala. Levei bala. Bem aqui. Aqui, ó. Aqui, óóóó.
Óóóóóóó! BANG! BANG! De novo. Aqui não tem destino. De novo! Tic! Tac!
BANG! Vai. Vai. Pára. Pára. De novo! Vai! BANG! BANG!
(Pausa)
Mais lento. Calma. Abre os dedos. Respira. Vai. Bem forte: BANG! BANG!
BANG! Querendo. Vai. Sem querer. Agora de novo, querendo. Vai. Querendo
muito. BANG! De novo.
BANG!
(Pausa)
Corta! Corta! De novo
VOZ B
Domingo, 27 de janeiro de mil novecentos e lá vai pedrada. A tarde declina. De
novo. A luz irradia. Nova-men-te. A noite chegou, de novo.
BOA NOITE, noite. Bem vinda, noite.
BOA NOITE.
VOZ A
Corta! BANG. De novo! Faz! Faz de novo! Faz comigo! Faz com ela! A palavra
cão não morde! De novo! A palavra cão não morde! Calma! Calma! A palavra
sol não queima! A palavra lua não brilha. A palavra lua não brilhou nunca. E um
caralho nunca é um caralho, é só uma palavra. Uma palavra nunca serve de
caralho mas um caralho serve de palavra.
Caralho! Nunca! Jamais!
(Pausa)
Vai! Vai! Sem piedade! Tic, BANG, tac! Nenhuma piedade! Põe! Tira! Tudo,
inteiro, branco, preto, olho, cheio, vazio, tic. Vai, de novo. BANG!
Tic. Faz! Faz comigo. Tac. Tac.
(Pausa)
Vai. BANG! BANG! Respira! Respira! Põe pra fora. Mostra! Mostra! Agora. De
novo. BANG! Fala. Estamos ouvindo. Estamos todos ouvindo. Estamos aqui
reunidos para ouvi-los. Em torno a esta. Neste momento.
VOZ B
Há previsão de chuva. A massa branca, feito flocos de neve, ou algodão de
ovelhas, ou espuma de sabonete, cobre toda a foto que as minhas unhas
vermelhas arranham agora. Estamos aqui para.
Exatamente para isso. E estaremos aqui amanhã. Para isso também, de novo.
Exatamente para isso. Para sermos exatos.
(Pausa)
Meus seios. Meus seios estarão aqui amanhã. Iguais aos de hoje. Ou quase.
(Pausa)
Meu ventre. Um pouco mais quente, talvez. A reentrância entre as pernas. BOA
NOITE. No mesmo lugar, amanhã, como estava no mesmo lugar, ontem.
Apenas um pouco mais úmida. Minha boca, apenas um pouco mais boca. BOA
NOITE.
(Pausa)
Está começando. Amanhã voltamos. Não aconteceu nada. Estaremos aqui.
Tudo igual. Nada. Nadinha.
VOZ A
BANG! Humano. Muito humano! Chupa, humano, BANG!, respira, humano.
Azul. Fica azul. Fica rosa, humano. Céu, fica céu, humano. Fica forte. Estrela,
fica pequena, pálida, humana, estrela. Fica comigo. Faz comigo. Agora. Faz
assim e faz assado. De frente, de trás. Humano. Muito humano. De quatro e
humano. Tic tac, tic tac. BANG! (Pausa) BANG!
(Pausa)
BANG!
VOZ B
Luz irada. Há indícios. Queimaduras de terceiro grau. Sol inimigo assola litoral,
incendiando o sal. O próprio sal! Do mar. Do próprio mar. Queimando como
fósforo.
(Pausa)
Calma, estamos aqui. Estaremos aqui amanhã também. No mesmo local. BOA
NOITE. Bem vinda, noite. Está começando. Bem vinda. Ficaremos aqui,
aguardando.
(Pausa)
Emitindo.
(Pausa)
Uma luz natural.
(Pausa)
Uma luz inimiga que imita a luz natural.
(Pausa)
Indícios, há indícios. Apenas indícios, mas indícios fortes. De quê.
(Pausa)
Luz homicida imita feriado nacional.
(Pausa)
Luz da pele imita a luz de um berro. E queima. Doze vítimas.
(Pausa)
Luz completa cobre a luz parcial, unindo a cidade. Numa noite. Numa única
noite. BOA NOITE. Sonâmbulos imitam gente acordada. BOA NOITE, noite.
Estaremos aqui, na mesma posição. Falando. Está começando. Meus ossos
serão iguais amanhã.
VOZ A
Morro ou não morro? BANG! Agora? Outra hora? É só fechar os olhos e.
BANG! BANG! BANG! Como quem respira. Como quem contempla. Morrer
caindo na paisagem. BANG! BANG! Morre!
Tic. Por que você não morre? Pode continuar depois de morrer. A gente
encontra um número de seguridade social e você continua, BANG!, recebendo,
BANG! Pode morrer, na boa, a gente encontra um leito de hospital e você
continua, BANG!, internado, BANG! Assim, assado. Assim, finado. Você
continua, BANG!, a ler jornal, BANG! E a comer a tua mulher, BANG! BANG!,
sem respirar nem ereção, a gente arruma um caralho e você continua, BANG!,
um caralho pra você continuar depois de morto, BANG!, a comer a tua mulher,
BANG!, pela frente e por trás, BANG!, sem problema nenhum. Tac. Por que
você não morre? A gente arranja um jeito e você continua, BANG! a ficar
melancólico num final de tarde ou a imitar, mesmo depois que os ossos
secaram, até depois de ser cremado caso escolha a cremação, a imitar com
perfeição o som de seu passarinho predileto, a gente dá um jeito, BANG! de
trazer você até a ponta da praia pra que você comente,
BANG!, as cores, BANG!, do poente, repito, as cores do poente, BANG! Morre,
então, por que você não morre?
Voz B
Os prejuízos foram calculados em. BOA NOITE. Está começando. A água
ergueu-se até a altura de um adulto em pé e penetrou depois nas paredes.
Depois que secaram, a água continuou presa dentro delas, entranhada nos
tijolos, numa umidade interminável, que não ia embora nunca. BOA NOITE.
Aos poucos, a parede começou a destilar essa água, como se chorasse e – o
mais estranho – estas “lágrimas” pareciam salgadas. Até hoje, BOA NOITE, as
paredes choram. BOA NOITE. Lágrimas salgadas. De sal acumulado. Dentro
das paredes.
Voz A
A morte é minha. O corpo que apodrece é meu. É tudo meu. A cova é minha.
Só cabe um cara lá dentro e esse cara sou eu. BANG! Ninguém morre no lugar
de ninguém. BANG!
Calma! Muita calma. Cada um tem sua vez. Quando você menos espera…
BANG! Você vai ter sua própria morte, um dia. Vai sim. BANG! Garanto.
Voz B
Quando?
Voz A
BANG!, esqueci. Mais cedo ou mais tarde. BANG! Garanto.
Voz B
Todos teremos chance. Todos provaremos, depois de uma longa aproximação.
É humano, aliás, perfeitamente humano isso. Gente, é super normal,
humaníssimo. Pessoas em fuga, pessoas humanas, pessoas querendo,
pegando, quebrando. É profundamente humano, isso tudo.
Humano demais. BOA NOITE. Calma. Está começando. Vinte e nove de julho
de dois mil e lá vai pedrada. Se permanecermos calmos teremos chance.
Teremos, sim. Mais chance ainda. A humanidade inteira terá.
Voz A
Teremos, talvez, nosso caralho de volta. BANG! Nosso próprio caralho, quem
sabe, de volta para nós.
Voz B
Teremos chance, entorpecidos, sonâmbulos em nossa própria, BOA NOITE,
beleza e destino. Pessoas contribuindo mutuamente para a desgraça umas das
outras. É humano isso, gente, humano demais. E teremos chance assim, de
olhos fixos, destemidos, inatingidos por nossa ansiedade e sofreguidão. Tenho
certeza. BOA NOITE. 27 de janeiro de dois mil e lá vai pedrada.
E não sei quanto. E mais ainda. BOA NOITE. Lá vai. BOA NOITE. Está
começando.
Voz A
Tac. Teremos aquilo que já tínhamos antes. Nem mais, nem menos. Disfarçado
por um novo nome, uma nova embalagem e uns aninhos dessa vidinha de
merda a mais do que teríamos antes. Tic. Apartamento de três quartos com
duas vagas na garagem e um solário para criar tulipas é o que teremos,
BANG!, é tudo, absolutamente tudo o que teremos. Tac. Mas eu queria mais.
Eu sou exatamente aquele que queria mais. O tempo todo fiquei querendo,
cobiçando, o meu e o alheio. Fui querendo, querendo, mais e mais. Só podia
dar merda. BANG!
Voz B
BOA NOITE. 27 de setembro de dois mil e lá vai pedrada. Um romano morreu
e foi esquecido. Um egípcio comedor de poeira e um croata assassinado foram
esquecidos, profunda e rapidamente esquecidos. A maior injustiça de todas foi
esquecida. Não me pergunte qual. Não lembro. BOA NOITE. 27 de sei lá
quanto de mil ou dois mil e lá vai muita, mas muita pedrada.
Lentamente. Veja como. Ninguém fala mais nisso. Com um trabuco na cara e
foi esquecido. Trabalhou a vida inteira e foi esquecido. Sustentou mulher e
filhos e foi esquecido. Pagou seus impostos e foi esquecido. BOA NOITE. Se
afogou na Lagoa Rodrigo de Freitas e foi esquecido.
Lentamente. Com calma. Uma espécie de poeira cobriu a soma de tudo o que
tinha feito nesse mundo. O injustiçado foi esquecido e quem cometeu a
injustiça também foi.
Até o juiz que julgou isso tudo foi esquecido. Vinte e tantos de não sei quanto e
lá vai pedrada, pedrada, pedrada demais. Isso também foi esquecido.
Completamente. BOA NOITE.
Download

Bang, bang - Nuno Ramos