Dilemas e Soluções nos
Serviços de Saúde: casos
sobre a atenção à violência
sexual e ao abortamento com
foco nos direitos humanos das
mulheres
2007
Brasil
Protegendo a saúde das mulheres
Promovendo os direitos reprodutivos das mulheres
2
Dilemas e Soluções nos Serviços de
Saúde: casos sobre a atenção à violência
Dilemas e Soluções nos
sexual e ao abortamento com foco nos
direitos
humanos
das mulheres
Serviços
de Saúde:
um estudo de casos
recorrentes na atenção
ao abortamento com
foco nos direitos
humanos das mulheres
Ipas Brasil e Comissão Nacional de Violência Sexual e Interrupção da
Gravidez da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e
Obstetrícia – FEBRASGO
Autores:
Beatriz Galli, Jefferson Drezett e Leila Adesse
Prefácio:
Cristião Fernando Rosas
Agradecimentos:
Daniel Aragão, Charlotte Hord, Maria de Bruyn e Maria Elvira Vieira de Mello pelos
comentários, revisão e sugestões.
Esse material foi inspirado no livro Reproductive Health and Human Rights:
integrating medicine, ethics and law dos autores Rebecca Cook, Bernard M.Dickens
e Mahmoud F. Fathalla.
3
Sobre os Autores:
Beatriz Galli, Advogada, Assessora de política e direitos humanos de Ipas Brasil, foi
representante no Brasil da organização não governamental Centro pela Justiça e Direito
Internacional (CEJIL); trabalhou como assistente de Programa na Fundação Ford nas áreas
de Direitos Humanos e Saúde Reprodutiva, e foi uma das fundadoras e coordenadoras da
organização não governamental ADVOCACI - Advocacia Cidadã pelos Direitos Humanos.
Tem mestrado em Direito pela Universidade de Toronto, como bolsista do Programa
Internacional de Direito da Saúde Sexual e Reprodutiva, de 2001 a 2002, com orientação da
professora Rebecca Cook.
Jefferson Drezett, Médico ginecologista, Diretor da Divisão de Ginecologia Especial e
Coordenador do Serviço de Atenção Integral à Mulher Sexualmente Vitimada do Centro de
Referência de Saúde da Mulher do Hospital Pérola Byington, São Paulo, consultor do
Ministério da Saúde e do Ipas Brasil e assessor do consórcio latino-americano de
anticoncepção de emergência. Doutor pelo Centro de Referência da Saúde da Mulher e de
Nutrição, Alimentação e Desenvolvimento Infantil.
Leila Adesse, Médica sanitarista , Diretora de Ipas Brasil, tem especialização em Saúde
Pública e mestrado em Saúde da Mulher e da Criança, ambas pela Fundação Oswaldo
Cruz. Atualmente é Professora cedida da Fundação Oswaldo Cruz. Atua principalmente
nos seguintes temas: Saúde da Criança, Pediatria, Puericultura, Cuidados Primários em
Saúde.
4
Índice
Prefácio................................................................................ ................. 6
Introdução ...................................................................................... 8
Apresentação ................................................................................ 9
Caso 1 - Violência sexual e o acesso ao aborto previsto
em lei
...................................................................................... 11
Caso 2 - Atenção à adolescente em situação de violência sexual e
papel do profissional de saúde .................................................... 18
Caso 3 - Violência institucional, discriminação e falta de qualidade
na atenção pós-aborto ................................................................. 22
Caso 4 - Violência doméstica e violência sexual, acesso ao aborto
legal e qualidade da atenção ....................................................... 28
Caso 5 - Atenção pós-abortamento e desrespeito à adolescente
como sujeito de direitos com autonomia sexual e reprodutiva ...... 36
Caso 6 - Aspectos éticos e de direitos humanos na atenção ao
abortamento: a importância da confidencialidade para o acesso
sem discriminação aos serviços de saúde ................................... 40
Caso 7 - Como lidar com conflitos entre as adolescentes e seus
pais na atenção à saúde sexual e reprodutiva: a lei e o papel do
profissional de saúde ................................................................... 42
Caso 8 - Um caso de gravidez de risco e direito ao aborto legal:
lei no papel e falta de acesso na prática ...................................... 47
Referências Bibliográficas............ ................................................ 55
5
Prefácio
É com verdadeiro prazer que escrevo estas palavras de apresentação a este excelente
livro Dilemas e Soluções nos Serviços de Saúde – casos recorrentes na atenção à
violência sexual e ao abortamento com foco nos direitos humanos das mulheres de
Ipas Brasil.
Este trabalho reúne um conjunto especialmente selecionado de casos relatados por
profissionais de saúde, de situações envolvendo violência sexual e abortamento. A simples
leitura dos casos levará o leitor a identificar várias situações vividas pelos profissionais
de saúde no seu dia-a-dia, as dificuldades e as barreiras envolvidas neste atendimento.
O aborto como fenômeno bio-psico-social é a matriz desta obra. Esta compilação de
situações práticas de abortamento é do mais alto valor, pois enquadra o aborto como
um grave problema de saúde pública, e ainda reconhece o grande desafio de gestores
e provedores em dar qualidade e uma assistência humanizada a estas mulheres e
adolescentes, garantindo seus direitos humanos.
Entre nós, o aborto é uma das principais causas de morbi-mortalidade materna. Estudos
apontam que são realizados 1 milhão de abortos no Brasil, ocupando 250 mil leitos
hospitalares/ anuais para tratamento de suas complicações, sendo a 5ª causa de
internação e o 2º procedimento obstétrico mais realizado no SUS. A magnitude desta
prática em nosso país traduz inequívoca expressão das desigualdades sociais, sendo
ainda reconhecido que aspectos culturais, religiosos e legais inibem as mulheres de
declararem seus abortamentos. Como resultado destes aspectos na prática assistencial
dos serviços de saúde, tem-se visto posturas discriminatórias, atitudes coercitivas,
atendimento desumanizado, enfim, barreiras que dificultam o acesso aos serviços de
saúde e a necessária boa qualidade de atenção.
O formato na organização de casos, os comentários muito bem elaborados sobre cada
situação, o arcabouço jurídico, ético, bioético e de direitos humanos incluídos nos textos,
é um facilitador no aprofundamento da questão, e tem maior potencial de gerar reflexão
6
pelos profissionais de saúde sobre a qualidade da assistência que prestam, sobre suas
atitudes ético-profissionais e os direitos sexuais e reprodutivos envolvidos em cada
situação.
Considero ser esta obra de leitura obrigatória a todas e todos os envolvidos na assistência
ao abortamento, de gestores a provedores, extensivo a toda sociedade civil interessada
em melhor compreender as agruras envolvidas nessa assistência, bem como, seus
aspectos éticos e de direitos humanos relacionados. Felicito Ipas Brasil por esta obra
que, com sensibilidade, apresenta a dramaticidade vivenciada por adolescentes e
mulheres em situações de abortamento, e que muitas vezes têm seus direitos humanos
e de saúde desrespeitados.
Parabéns a todas e todos que direta ou indiretamente contribuíram com Dilemas e
Soluções nos Serviços de Saúde – casos recorrentes na atenção à violência sexual e
ao abortamento com foco nos direitos humanos das mulheres, pois esta obra contribuirá
na difícil tarefa de capacitar profissionais de saúde, e para as necessárias mudanças
dos atuais modelos assistenciais, bem como, na implementação de políticas públicas
de saúde centrada nas necessidades de adolescentes e mulheres.
Cristião Fernando Rosas
Médico Ginecologista, Presidente da Comissão Nacional de Violência Sexual e
Interrupção da Gravidez da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e
Obstetrícia – FEBRASGO e Delegado e ex-conselheiro do CREMESP.
7
Introdução
Desde 1994, Ipas Brasil trabalha em várias regiões do País pela melhoria da qualidade
da atenção às complicações derivadas do abortamento inseguro1, visando contribuir
para a redução da mortalidade materna. O objetivo central do trabalho de Ipas Brasil é
dar suporte técnico para os profissionais de saúde e criar um ambiente favorável para
as mulheres e adolescentes exercerem seus direitos humanos à auto-determinação
sexual e reprodutiva, como o direito à saúde, o direito a não discriminação no acesso
à saúde e o direito a uma vida livre de violência. Esse objetivo se ajusta ao Programa
de Ação da Conferência de População e Desenvolvimento do Cairo, de 1994, que
trata o aborto inseguro como um grave problema de saúde pública e uma violação dos
direitos humanos.
Para alcançar tal objetivo, Ipas Brasil atua em parceria com o Ministério da Saúde, as
Secretarias de Saúde e as Associações Médicas. Juntos desenvolvem pesquisas e
atividades de capacitação para os profissionais de saúde no uso de tecnologias e na
aplicação de critérios éticos e de direitos humanos para a atenção ao abortamento e
à violência sexual. Ipas Brasil atua em dois níveis: no nível local - dando suporte aos
profissionais para que possam prestar uma atenção de qualidade nos serviços de
saúde às mulheres e adolescentes - e no nível nacional, colaborando na elaboração e
na implementação de políticas de saúde em relação ao abortamento e à violência
sexual, participando de iniciativas junto à Área Técnica da Saúde da Mulher, do
Ministério da Saúde, em grupos de trabalho, seminários e conferências.
1
A Organização Mundial da Saúde define aborto inseguro como o procedimento de interrupção da
gravidez realizado por pessoa sem habilitação necessária ou em ambiente sem condições sanitárias,
ou em ambas as circunstâncias.
8
Apresentação
Nas sessões de capacitação para profissionais de saúde sobre a atenção pósabortamento e a técnica de aspiração manual intra-uterina (AMIU), Ipas Brasil tem
estimulado a discussão sobre critérios de ética e de direitos humanos que devem ser
observados para uma boa qualidade da atenção. Nessas atividades são relatadas
situações vivenciadas na clínica obstétrica, que trazem dilemas para os profissionais
de saúde, pois envolvem valores culturais, religiosos e conflitos pessoais relacionados
ao tema do abortamento. Alguns desses casos foram comentados na coluna “Dilemas
e Soluções na Rotina dos Serviços”, da Revista Eletrônica de Ipas Brasil, disponível
na homepage da instituição, através do link http://www.ipas.org.br.
Para esta publicação, escolhemos relatos de prática com maior potencial de gerar
reflexão e debate sobre a qualidade na assistência ao abortamento, a ética profissional
e institucional e os direitos humanos de mulheres e adolescentes usuárias dos serviços
de saúde. O nosso objetivo é o de contribuir com os profissionais de saúde que atuam
nas diversas regiões do país e se deparam com situações semelhantes. Os casos
apresentados adiante baseiam-se em relatos orais dos profissionais feitos durante
as sessões de capacitação realizadas por Ipas Brasil, e apresentam nomes fictícios.
Na análise, buscamos detalhar alguns aspectos éticos e de direitos humanos
relevantes em cada situação concreta, não esgotando, porém, outras análises que
possam ser feitas sobre aspectos não comentados aqui.
Ao sistematizar os casos esperamos oferecer suporte aos profissionais de saúde e
contribuir para aumentar o seu conhecimento sobre os direitos humanos das mulheres,
para que possam aplicá-lo em seus cotidianos nos serviços de saúde. Acreditamos
que as mulheres podem exercer efetivamente os direitos humanos quando encontram
um ambiente favorável nos serviços de saúde.
Esta publicação visa, ainda, estimular a adoção de modelos de atenção, centrados
nas necessidades das mulheres, jovens e adolescentes, voltados para a redução da
9
mortalidade materna e que garantam o direito ao aborto nos casos previstos na
legislação brasileira. Esperamos, através desta metodologia de “casos exemplares”,
sensibilizar os profissionais de saúde para a adoção da abordagem dos direitos
humanos na atenção ao abortamento. [NEALE, THAPA & BOYCE] Estes, ao fazê-lo,
tornar-se-ão agentes promotores dos direitos humanos das mulheres nos serviços onde
atuam. Os profissionais estarão, dessa forma, colaborando para a redução do estigma
e da discriminação na assistência ao abortamento.
Pretendemos, também, contribuir para a necessária reflexão e debate sobre o impacto
da lei que criminaliza a prática do aborto na saúde pública2. Segundo a pesquisa
Magnitude do Aborto no Brasil, estima-se que em torno de 1 milhão de abortos inseguros
são realizados em mulheres a cada ano no país. [MONTEIRO & ADESSE] Consideramos
que é a condição de ilegalidade do aborto que faz com que a interrupção da gravidez
ocorra em condições sanitárias precárias, com riscos para a vida e saúde das mulheres.
A situação de ilegalidade do aborto também contribui para as barreiras existentes na
assistência, que dificultam o pleno acesso ao aborto nos casos previstos em lei, como
veremos mais adiante na análise dos casos.
2
Ver, a esse respeito, o relatório final do seminário internacional Reforma Legal para avançar na proteção
dos direitos sexuais e reprodutivos no Brasil, elaborado pelo Ipas Brasil, em 2006. [ADESSE, GALLI e
ALMEIDA]
A Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM), órgão do governo federal brasileiro com
status de ministério criou, em 2005, uma Comissão Tripartite para revisar a legislação penal atual em
relação ao aborto. O trabalho da Comissão, com o apoio de parlamentares, profissionais de saúde,
acadêmicos e representantes de movimentos sociais e de organizações da sociedade civil, teve como
resultado a apresentação ao Congresso Nacional de um projeto de lei específico, permitindo a interrupção
da gestação até 12 semanas em situações específicas, tais como risco de vida para a gestante, para a
saúde, em caso de violência sexual, anomalia fetal e a pedido da mulher. Conforme deliberado na II
Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, em agosto de 2007, o projeto deve ser novamente
apresentado ao Congresso Nacional por iniciativa do Poder Executivo, de forma a garantir os direitos
humanos e reduzir as altas taxas de mortalidade materna por aborto inseguro no país.
10
Caso 1 - Violência sexual e o acesso ao aborto previsto em lei
Relato do Caso
No final do mês de março de 2005, em uma cidade no Estado do Rio Grande do Sul,
Suzana, uma adolescente de 14 anos revelou para sua família que havia sido estuprada
pelo capataz da fazenda da família e, que em conseqüência deste ato, estava na 11ª
semana de gestação. O seu pedido de interrupção da gravidez (aborto legal), que foi
aceito e autorizado por ordem do Juiz, não foi cumprido pelos médicos do hospital,
pois nenhum deles concordava em realizar o procedimento. O Juiz, então, expediu outra
ordem judicial autorizando que o procedimento fosse realizado em outras cidades da
região. Antes de, efetivamente, ter acesso ao aborto legal, a adolescente procurou
novamente o hospital sentindo dores e sangramento. O diagnóstico confirmou a
ocorrência de abortamento espontâneo. Entretanto, entrevistada pelo jornal local, a
Delegada de Polícia responsável pelo caso anunciou que um novo inquérito policial
seria iniciado para investigar se, de fato, a adolescente sofrera um aborto espontâneo
ou se seria um aborto provocado, além de investigar se houve envolvimento de sua
mãe.
Quais direitos humanos estão em questão na atenção à violência sexual?
Como o profissional de saúde que atua em serviço de referência para o
atendimento de casos de violência deveria agir nesta circunstância?
Os direitos humanos mencionados a seguir, relacionam-se à saúde sexual e reprodutiva
das mulheres e adolescentes e estão expressos nos tratados internacionais de direitos
humanos ratificados pelo governo brasileiro. Ao ratificar um tratado internacional, este
ganha força de lei interna e o Estado se compromete a tomar todas as medidas ao seu
alcance para garantir a sua implementação, devendo mobilizar diversos setores do
governo com a finalidade de assegurar e garantir os direitos humanos, em seu território.
[Souza e Adesse] Nesse sentido, os serviços de saúde são instituições públicas, que
têm a responsabilidade institucional de promover, respeitar e proteger os direitos
11
humanos das mulheres e adolescentes em situação de violência sexual. Abaixo
relacionados, estão os direitos humanos que devem ser considerados na análise
do caso em questão:
Direito à saúde
O direito à saúde está expresso nos Artigos 6º e 196 da Constituição Federal
brasileira de 1988, como um direito social3. Em relação às políticas sociais que
visam à redução do risco de agravos, vale ressaltar o que dispõe o Comentário
Geral nº 14 do Comitê sobre Direitos Econômicos e Sociais das Nações Unidas,
que desenvolveu o conceito do direito à saúde, detalhando os seus componentes
essenciais: disponibilidade, acessibilidade, aceitabilidade e qualidade dos serviços.
O direito à saúde inclui o acesso à atenção de qualidade em situações de violência
sexual. [DE BRUYN] Por sua vez, a atenção de qualidade deve contemplar o acesso
aos recursos humanos do serviço de saúde, de forma que eles garantam um
tratamento com respeito, confidencialidade e solidariedade pelo profissional de
saúde, observando as necessidades da mulher ou adolescente que busca o serviço
de saúde.
No caso analisado, a adolescente não teve acesso facilitado, dentro de um prazo
adequado e razoável para a realização da interrupção legal da gravidez, sendo
obrigada a procurar em mais de um local, correndo riscos para a sua saúde física e
mental. Desta forma, para o exercício do direito à saúde, protegido pelo Artigo 12
do Pacto Internacional de Direitos Econômicos Sociais e Culturais - PIDESC, do
qual o Brasil é signatário, é necessário que instalações, equipamentos, bens e
serviços estejam suficientemente disponíveis e acessíveis para a população, o que
não aconteceu no caso aqui narrado.
3
12
Artigo 196 da Constituição Federal brasileira de 1988: “a saúde é direito de todos e dever do Estado,
garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de
outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção
e recuperação”
A assistência integral à saúde deve também contemplar a promoção do acesso à
informação para as mulheres e adolescentes sobre o direito previsto em lei, para que
possam decidir sobre a interrupção, ou não, da gravidez resultante de violência sexual,
amparadas pelo Código Penal e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) - Lei
n° 8069, de 1990. [GALLI & ADESSE] É dever do profissional de saúde informar sobre
o direito ao aborto legal, previsto em lei. No caso das adolescentes, o Estatuto da Criança
e do Adolescente está em conformidade com o que dispõe a Convenção Internacional
dos Direitos da Criança, ratificada pelo Brasil, e coloca o adolescente como sujeito de
direitos, como pessoa em condição peculiar de desenvolvimento e que deve ser tratada
com prioridade absoluta pela família, sociedade e Estado4.
Direito a não ser submetida à tortura e tratamento desumano
A sucessiva busca por diferentes serviços para realizar o procedimento de aborto legal
pode causar danos para a saúde física e mental e sinalizar um tratamento inadequado e
desumano. O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, igualmente ratificado
pelo Brasil, estabelece, em seu Artigo 7º que: “Ninguém poderá ser submetido à tortura,
nem penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes...”.
Desta forma, é dever do Estado, através dos profissionais de saúde que atuam nos
serviços de saúde, facilitar o pleno acesso ao procedimento de saúde de que necessita
a mulher ou adolescente em situação de violência sexual. Conforme o Estatuto da Criança
e do Adolescente, Artigo 18, “é dever de todos zelar pela dignidade da criança e
adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano”.
4
A Constituição Federal, no Artigo 227 determina que é dever da família, sociedade e Estado assegurar
à criança e adolescente, com absoluta prioridade, o direito à saúde, dignidade, respeito, liberdade,
entre outros, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração,
violência, crueldade e opressão.
13
Direito a viver livre de violência
O direito a viver livre de violência está disposto no texto da Convenção Interamericana
para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do
Pará), ratificada pelo Brasil. A Convenção estabelece, expressamente, que o direito da
mulher de viver livre de violência 5 abarca, entre outros, os direitos à igualdade e a viver
livre de qualquer forma de discriminação.6A violência sexual sofrida pela adolescente
deveria ter sido reparada pelo Estado, através do acesso ao aborto legal, uma vez que
era essa a vontade da adolescente, que contava com o apoio da sua família 7.
Vale ressaltar que o Estatuto da Criança e do Adolescente consagra o princípio do respeito
à opinião e à vontade das crianças e adolescentes.8 O caso revela, ainda, que a jovem
sofreu a violência sexual inicial e a violência institucional, que se observa nas várias
vezes em que recebeu um “não” do setor de saúde para o seu pedido de interrupção
legal da gestação, até chegar na situação de um aborto espontâneo.
Direito à igualdade e não discriminação
O fato da adolescente não ter tido acesso ao procedimento de interrupção da gestação,
quando era essa a sua vontade, pode revelar também discriminação no acesso à saúde9.
O Estado tem o dever de garantir o exercício dos direitos humanos sem discriminação
de qualquer natureza. A interrupção da gravidez fruto de violência sexual é um direito
5
Convenção Belém do Pará, Artigo 3. “Toda mulher tem direito a ser livre de violência, tanto na esfera
pública como na esfera privada”.
6
Convenção Belém do Pará, Artigo 6: “O direito de toda mulher a ser livre de violência abrange, entre
outros: a) o direito da mulher a ser livre de todas as formas de discriminação”.
7
Neste caso, como a adolescente tem 14 anos de idade, é necessário contar com o consentimento de
ambos os pais para a realização do procedimento de interrupção da gravidez, pois segundo o Código
Civil ela é absolutamente incapaz. Neste mesmo sentido, dispõe a Norma Técnica para a Prevenção
e Tratamento dos agravos Resultantes de Violência Sexual Contra Mulheres e adolescentes do
Ministério da Saúde estipulando, para as adolescentes de idade inferior a 16 anos, que estas devem
ser representadas pelos pais ou representante legal, para se manifestarem por elas.
8
Artigo 15 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) – A criança e o adolescente têm direito à
liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e
como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis. Artigo 16
ECA – O direito à liberdade compreende os seguintes aspectos: II- opinião e expressão.
9
O artigo 5º do texto constitucional dispõe em seu caput: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção
de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança, e à propriedade”.
14
garantido por lei que deve ser respeitado e assegurado pelo Poder Público através de
serviços de saúde. Desde a primeira vez em que Suzana procurou um serviço de saúde,
sua palavra deveria ter sido considerada como suficiente para que pudesse exercer o
seu direito ao aborto previsto em lei, conforme era a sua vontade e a de sua família.
A adolescente sofreu discriminação, ainda, quando teve sua palavra foi colocada em
questionamento pela Delegada de Polícia, que declarou sua intenção de abrir inquérito
policial para investigar as circunstâncias em que o aborto ocorreu.
O Código Penal prevê duas situações para a interrupção legal da gestação, sem que
seja necessário solicitar autorização de juiz. Acrescente-se que a Norma Técnica
“Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual Contra Mulheres
e Adolescentes” do Ministério da Saúde, lançada em 1999, atualizada e revisada em
2005, orienta sobre o procedimento nos serviços de saúde10.
Diante deste caso, podem surgir dúvidas por parte dos profissionais de saúde como
deveriam proceder conforme a legislação vigente. Assim, algumas questões específicas
assumem particular relevância:
É legalmente aceitável que o profissional de saúde se recuse a realizar o aborto
previsto em lei? Quais são os limites e as implicações legais e éticas dessa
conduta profissional?
O Código de Ética Médica assegura, segundo o Artigo 7, que “o médico deve exercer a
profissão com ampla autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços profissionais
a quem ele não deseje, salvo na ausência de outro médico, em casos de urgência, ou
quando sua negativa possa trazer danos irreversíveis ao paciente”. Também é direito
do médico, conforme o Artigo 28, “recusar a realização de atos médicos que, embora
permitidos por lei, sejam contrários aos ditames de sua consciência”.
10
A Norma inclui os procedimentos recomendados para o aborto seguro auxiliando os profissionais
de saúde para uma atuação eficaz e qualificada nos casos de violência sexual.
15
Dessa forma, é garantido ao médico alegar objeção de consciência como um direito
individual de recusa em realizar o abortamento. A posição do médico que manifesta
objeção de consciência deve sempre ser respeitada. Nesses casos, recomenda-se que
o médico declare sua condição de objeção de consciência para a mulher, ou seu
representante legal, de forma franca e clara, encaminhado-a para outro profissional ou
serviço de saúde que concorde em realizar o abortamento.
Com relação a questão da objeção de consciência, o Código de Ética Médica e a Norma
Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento do Ministério da Saúde, de 2005,
estão em consonância. Não cabe ao médico alegar objeção de consciência em algumas
situações:
! Nos casos em que o abortamento é necessário por motivo de iminente risco de morte
para a mulher.
! Na ausência de outro médico que realize o abortamento em qualquer condição
juridicamente permitida.
! Nas situações em que possa haver danos ou agravos à saúde da mulher em razão da
omissão ou recusa do atendimento do profissional,
! A Norma técnica acima referida ainda especifica as situações de complicações
derivadas de abortamento inseguro, por se tratarem de casos de urgência.
A questão do uso da objeção de consciência pela equipe de saúde deve ser analisada
com base em critérios éticos e de direitos humanos. É importante ressaltar que, apesar
de existir o direito individual à objeção de consciência por parte do profissional de saúde,
existe uma responsabilidade institucional do serviço de garantir o acesso através de um
profissional que realize o procedimento.
A atenção à violência sexual inclui o acesso à contracepção de emergência, ao aborto
legal e a obrigação das instituições de saúde é garantir que haja uma equipe treinada
para prestar assistência, mesmo havendo profissionais na equipe que possam alegar
objeção de consciência.11 Deve-se ressaltar que clínicas e instituições públicas e de
11
16
Em suas Observações Conclusivas ao governo da Polônia em 2004, o Comitê de Direitos Humanos das
Nações Unidas (parágrafo 8) recomendou que: “O Estado deve fornecer informação adicional sobre o
uso da cláusula de objeção de consciência pelos médicos (...)”.
saúde, mesmo aquelas de caráter religioso, não podem invocar a objeção de consciência
em casos que envolvam riscos para a vida e para a saúde da mulher, como, por exemplo,
nos casos de complicações derivadas de aborto inseguro. Nesses casos, a mulher deve
receber atenção imediata ou ser encaminhada a outro local que preste o atendimento
com urgência. Porém, é dever legal da instituição garantir que o atendimento apropriado
seja realizado, mantendo profissionais de saúde que concordem em prestar a assistência.
Em caso de objeção de consciência, o médico tem o dever profissional e ético de indicar
outro colega de profissão que realize o procedimento. [DICKENS & COOK].
O tema da objeção de consciência, no que se refere à recusa em realizar o abortamento
previsto em lei, é um tema central na atenção à violência sexual e pode gerar impasses
e conflitos para os profissionais de saúde. A perspectiva de direitos humanos está
centrada no atendimento das necessidades das mulheres que sofreram violência sexual.
Os profissionais são agentes do Estado e devem zelar pelo interesse público e pela
proteção dos direitos humanos das mulheres e adolescentes em situação de violência.
A Comissão para os Aspectos Éticos da Reprodução Humana e Saúde das Mulheres
da Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (FIGO) lançou, em agosto de
2005, o documento “Diretrizes Éticas acerca da Objeção por Razões de
Consciência”, que visa orientar a prática de profissionais de saúde na atenção à saúde
sexual e reprodutiva.
O compromisso primordial de obstetras-ginecologistas é o de trabalhar em prol da saúde
reprodutiva e bem-estar das mulheres. Um profissional que venha a se sentir, por razões
de suas próprias crenças pessoais, impossibilitado de prover um tratamento médico
recomendável a uma paciente está sujeito, apesar de tal fato, a determinadas
responsabilidades para com ela. Todo profissional tem o dever de informar a seus
pacientes acerca de todas as opções indicadas para o tratamento, inclusive aquelas
que ele se negue a prestar.
17
Caso 2 – Atenção à adolescente em situação de violência sexual e
papel do profissional de saúde
Relato do Caso
Gabriela engravidou aos 16 anos, após sofrer abuso sexual praticado pelo padrasto,
com quem convivia desde um ano de idade. Quando Dona Marta, mãe de Gabriela,
descobriu que a filha estava grávida (a gestação já tinha 3 meses e meio), achou que o
responsável era algum namorado. Ao pressionar Gabriela para que revelasse o nome do
rapaz, espantou-se diante da afirmação de que a filha sofrera abuso sexual pelo padrasto.
A adolescente foi levada por sua mãe ao serviço de saúde, onde repetiu sua estória,
desta vez, à médica coordenadora do serviço. Mãe e filha foram informadas sobre o
direito de interrupção da gravidez, previsto em lei, e decidiram pelo procedimento, sendo
orientadas pelo serviço de saúde de que deveriam obter autorização judicial para realizar
a interrupção da gestação.
A mãe retornou afirmando: “Achamos que seria fácil, doutora. Fomos até o Fórum,
achando que estaria tudo resolvido, pois tínhamos a minha autorização. Por que para
nós deu tudo errado e para outras pessoas dá certo? A lei não funciona para a gente?”.
A médica, sem jeito, respondeu: “Cada Juiz é um Juiz: depende de quem está julgando”.
Elas informaram à médica que quando chegaram ao Fórum, souberam que o magistrado
que normalmente autorizava a interrupção da gravidez em casos de violência estava de
férias. Não sabendo como proceder, o pessoal do cartório deixou mãe e filha esperando
por outro Juiz por várias horas, encaminhando-as para vários departamentos, onde ninguém
demonstrava interesse em ajudá-las. Quando foram finalmente atendidas, a Juíza declarou
que não poderia fornecer a autorização, pois não havia provas de que Gabriela sofrera
abuso sexual.
Diante da negativa, Gabriela e sua mãe voltaram ao serviço de saúde, sendo informadas
de que poderiam recorrer da decisão. O caso, então, passou para outra Juíza, que decidiu
falar em particular com a adolescente, tentando convencê-la a desistir de abortar. A Juíza
conversou também com Dona Marta e com as duas médicas que atenderam o caso no
18
serviço de saúde. A conversa deixou a gestante confusa e, ao final, a Juíza negou
novamente o pedido, alegando que não tinha certeza do que a jovem realmente queria.
No total, foram 15 dias de idas e vindas ao Fórum. A casa de Dona Marta está localizada
longe da cidade, sendo necessário tomar dois ônibus e fazer uma caminhada para chegar
ao Fórum. No Fórum, em geral, Dona Marta e Gabriela tiveram que aguardar por várias
horas para serem atendidas e relataram que foram humilhadas no local, através de
comentários inconvenientes ou mesmo maldosos. Dona Marta desabafou: “É só porque
somos pobres, se fôssemos ricas teríamos procurado uma clínica clandestina e já estava
tudo resolvido”.
Gabriela é hoje mãe de Rafael, de 4 meses de idade. Recentemente, o Fórum enviou
uma assistente social à casa de Dona Marta, para saber se ela e suas outras duas filhas
tinham condições de sustentar a criança. A assistente social aconselhou, então, que o
bebê fosse disponibilizado para adoção, em virtude do grau de parentesco da criança
com a avó (neto dela e filho de seu ex-marido). “Não entendo. Primeiro falam que não se
pode abortar por que não há provas e, depois, dizem que é neto e querem tirar a criança
da gente. Era só o que me faltava”, protestou Dona Marta. “Rafael é filho de Gabriela e
ponto final nessa história. Nasceu e agora pertence a essa família”.
Quando lhe perguntaram se o seu ex-marido fora preso, Dona Marta olhou, sem esconder
o triste sorriso e disse: “Ele está por aí, mora com a mãe dele em uma rua próxima
daqui e, na hora de registrar o Rafael, colocaram ele como pai do menino. Vai entender
a lei”.
Quais são os critérios éticos e de direitos humanos que devem orientar a atenção
neste caso?
Este relato é ilustrativo de várias violações aos direitos humanos das adolescentes.
Gabriela, que foi vítima de abuso sexual por parte de seu padrasto, teria direito à interrupção
19
da gravidez indesejada, conforme estabelece o Artigo 128, inciso II, do Código Penal. Além
disso, a Norma Técnica para Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência
Sexual Contra Mulheres e Adolescentes, elaborada e publicada pelo Ministério da Saúde e
reeditada em 2005 - orienta, com clareza, gestores e profissionais de saúde, sobre os
procedimentos a serem adotados para garantir o acesso à interrupção da gestação prevista
em lei. O Ministério da Saúde regulamenta, através da Norma Técnica mencionada, o acesso
de mulheres e adolescentes ao aborto legal em caso de violência sexual.
Qual é a obrigação do profissional de saúde prevista na lei?
Em situações de maus tratos contra crianças e adolescentes, inclusive abuso sexual e
violência, o Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece a obrigatoriedade do
profissional de saúde de comunicar o caso (suspeito ou confirmado) às autoridades
competentes: o Conselho Tutelar e a Vara da Infância e da Juventude, conforme expresso
nos Artigos 13 e 245 12. Cabe também ao Conselho Tutelar tomar as seguintes providências:
apoiar a investigação; fazer os encaminhamentos legais para outros órgãos públicos, quando
necessário, conforme o Artigo 136 do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Casos, como este de Gabriela, devem ser resolvidos pelos juízes com base na vontade da
adolescente, que deve ser tratada como sujeito de direitos, com autonomia para decidir
sobre questões reprodutivas. A palavra de Gabriela deveria ter sido considerada suficiente
para a Juíza, tendo em vista a dificuldade de provar o abuso sexual por parte do padrasto,
que poderia estar ocorrendo por anos seguidos, desde a sua infância, sem deixar marcas
físicas aparentes.
12
20
O Artigo 13 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) dispõe que: “Os casos de suspeita ou
confirmação de maus-tratos contra criança ou adolescente serão obrigatoriamente comunicados ao
Conselho Tutelar da respectiva localidade, sem prejuízo de outras providências legais“. Artigo 245 (Das
infrações administrativas) do ECA diz o seguinte: “Deixar o médico, professor ou responsável por
estabelecimento de atenção à saúde e de ensino fundamental, pré-escola ou creche, de comunicar à
autoridade competente os casos de que tenha conhecimento, envolvendo suspeita ou confirmação de
maus-tratos contra criança ou adolescente”.
Neste caso, é necessário obter a autorização judicial para a interrupção da
gravidez?
De fato, a obtenção de alvará ou autorização judicial não é necessária nos casos de
interrupção legal da gravidez decorrente de violência sexual (Código Penal, Artigo 128).
No caso em questão, a exigência desnecessária de autorização judicial retardou
indevidamente o acesso da adolescente ao aborto legal, acarretando riscos para a sua
saúde e sofrimento psicológico desnecessário. O desconhecimento de como proceder
gera sempre atitudes equivocadas como no caso aqui analisado.
A família de Gabriela poderia ter entrado com uma ação de indenização contra o Estado
por danos morais e materiais, uma vez que Gabriela teve seu direito de acesso ao
abortamento legal negado, além de ter sofrido outras várias violações de direitos
humanos: direito à saúde, direito à liberdade e segurança, direito a não ser submetida a
tratamento desumano, além da falta de respeito à sua dignidade como pessoa em
processo de desenvolvimento (Artigos 15 e 17 do Estatuto da Criança e do Adolescente).
21
Caso 3 - Violência institucional, discriminação e falta de qualidade
na atenção pós-aborto
Relato do Caso13
Jussara, 28 anos, mulher solteira, negra, migrante de uma região pobre do país, deu
entrada na emergência de um hospital, queixando-se de fortes dores no baixo ventre. Ao
ser examinada, verficou-se que a paciente estava com uma gestação de 3 meses. O
exame constatou, ainda, a presença de dois comprimidos de Misoprostol14 em sua vagina.
A jovem foi acusada por profissionais do hospital de ter praticado aborto e, em seguida,
foi denunciada à polícia. Jussara não obteve nenhuma informação ou apoio da equipe
de saúde. Após o procedimento de esvaziamento uterino, ela foi presa e algemada à
cama, quando naquele momento precisava e deveria ter recebido atendimento de
qualidade e sem discriminação. Ela foi encaminhada para uma casa de custódia, onde
ficou presa por 45 dias.
Durante todo esse período, tanto no hospital quanto na prisão, Jussara não recebeu
cuidados médicos, nem orientação sobre planejamento familiar.
O aborto inseguro na realidade brasileira: questão de saúde pública e direitos
humanos
No Brasil, o abortamento é crime previsto pelo Código Penal nos Artigos 124, 125 e
126, com penalidades para a mulher e para o médico que pratiquem o aborto. No entanto,
13
A elaboração deste relato inspirou-se em estudo de caso similar, contido na versão em português da
publicação Saúde Reprodutiva e Direitos Humanos: integrando medicina, ética e direito, editada pela
CEPIA, em 2004.
14
Segundo documento da FLASOG, “O misoprostol é um novo análogo da prostaglandina E1 (PG E1) que
começou a ser vendido nas farmácias da América Latina desde o final da década de 1980 com o nome
comercial de Cytotec®, como tratamento da úlcera péptica, especialmente nos casos provocados pelo
uso de anti-inflamatórios não esteroidais. É um medicamento de uso comum para os gineco-obstetras
latino-americanos. Trata-se de um fármaco barato, termoestável e efetivo para provocar contrações uterinas.
Entretanto, não está aprovado com essas indicações na maioria dos países da América Latina“.[FAUNDES]
22
de acordo com os incisos I e II do Artigo 128 do mesmo Código Penal, não é crime e não
se pune o aborto praticado por médico quando não há outro meio de salvar a vida da
gestante, ou quando a gravidez resulta de estupro ou outra forma de violência sexual.
Para que se faça o aborto, deve haver antes o consentimento da gestante ou, quando
ela for incapaz, de seu representante legal.
O abortamento é um grave problema de saúde pública no Brasil e uma das principais
causas evitáveis de mortalidade materna. Os dados mais recentes apontam para números
que variam de 728.100 a 1.039.000 abortamentos a cada ano. [MINISTÉRIO DA SAÚDE
(b)] Nas regiões mais pobres do país, a dificuldade de acesso das mulheres à informação
e aos serviços de saúde de planejamento familiar pode ser a causa do elevado número
de ocorrências de gravidez indesejada, que podem resultar na prática de abortos
inseguros, com risco para a vida e a saúde das mulheres. A curetagem pós-abortamento
é o segundo procedimento obstétrico mais realizado nas unidades de internação da
rede pública de serviços de saúde, superada apenas pelos partos normais. [MINISTÉRIO
DA SAÚDE (b)] Devido a este cenário, é fundamental que a qualidade da atenção inclua
a humanização do atendimento, baseada em critérios éticos e que garantam os direitos
humanos.
As evidências científicas e as experiências de vários países têm demonstrado que as
altas taxas de aborto inseguro estão associadas à existência de leis penais restritivas
que criminalizam a prática do aborto. Neste sentido, a Recomendação Geral nº 24 do
Comitê que monitora o cumprimento pelos Estados da Convenção sobre a Eliminação
de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher – o Comitê CEDAW – estabeleceu,
em seu parágrafo 14, que descuidar do acesso a serviços de saúde de que somente as
mulheres necessitam é uma forma de discriminação contra elas: “Outras barreiras ao
acesso das mulheres a uma assistência de saúde apropriada incluem as leis que
criminalizam procedimentos médicos de que somente as mulheres necessitam e se
submetem”. [ADVOCACI] Neste sentido, pode-se entender que a existência de leis
criminais sobre o aborto coloca as mulheres em expressivo risco de morte materna por
uma causa evitável, no caso, o aborto inseguro.
23
Em suas Observações Conclusivas sobre o Brasil, depois de examinar o relatório
apresentado pelo Estado brasileiro, o Comitê CEDAW manifestou-se, em sua 29ª
Sessão, concluindo e recomendando que “profundas medidas sejam tomadas para
garantir o efetivo acesso das mulheres a serviços e informações com o cuidado da
saúde, particularmente em relação à saúde sexual e reprodutiva, incluindo mulheres
jovens, mulheres de grupos em desvantagem e mulheres rurais. Tais medidas são
essenciais para reduzir a mortalidade materna e para prevenir o recurso ao aborto e
proteger as mulheres de seus efeitos negativos à saúde (...)” (parágrafo 52). [AGENDE]
Quais direitos humanos deveriam ter sido respeitados e de que forma?
Considerando que o aborto inseguro representa risco de morte para a mulher, o exercício
dos direitos humanos à vida, à liberdade, à segurança e à saúde inclui o acesso rápido,
oportuno e sem discriminação a serviços de saúde em que o atendimento seja eficiente
para as mulheres em processo de abortamento. [COOK, DICKENS & FATHALLA]
O direito à liberdade e o direito à segurança estão previstos no Pacto de Direitos Civis
e Políticos, em seu Artigo 9 (1), que estabelece: “Todos têm direito à liberdade e à
segurança pessoal... Ninguém será privado de sua liberdade, exceto se determinado
por lei.”
A falta de apropriada assistência à saúde sexual e reprodutiva para Jussara violou o
seu direito à liberdade e o seu direito à segurança pessoal. [ADESSE] Em lugares em
que o aborto inseguro é uma das principais causas de mortalidade materna, os governos
que ratificaram o Pacto - como é o caso do Brasil - têm a obrigação de melhorar o
atendimento e modificar as leis que o dificultam, para garantir o pleno acesso aos serviços
de saúde sexual e reprodutiva para as mulheres. Neste sentido, o Comitê de Direitos
Humanos das Nações Unidas, em suas Observações Conclusivas em relação ao Estado
peruano, recomendou que: “O Estado deveria tomar todas as medidas necessárias
para assegurar que as mulheres não colocassem a sua vida em risco devido à
existência de provisões legais sobre o aborto”. [CENTER FOR REPRODUCTIVE
RIGHTS & UNIVERSIDADE DE TORONTO]
24
Além disso, Jussara sofreu violação do direito à saúde. O Pacto Internacional sobre
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais - PIDESC, em seu Artigo 12 (1) estabelece
que: “ os Estados partes reconhecem o direito de toda pessoa a desfrutar do mais alto
padrão de saúde física e mental (...) “ . Ainda nesse sentido, vale destacar que a
Cosntituição estabelece, no seu Artigo 6°, o direito à saúde como um direito social. Em
relação à proteção do direito à saúde, não foram respeitados e garantidos o sigilo e a
privacidade na atenção prestada a Jussara. A equipe de saúde adotou uma postura
julgadora, não respeitando a sua autonomia os seus direitos humanos . [ADESSE &
GALLI]
Resumindo, a falta de qualidade na atenção dada pela equipe de saúde pode ser vista
como uma violação dos seguintes direitos:
1) o direito a não ser submetida a tratamento cruel, desumano e degradante15;
2) o direito à privacidade;
3) o direito à igualdade e à não-discriminação;
4) o direito a viver livre de violência16.
Jussara sofreu violência institucional ao ser agredida verbalmente e chamada de “
assassina “. A instituição de saúde pode ser responsabilizada pelo tratamento desumano
e degradante ao qual Jussara foi submetida. Pode-se ver então que além das violações
de direitos previstas em tratados internacionais de direitos humanos, ocorreu também o
delito de violação de segredo profissional, previsto no Código Penal brasileiro.
15
O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos estabelece, no Artigo 7º, o direito de estar livre de
tortura, tratamentos cruéis, desumanos e degradantes.
16
A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir, e Erradicar a Violência contra a Mulher - Convenção
de Belém do Pará, em seu Artigo 3º estabelece: “Toda a mulher tem o direito de estar livre de violência,
tanto na esfera pública como na esfera privada” O Artigo 6º da mesma Convenção também é aplicável
ao caso em tela quando determina que: “O direito de toda a mulher a estar livre de violência abrange,
entre outros: a) o direito da mulher a ser livre de todas as formas de discriminação“.
25
O que a lei dispõe em caso de violação do segredo profissional?
Segundo o Artigo 154 do Código Penal, é crime “revelar alguém, sem justa causa,
segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja
revelação possa produzir dano a outrem”. Diante de abortamento natural ou provocado,
o médico, ou qualquer profissional de saúde, não pode comunicar o fato à autoridade
policial, judicial, nem ao Ministério Público, por estar diante de um segredo médico, cuja
revelação é antiética e criminosa, especialmente porque pode contribuir para um
procedimento criminal contra a mulher.
Quais os princípios éticos envolvidos neste caso?
Além das violações aos direitos expressos nos tratados e documentos internacionais de
direitos humanos acima mencionados, certos princípios éticos deveriam ter sido
observados, tais como:
"
O princípio da beneficência, que implica na idéia central de que o saber médico
deve ser usado para fazer o bem. O trabalho dos profissionais de saúde deve estar
voltado para promover a saúde e salvar a vida das pacientes que necessitam de
atenção pós-aborto.
"
O princípio da igualdade, que estabelece que todos os seres humanos têm direitos
iguais e inalienáveis, independente de idade, sexo, condição social ou outros fatores.
Este princípio inclui questões sobre igualdade na distribuição de serviços de saúde
que têm impacto quando verificamos que há um acesso desigual entre as mulheres a
estes serviços. Mulheres que moram em áreas rurais, ou nas periferias urbanas,
mulheres afro-descendentes, mulheres indígenas, entre outras, em geral têm acesso
deficiente. Isso significa que as equipes dos hospitais e unidades de saúde devem
ser treinadas para oferecer assistência pós-aborto a todas as mulheres, sem
discriminá-las por qualquer razão.
26
"
O princípio da autonomia, que estabelece que o profissional de saúde deve respeitar
a liberdade de opinião e decisão das mulheres sobre questões de saúde que
envolvam as suas vidas e os seus corpos. A paciente deve ser vista como uma pessoa
autônoma para tomar decisões sobre sua vida e sua saúde.
"
Respeito ao dever de manter sigilo profissional. Em geral, as mulheres que praticam
aborto inseguro estão fragilizadas emocionalmente e fisicamente e merecem respeito
a sua privacidade. Somente com uma boa interação e confiança na relação médicopaciente é que o médico pode ter acesso às informações necessárias, que de outra
forma a paciente poderia não lhe conceder por medo de ser denunciada à polícia ou
ser discriminada.
"
A denúncia feita à polícia sobre o abortamento constitui evidente infração éticoprofissional. Segundo parecer no 24.292/00, do Conselho Regional de Medicina de
São Paulo - CREMESP, “diante de um abortamento, seja ele natural ou provocado,
não pode o médico comunicar o fato à autoridade policial ou mesmo judicial, em
razão de estar diante de uma situação típica de segredo médico”.
"
Respeito à confidencialidade, que garante que os membros da equipe de saúde
devem ter uma comunicação clara e aberta com as pacientes, assegurando-lhes
sigilo, privacidade e respeito, independente de cor, raça, estado civil, religião e
situação econômica, para garantir uma relação de confiança. Esta confiança não
deve ser quebrada sob nenhuma circunstância na atenção ao pós-aborto, para não
ameaçar os direitos humanos das pacientes.
27
Caso 4 - Violência doméstica e violência sexual, acesso ao aborto
legal e qualidade da atenção
Relato do caso
Francisca, 30 anos, chegou ao serviço de saúde bastante perturbada emocionalmente,
solicitando confirmação de possível gravidez. Chorando bastante, ela contou que seu
marido era um homem violento, que constantemente a obrigava a manter relações sexuais
e que esta possível gravidez não fora planejada. O exame de sangue confirmou a gravidez.
Bastante transtornada, ela informou à médica sobre sua intenção de fazer um aborto. A
médica tentou convencê-la do contrário, ou seja, de prosseguir com a gravidez, alegando
que tal procedimento seria ilegal e que “a vida é um presente de Deus”. Os argumentos
não convenceram Francisca que, após a consulta clínica, foi embora decidida a abortar
clandestinamente e não retornou mais ao serviço de saúde. Dizendo-se insegura sobre
ter agido ou não de forma correta no seu exercício profissional, a médica levou o caso
para a apreciação de seus colegas.
Violência sexual
Este é um caso de violência sexual ocorrido no ambiente familiar, que ocasionou uma
gravidez indesejada17. A grande freqüência de casos deste tipo e o trauma psicológico e
social para as vítimas demonstram que a violência sexual deve ser objeto das políticas
públicas. [DREZETT] É importante ver que tudo isso é também resultado da desigualdade
de poder no espaço doméstico. A Fundação Perseu Abramo, na pesquisa intitulada A
Mulher Brasileira nos Espaços Público e Privado, aponta que 13% das mulheres sofrem
estupro ou outras formas de abuso sexual cometidos por parceiros íntimos, marido ou
companheiro.
17
A Convenção para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher - Convenção de Belém do
Pará, ratificada pelo Brasil em 27 de novembro de 1995, que define violência contra a mulher como: “
qualquer ato ou conduta baseada no gênero que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou
psicológico à mulher tanto na esfera pública como na privada“ (Artigo 1º). Este é o principal instrumento
internacional que trata da violência doméstica e sexual contra as mulheres e adolescentes, dando
visibilidade para o problema e estabelecendo o dever do Estado de adotar políticas para a sua
prevenção, punição e erradicação no âmbito dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.
28
Qual o marco legal para a violência sexual?
A partir da Lei n° 11.340, de 7 de agosto de 2006 - a Lei Maria da Penha - fica definido
que o Estado brasileiro deve criar e garantir o funcionamento de mecanismos para
coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Essa Lei se baseia no parágrafo
8o do Artigo226 da Constituição Federal brasileira, na Convenção sobre a Eliminação
de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e na Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher. A Lei trata
da criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o
Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e estabelece
medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica
e familiar. Em relação à violência sexual, o Artigo7o desta Lei dispõe que: “São formas
de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras: a violência sexual,
entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a
participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação
ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua
sexualidade; que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force
ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem,
suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais
e reprodutivos” (inciso III).
O Código Penal brasileiro autoriza a prática do aborto somente em duas circunstâncias:
para salvar a vida da gestante ou quando a gravidez for resultante de estupro (Artigo
128). A atenção aos casos de violência sexual e o acesso ao aborto previsto em lei
são regulamentados pela Norma Técnica do Ministério da Saúde para Prevenção e
Tratamento dos Agravos resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e
Adolescentes. Essa Norma Técnica estabelece que é necessário garantir a oferta do
serviço de aborto legal na rede pública de saúde, em conformidade com o texto do
Artigo 128, inciso II do Código Penal.
29
A apresentação do Boletim de Ocorrência Policial para solicitar a interrupção
legal da gravidez no serviço de saúde é necessária?
Não. No caso em questão, a gravidez foi resultante de uma situação de violência sexual
e, nesses casos, cabe somente à mulher decidir se quer ou não realizar o procedimento
de interrupção da gravidez. O abortamento nas circunstâncias de gravidez decorrente
de violência sexual é previsto e autorizado pela lei e pode ser realizado nos serviços
de saúde, incluindo-se os serviços disponíveis no Sistema Único de Saúde (SUS). O
profissional de saúde, por sua vez, deve respeitar a decisão e a autonomia da mulher,
e não deve exigir a apresentação do Boletim de Ocorrência Policial, confiando sempre
na palavra dela.
A mulher em situação de violência sexual não tem o dever legal de noticiar o fato à
polícia, nem está legalmente obrigada a oferecer queixa contra o seu agressor. Dessa
forma, há uma violação dos direitos humanos das mulheres quando é exigido delas a
apresentação do Boletim de Ocorrência Policial ou do laudo do exame pericial, para a
realização da interrupção legal da gravidez. [MINISTÉRIO DA SAÚDE (c)]
A segunda edição atualizada e revista da Norma Técnica do Ministério da Saúde, com
o título de Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual
Contra Mulheres e Adolescentes recomenda a realização de Boletim de Ocorrência
Policial junto às Delegacias de Polícia (para investigação e processamento do agressor)
e o exame pericial de Corpo de Delito e Conjunção Carnal, no Instituto Médico Legal
(para verificação de eventuais elementos materiais que indiquem violência sexual e
coleta de material biológico para identificação do agressor). Porém, a mesma Norma
Técnica adverte que tais procedimentos não são obrigatórios para que a mulher tenha
acesso ao procedimento de aborto legal.
A experiência dos serviços de saúde especializados na atenção ao abortamento
previsto em lei tem demonstrado, enfaticamente, que são raros e excepcionais os
casos de falsa alegação. Essas exceções ocorrem nos poucos casos em que as
30
mulheres mentem sobre a ocorrência de crime sexual e conseguir interromper uma
gravidez indesejada por outras razões. Assim, cumprindo com os princípios éticos e
legais, a mulher que declara se encontrar em situação de gravidez decorrente de
violência sexual deve ter sua palavra considerada pelos profissionais de saúde como
sendo sempre verdadeira. [MINISTÉRIO DA SAÚDE (c)] O direito da mulher ao
abortamento previsto em lei não pode ser negado mesmo quando não existem
indicadores consistentes.
Vale destacar que, nesses casos, os profissionais de saúde estão livres de possíveis
condenações criminais, caso revele-se posteriormente que a gravidez não foi
resultante de violência sexual. Segundo o Código Penal Brasileiro, Artigo 20, § 1º, “é
isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe
situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima”.
É importante lembrar ainda, que o profissional de saúde que atende uma mulher vítima
de violência doméstica deve notificar o fato às autoridades sanitárias competentes,
de acordo com a Lei Nº 10.778, de 24 de novembro de 2003.
Quais direitos humanos estão em questão neste caso?
A abordagem de direitos humanos na atenção à violência sexual e ao aborto legal
está centrada no dever do profissional de saúde de respeitar, proteger e garantir os
direitos humanos das mulheres que buscam os serviços de saúde. Neste caso, devese respeitar e proteger o direito à saúde, previsto no Artigo 12 do Pacto de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais - PIDESC. A médica deveria ter informado a mulher
sobre seu direito, previsto em lei, de interromper a gravidez. Para isso, seria necessário
estabelecer uma relação de confiança com a usuária do serviço, para que esta se
sentisse apoiada e apta a tomar decisões sobre a sua vida sexual e reprodutiva, de
forma autônoma.
31
A decisão de interromper uma gravidez indesejada é uma decisão difícil, para a qual a
mulher deve receber apoio, informação e orientação do profissional de saúde, segundo
determina a Norma Técnica do Ministério da Saúde. O fato de que Francisca não retornou
ao serviço de saúde também indica que ela não se sentiu apoiada em sua decisão de
interromper a gravidez, indicando que ela não recebeu uma atenção adequada no serviço
de saúde.
Neste sentido, O Comitê sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
contra as Mulheres – o Comitê CEDAW, em sua Recomendação Geral nº 24, parágrafo
12 (d), estabelece que: “Quando a falta de respeito à confidencialidade dos pacientes
afetar a homens e mulheres, ela pode impedir as mulheres de buscarem
aconselhamento e tratamento e, em conseqüência, afetar de forma adversa a sua
saúde e seu bem-estar. As mulheres vão estar menos propensas, por tal razão, a
buscar assistência médica para doenças do trato genital, para contracepção ou para
aborto incompleto e em casos em que tenham sofrido violência sexual ou física”.
Neste caso, a gravidez foi resultado de violência e a sua interrupção encontra absoluto
apoio na lei. A médica deveria ter assegurado a Francisca o direito à informação,
previsto no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, Artigo 19.
A omissão da médica em não contar à Francisca sobre seu direito de buscar um serviço
de aborto previsto em lei é um desrespeito aos direitos humanos das mulheres. Por
não receber essa informação, Francisca recorreu ao abortamento clandestino e inseguro,
colocando desnecessariamente sua vida em risco. Além disso, seu direito à liberdade
e seu direito à segurança, previstos no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos,
Artigo nove (I), não foram respeitados, na medida em que se apresentaram barreiras
ao acesso a serviços básicos necessários para a saúde sexual e reprodutiva. [COOK,
DICKENS & FATHALLA] Barreiras estas que podem ser de ordem cultural, administrativa
ou legal.
Neste caso, a falta de informação e a falta de qualidade na atenção podem ter
representado obstáculos para a mulher exercer o planejamento da sua vida sexual e
32
reprodutiva. Planejar inclui o exercício do direito a decidir sobre se deseja ter filhos, o
número de filhos, o intervalo entre um filho e outro e o direito à vida privada e familiar. À
mulher caberia poder escolher livremente sobre a maternidade, atributo da vida privada
e familiar, sem a interferência do Estado, ainda mais se considerarmos que se trata de
uma situação de violência sexual, conjugal, sobre a qual existe lei que apóia sua decisão
reprodutiva de interrupção da gravidez indesejada.
O Plano de Ação da Conferência Mundial sobre População e Desenvolvimento, realizada
no Cairo em 1994, dispõe sobre o direito de decidir sobre o desejo de ter ou não filhos,
o melhor momento para tê-los e o intervalo entre eles; de ter controle sobre o corpo,
fertilidade e saúde, livre de discriminação e violência.
Quais são as responsabilidades do profissional de saúde e do serviço de saúde
em relação ao caso?
A médica baseou-se em valores pessoais e crenças religiosas para tentar fazer a mulher
desistir da sua decisão de interromper a gravidez indesejada.
Apesar de suas convicções religiosas, a médica tem o dever ético e legal de não influenciar
e de respeitar as escolhas de suas pacientes em relação a sua vida sexual e reprodutiva.
O direito individual à liberdade de pensamento, consciência e religião da profissional de
saúde não deve representar uma barreira para o exercício dos direitos humanos das
mulheres que buscam os serviços de saúde, especialmente em situações de violência
sexual. Em caso de conflito pessoal, os médicos têm o dever ético e profissional de
encaminhar a mulher para outro profissional que ofereça todas as informações para ela e
que realize o procedimento garantido por lei. Por sua vez, a instituição de saúde tem o
dever legal de assegurar o acesso da mulher em situação de violência a outro serviço de
saúde que disponha de um profissional que realize o procedimento, sob pena de omissão.
33
O que deveria ter feito o profissional de saúde para assegurar uma atenção de
qualidade e a proteção aos direitos humanos da mulher?
Francisca poderia ter sido informada sobre seu direito ao aborto legal e encaminhada
pela médica para um serviço de referência para o atendimento aos casos de violência
sexual. Nesse serviço, além do acesso ao abortamento legal, ela receberia
aconselhamento de uma equipe multidisciplinar formada por profissionais das áreas
da psicologia, medicina, enfermagem e assistência social. A estrutura e a organização
desses serviços promovem um ambiente de acolhimento apropriado, importante para
ajudar as mulheres a tomarem decisões conscientes e informadas.
Finalmente, as condições sociais, econômicas e culturais das mulheres devem ser
observadas, para que necessidades específicas sejam contempladas no atendimento.
Além disso, as relações desiguais de poder entre homens e mulheres, colocam-nas
em posição mais vulnerável de sofrer abuso sexual e outras violências, dentro ou fora
do casamento. Isso faz com que a possibilidade da mulher ter uma gravidez indesejada
e recorrer ao aborto inseguro aumente, representando sério risco para a sua saúde e
para a sua vida.
Tal vulnerabilidade pode representar obstáculo para as mulheres gozarem de forma
plena a sua saúde sexual e reprodutiva, dificultando o acesso aos serviços de saúde e
à atenção de qualidade. Assim, é fundamental que o profissional de saúde seja sensível
para este contexto, buscando entender essa realidade, agindo com imparcialidade no
seu exercício profissional, sem recorrer a julgamentos pessoais, estigmas ou
estereótipos de gênero, que podem influenciar negativamente a qualidade da atenção.
No caso em questão, não se pode deixar de refletir sobre os possíveis impactos da
atitude da profissional no destino dessa mulher. Frente a uma informação incorreta de
que o abortamento seria crime nas circunstâncias apresentadas, a mulher poderia ter
se convencido de que não teria outra alternativa que não fosse a de levar a gravidez até
o fim.
34
A hipótese de que essa gravidez deverá terminar em aborto induzido é, inegavelmente,
a situação mais provável. Nessas circunstâncias, a falta de recursos da mulher pode
levá-la à realização do aborto clandestino em condições de extrema insegurança,
colocando-a em evidente risco de morte ou, pelo menos, de adquirir graves seqüelas
para sua saúde sexual e reprodutiva.
A atitude de impor valores e perspectivas pessoais é antiética, desrespeita a lei, e viola
os direitos humanos das mulheres, induzindo-as ao risco de danos, por vezes
irreparáveis, para sua saúde sexual e reprodutiva
Quais são os princípios éticos que devem ser observados neste caso para uma
atenção de qualidade?
O profissional de saúde deve respeitar o princípio da autonomia, segundo o qual ele
tem de considerar a liberdade de opinião e decisão da mulher sobre questões de saúde
que envolvam sua vida e seu corpo. A paciente deve ser vista como uma pessoa
autônoma para tomar decisões sobre sua vida e sua saúde.
Além disso, o profissional deve observar o princípio da justiça, que estabelece como
condição fundamental a equidade: obrigação ética de tratar cada indivíduo conforme o
que é moralmente correto e adequado. Neste sentido, o médico deve atuar com
imparcialidade, evitando que aspectos sociais, culturais, religiosos, financeiros, ou
outros interfiram na sua relação com a paciente. [CREMESP]
35
Caso 5 - Atenção pós abortamento e desrespeito à adolescente
como sujeito de direitos com autonomia sexual e reprodutiva
Relato do caso
Cristina, adolescente de 16 anos, desacompanhada dos pais, chega ao serviço de saúde
com uma amiga, para receber atendimento. Ela informa que tomou um “chá abortivo”
há uma semana e que, no momento, está com muita cólica e sangramento. No exame
clínico, é constatado um quadro de abortamento incompleto e o profissional de saúde
indica para o caso de Cristina o procedimento de esvaziamento uterino com Aspiração
Manual Intra-Uterina (AMIU). Ela pede para que os pais não sejam informados sobre o
que aconteceu e diz que não tem um bom relacionamento com eles. Para o profissional
de saúde que prestou atendimento obstétrico ficou a dúvida: avisar ou não aos familiares?
Qual a conduta mais adequada para uma atenção de qualidade?
Este é um caso de abortamento incompleto, considerado como uma urgência médica.
Sendo assim, o profissional deve prestar o atendimento de forma oportuna e eficaz,
garantindo à adolescente o acesso a todos os recursos humanos e técnicos, o que inclui
os procedimentos necessários para a resolução do caso. Após prestar a assistência, o
profissional de saúde deve avaliar cuidadosamente as condições emocionais e sociais
da adolescente e encaminhá-la para atendimento psicológico e social, se necessário.
Deve, ainda, prestar informações sobre os métodos contraceptivos eficientes e
disponíveis, garantindo acesso a eles, caso a adolescente realmente queira evitar uma
gravidez indesejada.
Cristina deve ser vista pelo profissional como uma adolescente que é sujeito de direitos,
autônoma para decidir sobre sua vida sexual e reprodutiva e, ao mesmo tempo, como
alguém que requer uma atenção específica para suas necessidades especiais, por ainda
estar em desenvolvimento.
36
O profissional de saúde deve procurar estabelecer uma relação de confiança com a
adolescente, para que possa ajudá-la a escolher o melhor método contraceptivo.
Os membros da equipe de saúde devem ter uma comunicação clara e aberta com a
clientela, assegurando-lhes sigilo, privacidade e respeito, independente de sua idade,
situação econômica, cor, raça, estado civil e religião. Esta relação de confiança não
deve ser quebrada sob nenhuma circunstância na atenção ao pós-aborto, sob pena de
violar os direitos humanos das usuárias.
Quais direitos humanos estão em questão neste caso?
No âmbito internacional, a Convenção dos Direitos da Criança, ratificada pelo Brasil
em 1990, em seu Artigo 14.1. estabelece que os Estados-parte respeitarão o direito
da criança à liberdade de pensamento, de consciência e de crença; o Artigo 14.2.
estabelece que os Estados-parte respeitarão os direitos e deveres dos pais (...), de
orientar a criança no exercício do seu direito de modo consistente com a evolução de
sua capacidade; o Artigo 16 protege o direito à privacidade; combinados ao Artigo 24
(1) (2, f) – que estabelece que “os Estados-parte reconhecem o direito da criança de
gozar do melhor padrão possível de saúde e dos serviços destinados ao tratamento
das doenças e à recuperação da saúde e (..) adotarão as medidas apropriadas com
vistas a desenvolver assistência médica preventiva, a orientação aos pais e a
educação e serviços de planejamento familiar”. A Convenção limita o poder familiar
dos pais e seus representantes quando os adolescentes tiverem desenvolvido a sua
capacidade de tomar as suas próprias decisões em matéria de sexualidade e
reprodução, e também a capacidade de prever e arcar responsavelmente com as
conseqüências destas decisões.
O Comitê dos Direitos da Criança, que supervisiona o cumprimento da Convenção
dos Direitos da Criança pelos Estados signatários, destacou em seu Comentário Geral
nº 4 (2003) que os Estados devem proteger o direito à preservação da autonomia, do
37
sigilo e da privacidade dos adolescentes. Ressalta ainda o dever dos Estados de garantir
aos adolescentes o direito de acesso aos serviços, independentemente da anuência de
seus pais ou responsáveis, para tratar de questões sobre saúde sexual e reprodutiva
(parágrafo 49).
Qual o marco legal nacional da atenção neste caso?
No Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente - o ECA - Lei nº 8.069, de 13 de julho
de 1990, adota o conceito de que o adolescente18 tem condição peculiar de pessoa em
desenvolvimento (Artigo 6°), com direito ao respeito e inviolabilidade da integridade
física, psíquica e moral (Artigo 17). Segundo o Código de Ética Médica, Artigo 103, “é
vedado ao médico revelar segredo profissional referente à paciente menor de idade,
inclusive a seus pais ou responsáveis legais, desde que o menor tenha capacidade
de avaliar seu problema e conduzir-se por seus próprios meios para solucioná-los,
salvo quando a não revelação possa acarretar danos ao paciente”. Neste particular, o
Código de Ética Médica determina expressamente o dever do profissional médico de
respeito à opinião da adolescente e o sigilo profissional. Este tratamento da lei está de
acordo com a Convenção dos Direitos da Criança, principal tratado internacional de
direitos humanos sobre a matéria, que estabelece princípios de respeito à autonomia,
privacidade e confidencialidade dos adolescentes, garantindo-lhes a tomada de decisões
informadas sobre questões sexuais e reprodutivas. [COOK & DICKENS] E, em caso de
conflito de interesses, o ECA estabelece que o Juiz pode indicar um curador especial
para os adolescente, sempre que os seus interesses divergirem daqueles de seus pais
(Artigo 142, Parágrafo único).
18
O Estatuto da Criança e do Adolescente considera criança a pessoa menor de 12 anos de idade; e
adolescente, pessoas a partir dos 12 anos de idade e antes de completar 18 anos; e dispõe que deve
prevalecer o princípio do respeito à sua opinião e vontade.
38
A Norma Técnica sobre Atenção Humanizada ao Abortamento dispõe que a atenção à
saúde da menor de 18 anos, na questão do abortamento, deve estar de acordo com o
princípio da proteção integral, previsto no ECA. Segundo este princípio, a adolescente
deve ser vista como sujeito de direitos, merecedora de prioridade absoluta por parte
da sociedade, família e Estado na garantia do seu direito à vida e à saúde (conforme o
disposto na Constituição Federal, no Artigo 227 e no ECA). É com base neste princípio
que o profissional de saúde deve prestar a assistência.
Quais são os critérios éticos a serem observados pelo profissional de saúde?
"
O princípio da autonomia, que implica em que o profissional de saúde considere
a liberdade de opinião e decisão da mulher e da adolescente sobre questões de
saúde que envolvam sua vida e seu corpo. A usuária do serviço deve ser vista como
uma pessoa autônoma para tomar decisões sobre sua vida e sua saúde.
"
O respeito à confidencialidade, que garante que os membros da equipe de saúde
devem ter uma comunicação clara e aberta com as pacientes, assegurando-lhes
sigilo, privacidade e respeito, independente de cor, raça, estado civil, religião e
situação econômica, para garantir uma relação de confiança. Esta confiança não
deve ser quebrada sob nenhuma circunstância na atenção ao pós-aborto, para não
ameaçar os direitos humanos das pacientes.
39
Caso 6 – Aspectos éticos e de direitos humanos na atenção ao
abortamento: a importância da confidencialidade para o acesso
sem discriminação aos serviços de saúde
Relato do caso
Márcia, 25 anos, que é profissional do sexo, chega ao serviço de saúde em processo
de abortamento. Segundo a médica obstetra que prestou o atendimento, esta não é a
primeira vez que Márcia recorre à interrupção da gravidez. O seu relato aponta para
esta prática como método contraceptivo. A profissional de saúde demonstra apreensão,
pois prevê que dentro de alguns meses a mulher poderá retornar ao serviço na mesma
situação.
Quais direitos humanos estão em questão neste caso?
O caso ora apresentado trata de questões sobre saúde sexual e reprodutiva, tais como:
gravidez não planejada e indesejada, aborto, falta de acesso a método contraceptivo
adequado, falta de planejamento reprodutivo, dentre outras. Estas questões nos
remetem à discussão mais ampla sobre o conceito de direitos sexuais e reprodutivos.
Estes são direitos humanos emergentes no cenário internacional, previstos nos
principais tratados internacionais de direitos humanos que estiveram em debate na
última década. Os direitos sexuais e reprodutivos foram reconhecidos como parte
integrante do direito internacional dos direitos humanos a partir da Conferência de
População e Desenvolvimento do Cairo, em 1994. É neste momento que se consolida
o conceito de direitos sexuais e direitos reprodutivos, que contempla o direito de decidir
sobre o desejo de ter ou não filhos, sobre o melhor momento de ter filhos e o intervalo
entre eles; de ter controle sobre o corpo, fertilidade e saúde, livre de discriminação, de
violência. A proteção dos direitos sexuais e reprodutivos é central para o exercício de
outros direitos humanos, como o direito à vida, à liberdade e segurança, à saúde,
dentre outros.
40
Os direitos humanos, sexuais e reprodutivos também contemplam o direito de mulheres,
jovens e adolescentes fazerem escolhas informadas sobre todos os aspectos da sua
vida sexual e reprodutiva. Tais direitos incluem o acesso a serviços de saúde sexual e
reprodutiva, que respeitem o sigilo e sejam integrais, oferecendo informação sobre
métodos contraceptivos para prevenção de gravidez indesejada e de contaminação
por Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST) e HIV/AIDS.
Quais são as responsabilidades do profissional de saúde neste caso?
A principal responsabilidade é prestar atenção de qualidade. Como a mulher já havia
passado pelo serviço anteriormente, seria recomendável pensar em formas de se
prevenir uma situação igual no futuro. Neste caso, o ideal seria tentar estabelecer uma
relação de confiança e garantir o acolhimento, necessários para os cuidados em relação
a sua saúde sexual e reprodutiva. Essa atitude seria importante para prevenir DST e
HIV/AIDS, uma nova gravidez indesejada, o auto-aborto como método contraceptivo,
uma vez que esta prática, em condições precárias, coloca a vida e a saúde das mulheres
em risco.
Quais são os critérios éticos que deveriam ser observados?
Durante o atendimento, o profissional de saúde deveria evitar ter uma atitude julgadora
da mulher, mesmo que tenha conflitos de foro íntimo. A médica deveria respeitar o
princípio da autonomia, segundo o qual o profissional de saúde deve considerar a
liberdade de opinião e decisão da mulher sobre questões de saúde que envolvam sua
vida e seu corpo, sem emitir julgamentos ou opiniões sobre a paciente, baseados em
crenças religiosas e valores morais de ordem pessoal. A paciente deve ser vista como
uma pessoa autônoma para tomar decisões sobre sua vida e sua saúde, e os médicos,
enfermeiros e outros devem prestar uma atenção à saúde de qualidade, seguindo seu
dever profissional.
41
Caso 7 – Como lidar com conflitos entre adolescente e seus pais
na atenção à saúde sexual e reprodutiva: a lei e o papel do
profissional de saúde
Relato do caso
Vitória, de 15 anos, chega ao serviço de saúde acompanhada de sua mãe, que relata
que a filha adolescente foi vítima de violência sexual. Vitória nega e diz que teve relações
sexuais com seu namorado, mas a mãe insiste e pede que a médica a encaminhe para
exame no Instituto Médico Legal (IML) para comprovar o estupro. A médica conversa
com Vitória individualmente e examina-a. Feito o exame clínico, constata não haver
vestígios de violência sexual. Ao revelar o diagnóstico, a médica é surpreendida pelo
fato da mãe de Vitória ameaçar denunciá-la por não querer encaminhar o caso ao
Conselho Tutelar para as providências legais contra o agressor.
Como o profissional de saúde deve proceder no caso de conflitos entre as
adolescentes e suas mães?
Na situação em exame, existe conflito de interesses entre mãe e filha. Nos casos de
conflito de interesses entre os pais e a adolescente, o caso deve ser levado ao
conhecimento do Juiz da Infância e Juventude, que deverá decidir com base no melhor
interesse da adolescente, levando em conta a sua opinião e vontade, devendo
providenciar um curador especial (Artigo 142).
O profissional de saúde deve agir pelo princípio do melhor interesse da adolescente,
segundo dispõem a Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente, o
ECA19. Sabe-se que o fato de não encontrar sinais físicos aparentes de violência sexual
19
42
Em caso de conflito de interesses, o ECA estabelece que o Juiz pode indicar um curador especial para os
adolescente, sempre que os seus interesses divergirem daqueles de seus pais (Artigo 142, Parágrafo
único). Conforme o Artigo 227da Constituição Federal, é dever da família, da sociedade e do Estado
assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação,
à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência
familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração,
violência, crueldade e opressão.
não significa que isso não tenha ocorrido. Existem situações de violência sexual
mediante ameaça verbal ou uso de arma de fogo, que não deixam marcas.
Em situações de violência sexual, o profissional de saúde deve ouvir o relato da
adolescente para saber se, de fato, ela foi vítima de violência sexual, se a mesma tinha
discernimento para consentir em ter relações sexuais, ou se poderia tratar-se de um
caso de coerção e violência presumida, conforme o Artigo 224 do Código Penal 20. No
caso de Vitória não se pode concluir de imediato que este tenha sido um caso de
violência, pois ela já tem 15 anos de idade e parece ter discernimento.
Garantir o sigilo21 para o enfrentamento das questões sexuais e reprodutivas é uma
estratégia indispensável em casos de violência sexual. Após o atendimento, o
profissional deve informar à adolescente sobre planejamento reprodutivo e métodos
contraceptivos para prevenção da gravidez indesejada. Se Vitória estiver grávida, devese respeitar a sua opinião e vontade quanto a manutenção ou não da gravidez. E se
ficar comprovada a violência sexual, ela tem o direito previsto em lei de interromper a
gestação22, ou de levar a gravidez adiante, conforme a sua vontade23.
Quais os encaminhamentos necessários e as autoridades competentes?
20
Conforme o Código Penal, Artigo 224, a violência presumida ocorre quando a vítima é menor de 14 anos.
Pela especialidade da situação - a menoridade, a debilidade mental ou em qualquer circunstância em que
a vítima, por qualquer outra causa, não puder resistir - presume-se que houve a violência, ou seja, a lei
dispensa a violência real. Com relação ao limite de idade, o fundamento legal, nesses casos, é determinado
pela possibilidade de falta de ciência em relação aos fatos sexuais e de capacidade para decidir sobre os
mesmos.
21
Segundo o Código de Ética Médica, Artigo 103, “é vedado ao médico revelar segredo profissional referente
à paciente menor de idade, inclusive a seus pais ou responsáveis legais, desde que o menor tenha capacidade
de avaliar seu problema e conduzir-se por seus próprios meios para solucioná-los, salvo quando a não
revelação possa acarretar danos ao paciente”.
22
De acordo com os Artigos 3º, 4º, 5º, 1631, 1690, 1728 e 1767do Novo Código Civil brasileiro e a Norma
Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento, do Ministério da Saúde, para a realização de um
abortamento decorrente de estupro em menores de 16 anos, estas devem ser representadas por seus pais
ou representante legal, que se manifestam por elas.
23
Os artigos 15, 16 , 17 e 18 do Estatuto da Criança e do Adolescente, dispõe sobre os direitos à
liberdade, ao respeito e à dignidade.
43
Há três questões que merecem comentário neste relato de caso. A insistência da mãe
para que a médica encaminhe a filha ao IML não tem qualquer respaldo legal. Vale
esclarecer que não cabe ao profissional de saúde encaminhar casos ao IML, nem o IML
pode receber ou atender esses encaminhamentos. A requisição do Exame de Corpo
de Delito e Conjunção Carnal só pode ser feita pelas autoridades competentes, como,
por exemplo, os Delegados de Polícia.
A ameaça da mãe de denunciar a médica por não querer encaminhar o caso da filha
para o Conselho Tutelar também merece nossa análise. Primeiro, porque o ECA prevê
comunicar as ocorrências de violência sexual, suspeitas ou confirmadas. Entretanto, no
caso em questão, a médica não constatou indícios de violência sexual e a adolescente
negou que tivesse sido estuprada. O Conselho Tutelar não tem o papel de tomar medidas
contra o agressor, mas sim de garantir proteção para a adolescente. As medidas contra
o agressor são tomadas pelo Ministério Público que, após analisar o caso, apresenta a
denúncia e encaminha o caso para a Vara Criminal.
Qual o marco legal que deve orientar a atenção neste caso?
O Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA, em seu Artigo 5°, estabelece que
nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, sendo punido na forma da
lei qualquer atentado, por ação ou omissão aos seus direitos fundamentais. Segundo o
ECA, a adolescente deve ser vista como um ser em desenvolvimento, com necessidades
especiais. Esta interpretação não colide com a sua situação de sujeito de direitos com
autonomia para decidir sobre questões sexuais e reprodutivas, principalmente em
situações de violência sexual.
Além disso, o ECA estabelece em seu Artigo 15 que: “A criança e o adolescente têm
direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo
de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais, garantidos
na Constituição e nas leis.”
44
Conforme dispõe a Norma Técnica do Ministério da Saúde para Prevenção e
Tratamento dos Agravos resultantes da Violência Sexual Contra Mulheres e
Adolescentes, a adolescente tem direito ao aborto legal, à contracepção de
emergência, e aos medicamentos para prevenção das DST, incluindo o HIV.
Em que situações é permita a quebra da confidencialidade?
A confidencialidade pode ser quebrada, pois é obrigatória por lei a comunicação do
caso para o Conselho Tutelar ou para a Vara da Infância e Juventude, segundo os
Artigos 13 e 245 do ECA 24. Somente se o profissional comprovar que, de fato, se
trata de caso de violência sexual, deve informar à adolescente que este é o
procedimento legal nesses casos ou em qualquer outra situação em que seus direitos
estejam em risco. A confidencialidade pode ser quebrada para preservar a
adolescente de possíveis danos. Nesse caso, está afastado o crime de revelação de
segredo profissional e a decisão do profissional de saúde deve ser cuidadosamente
justificada no prontuário médico.
Quais são os critérios éticos que deveriam ser observados?
O consentimento da mulher ou de seu representante legal é necessário para que seja
realizado o abortamento nas situações previstas pela lei, com exceção dos casos de
risco de morte, quando a mulher esteja impossibilitada de expressar seu
consentimento. O novo Código Civil brasileiro, de 2003, estabelece em seus Artigos
3º, 4º, 5º, 1631, 1690, 1728 e 1767 que: 1) A mulher com 18 anos de idade ou mais é
considerada plenamente capaz de consentir sozinha; 2) A partir dos 16 anos e
24
O Estatuto prevê, em seus Artigos 13 e 245, a obrigatoriedade de notificação dos casos de suspeita
ou confirmação de maus-tratos contra criança e adolescente. Casos de violência sexual podem ser
contemplados nestes Artigos. Nestas situações justifica-se a quebra da confidencialidade pelos
profissionais de saúde, mesmo sem a obtenção do consentimento informado da paciente, tendo em
vista a situação de risco social e vulnerabilidade em que se encontram.
45
antes dos 18 anos, o consentimento da adolescente deve ser assistido pelos pais ou
representante legal, que se manifestam e assinam o consentimento com ela; 3) Antes
dos 16 anos, a criança ou adolescente deve ser representada pelos pais ou por seu
representante legal, que se manifestam e assinam o termo de consentimento por ela. O
consentimento do representante legal também se faz necessário em situações onde a
mulher, em qualquer idade, não possa expressar sua vontade ou não tenha condições
de discernimento, a exemplo das deficientes mentais graves. Cabe considerar, quando
houver conflito de interesses, que as adolescentes devem ter sua vontade respeitada
caso não queiram realizar o abortamento, que não deverá ser praticado, ainda que os
seus representantes legais assim o queiram.
46
Caso 8 - Um caso de gravidez de risco e o direito ao aborto legal:
lei no papel e falta de acesso na prática
Relato do caso
Irene, 38 foi operada pelo SUS devido a um câncer na tireóide. Quando recebeu o
resultado do exame histopatológico, foi informada de que deveria submeter-se a um
tratamento especializado. Na mesma ocasião, Irene foi encaminhada para um exame
de cintilografia de corpo inteiro e iodo radioativo, mas só conseguiu o atendimento para
um ano depois. Quando finalmente teve acesso ao serviço de saúde, não pôde receber
o tratamento para o câncer, pois descobriu estar na 15ª semana de gravidez. Irene
decidiu, então, fazer jus ao seu direito de interromper a gravidez, conforme o Artigo 128
do Código Penal, que autoriza a realização do aborto em casos de risco de vida para a
mulher. Informada de que deveria buscar uma autorização judicial para interromper a
gestação, Irene iniciou nova peregrinação para conseguir interromper a gravidez e
prosseguir com o exame e tratamento.
Depois de bastante desgaste, Irene conseguiu, enfim, a autorização judicial e dirigiu-se
a uma unidade de referência em busca da interrupção legal da gestação. Os médicos
negaram-se a interromper a gravidez, tentando convencê-la a levá-la adiante, sob a
alegação de que o câncer de tireóide é de evolução lenta. Irene optou, então, por procurar
um outro serviço, localizado em outro município distante da capital, para conseguir
finalmente ter acesso à interrupção legal da gestação.
Irene precisaria de autorização do Juiz para interromper a gestação?
A resposta é não. Segundo o Código Penal, Artigo 128, o aborto é permitido quando: 1)
a gravidez for resultado de estupro ou 2) não há outro meio de salvar a vida da gestante.
O caso em discussão enquadra-se na previsão legal do Artigo 128: o abortamento para
salvar a vida da gestante, que não requer a intervenção ou autorização do Poder Judiciário.
O câncer na tireóide, em situação de gravidez, impede o tratamento necessário.
47
[ZEFERINO & COELHO] Logo, levar adiante a gravidez reduziria as chances de cura
de Irene. Diante dessa situação, ela tinha o direito de interromper a gravidez, e ela
assim o decidiu.
Previsto pelo inciso I do Artigo 128 do Código Penal, o chamado abortamento necessário
justifica-se, com estrito sentido terapêutico, em situações de emergência em que existe
risco de morte imediata para a mulher. O abortamento necessário, igualmente se justifica
no sentido profilático, ou seja, para evitar situações futuras que exponham a vida da
mulher a uma reconhecida condição de perigo ou a agravamento considerável. A
alegação de que não existem mais situações clínicas que justifiquem o abortamento
necessário profilático, face à indiscutível evolução da medicina e de seus recursos
terapêuticos, não encontra sustentação nas taxas elevadas de mortalidade materna
indireta, resultado do agravamento de doenças pré-existentes à gestação. [ANDALAFT]
De fato, 15 a 30% das mortes maternas no mundo são de causa indireta, o que torna a
interrupção da gestação, possivelmente, a única alternativa segura para evitar a morte
dessas mulheres. [FAÚNDES & TORRES]
A Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia -FEBRASGO orienta os profissionais de saúde quanto à documentação necessária para o
abortamento nos casos de risco de morte para a mulher. Recomenda que, no mínimo,
dois outros médicos, além do que irá praticar o abortamento, atestem, em declaração
escrita e anexada ao prontuário médico, a condição de risco que a gestante enfrenta e
a necessidade de praticar o abortamento para preservar sua vida. Recomenda ainda,
se possível, que um dos profissionais seja especialista na doença que motiva a
interrupção. O consentimento assinado pela gestante é necessário. Por fim, é indicado
constar deste documento a informação de que a mulher foi esclarecida e está ciente
dos riscos de prosseguir com a gestação, concordando com a indicação médica de
interromper a gravidez. O consentimento deve ser assinado por seu representante legal
nos casos em que a mulher não tenha possibilidade de discernimento da situação, ou
nos casos em que não possa, por motivo justificável, expressar sua vontade. Nas
situações de emergência, onde o consentimento não puder ser obtido, a preservação
da vida da mulher deve prevalecer e a interrupção deve ser realizada.
48
Nas situações onde exista precisa indicação de interrupção da gravidez por risco futuro
de morte para a gestante, mas a mulher não concorde com o abortamento, mesmo que
suficientemente esclarecida dos riscos e de suas conseqüências, sua vontade de
prosseguir com a gestação deve ser preservada. No entanto, é fundamental que essa
decisão seja registrada em prontuário hospitalar. A mulher deve declarar sua vontade,
assumindo os riscos inerentes a tal situação. A consulta prévia à gestante e a obtenção
de seu consentimento só devem ser dispensadas em condições excepcionais, nos
casos de risco extremo de morte, quando em coma ou inconsciente. Nesses casos, é o
dever ético e legal do médico tomar todas as medidas que julgar tecnicamente
necessárias para preservar a vida da gestante, incluindo a realização do abortamento.
O médico é obrigado a realizar o procedimento?
O médico não está obrigado a realizar o procedimento em questão, mas deve respeitar
a decisão da mulher. Esta, por sua vez, deve ser informada detalhadamente sobre seu
estado de saúde, para tomar a decisão quanto aos riscos de levar ou não a gravidez
adiante. A decisão deve caber à mulher, em diálogo com a equipe de saúde. Se, após
avaliar clinicamente o caso e esgotar todos os exames necessários ao diagnóstico, o
médico decidir por não realizar o procedimento, alegando objeção de consciência, ele
deverá encaminhar a mulher e certificar-se de que há outro profissional naquele serviço
que possa realizar o procedimento. Poderia também, ainda, encaminhá-la para outro
local em que ela pudesse interromper a gestação.
Como os profissionais de saúde deveriam ter procedido neste caso?
Neste caso, a demora na prestação da assistência e a peregrinação da mulher em
busca de informações sobre o seu estado de saúde indicam uma falha na assistência.
Não foi dada a ela a informação necessária desde o primeiro serviço a que ela se
dirigiu. Ali, o profissional de saúde que a atendeu deveria ter informado sobre o seu
49
direito de interrupção legal da gestação e deveria tê-la encaminhado diretamente para
um serviço de referência. Vale ressaltar que o Código Penal não estabelece a
obrigatoriedade de obtenção de autorização judicial para a realização do procedimento.
Contudo, mesmo com a autorização judicial para a interrupção da gestação, em mãos,
a mulher não conseguiu acesso ao procedimento de aborto legal na unidade de saúde.
Além disso, a equipe que a recebeu, tentou convencê-la a levar adiante a gravidez, sem
investigar devidamente o grau do risco que ela corria e o estágio da doença. Em nenhum
momento, houve a iniciativa de investigar o histórico de saúde da mulher para uma
correta posição da equipe de saúde.
A situação enfrentada por Irene não é rara ou incomum. Especialistas em mortalidade
materna entendem que o maior problema para o médico é estabelecer, com exatidão,
o grau de letalidade de cada doença quando associada à gravidez que justifique a
interrupção da gestação. A diversidade de manifestações, estágios das doenças, as
condições clínicas de cada mulher e outras variáveis envolvidas devem ser consideradas
para a tomada de decisão. Além disso, é preciso considerar a desigualdade de recursos
técnicos e humanos nas diferentes regiões do país, ou mesmo de um hospital para
outro, como fatores que podem interferir no prognóstico. É particularmente importante
que se informe corretamente à mulher a taxa de letalidade de sua doença associada à
gravidez, sem juízo de valores. Por exemplo, taxas de letalidade de 5% para determinada
doença são, muitas vezes, informadas para a mulher como um risco pequeno e aceitável.
No entanto, letalidade de 5% expressa o mesmo que 5.000 mortes por 100.000.
Comparado com as taxas de mortalidade materna de países desenvolvidos, cerca de
10 mortes maternas por 100.000 nascidos vivos, significa dizer que a letalidade para a
gestante, determinada pela doença em questão, é 500 vezes maior do que aquela
que enfrenta a gestante saudável. Contudo, freqüentemente o médico recomenda a
continuidade da gestação, pautado em critérios frágeis e pouco consistentes, sem
oferecer para a mulher a possibilidade de decidir qual o risco aceitável para ela.
[ANDALAFT]
50
Quais direitos humanos foram desrespeitados neste caso?
Em matéria de saúde sexual e reprodutiva, a Conferência Mundial sobre População e
Desenvolvimento, realizada no Cairo, em 1994, foi particularmente importante, na
medida em que estabeleceu princípios norteadores para interpretação dos instrumentos
de direitos humanos em relação ao tema da saúde sexual e reprodutiva. O conceito de
direitos reprodutivos inclui o direito de decidir livremente e responsavelmente sobre o
desejo de ter ou não filhos, o número de filhos e o espaçamento entre eles e a receber
informação, educação e os meios necessários para que se possa decidir.
O Programa de Ação do Cairo estabeleceu que a saúde reprodutiva é um estado geral
de bem-estar físico, mental e social e não a mera ausência de enfermidades ou
doenças, em todos os aspectos relacionados com o sistema reprodutivo, bem como
suas funções e processos25 . Além disso, estabeleceu que a saúde reprodutiva inclui a
capacidade de desfrutar de uma vida sexual satisfatória e sem riscos, assim como de
procriar com liberdade para decidir fazê-lo ou não, quando e com que freqüência.
O Comentário Geral Nº 14 do Comitê sobre Direitos Econômicos Sociais e Culturais
(Comitê DESC), que monitora o Pacto Internacional de Direitos Econômicos Sociais
e Culturais, em referência ao Artigo 12 deste tratado, estabelece que: “A saúde é um
direito humano fundamental indispensável para o exercício de outros direitos
humanos. Toda pessoa humana tem direito a desfrutar do mais elevado nível de
saúde que a conduza a viver uma vida com dignidade”.26
O homem e a mulher têm direito de obter informação e acesso a métodos seguros,
eficazes, acessíveis e aceitáveis, quando escolhem regular o nascimento de filhos,
25
26
Parágrafo 7.2. do Plano de Ação do Cairo
Comitê DESC, Comentário Geral 14, UN ESCOR, 2000, Doc. No. E/C.12/2000/4.
51
assim como o direito de receber serviços adequados de atenção à saúde, que permitam
gravidez e parto sem riscos 27 .
Em relação aos tratados internacionais dos quais o Estado brasileiro é signatário, o
direito ao acesso a serviços de planejamento familiar está protegido no texto da
Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as
Mulheres, no Artigo 16, que estabelece a obrigação dos Estados-parte da Convenção
de tomarem todas as medidas necessárias para eliminar a discriminação contra as
mulheres em todos os aspectos relacionados ao casamento e às relações familiares, e
devem assegurar, com base no princípio da igualdade entre homens e mulheres: os
mesmos direitos de decidir livre e responsavelmente sobre o número de filhos e o
espaçamento entre eles, assim como ter acesso a informação, educação e os meios
necessários para que possam exercer tais direitos. Além disso, no Artigo 12 (1) a
Convenção estabelece que os Estados devem tomar todas as medidas necessárias
para eliminar a discriminação contra as mulheres no campo da saúde, de forma a
assegurar, com base na igualdade entre homens e mulheres, o acesso a serviços de
saúde, incluindo os relativos ao planejamento familiar 28.
A Convenção reforça a necessidade do consentimento informado no serviço de saúde
com relação às orientações sobre planejamento familiar. A equipe de saúde deve garantir
à mulher em idade fértil, que busca tal atendimento, o consentimento informado, em
respeito à sua autonomia sexual e reprodutiva, permitindo que ela tome uma decisão
mais adequada ao seu projeto de vida e aspirações pessoais.
O direito ao planejamento familiar está previsto na Constituição Federal do Brasil no
Artigo 226, parágrafo 7°: “Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e
da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal,
competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício
27
Parágrafo 7.2. do Plano de Ação do Cairo
O Artigo 12(1) da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as
Mulheres dispõe: “Os Estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa de desfrutar
do mais elevado nível de saúde física e mental.(...) d) a criação de condições que assegurem a todos
assistência médica e serviços médicos em caso de enfermidade.”
28
52
desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou
privadas”.
A Lei Federal de Planejamento Familiar nº 9.263, de 12 de janeiro de 1996, que
regulamenta o parágrafo 7º do Artigo 226 da Constituição Federal, é um marco de
referência em matéria de direitos sexuais e reprodutivos.
Irene estava em idade fértil, com diagnóstico de câncer, com indicação de tratamento e
precisava, portanto de orientação de planejamento familiar. Tal orientação não foi feita
e esta falha acarretou num risco de engravidar.
Irene teve violado, ainda seu direito a gozar dos benefícios do progresso científico e
suas aplicações, previsto no Pacto Internacional de Direitos Econômicos Sociais e
Culturais, Artigo 15 1. b): “direito a gozar dos benefícios do progresso científico e suas
aplicações” que reforça o fato de que atenção à saúde reprodutiva é um componente
central da atenção a saúde em geral. O acesso de Irene aos exames que poderiam
detectar o estágio de desenvolvimento de sua doença era parte do seu direito aos
benefícios do progresso científico, para que pudesse receber o tratamento adequado
após a interrupção de sua gravidez, direito que é garantido por lei no Artigo 128 II do
Código Penal.
Por fim, a peregrinação de Irene em busca de um serviço que pudesse interromper a
sua gestação pode ser considerada uma situação análoga à tortura, uma vez que o seu
estado de saúde representava risco para sua vida.
Quais as questões éticas a serem observadas na assistência?
A atenção de qualidade inclui: o acesso das pacientes a todos os recursos humanos e
institucionais adequados, o respeito, por parte dos profissionais de saúde, aos direitos
humanos das usuárias e a adoção de critérios éticos no atendimento.
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Além disso, o acesso a recursos institucionais inclui a atenção técnica, adequada e
oportuna, prestada por um profissional de saúde devidamente qualificado. No caso de
Irene, houve demora injustificada e recusa implícita por parte dos profissionais de saúde
em prestar-lhe a atenção devida. Esta conduta limitou o acesso de Irene à interrupção
da gestação, uma vez que foi solicitada sem necessidade, a autorização judicial para a
realização do procedimento. Posteriormente, mesmo com o alvará judicial em mãos,
autorizando o procedimento, os profissionais de saúde tentaram convencê-la a levar a
gravidez adiante, apesar dos riscos que ela corria.
Tais condutas são eticamente inaceitáveis, uma vez que cabe ao profissional de saúde
orientar a paciente para que ela exerça a sua escolha informada, respeitando a sua
decisão e tomando as medidas necessárias para que ela tenha acesso à atenção de
qualidade. Às vezes, valores morais ou religiosos, ou mesmo o desconhecimento sobre
questões de direitos sexuais e reprodutivos, orientam a conduta profissional e acarretam
posturas que impedem que mulheres que buscam os serviços de interrupção de gravidez
para os casos previstos em lei, exerçam seus direitos, como aconteceu no caso de
Irene.
No campo da saúde sexual e reprodutiva, a maioria dos casos em que se alega objeção
de consciência, relaciona-se a casos de abortamento ou esterilização. [COOK, DICKENS
& FATHALLA] Entretanto, as orientações éticas sobre objeção de consciência são, em
geral, inaplicáveis quando os pacientes estão em uma situação de emergência, na qual
a sua vida ou a sua saúde está em risco.
Segundo o Artigo 7º do Código de Ética Médica, o médico deve exercer a profissão
com ampla autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços profissionais que ele não
deseje, salvo na ausência de outro médico, em casos de urgência, ou quando sua
negativa possa trazer danos irreversíveis ao paciente. O princípio da não-maleficência
estabelece que a ação do médico sempre deve causar o menor prejuízo ou agravos à
saúde da paciente. Soma-se a isso o princípio da autonomia, que requer que os indivíduos
possam decidir sobre suas escolhas pessoais, devendo ser tratados com respeito pela
sua capacidade de decisão sobre o seu corpo e a sua vida. [CREMESP]
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Dilemas e Soluções nos Serviços de Saúde: casos sobre a atenção