E eu dizia: Fui expulso de diante dos teus olhos. Como poderei contemplar novamente o teu santo Templo? As águas me envolveram até o pescoço, o abismo cercou­me, e a alga enrolou­se em volta da minha cabeça. Jonas 2:5. 1. fragmentos anotados num caderno, olhos fechados ‐ deriva Está escuro está escuro e há o calor, há essa claridade que para mim é apenas sol intenso cortante sobre a pele, apenas luminosidade uniformemente amarela que se torna vermelha quando por alguns instantes retiro o pedaço de pano molhado de suor que recobre meus olhos fechados – há mãos que me levam para um lugar ou para outro, enquanto eu tontamente esbarro em pontas e superfícies que parecem ser cantos de mesa, cantos de cadeiras, cantos. sempre que alguém me leva pela mão eu sinto uma mistura de conforto e incômoda gratidão, entregue que estou à minha debilidade e impotência. aos poucos aprendo a discernir um degrau de outro degrau segundos antes de que alguém me advirta prudentemente – sim, subir escadas é mais fácil do que andar em linha reta. não há imagens, há luz apenas. na pequena cidade em que desembarcamos encontramos um homem que parou para falar conosco, um homem que disse que queria ter dinheiro para ir a são paulo operar os olhos – sim, ele não enxergava, ele também – “eu não gosto de claridade”, disse. eu também não, eu quis dizer, eu também não. alivio à noite. adormeço com facilidade, eu que em são paulo padeço de insônia. repetidas vezes adormeço e desperto com o incômodo de acordar e não abrir os olhos, acordar e permanecer num limbo qualquer, sem o alívio tranqüilizador de reconhecer algum espaço familiar que me rodeie. meus movimentos completamente desorientados fazem com que eu me resigne a permanecer imóvel; mesmo de olhos abertos não tenho nenhum senso de direção. o tempo todo ouço sons crus que possuem a brutalidade de ser desprovidos de significado, ouço conversas em que reconheço as vozes mas não compreendo o que dizem ‐ parece‐me que nada mais são do que cantilenas indistintas, murmúrios. não sei se vou ser capaz de ler o que escrevo agora, escrever nesse momento não passa de uma estratégia para fazer com que passe mais depressa o tempo ralentado pela ausência do fluxo constante e sempre renovado das imagens, escrevo numa tentativa desajeitada e precária de dissipar meu alheamento – não propriamente de dissipá‐lo, mas de fazer algo a partir dele, inútil que seja. sem conseguir escrever em linha reta eu escrevo tontamente ‐ nem se pode dizer propriamente que escreva, que converta em palavras a experiência vivida: o que eu vivo é estúpido e inocente demais para ser chamado propriamente de experiência, embora por vezes eu reconheça algo em mim que talvez possa ter algo a ver com esse rio, esse vento, esse sol agressivo e direto que eu sinto a tentação de associar, numa comparação esdrúxula, a um flagelo. percorre o meu corpo o veneno das inúmeras picadas de mosquito que tenho sob a pele, minhas pernas estão repletas de incômodas saliências. alguém assobia, o motor faz um barulho intenso e débil como o ruído do estômago de um doente. de quando em quando o ruído aumenta e logo pára, denunciando sua monstruosa impotência e seu esforço descabido. alguém fala de uma hélice que ficou atolada na lama. estamos à deriva, fico sabendo com atraso. nenhuma eficiência é permitida, nenhuma velocidade, agora. alguém assobia, com uma ansiedade não inteiramente desprovida de resignação. faz calor aqui. eu, mais do que qualquer coisa, queria uma sombra. 2. esboço de cena de teatral, olhos vendados – interrogatório Mulher, de olhos vendados, está sentada numa cadeira de madeira numa sala escura. Um homem de terno, o Inspetor, leva consigo uma lâmpada bastante forte, que por hora não está acesa. O público vê a cena através de uma janela de vidro, com uma persiana levantada. I – Bom dia. M não responde. I – Bom dia. M não responde. I – Boa noite. M – Boa noite. breve silêncio I – E então? M não responde. silêncio. I – O que você tem a me dizer? M – Não te vejo. I – Você pode me ouvir. M – Não te vejo. I acende a lâmpada, bem em frente ao rosto dela – O que vê agora? M – vermelho. I apaga a lâmpada – O que vê agora? M – preto. I – preto. silêncio breve. I acende a lâmpada, levanta o braço em linha reta para a direita na horizontal – você pode me ver? M – não. I move o braço novamente – eu me movi? M – sim, para a direita. I estático – e agora? M – está parado. I continua estático – E agora? M – se moveu outra vez. I – não. (levanta o braço para o lado esquerdo) e agora? M – se moveu outra vez. I – Não. M – não. silêncio. I – Por que fechou os olhos? M – Porque não gosto de claridade. I – Por que mantém os braços colados ao corpo? M – Porque debaixo deles eu cheiro a suor. I – Por que fechou os olhos? M – Eles ardem. silêncio. I – O que é isso? entrega um objeto. M passa as mãos pelo objeto – Uma boneca. I tira o primeiro objeto, dá­lhe um segundo – O que é isso? M toca o objeto – Um prego. I tira o segundo objeto dá­lhe um último – O que é isso? M passa as mãos pelo objeto – Não sei. I – O que é isso? M – Uma pedra. I – Não é uma pedra. silêncio. M – Havia lama. Um dos meus sapatos ficou preso. Uma árvore torta. Onde me encostei. E um cavalo. Um cavalo marrom de olhos grandes. Muitos cavalos. E um homem. silêncio. I – O que é isso? M não responde. I – Um osso. M – um osso. 3. piaçabuçu, olhos abertos – abate os pescadores puxavam uma enorme arraia de dentro do rio – vocês dois se aproximaram para olhar de perto; nós, mulheres, olhamos de longe – havia brutalidade. o enorme animal deitado em sua imensa superfície cinzenta e achatada, talhada para o rio, agora inútil; exposto o seu avesso branco e obsceno, seu corpo monumental e liso que nada contém de humano e expressivo a não ser talvez os seus largos orifícios horizontais – violentamente exposto. ao lado, sobre uma esteira moscas pousavam sobre os peixes estendidos para secar – fim da tarde, muito sol ainda, essa é a hora da morte. hora da colheita. desviei os olhos quando um dos homens enfiava a faca no corpo liso do animal, fazendo um corte violento não inteiramente circular que destoava de seu corpo harmônico, e depois levantava uma enorme posta de carne redonda e muito vermelha – como um troféu, como um troféu, se pode dizer, numa comparação simplista ‐ eu não quis me aproximar, não quis ver o oco redondo no centro do corpo desse ser poderoso agora feito indefeso – a custo permanecia de pé, contendo meu desconforto, enquanto os homens à minha volta me olhavam fixamente e sem disfarçar, examinando minha inadequada pele branca, meu cabelo liso e meus ridículos óculos escuros – eu era talvez tão estranha e deslocada quanto aquela enorme arraia, tornada absurdamente pesada em terra firme – enquanto isso outros homens se uniam para puxar para a terra um pequeno barco repleto de pequenos cabritos, muito novos ainda, que se esbarravam assustados e fremiam de agitação, sem compreender, com a ingenuidade dos seres desde cedo destinados ao abate ‐ aqui violência e brutalidade não se escondem atrás de muros fechados e de luvas brancas que cobrem mãos adequadamente desinfetadas; aqui há a morte silenciosa e quase desapercebida dos peixes, morte obrigatoriamente coletiva e impessoal das escamas de mesma cor dispostas sobre a palha; há a morte mais explícita dos cabritos agitados de olhar assustado e sangue quente, que, dizem, gritam antes de morrer – e há, por fim, a morte estúpida e profundamente individual dessa arraia, gritante em seu silêncio, espetáculo inútil assistido não sem algum gosto, orgulho e curiosidade (há que se ter, afinal, há que se ter piedade de um monstro?) ‐ qual dessas, qual dessas mortes afinal será a minha, a nossa ‐ e quando eu, cansada de ver demais, desisti de esperar a volta dos companheiros que ainda olhavam curiosos e resolvi me afastar definitivamente, eis que meu olhar já fatigado esbarra num rato morto, a pele aderindo ao chão, o corpo aos poucos sendo devorado por uma multidão de insetos – último susto, quase um comentário irônico em vista da minha perplexidade – a morte, a morte seja o que for é sempre algo estúpida, há sempre algo de grotesco num corpo uma vez vivo que jaz inerte, grande demais, pesado demais para si próprio, para a ausência que carrega – e eu, enfim, desviado o obstáculo, retomo meu caminho para longe, sem nenhum sentido atenuante que acalme essa tarde e esse sol, cabeça baixa, cansada apenas, respirando aos poucos e devagar – vou andar pela cidade, vou esperar escurecer, vou embalar meu corpo e descansar, descansar. 
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a propósito de jonas. escritos.