Beutler A – 1
Beutler: Observações
para a revisão textual
As formas gramaticais “1ª pessoa”, 2ª pessoa” etc. – usar o numérico
[ ] = tradução acrescentada pelo Tradutor
[ ]* = explicitação acrescentada pelo Tradutor, ausente do original.
Se há mudança de sujeito, e de acordo com a gramática de Napoleão M. de Almeida, eu
geralmente coloco vírgula antes da conjunção “e”. Se o sujeito continua o mesmo,
normalmente não insiro vírgula.
Adaptar a bibliografia inicial à norma da editora. As referências de fonte nas notas de
rodapé seguem um sistema próprio do autor, que dificilmente poderá ser modificado
(semelhante o livro anterior da coleção, “Contexto e surgimento do Movimento de
Jesus”).
Manter a grafia “clássica” em: secção – sinóptico!
Não separar as abreviaturas “s.” e “ss.” [=“e seguintes(s)”] do número que precede.
Favor destacar as correções introduzidas e submeter ao tradutor antes da diagramação.
para o diagramador:
Em geral, reproduzir o mais fielmente possível a diagramação do original alemão. Umas
três vezes coloquei em parágrafo recuado (a 1cm., corpo 11) citações longas que no
alemão não são indicadas como tais. Nesses casos, seguir minha sugestão conforme os
costumes da Loyola.
Puxar para a margem os números dos versículos que estão sendo explicados. Eu os
coloquei numa linha à parte, em negrito (no original estão na margem, e assim é que
devem ficar).
Para a bibliografia e o índice de citações, uma folha indicando as correções acompanha
o exemplar do livro (= anexo do arquivo “Beutler III.def”); no índice algumas
complementações foram acrescentadas a mão no livro. Eu verificarei devidamente
depois da composição gráfica.
Dados para folha de rosto:
Evangelho segundo João
Comentário
Johannes Beutler
Tradução:
Johan Konings SJ
Beutler A – 2
PREFÁCIO
O comentário aqui apresentado remonta às minhas aulas sobre o Evangelho
segundo João no Pontifício Instituto Bíblico em Roma, nos anos de 2000 até 2007, ano
de minha volta à Alemanha. As aulas em Roma, todavia, têm antecedentes na minha
docência em Frankfurt am Main, desde 1971. Assim conflui, neste comentário do
Evangelho segundo João, o trabalho de toda uma vida, que encontrou expressão
também em publicações. Meu interesse por João nasceu com minha dissertação na
Universidade Gregoriana em 1972 sobre o tema do testemunho no Quarto Evangelho,
publicada no mesmo ano, intitulada Martyria. Naquela época eu devia lecionar a
Teologia fundamental com ênfase no Novo Testamento. O tema do testemunho em João
parecia apropriado para dar uma resposta à pergunta acerca dos fundamentos da fé em
Jesus segundo o Novo Testamento. Mas, em pouco tempo, meu trabalho sobre o
Evangelho segundo João se emancipou, deixando para trás a problemática da Teologia
Fundamental.
O trabalho dos anos subsequentes, inclusive o comentário aqui presente, foi
caracterizado pelo esforço de entender o Evangelho segundo João a partir de seu fundo
veterotestamentário e judaico. Tinha progressivamente abandonado as hipóteses de
documentos-fonte para o Quarto Evangelho. No lugar dessas fontes coloquei os
evangelhos sinópticos, cuja importância para o Evangelho segundo João eu fui
reconhecendo sempre mais, não em último lugar sob a influência da escola de Lovaina,
orientada pelo Professor Frans Neirynck. A isso acrescentou-se o saldo do diálogo com
Eduard Schweizer e com meus colegas da Alemanha, que reconheciam nas camadas
ulteriores do Quarto Evangelho uma “releitura” dos textos anteriores. Esta abordagem
levou-me à proposta de ver no capítulo 6 de João uma “releitura” do seu contexto.
Quanto a isso, menciono como predecessores Barnabas Lindars e René Kieffer.
Meu trabalho deve igualmente muita coisa ao diálogo internacional,
especialmente no quadro da SNTS-Society of New Testament Studies, da qual sou
membro desde 1975 e de cujos seminários sobre os Escritos Joaninos eu recebi mais
que apenas saldo científico.
Exprimo minha gratidão ao Verlag Herder, por ter acolhido meu texto e o ter
tratado com cuidado exemplar. E agradeço, finalmente, todos os que me acompanharam
na minha caminhada científica, desde os professores até os alunos, e inclusive também
minha família, minha ordem religiosa e minhas amigas e amigos pessoais. A eles dedico
esta obra, com gratidão.
Frankfurt am Main, 5 de junho de 2013
Johannes Beutler SJ
Beutler A – 3
Apresentação da tradução em língua portuguesa
Faltava na biblioteca teológica brasileira um “grande” comentário do Evangelho
segundo João. Escolhemos para publicação na “Biblica Loyola”, por causa de sua
atualização científica e profunda visão teológica, o comentário de Johannes Beutler,
fruto de sua docência na Alemanha e em Roma. Além disso, a escolha foi influenciada
também pela afinidade acadêmica e abertura universal do Autor. A obra mostra
sensibilidade pelas periferias do mundo, o que a aproxima do nosso continente, não
desconhecido ao Autor. O leitor latino-americano poderá assim desfrutar a riqueza de
conteúdo e a clareza de método que caracterizam a obra.
Destacamos os aspectos hermenêuticos, metodológicos e didáticos. Quanto à
hermenêutica, transparece amiúde a busca da encarnação histórica na óptica de uma
Igreja pobre e serva. Quanto ao método, aprecia-se a sistematicidade e clareza com que
são seguidos os diversos passos da exegese, servindo assim de escola para os muitos
leitores que têm interesse bíblico, mas dificilmente encontram oportunidade de estudo
avançado. Depois da riquíssima introdução geral, são tratadas as diversas secções,
delimitadas segundo as indicações narrativas. Em cada secção, depois da tradução do
texto bíblico, o Autor expõe (I) o contexto e a composição, (II) a exegese detalhada,
com prioridade da abordagem sincrônica, completada pela diacrônica, e (III) finalmente,
a hermenêutica para a atualidade.
Procuramos praticar a “dupla fidelidade” ao texto original e ao destinatário da
tradução. Algumas vezes, acrescentamos ao texto, entre [ ], o termo original alemão,
outras vezes, breves esclarecimentos nossos, assinalados por [ ]*. A fim de aliviar a
leitura aos que não dominam as línguas bíblicas, preferimos, via de regra, transliterar os
termos gregos e hebraicos. Conservamos as anotações de fonte no rodapé e a
bibliografia geral segundo o modelo original alemão.
Quanto ao texto do Evangelho de João, enquanto o original alemão segue a
Einheitsübersetzung, julgamos mais adequado para a edição em língua portuguesa usar
uma tradução própria, nascida em margem de nosso trabalho de revisão da tradução da
CNBB e adaptada às opções exegéticas do Prof. Beutler.
Prof. Dr. Johan Konings, SJ
FAJE–Faculdade Jesuíta de Filosofia e teologia
Belo Horizonte (Brasil)
Beutler A – 4
ENCAMINHANDO
BIBLIOGRAFIA
As abreviações de textos-fonte bíblicos e extrabíblicos judeu-cristãos, bem como
de coleções, periódicos e obras de referência seguem S. SCHWERTNER, Internationales
Abkürzungsverzeichnis für Theologie und Grenzgebiete, 2.ed., Berlin–NewYork, 1992.
{{scan p. 11}}
1. Fontes
a) Bíblia
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b) Outras fontes
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2. Literatura
a) Comentários
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b) Outra literatura
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[[p. 47]]
Beutler B -5
INTRODUÇÃO
1. Natureza peculiar do Quarto Evangelho
Ao aproximar-se do Evangelho segundo João, as leitoras e leitores dos evangelhos
entram num mundo novo. Desde o início ouvem um linguajar novo. Desapareceram as
palavras de Jesus sobre o Reino que está para chegar. Já o Prólogo do Quarto Evangelho
(Jo 1,1-18) é marcado por conceitos ricos de conteúdo. Fala do Logos divino, que traz
aos homens luz e vida; mas fala-se também do poder das trevas. Fala-se da verdade que
Jesus proporciona e é, bem como da mentira que a ele se opõe. Sobretudo os grandes
discursos de Jesus na primeira metade do evangelho e as controvérsias com os “judeus”
são marcadas por este linguajar, mas ele está presente também nos discursos de
despedida de Jesus, na véspera de sua via crucis. Até no derradeiro interrogatório
perante Pilatos, Jesus afirma ser o rei que veio para dar testemunho da verdade. Este
tom não se ouviu, anteriormente, nos evangelhos.
É característico do Quarto Evangelho o dualismo do seu mundo linguístico e
conceitual. Diversamente dos sinópticos, este dualismo não é de natureza temporal, mas
espacial. Jesus vem “de cima”, seus adversários “de baixo”. Estes são “deste mundo”,
ele é “não deste mundo”. Jesus proporciona e é a vida, e quem a ele se fecha anda nas
trevas. Jesus apresenta e é a verdade, o Adversário é “o pai da mentira”. O “mundo”
pode ser o espaço da missão do Filho, mas também o conjunto de tudo o que se opõe a
Jesus e à sua mensagem. Como representantes do “mundo” que, em João, se opõe a
Jesus, aparecem os “judeus”, num sentido bem específico (concretamente, trata-se das
autoridades judaicas de Jerusalém, mas também dos representantes da religião judaica
na medida em que se recusam a crer em Jesus).
A pluralidade dos grupos judaicos, que ainda se reconhece nos evangelhos
sinópticos, em João se reduz aos fariseus. Isso pode estar ligado à data tardia de sua
composição. Depois da destruição de Jerusalém e do Templo, em 70 d.C., os saduceus,
os zelotes e os essênios se tornaram irrelevantes. Sobrou somente o grupo dos fariseus
como único a exercer alguma influência. Por isso, João identifica os fariseus com “os
judeus”.
A impressão de que o Evangelho segundo João seja antijudaico, porém, engana.
Nenhum evangelho é tão fortemente marcado pelo judaísmo e pelas suas instituições
como o Quarto Evangelho. Isso se percebe na organização do evangelho. Adiante,
mostraremos pormenorizadamente que as viagens de Jesus às festas de peregrinação
judaicas têm significado estruturante para o Evangelho segundo João. Entre a primeira
Páscoa, em 2,13, e a última, em 11,55, encontram-se a festa anônima de 5,1 – que bem
pode ser a festa das Semanas (Pentecostes) – e a festa das Tendas, em 7,2, que é
prolongada na festa da Dedicação em 10,22. Prescindindo, pois, da festa da Páscoa de
6,4, que se celebra na Galileia, a vida pública de Jesus percorre o inteiro ciclo das festas
judaicas. Jerusalém e o Templo oferecem o palco preferido para o ensino e a atividade
de Jesus. E neste quadro são destacados alguns lugares específicos, como as piscinas de
Siloé e de Bezata.
A sequência dos fatos da vida de Jesus, no Quarto Evangelho, não corresponde
sempre à dos evangelhos sinópticos. Jesus realiza a purificação do templo já em sua
primeira visita a Jerusalém, por ocasião da Páscoa (2,13-22). Desenha-se assim um
Beutler B -6
arcabouço de grande tensão dramática. De fato, já desde esse ato inicial aparece um
conflito ameaçador entre Jesus e o judaísmo, paralelo, até certo ponto, com a
deliberação de fariseus e herodianos para eliminar de Jesus, depois da cura em dia de
sábado em Mc 3,6.
Se Marcos parece fazer uma seleção intencional dos milagres de Jesus, essa
tendência se reforça em João. Ele não menciona exorcismos, nem curas de leprosos, e o
número das curas em geral se apresenta muito restrito. Restam a cura do filho do
funcionário régio (4,46-54), a cura do aleijado (Jo 5), a cura do cego de nascença (Jo 9)
e a ressuscitação de Lazaro dentre os mortos (Jo 11). Em compensação, estes milagres
são teologicamente refletidos como “sinais” do pleno poder de Jesus, inclusive nas
extensas cenas de diálogo que os seguem ou acompanham. Isso vale também para o
sinal do pão em Jo 6. A transformação de água em vinho, nas bodas de Caná, é própria
de João e é designada como “início dos sinais” (2,11), embora falte um discurso
interpretativo de Jesus. A pesca milagrosa de Jo 21,1-14 não segue esse esquema, mas
demonstra, por seu lado, profundos traços simbólicos.
Procuram-se em vão, no Quarto Evangelho, as parábolas do Reino dos Céus, tão
características de Jesus nos evangelhos sinópticos. Mas o quarto evangelista não
despreza a linguagem figurativa ou metafórica. Ela lhe serve, principalmente, para
descrever a identidade de Jesus, por exemplo, nas autopredicações “Eu sou”, típicas do
evangelista e com as quais Jesus exprime quem ele é para aquele que crê (“Eu sou o pão
da vida”, Jo 6,35; “Eu sou a luz do mundo”, 8,12). Por duas vezes encontramos em João
uma forma literária, comparável à parábola ou semelhança, designada como “discurso
figurativo” [Bildrede]: o discurso figurativo do bom pastor (10,1-5) e o da videira
verdadeira (15,1-8). Nesta forma de discurso, aparentada à alegoria, interpenetram-se a
dimensão da figura ou imagem e a da realidade evocada.
Marcos inicia seu evangelho com a atuação de João Batista. Mateus e Lucas
recuam mais no tempo e começam com um evangelho da infância. O quarto evangelista
recua mais ainda: regressa, no seu Prólogo (1,1-18), até a origem de Jesus nas
profundezas eternas de Deus. Quem Jesus é e de onde ele vem não mais é enunciado em
termos biográficos, mas teológicos.
A teologia característica do quarto evangelista já se manifesta no Prólogo; mais,
encontra nele sua expressão insuperável. A Palavra divina, Jesus, não apenas se origina
de Deus, mas ela mesma é Deus, isto é, ser divino. Este enunciado emoldura o Prólogo
(1,1 e 18). No fim do evangelho –antes do apêndice que é o cap. 21 –, Tomé retoma
ainda uma vez esse enunciado, fazendo dele sua profissão de fé e a da comunidade
leitora: “Meu senhor e meu Deus” (Jo 20,28). Destarte, a confissão da divindade de
Jesus emoldura o Evangelho segundo João inteiro em sua forma primitiva. Que Jesus é
Filho de Deus é um enunciado supremo no evangelho de Marcos (cf. Mc 1,11; 9,7;
14,61; 15,39); em João, ele permanece como título cristológico dominante. Ao lado
disso Jesus é muitas vezes chamado simplesmente “o Filho”, e também “o Filho do
Homem”, como Jesus com frequência é chamado nos sinópticos. Tais predicados têm
contato com o servo de Deus de Isaías: ele será “enaltecido e glorificado” (cf. Is 52,13
LXX).
Assim entra em jogo a escatologia joanina. Em João não encontramos um
discurso sobre o vindouro fim do mundo, nem sobre a destruição de Jerusalém, como
em Mc 13 e paralelos. O tempo do fim não é anunciado para momento algum, nem para
imediatamente: ele já irrompeu – provável referência a textos sinópticos como Mc
12,28; Lc 11,20. Em João, isso pode soar assim: “Vem a hora, e já chegou” – a hora dos
Beutler B -7
verdadeiros adoradores em espírito e verdade (Jo 4,23) e, ao mesmo tempo, a hora em
que os mortos ouvem a voz do Filho do Homem e se levantam para o julgamento ou
para a salvação eterna (5,25). É, sobretudo, nesta antecipação do juízo final e da vida
eterna para o tempo presente que João supera os sinópticos. O ponto culminante da
História é a paixão, morte e ressurreição de Jesus – em termos joaninos: a “hora” do
“enaltecimento” de Jesus sobre a cruz e rumo ao Pai. É deste ponto de observação que
se devem entender as palavras de Jesus. Especialmente os discursos da despedida de
Jesus em Jo 13–17 são pronunciados, consequentemente, desde a óptica do Enaltecido.
Dentro de pouco tempo, ele não estará mais visivelmente presente entre os seus, mas
lhes enviará seu substituto, o Paráclito, que introduzirá os discípulos em toda a verdade
(Jo 16,13). Destarte, a comunidade dos discípulos de Jesus vive, depois da Páscoa, no
tempo do fim e torna-se partícipe das promessas escatológicas.
2. Estrutura
Até hoje se encontram as mais diversas teorias acerca da estrutura do Quarto
Evangelho. Até num passado recente reinava, especificamente no mundo de língua
alemã, dúvida de que se possa encontrar uma estrutura clara no Quarto Evangelho. Tal
ceticismo encontra-se, por exemplo, no monumental comentário de R. Schnackenburg.
Este ceticismo se fundamenta em parte na opinião de que o Evangelho segundo João
passou por um longo processo de composição, na base de diversas fontes, de modo que
sua forma original mal se deixa reconstruir.
Os grandes comentadores do Quarto Evangelho articulam o texto principalmente
na base de pontos de vista temáticos. R. Bultmann, por exemplo, divide o Evangelho
segundo João em duas partes principais: “A revelação da doxa diante do mundo” (Jo 2–
12) e “A revelação da doxa diante da comunidade” (Jo 13–20). O cap. 1 seria prólogo e
introdução, o cap. 21 epílogo ou apêndice. C. H. Dodd (Interpretation) divide o
evangelho em “O livro dos Sinais” (2–12) e “O livro da Paixão” (13–20). R. E. Brown
modifica a compreensão de Dodd, intitulando a segunda parte “O livro da Glória”, o que
certamente é mais adequado. Ele divide a primeira parte em quatro secções: “Os dias de
abertura da revelação de Jesus” (1,19-51); “De Caná a Caná” (caps. 2–4); “Jesus e as
principais festas dos judeus” (caps. 5–10); e, finalmente, os caps. 11–12 como “Jesus a
caminho da hora de morte e glória”. Neste esquema junta-se, à articulação temática,
outra, que leva em consideração pontos de vista topográficos, cronológicos e litúrgicos1.
Outros autores consideram como ponto de vista decisivo o drama. J. L. Martyn2
vê o “drama” do conflito entre Jesus e os judeus que lhe recusam a fé como
determinante para o Evangelho segundo João. Porém, como esse conflito se prolonga
através do evangelho inteiro, sua utilidade para estruturar o texto é relativa. Também
Mark Stibbe, em suas diversas publicações3, e L. Schenke, no seu comentário, julgam a
perspectiva dramática determinante. Este último organiza o Evangelho segundo João,
depois do Prólogo, em duas partes: “A obra de Jesus diante do mundo dos homens
como ‘descida do céu’” (Jo 1,19–12,36), em oito cenas, com um epílogo em 12,37-50;
e, depois: “A obra de Jesus diante dos discípulos como ‘subida/enaltecimento ao céu’”
(Jo 13,1–20,29), com um segundo epílogo em 20,30-31, uma continuação em 21,1-24 e
1
Abordagem desenvolvida por F. J. MOLONEY no seu comentário.
J. L. MARTYN, History.
3
Cf. seu comentário e sua monografia John as Storyteller.
2
Beutler B -8
a conclusão do livro em 21,254. Schenke completa, porém, esta visão por outra, que
articula o Evangelho segundo João segundo o modelo do drama antigo em cinco atos:
exposição, repetição-condensação, auge, peripécia e desenlace5. À semelhança de
Schenke, também H. Thyen ordena o Evangelho segundo João no tipo do drama,
segundo o exemplo do exegeta dinamarquês G. Østenstad6. Mas a estruturação em atos
e cenas parece por demais emprestada do gênero darmático para dar conta dos múltiplos
indícios de articulação que o texto apresenta. Também M. Theobald, no seu comentário,
vê o Quarto Evangelho como “narrativa dramática”7, embora admita não encontrar o
drama “com exatidão no plano de composição do livro”8.
De modo semelhante, George L. Parsenios se interessa pelo drama como elemento
estruturador do Evangelho segundo João, num estudo que representa ampla literatura
recente dos EUA9. Segundo Parsenios, não é o drama antigo como tal que nos ajuda a
compreender melhor e Evangelho segundo João, mas sua elaboração na retórica da
época romana10.
As articulações cronológicas e litúrgicas orientam-se mais pelos sinais estruturais
do texto. Assim, D. Mollat, em seu comentário na Bible de Jérusalem11, reconhece, em
João, depois da “semana de abertura” (1,19–2,12), as principais festas judaicas de
peregrinação como elementos estruturadores: a primeira Páscoa em Jerusalém, visitada
por Jesus (2,13); a festa anônima de 5,1, que talvez seja a festa das Semanas; a Páscoa
na Galileia em 6,4; a festa das Tendas (7,2) com a subsequente festa da Dedicação
(10,22); e a Páscoa final (11,55; 12,1; 13,1–19,42). Esta proposta é recomendável por
causa da interligação dos elementos estruturais temáticos, espaciais e temporais.
Tornaremos a tratar disso.
Recentemente alegam-se também elementos topográficos para a articulação do
Evangelho segundo João. M. Rissi12 distingue, na sua proposta estrutural, três viagens
de Jesus antes de seu caminho definitivo rumo a Jerusalém. Estas viagens começam na
região não judaica, dos gentios, e, passando pela Galileia, conduzem a Jerusalém: 1,19–
3,36; 4,15,47; 6,1–10,39. Neste ponto começa a última viagem a Jerusalém (10,40–
12,41), a despedida de Jesus dos seus (13,1–14,31; os caps. 15–17 são acrescentados) e
a volta ao Pai (18,1–20,31; o cap. 21 é acrescentado). No início encontra-se o Prólogo.
Destarte temos uma estrutura de sete partes, com três vezes duas secções depois do
Prólogo, tendo o ponto de reversão em 10,40.
J. Staley13 retoma de M. Rissi sobretudo o ponto de reversão em 10,40 (em
concordância com H. Thyen14), com a diferença de situar o início da nova secção em
4
L. SCHENKE, 17.
L. SCHENKE, 16; ID., in: Das Johannesevangelium: Einführung – Text – dramatische Gestalt, 219.
6
G. ØSTENSTAD, Structure.
7
M. THEOBALD I 14.
8
Ibid. 29.
9
G. L. PARSENIOS, Rhetoric and Drama; cf. sobretudo o aceno a Jo-Ann BRANT, Dialogue and Drama.
10
Cf. ibid., 12: “The following monograph argues that the Gospel of John also resonates with the echoes
of Athenian tragedy in the Roman Empire. And a key note in the harmony that links John to ancient
tragedy is the legal emphasis of both.”
11
D. MOLLAT 32-36, 90.
12
M. RISSI, Aufbau.
13
J. STALEY, Structure.
14
H. THYEN, Johannes 10 e comentário; também M. LABAHN, que no artigo “Bedeutung und Frucht des
Todes Jesu” (435) considera Joh 11–12 como uma espécie de “lente com evidentes tendências à
convergência [Bündelung] e à interpretação”.
5
Beutler B -9
11,1 (também com Thyen). Stanley vê a ideia da “viagem” preparada já no Prólogo,
visto que este descreve a descida e a subida do Logos. Apresenta-se assim uma estrutura
em quatro viagens: 1,19–3,36; 4,1–6,18; 7,1–10,42; 11,1–21,25. O caminho de Jesus na
primeira metade do evangelho (1,19–10,42) o leva de Betânia além do Jordão a Betânia
de Jerusalém (1,28; 11,1.18). Acompanha de maneira determinante João Batista, como
tal pela primeira vez em 1,28 e pela última vez em 10,42. Em seguida ele é
“substituído” por Lázaro, que Jesus “amava” (11,5), e, depois, pelo “discípulo que Jesus
amava” (para L. Devillers15, as três “testemunhas” de Jesus).
R. Kieffer articula o Evangelho de João segundo quatro viagens de Jesus, que têm
o mesmo ponto de partida, a saber, a terra adjacente do outro lado do Jordão (ou
eventualmente do mar de Genesaré): Jo 1,19-51; 3,22-36; 6,1-6 e 10,40-42 16.
F.F. Segovia, em duas contribuições17, observa que as viagens de Jesus
regularmente o reconduzem a Jerusalém. Ele distingue, como M. Rissi, três viagens de
Jesus (1,19–3,36; 4,1–5,2; 6,1–10,42) antes da última e decisiva, em 11,1. Estas viagens
permitem ao leitor participar das vicissitudes do herói. Mas esta visão não considera a
importância das festas de peregrinação judaicas para as viagens e para a estrutura do
Evangelho segundo João.
Recentemente procura-se, antes, combinar as características estruturais formais e
as de conteúdo. Observa-se esse empenho no caso de G. Mlakuzhyil18 da escola de I. de
la Potterie no Pontifício Instituto Bíblico. Ele considera que a cristologia tem
importância decisiva para a compreensão e a estruturação do Quarto Evangelho. Depois
de uma introdução cristológica (1,1–2,11), este autor distingue o “livro dos Sinais”
(2,1–12,50), com as bodas de Caná como passagem de transição, e o “livro da hora de
Jesus”, com 11,1–12,50 como transição (como H. Thyen, cf. supra). Em 20,30s. temos a
“conclusão cristocêntrica” e em 21,1-25 um epílogo. Merece atenção que 2,1-11 e 11,1–
12,50 são vistos como passagens de transição. Menos convincente é que ele restringe o
ciclo das festas judaicas às grandes controvérsias de Jesus com “os judeus” em
Jerusalém, em Jo 5,1–10,42.
Também a proposta de C. H. Giblin19 combina critérios estruturais formais e
conteudísticos. O autor parte de indicações de lugar e de tempo no texto como também
de indícios de estruturação dramática. Em Jo 1,19–4,54 descreve-se a missão universal
de Jesus; em 5,1–10,42, a inimizade contra ele nas grandes controvérsias; e, a partir de
11,1, o amor de Jesus pelos seus até o fim. A transição formal para a segunda parte se
dá em 13,1, conservando-se assim a tradicional bipartição do Evangelho segundo João.
Pergunta-se, porém, se as indicações de tempo e lugar recebem a devida consideração.
O presente comentário procura combinar os critérios de estruturação usados até
aqui. Consideramos elementos topográficos, cronológicos, litúrgicos, formais e
conteudísticos. De D. Mollat guardamos o papel das festas judaicas na estrutura do
Evangelho segundo João20; de M. Rissi, J. Staley, R. Kieffer e F. F. Segovia, a
importância das viagens até inclusive a última viagem a Jerusalém. Recomenda-se ver
nas viagens a Jerusalém “subidas” de peregrinação às principais festas dos judeus. Um
15
L. DEVILLERS, Témoins.
Vgl. R. KIEFFER, Johannesevangeliet II, 500.
17
F. F. SEGOVIA, Journeys of the Word; ID., Journeys of Jesus.
18
G. MLAKUZHYIL, Structure.
19
C. H. GIBLIN, Structure.
20
Seu background judaico é examinado em D. FELSCH, Feste.
16
Beutler B -10
ciclo anual das festas de romaria judaicas pode ter constituído a estrutura básica da parte
narrativa do Evangelho segundo João entre 2,13 e 11,55. Por quatro vezes, Jesus toma o
caminho de Jerusalém: para a primeira Páscoa, em 2,13; para a festa anônima, em 5,1;
para a festa das Tendas, em 7,2; para a última Páscoa, em 11,1 (mencionada também em
11,55; 12,1 e 13,1). Para a Páscoa mencionada em 6,4, Jesus não parece subir a
Jerusalém; talvez o cap. 6 inteiro tenha sido inserido ulteriormente sob influência dos
sinópticos21. A festa da Dedicação, em Jo 10,22, está incluída neste quadro e não
necessita de nova subida a Jerusalém, visto que Jesus já se encontra na cidade.
Teologicamente falando, Jesus leva a termo os tempos e lugares santos de Israel (o
Templo encontra-se no início e no fim). Acertadamente, os comentadores veem no
início uma “semana de abertura” da vida pública de Jesus (1,19–2,12), com um esquema
de sete dias, enquanto no fim temos uma semana para a volta ao Pai, iniciando-se com a
unção em 12,1 (“seis dias antes da Páscoa). Junto a isso cabem, em Jo 11, os seis dias
da história de Lázaro.
3. Finalidade
Quando se pergunta pela finalidade ou objetivo da redação do Quarto Evangelho,
a maioria dos comentadores, aponta para o primeiro final do Evangelho segundo João,
20,30s: “Jesus realizou ainda muitos outros sinais diante dos discípulos, que não estão
escritos neste livro. Mas estes estão escritos para que creiais que Jesus é o Cristo, o
Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida, em seu nome.”. Para a expressão “para
que creiais”, os textos originais gregos apresentam duas lições variantes. A primeira,
atestada por P 66vid a* B Q 892s l 2211, portanto, pela tradição textual mais antiga, de
origem egípcia, lê hína pisteúēte no presente do subjuntivo; enquanto a outra lê o
subjuntivo aoristo, hína pisteúsēte, atestado por a2 A C D K L N W G D Y f1.13 33 e
testemunhas do texto majoritário. De acordo com a primeira lição, a finalidade do
evangelho é corroborar os leitores na fé em Jesus; de acordo com a segunda, levar as
pessoas à fé em Jesus. O testemunho documental, porém, aconselha preferir a primeira
variante, e é o que fazem a maioria dos comentários recentes.
Antigamente, a pesquisa gostava de perguntar pelos destinatários do Quarto
Evangelho. Para tanto, muitas vezes se remetia à segunda variante mostrada acima. Nos
comentários de R. Schnackenburg22 e de R. E. Brown23 encontra-se o elenco desses
modelos, que ainda pode ser completado24. Eventualmente propõe-se que o Evangelho
segundo João tem por finalidade ganhar os adeptos do Batista para a fé em Jesus.
Remete-se então ao Prólogo, que diz expressamente que o Batista não era a luz, mas
veio para dar testemunho da luz (Jo 1,8)25. Segundo o quarto evangelista, o próprio João
Batista põe-se a serviço dessa finalidade (cf. Jo 1,19.32.34; 3,26; 5,33s.). De acordo
com Jo 1,20, o Batista realça que ele não é o Messias. Segundo At 18,24–19,7, Paulo
encontrou em Éfeso discípulos de Jesus que conheciam o batismo de João apenas.
21
Cf. J. BEUTLER, Joh 6, e a explicação de Jo 6 no presente comentário.
R. SCHNACKENBURG I 146-153.
23
R. E. BROWN I LXVII-LXXIX.
24
Cf. J. BEUTLER, Martyria, 340-351.
25
Vgl. W. BALDENSPERGER, Prolog.
22
Beutler B -11
Outra opinião, representada por K. Bornhäuser26, propõe que o Evangelho
segundo João é um “escrito missionário para Israel”. Tal opinião se baseia, além do
acima citado final do evangelho, nas grandes controvérsias entre Jesus e “os judeus”
acerca da afirmação de Jesus de ser o Cristo e Filho de Deus.
Uma alternativa para esta opinião é ver no Quarto Evangelho um escrito dirigido
aos gregos. Com ironia joanina, os ouvintes judeus se perguntam, em 7,35, se Jesus irá à
diáspora dos gregos, para evangelizar ali. Tais gregos aparecem em 12,20 para ver
Jesus. Acaso o Quarto Evangelho quer ganhá-los para a fé? Ou pensa-se em judeus da
diáspora27?
Outros destacam o interesse do Quarto Evangelho pelos samaritanos28.
Contemplam-se, de modo especial, a viagem de Jesus através da Samaria e os diálogos
e encontros que se seguem em Jo 4,1-42. Talvez aponte nessa direção a crítica do
Quarto Evangelho em relação ao Templo, que o aproxima do movimento de Qumrã e
dos helenistas do livro dos Atos.
Também os gnósticos e os docetistas aparecem como possíveis destinatários do
Quarto Evangelho. Nesta luz explica-se o destaque dado à “carne” de Jesus (cf. Jo 1,14;
6,51-56), bem como sua morte sangrenta na cruz e, em seguida, o lado aberto de Jesus,
de onde fluem água e sangue (Jo 19,34s.)29.
Em tempos recentes cresce a opinião de que o Quarto Evangelho pretende, em
primeiro lugar, corroborar a fé dos leitores cristãos. Esta opinião não provém apenas da
primeira variante textual de 20,31 (cf. acima), mas da própria índole do Quarto
Evangelho. Em diversos textos fortes do Quarto Evangelho, discípulos representativos
formulam a confissão à qual leva o evangelho inteiro de acordo com 20,30s. Pedro,
como porta-voz dos Doze, declara, depois de um movimento de desistência no meio dos
discípulos, em Jo 6,68s.: “A quem iremos nós, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna.
Nós firmemente cremos e reconhecemos que tu és o Santo de Deus”. Depois, Marta, em
11,27, toma na boca a confissão da comunidade leitora de João: “Sim, Senhor, eu creio
firmemente que tu és o Cristo, o Filho de Deus, aquele que deve vir ao mundo”. Tal
confissão já vem preparada desde o primeiro capítulo (cf. André em 1,41 e Natanael em
1,49).
O Evangelho segundo João pretende, portanto, conduzir à fé em Jesus, o Cristo e
Filho de Deus, e corroborar essa fé. Segundo a opinião mais divulgada, sobretudo no
mundo de língua alemã, este seria seu único objetivo. Talvez haja nisso alguma
influência da Reforma, segundo a qual todo o interesse está em Cristo e na fé nele. No
mundo anglófono percebe-se, ultimamente, que pertence à fé em Cristo também a
confissão dessa fé30. Nisto podem jogar dois fatores: a maior independência em relação
às ópticas confessionais da Europa central e a troca do paradigma, quando se prioriza a
explicação dos textos neotestamentários não tanto a partir do autor, mas a partir do
leitor. Sobretudo nos EUA cresce, nos últimos anos, uma exegese mais
26
K. BORNHÄUSER, Johannesevangelium.
Assim J. A. T. ROBINSON, Destination; ao menos para Jo 12,20, H. KOSSEN, Greeks, pensa em gregos
não judeus.
28
Em relação a isso, cf. já J. BOWMAN, Probleme, esp. 53-76: Die Samaritaner und das Evangelium, em
que as pp. 55-61 se referem a João.
29
Cf. G. BORNKAMM, Interpretation, contra E. KÄSEMANN, Jesu letzter Wille, que vê no Evangelho de
João um “docetismo ingênuo”. Mais em U. SCHNELLE, Christologie.
30
Cf., entre outros, R. E. BROWN I LXXVII-LXXIX; J. PAINTER, John, Witness, 12-15; J. DU RAND,
Perspectives I 55; R. KYSAR 14-15, 310; ID., Fourth Evangelist, 147-165; ID., Maverick Gospel, 18-26.
27
Beutler B -12
pragmalinguística dos textos do Novo Testamento, que recorre ao instrumental da
análise retórica e da resposta do leitor aos textos bíblicos (“reader response criticism”).
Uma indicação para a necessidade de permanecer na fé e de se deixar corroborar
nela já se encontra no próprio enunciado de Jo 20,31. O presente do subjuntivo,
pisteúēte, significa exatamente: “para que continueis crendo”. Essa fidelidade pode terse tornado difícil nas circunstâncias dos leitores do Evangelho segundo João. Se querem
viver autenticamente sua fé, devem também confessá-la exteriormente. E parece que
isso está encontrando dificuldades. Por isso, desde o início, o Quarto Evangelho dá
grande valor à confissão da fé em Jesus, quer direta quer indiretamente31. Diz-se do
Batista, quando interrogado se ele é o Messias: “Ele confessou e não negou; ele
confessou: ‘Eu não sou o Cristo’” (Jo 1,20). Percebe-se o acento posto na confissão.
Mais adiante aparecem pessoas que acreditaram em Jesus, mas não confessam isso
publicamente, por medo dos fariseus, visto que estes decidiram excluir da sinagoge
todos os que publicamente confessassem Jesus (Jo 12,42). Para estes discípulos, a honra
dos homens era mais importante que a de Deus (cf. Jo 5,5,41-44)32. Entre esses
discípulos encontramos José de Arimateia, que, porém, corajosamente, acompanhado de
Nicodemos, vai pedir a Pilatos o corpo de Jesus (Jo 19,38s.).
Assim encontramos as figuras exemplares que, segundo o Evangelho de João, nos
dão o exemplo da confissão intrépida de Jesus. Mencionemos novamente Nicodemos,
membro do supremo conselho dos judeus. Da primeira vez, dirige-se a Jesus de noite,
provavelmente por medo de ser visto. Isso ficará pairando sobre ele: é lembrado ainda
em 19,39. Não se sabe como terminou sua conversa com Jesus em 3,1-21. Ele
simplesmente some da cena, sem que os leitores fiquem sabendo o que ele aprendeu na
conversa com Jesus. Quando, mais tarde, Jesus se torna objeto de acusação no supremo
conselho, Nicodemos toma partido por ele e exige que se ouça o acusado, conforme a
norma da Lei (Jo 7,50s.). Assim, Nicodemos se expõe a risco social, pois ele é “um
deles” (v. 50). No fim do evangelho, Nicodemos vai com José de Arimateia pedir a
Pilatos o corpo de Jesus. Desta vez, coloca a sua vida em jogo junto às autoridades
romanas33.
Pode-se pensar que o evangelista, mediante estes elementos biográficos, quer
mostrar a seus leitores que devem confessar Jesus, sem consideração da própria vida ou
posição. Como José de Arimateia, também Nicodemos pode ter sido um discípulo de
Jesus “em segredo” (19,39s.); mas ele encontra a coragem de assumir sua fé quando é
preciso. É o que também os leitores devem aprender.
O modelo mais importante com o qual os leitores do Evangelho segundo João
podem identificar-se é proposto, provavelmente, no cap. 9, a história do cego de
nascença. Este recebe de Jesus não só a luz dos olhos, mas, passo a passo, chega
também à fé em Jesus. Ao contrário de seus pais, ele arrisca confessar essa fé, apesar da
decisão dos “judeus” (no caso, as autoridades judaicas de Jerusalém) de excluir da
sinagoga qualquer um que aderir Jesus (Jo 9,22). Pouco depois, sua confissão resulta, de
fato, na exclusão (9,34). Semelhante exclusão menciona-se também em 12,42 e 16,2.
Segundo J. L. Martyn34 espelha-se aqui a situação do tempo depois da destruição do
31
Para o que segue, cf. J. BEUTLER, Faith and Confession.
Cf. J. BEUTLER, Ehre Gottes.
33
R. J. CASSIDY, John’s Gospel, vê o escopo do Quarto Evangelho no encorajamento dos leitores à
perseverança sob a perseguição romana, pois os conflitos com a autoridade judaica mal constituíam um
perigo ainda.
34
J. L. MARTYN, History.
32
Beutler B -13
Templo, concretamente, a decisão do assim chamado “sínodo de Jâmnia” de incluir nas
“Dezoito preces” uma condenação dos hereges. Os comentadores de hoje pensam que
tal exclusão da sinagoga como contexto do Quarto Evangelho deve ser pensada, antes,
em nível local. Em todo o caso, o cego de nascença permanece o exemplo clássico da
pessoa que abraça a fé em Jesus, e isso, desconsiderando as consequências sociais35.
Podemos alegar outros exemplos dessa intencionalidade dirigida ao leitor. Tomé,
por exemplo, quando Jesus pela última vez toma o caminho de Jerusalém, diz com
plena consciência do perigo aos outros discípulos: “Vamos nós também para morrermos
com ele” (Jo 11,16)36. Há também Pedro, que, primeiro, nega Jesus três vezes, mas
depois exprime de forma nova seu amor e aprende de Jesus que o levarão aonde ele não
deseja ir (Jo 21,18). Temos ainda o Discípulo Amado, que, com a mãe de Jesus, segue
o seu mestre até ao pé da cruz (Jo 19,25-27). E as mulheres, principalmente Maria
Madalena, que, como discípulas fiéis, chegam para buscar e enterrar o corpo de Jesus
(Jo 20,1-2). Temos Lazaro e suas irmãs, que acolhem Jesus, mesmo no momento da
maior ameaça (Jo 12,1-11). E poderíamos prolongar ainda a lista.
Jesus mesmo deseja de seus discípulos a disposição de segui-lo aonde seja que ele
for. Onde ele estiver, estarão também seus discípulos. Como um grão de trigo, devem
estar dispostos a cair na terra para produzir fruto (Jo 12,24-26). Tais passagens
pertencem ao coração do Quarto Evangelho, não à margem37. Mostram ao leitor a que
ele deve estar disposto no caso extremo.
4. Unidade literária e fontes
Antes da introdução, no estudo do Evangelho segundo João, da análise linguística
textual, que considera o texto como está aí, a discussão era dominada, pelo menos na
Alemanha, pelo modelo literário-crítico de R. Bultmann. Este modelo, porém, não é
imediatamente visível no seu comentário; por isso, D. M. Smith deu-se ao trabalho de
oferecer uma apresentação sistemática38. Segundo Bultmann, o autor serve-se de três
fontes de natureza diversa. Grande parte do Prólogo e a maior parte dos discursos de
Jesus, no Quarto Evangelho, são por Bultmann atribuídas a uma fonte de discursos
proveniente dos círculos batistas gnósticos. A partir do início do século XX ficaram
acessíveis, de maneira mais fácil ou como novidade, os textos dos mandeus e dos
maniqueus. Junto com as Odes de Salomão constituem o pano de fundo históricoreligioso para essa teoria39. O evangelista teria reinterpretado essa fonte no sentido do
“paradoxo” entre a origem celeste do Logos e sua encarnação, e inserido no seu
evangelho. Teria utilizado também uma fonte de “sinais” de Jesus e uma fonte com um
relato da paixão, morte e ressurreição. Importante é, para Bultmann, de modo especial, a
distinção entre a “fonte dos sinais” e o evangelista. A fonte vê em Jesus, segundo o
modelo helenista, um “homem divino”, que, com base nos sinais que realiza, leva as
pessoas à fé em sua dignidade profética e messiânica. O evangelista, porém, conduz os
leitores a uma fé em Jesus voltada para sua palavra. Se o evangelho original estava
35
Cf. M. LABAHN, Der Weg eines Namenlosen.
Cf. J. BEUTLER, “Lasst und mit ihm gehen”
37
Contra J. BECKER II 448f, o qual, com W. LANGBRANDTNER, Gott, considera Jo 12,24-26 interpolação
secundária da redação eclesial, não em último lugar porque esses vv. visam ao seguimento dos discípulos
e não apenas à sua fé. Neste sentido também C. DIETZFELBINGER 398.
38
D. M. SMITH, Composition; cf. recentemente M. LABAHN, Bultmanns Konzeption.
39
R. BULTMANN, Bedeutung.
36
Beutler B -14
voltado para esta fé em Jesus e a salvação que ele medeia no tempo presente, a ulterior
“redação eclesial” acentuou mais a escatologia ainda por vir, na ressurreição e no
julgamento, bem como a necessidade dos sacramentos de batismo e eucaristia e a
importância do ministério eclesial. Graças a isso, o Quarto Evangelho se tornou
aceitável para a Grande Igreja e pôde ser integrado no cânon dos quatro evangelhos.
Para Bultmann, trechos narrativos como a primeira vocação dos discípulos em Jo
1,35-51 pertenciam basicamente à “fonte dos sinais”. Depois dele, esta teoria inicial foi
ampliada na hipótese de um escrito básico e ou de um “evangelho dos sinais”40, e isso,
com crescente espaço para a redação joanina, à qual pertenceriam, por exemplo, todas
as partes do evangelho que falam do “Discípulo Amado”. No fim dessa evolução não
sobrou praticamente mais nada daquilo que Bultmann atribuía ao “evangelista”. Esta
constatação levou H. Thyen a preconizar uma nova abordagem 41, a chamar o redator
final de “o evangelista”42, a abandonar de vez o inteiro modelo de camadas e fontes e a
tomar como ponto de partida o Quarto Evangelho como texto unitário e coerente em
si43. Esta tendência reforçou-se com a integração dos métodos da análise textuallinguística no estudo do Quarto Evangelho. Contudo, desconsiderar fontes e camadas
não é a mesma coisa que negá-las. Para negá-las, seria preciso uma argumentação. Tal
argumentação foi desenvolvida por E. Ruckstuhl e P. Dschulnigg 44 no que diz respeito
à crítica do estilo, mas somente para isso.
Continua em discussão a dependência do Quarto Evangelho em relação aos
evangelhos sinópticos. Contra a tese de P. Gardner-Smith45, de que o Quarto Evangelho
não supõe imediatamente os três primeiros, cresce, desde os anos de 1970, pelo menos
no âmbito de língua alemã, a opinião da assim chamada “escola de Lovaina”, do Prof.
F. Neirynck e seus colegas e alunos, segundo a qual o Evangelho segundo João teria
conhecido e utilizado os evangelhos sinópticos. Claro, não se deve imaginar que João se
tenha tornado um “quarto sinóptico”. Segundo a escola de Lovaina, ele utiliza os
sinópticos de modo muito livre, e nem sempre com igual amplidão e intensidade.
Contatos com os primeiros três evangelhos são demonstráveis, sobretudo, na tradição do
Batista, em alguns milagres (a cura do filho do funcionário em Jo 4,46-54) e em Jo 6
(multiplicação dos pães, caminho sobre as águas, pedido de sinal, discurso do pão e
divisão entre os discípulos com a confissão de fé de Pedro), bem como no relato da
paixão, morte e ressurreição de Jesus. No presente comentário advogamos a
dependência do Quarto Evangelho dos três primeiros, embora isso tenha sido
contestado, ultimamente de novo, no âmbito anglófono46. Na presente explicação
desconsideramos a utilização de outras fontes, visto que, precisamente no relato joanino
de paixão, morte e ressurreição, se pode mostrar, em detalhe, como João desenvolve a
tradição sinóptica de modo criativo, assim como já tinha feito na recepção da tradição
acerca do Batista.
40
Cf. os comentários a João de J. BECKER und E. HAENCHEN, como também G. RICHTER, Studien.
Vgl. R. T. FORTNA, Gospel of Signs; ID., Predecessor.
42
Vgl. H. THYEN, Entwicklungen.
43
Esta é a base do comentário a João de H. Thyen e também sua conclusão final em Studien. Para o
comentário, cf. a recensão de J. BEUTLER in Bib. 89 (2008) 131-134; para Studien, a recensão do mesmo
em CrSt 30 (2009) 219-222.
44
E. RUCKSTUHL, Einheit; ID., P. DSCHULNIGG, Stilkritik.
45
P. GARDNER-SMITH, Saint John.
46
Negam a utilização dos sinópticos por João: R. T. FORTNA, T. THATCHER (ed.), Jesus, 113-188; é vista
criticamente em: F. LOZADA JR., T. THATCHER (ED.), New Currents. A datação de João antes dos
sinópticos (defendida por K. BERGER, e.o.) é discutida por P. L. HOFRICHTER, Priorität.
41
Beutler B -15
Boa introdução na nova discussão da relação entre João e os sinópticos encontrase num extenso artigo de Michael Laban e Manfred Lang47. Constata-se, por um lado,
crescente aceitação da dependência do Quarto Evangelho dos três primeiros, mas, por
outro lado, também ressalvas em certo número de autores, e não somente naqueles que
situam João em época mais remota. Aponta-se a dificuldade de explicar a distância
relativamente grande entre João e seus três predecessores. Por um lado, deve-se levar
em consideração sua criatividade literária e teológica–como a defendemos também no
presente comentário –, mas, por outro lado, é possível que a tradição sinóptica tenha
alcançado o Quarto Evangelho numa “oralidade segunda”, isto é, depois de uma “reoralização” ulterior dos sinópticos. E pode-se pensar também que João cite os sinópticos
de cor. Neste caso, não se precisaria da “comunidade joanina” como mediadora da
tradição. Um dos argumentos mais fortes para a aceitação da influência sinóptica em
João permanece o gênero “evangelho”: é difícil pensar que ele tenha sido criado duas
vezes simultaneamente48.
Permanece notável a forte semelhança entre Jo 6 e a secção Mc 6,31–8,33.
Acrescentam-se a isso algumas particularidades de Jo 6. Jesus não parece subir a
Jerusalém para a Páscoa mencionada em Jo 6,4, aparentemente transferida para a
Galileia. Além disso, aqui é levado à tona, pela única vez em João, o tema da eucaristia
(6,72.51c-58). Acrescenta-se o tema da “ressurreição no último dia” (6,39.40.44.54). E
só aqui encontramos, como antagonistas de Jesus, “judeus” que não sejam também
habitantes da Judeia (a partir do v. 41). Adotamos, neste comentário, a hipótese da
origem secundária deste capítulo49. Acrescentam-se outros textos que podem ter sido
acrescentados à forma básica do evangelho. É o que a maioria dos estudiosos aceita
quanto a Jo 21, mesmo aqueles que leem o evangelho em geral em chave sincrônica50.
Parecem secundários também os capítulos 15–17. De fato, a ordem de partida de Jo
14,31 só é executada em 18,151. E há também razões para considerar o Prólogo como
uma espécie de prefácio concebido no fim da obra, à guisa de chave de leitura52. Nem o
conceito substantivado do Logos, entendido de maneira cristológica, nem a encarnação
encontram-se mencionados no resto do Quarto Evangelho. Os acréscimos ao texto
transmitido do Quarto Evangelho são aqui entendidos, em concordância com Jean
Zumstein, Andreas Dettwiler e Klaus Scholtissek, como “releituras” de textos
anteriores, ou seja, como leitura renovada à luz da situação do leitor. Esta visão se
distingue da crítica literária clássica nisto, que não se trata de uma sucessão de autores,
mas de textos. Assim, nosso comentário representa uma síntese de leitura sincrônica e
diacrônica do Quarto Evangelho. Neste quadro cabe também a implicação, na exegese,
das tradições do Antigo e do Novo Testamento.
5. Origem histórico-religiosa
A questão da origem histórico-religiosa do Evangelho segundo João não se deixa
responder para o evangelho como um todo. As matérias acolhidas nele são
demasiadamente diversificadas. Por isso aconselha-se distinguir os diversos gêneros
47
Cf. M. LABAHN, M. LANG, Johannes und die Synoptiker.
Cf. ibid., 504s., remissiva a H. THYEN.
49
Cf. J. BEUTLER, Joh 6.
50
Cf. o comentário de João de U. SCHNELLE.
51
Cf. J. BEUTLER, “Steht auf”.
52
Cf. J. BEUTLER, Johannesprolog.
48
Beutler B -16
literários dentro do Quarto Evangelho e examinar para cada gênero o fundo históricoreligioso53. Basicamente, pode-se distinguir entre matéria narrativa e matéria discursiva,
no Quarto Evangelho. Acresce o Prólogo como gênero próprio com seu fundo históricoreligioso particular.
A matéria narrativa mostra em geral bastante contato com tradições e textos
bíblicos. Isso vale para os relatos joaninos de vocação e de milagre, bem como para o
relato joanino da paixão, morte e ressurreição. Sobretudo os relatos de milagre têm
interesse histórico-religioso e, como “sinais” interpretados, mantêm íntima conexão
com a matéria discursiva. Os relatos de milagre em João demonstram bastante
parentesco com relatos correspondentes da tradição sinóptica. Uma dessas histórias, a
da cura do filho do funcionário régio (Jo 4,46-54), tem paralelo direto num relato
análogo da matéria comum de Mateus e Marcos atribuída à “fonte Q” (Mt 8,5-13; Lc
7,1-10). Outras duas histórias de João ilustram que “cegos veem e coxos andam” (cf. Mt
11,5; Lc 7,22), a saber, a cura do paralítico em Jo 5,1-9b e a do cego de nascença em Jo
9,1-7. Relatos como estes provavelmente querem mostrar que se realizaram as
promessas escatológicas de Is 35,5s. e 29,28. Também aqui está entre João e os textos
proféticos a tradição sinóptica de curas análogas (Mc 8,22-26 par.; 19,46-52 parr., 2,112 parr.). Para a forma desses relatos de milagre remete-se, desde muito tempo, a textos
helenísticos e judaicos54. A história da ressuscitação de Lázaro não tem paralelo
sinóptico direto, mas, quanto à sua forma, é aparentada às ressuscitações de mortos nos
sinópticos (cf. Mc 5,21-24.35-43 parr.; Lc 7,11-17). Também aqui há modelos
veterotestamentários: as ressuscitações de mortos pelos profetas do reino do Norte (cf.
Elias em 1Rs 17,17-24, Eliseu em 2Rs 4,18-37). A sequência do milagre do pão e da
caminhada sobre as águas, com a aparição de Jesus aos discípulos, tem um precedente
na tradição (cf. Mc 6,30-52 par.) e lembra uma sequência semelhante na tradição do
êxodo: a travessia de Israel pelo mar Vermelho (Ex 14), a alimentação do povo no
deserto (Ex 16) e a teofania do Sinai (Ex 19). A alimentação milagrosa de Jo 6 faz
pensar nos presentes milagrosos propiciados por Elias (1Rs 17,7-16) e Eliseu (2Rs 4,4244), nos ciclos de milagres dos grandes profetas do Norte. Também aqui parece intervir
a mediação da tradição sinóptica.
A narrativa da transformação de água em vinho nas bodas de Caná, Jo 2,1-11,
parece ter história traditiva particular. Até hoje não se encontraram paralelos
convincentes para essa história. Supõe-se que haja influência da antiga lenda de
Dioniso55. A influência dessa lenda é bastante provável, porque ela parece ter raízes
orientais. Dioniso é o filho de Semele, filha do filho régio Cadmos, que de Tiro ou
Sídon migrou para a Grécia. As moedas gregas da Siro-Palestina trazem motivos
dionisíacos. A cidade de Citópole (hoje Bet Shean na Galileia inferior), segundo Plínio
(Historia naturalis, 2,18,74), gabava-se de ser o lugar de nascimento de Dioniso. Com
base neste fato e de outros que M. Hengel56 coletou, parece ter sentido a hipótese de
influência da lenda de Dioniso no texto da transformação de água em vinho por Jesus,
em Jo 2,1-11. Evidentemente, também imagens bíblicas como o vinho enquanto dom de
Deus e as núpcias enquanto símbolo supremo da Aliança entre Deus e seu povo
53
Cf. J. BEUTLER, Gattungen.
Cf. P. FIEBIG, Antike Wundergeschichten; ID., Rabbinische Wundergeschichten; ID., Jüdische
Wundergeschichten; O. WEINREICH, Antike Heilungswunder, apreciado em R. BULTMANN, Geschichte,
223-260; M. DIBELIUS, Formgeschichte, 26-56.
55
Vgl. W. LÜTGEHETMANN, Hochzeit. Argumentos específicos de nossa explicação de Jo 2,1-11, cf. ad
locum.
56
M. HENGEL, Messias.
54
Beutler B -17
influenciaram no texto (para o vinho, cf. Gn 49,10-12; Mc 14,25; para as núpcias e a
refeição com imagens da alegria escatológica, Is 25,6; Mt 8,11 par. Lc 13,28s.; Mt 22,110 par. Lc 14,16-24; Ap 19,9).
A designação dos milagres de Jesus como “sinais” (sēmeîa) pertence às
particularidades do Quarto Evangelho. A origem pode ser judeu-helenista; ao menos,
remonta ao texto da Septuaginta do livro do Êxodo. Daí pensar-se, sobretudo, nos
“sinais” (sēmeîa) que Moisés realiza diante do faraó e que o legitimam como líder do
povo de Deus (cf. Ex. 4,8s.28.30; 7.9; também 10,1s; 11,9s.), enquanto conduzem à “fé”
em sua missão profética (Ex 4,5.8s.31). Esta conexão entre o ver “sinais” e a “fé” (por
muitos atribuída à “fonte dos sinais” pré-joanina) aparece em Jo 2,11.23; 12.37; 20,30s.
Também a conexão entre os “sinais” de Jesus e a manifestação de sua “glória” (dóxa; cf.
Jo 11,4.40) parece preparada na Septuaginta; só que aí não se trata da manifestação da
glória do taumaturgo (como em Jo 2,11; cf. 11,4).
É caracteristica de João a conexão entre os milagres de Jesus como “sinais” e sua
autorrevelação nos discursos de revelação e cenas de diálogo, no Quarto Evangelho.
Assim, o discurso do pão em Jo 6 interpreta o sinal da multiplicação milagrosa do pão
(Jo 6,1-15) por meio da autodenominação de Jesus como “pão da vida” (Jo 6,35.48.51).
De modo semelhante, a palavra de Jesus autodesignando-se como “luz do mundo” (Jo
9,5) interpreta o “sinal” da cura do cego de nascença (Jo 9,1-7), e sua autodesignação
como “a ressurreição e a vida” (11,25) interpreta o último sinal público, a ressuscitação
de Lázaro dentre os mortos (Jo 11,1-44). Tal reinterpretação teológica dos sinais
joaninos pode, seguramente, ser atribuída ao próprio evangelista57.
A origem da matéria discursiva no Evangelho segundo João foi, no século XX,
facilmente situada nos círculos gnósticos. R. Bultmann reconstruiu para o modelo
subjacente [Vorlage] do Quarto Evangelho discursos de revelação mais extensos e
tematicamente unidos, explicando-os, no seu comentário, na forma em que o evangelista
os havia reelaborado. Bultmann e, como ele, seu aluno H. Becker58 situavam a origem
desses discursos no ambiente gnóstico, que se manifesta nos textos dos mandeus e dos
maniqueus, bem como nas Odes de Salomão e no Corpus Hermeticum. Uma dificuldade
dessa hipótese consiste na necessidade de decompor os discursos joaninos que estão aí.
Além disso, os textos alegados são nitidamente mais recentes que o Evangelho segundo
João, o que torna improvável a dependência de João em relação a eles. Também a
hipótese de um mito gnóstico do Homem Primordial [Urmensch] não se deixa
corroborar solidamente59.
Continua influente a tentativa, já empreendida por H. Becker, de descobrir uma
forma primitiva do discurso joanino de revelação, que o quarto evangelista já teria
encontrada pronta nos textos gnósticos subjacentes e que ele teria retomado. Conforme
esta forma, haveria no início do breve discurso de revelação uma autopredicação do
revelador, a qual se desdobrava a seguir. Com base nesta hipótese, E. Schweizer, em sua
dissertação elaborada sob a direção de Bultmann, Ego Eimi60, estudou breves discursos
joaninos de revelação, introduzidos pela fórmula “eu sou” e que teriam uma forma
básica característica tomada da gnose (sobretudo, da gnose mandaica). S. Schulz61
57
Vgl. W. LÜTGEHETMANN, Hochzeit, 216-261.
H. BECKER, Reden.
59
Cf. C. COLPE, Schule.
60
E. SCHWEIZER, Ego eimi, 114-124.
61
S. SCHULZ, Komposition, 85-90.
58
Beutler B -18
retomou esta proposta e apresentou um modelo ampliado das sentenças de revelação de
João. Essas sentenças iniciam-se com a “autopredicação” do revelador (“Eu sou...”).
Seguem-se, depois disso, um convite e uma promessa, ou eventualmente uma ameaça.
Como exemplo sirva Jo 6,35: “Eu sou o pão da vida (autopredicação); quem vem a mim
(convite) nunca mais terá fome, e quem crê em mim nunca mais terá sede (promessa)”.
Já E. Schweizer suspeitava, para as imagens usadas nas autopredicações, precipuamente
modelos veterotestamentários e judaicos. Essa suspeita foi verificada por S. Schulz, que
incluiu em sua pesquisa os textos de Qumrã. Ele vê a forma dos discursos de revelação
ilustrada também em textos gnósticos, principalmente mandaicos. Recentemente
alegam-se também textos mais antigos encontrados em Nag Hamadi62. Assim encontrase no documento Brontē (O trovão, NHC VI,2) a sequencia de autoapresentação do
revelador, convite e eventualmente promessa. Esse escrito não é diretamente gnóstico.
Outras ilustrações encontram-se na parte final da versão longa do Apocryphon Johannis
(NHC II,1 e IV,1), bem como na Protenoia Trimórfica (NHC XIII,1). Estes textos não
pertencem à assim chamada gnose valentiniana; por isso, sua possível dependência de
textos cristãos é menos provável. A datação desses textos é tão tardia, que não podem
ser alegados como subjacentes aos discursos joaninos. As imagens que usam, o quarto
evangelista as pode ter emprestado de seu ambiente judaico ou protocristão63.
Fica a ser esclarecida a inserção das breves sentenças de revelação nas
composições maiores de discursos e diálogos em João64. Pode-se pensar na influência
de Platão. Em todo o caso, os diálogos joaninos mostram pouco semelhança com as
controvérsias e diálogos didáticos da tradição sinóptica. Quanto ao gênero do discurso
de despedida em João, existem exemplos helenísticos e, sobretudo, judaicos65.
Ao lado desses modelos e exemplos extracristãos não se devem esquecer os
cristãos. Sobretudo B. Lindars, solidário com R. E. Brown66, suspeita no Quarto
Evangelho influência e acolhida de homilias da comunidade joanina. Esta intuição
mostra-se fecunda e tem sido retomada por J. Frey67 quanto às tradições escatológicas
em João.
Para o fundo histórico-religioso do Prólogo remetemos à exegese que daremos ad
locum. Também aqui as hipóteses a respeito de uma origem gnóstica acabaram
substituídas por derivações a partir da tradição bíblica e judaica, sobretudo a judeuhelenista. Além dos escritos sapienciais do Antigo Testamento, mencione-se, sobretudo,
Fílon de Alexandria.
6. Autor, lugar e data da composição
É mais fácil perguntar pelo autor do Quarto Evangelho do que responder. Deve-se
distinguir entre os indícios do próprio evangelho e os testemunhos acerca da origem do
evangelho. Segundo o testemunho do próprio evangelho (Jo 21,24), o livro teria sido
composto pelo “discípulo que Jesus amava” (cf. Jo 13,23; 19,26; 20,2; 21,7.20). Desde
o fim do II século, este é identificado com o apóstolo e “discípulo do Senhor” João (cf.
Ireneu, Adv. Haer. 2,22,5; Canon Muratori 9; Clemente de Alexandria, em Eusébio,
62
Cf. G. MACRAE, Nag Hammadi, 156s.
Cf. a esse respeito E. SCHWEIZER na 2ª ed. de Ego eimi.
64
Cf. a esse respeito J. BEUTLER, Gattungen, 2551s.
65
Cf. F. CORTÉS, Discursos, e.o.; E. V. NORDHEIM, Die Lehre der Alten I.
66
R. E. Brown I C-CI.
67
Cf. J. FREY, Eschatologie III, 369-391, quanto a Jo 5,24-29.
63
Beutler B -19
Hist. Eccl. 6,14,7; Polícrato de Éfeso, ibid. 3,31,3)68. Não é fácil decidir se a tradição
desde Ireneu concluiu a identificação do autor como sendo o Discípulo Amado a partir
do próprio evangelho ou a partir de informação histórica. É notável que o nome “João”
no Quarto Evangelho sempre se refere ao Batista ou ao pai de Simão (Jo 1,42; 21,15s.),
enquanto em Jo 1,35-42, na vocação dos primeiros discípulos, falta João, o filho de
Zebedeu. Acaso este seria um dos dois primeiros chamados mencionados em Jo
1,35.40?
Já no II século se conhecia um João considerado autor do Quarto Evangelho. Com
razão, M. Hengel aponta que, desde o início, o Quarto Evangelho pode ter sido
transmitido sob o nome de João69. A testemunha mais importante para a origem do
Evangelho segundo João no séc. II talvez seja Papias de Hierápole. Sua história
eclesiástica em cinco volumes se perdeu, mas fragmentos sobreviveram. Num
fragmento conservado em armênio70, ele mostra conhecer o Quarto Evangelho e o usa.
Em outro fragmento, conservado, entre outros, em Eusébio (Hist. Eccl. 3,93s.), Papias
aparentemente distingue entre o apóstolo João e um certo presbítero João; Eusébio ainda
informa que os sepulcros de ambos podem ser vistos em Éfeso. Esta notícia de Eusébio
oferece o ponto de partida para o grande estudo de Hengel, Die johanneische Frage [A
questão joaneia]71. Ele conclui – e isto parece bastante plausível – que o “presbítero” da
segunda e terceira cartas de João pode ser identificado com o autor da primeira carta, e
este, com o “presbítero” mencionado por Papias. Baseado na proximidade estilística e
teológica que existe entre a primeira carta e o evangelho, Hengel conclui que este
conjunto de escritos joaninos provavelmente remonta ao “presbítero” de Éfeso. Não se
confirmam, portanto, a suspeita de Eusébio, no referido texto, de que o Quarto
Evangelho remonte ao apóstolo João e o Apocalipse, ao presbítero de Éfeso.
No decorrer ulterior do séc. II, Justino conhece o Quarto Evangelho e o usa. No
Diálogo 106,1, ele atribui às “memórias do Apóstolo” as notícias de Jo 20,17.19 e
outros trechos72. O Diatessaron de Taciano inicia e termina com o Evangelho segundo
João. O Evangelho segundo João parece pressuposto também no final secundário do
evangelho de Marcos. O bispo Teófilo de Antioquia cita o Prólogo do Quarto
Evangelho (Jo1,1-18) como equivalente às “escrituras sagradas” e o atribui a João (Ad
Authol. 2,22). Entre os gnósticos, Basílides (segundo Hipólito, Haer. 7,22,4 s) cita Jo
1,9 entre os “evangelhos” e 2,4 como palavra do “Soter” (ibid. 7,27,5). Em Ptolomeu
(citado por Epifânio, Haer. 33,6), Jo 1,3s. aparece como palavra do “Apóstolo”. O
primeiro comentário ao Evangelho segundo João vem do gnóstico Heracleão. Os
papiros 66 (séc. II-III) e 75 (séc. III) contêm, segundo indica seu sobrescrito/subscrito, o
texto do evangelho “segundo João”.
A identificação do autor do Evangelho segundo João com o “discípulo que Jesus
amava” aparece, como dissemos, no próprio texto do evangelho (Jo 21,24). Todavia,
para sua identificação com João, filho de Zebedeu, não temos testemunhos explícitos
antes de Ireneu. Sobretudo, fica difícil imaginar um galileu como autor deste evangelho
tão marcado pela diáspora judaica. Alguns estudiosos, pensando no “outro discípulo”
que com Pedro entrou no pátio do sumo sacerdote, com o qual ele tinha parentesco (Jo
68
Todas essas referências e mais outras encontram-se em K. ALAND, Synopsis, 533-539.
Cf. M. HENGEL, Evangelienüberschriften, 3.
70
Cf. F. SIEGERT, Papiaszitate, 607-609.
71
O texto de Papias se encontra em K. ALAND, Synopsis 531. Ali e na p. seguinte, mais referências.
72
Para esta secção, cf. J. BEUTLER, Johannesevangelium (und –Briefe), 646s., agora em ID., Neue
Studien, 25s. O texto de Justino é citado em K. ALAND, Synopsis, 532.
69
Beutler B -20
18,15s.), sugerem que o autor tenha sido um discípulo de Jesus em Jerusalém. Também
pode-se pensar que os editores do Quarto Evangelho deixaram traços que, por um lado,
conduzem ao filho de Zebedeu e, por outro, a um discípulo oriundo dos círculos
sacerdotais de Jerusalém73.
Uma alternativa radical para estas hipóteses é aceitar que a figura do discípulo
amado seja de todo fictícia ou, pelo menos, que sua conexão com a origem do Quarto
Evangelho seja uma ficção literária. Há mais de um século, F. Overbeck representou
esta opinião. Recentemente, o comentário de H. Thyen segue a mesma opinião. A
discussão destas questões introdutórias continua. Do ponto de vista da abordagem
literário-científica do Evangelho segundo João, a questão de sua mensagem é mais
importante que a de seu autor.
Para o tempo do surgimento do Quarto Evangelho, é importante a questão de sua
relação com os evangelhos sinópticos. Se o Evangelho segundo João pressupõe os
sinópticos–sobretudo, se pressupõe os três –, mal se pode datá-lo antes de 90 d.C.74. Por
outro lado, aconselha-se datar o Evangelho segundo João, pelo menos quanto a seu
conteúdo básico, antes das cartas de Inácio de Antioquia75, situadas nos últimos anos do
imperador Trajano (98-117 d.C.). As partes do evangelho que designamos como
“releitura” poderiam ser datadas depois da virada do século, mas não temos indícios
confiáveis a este respeito. Certo é que reagem às tendências gnósticas desse tempo; daí,
entre outras coisas, a acentuação da “carne” de Jesus como lugar de salvação (Jo 1,14;
6,51-56). Um estudo mais penetrante das cartas de João leva ao resultado de que estas (a
julgar por 1Jo 1,1-4) antes pressupõem o Evangelho segundo João do que o inverso76.
Também o lugar de origem do Evangelho segundo João continua objeto de
discussão. Até hoje, com base no testemunho de Ireneu (Adv. Haer. 3,1.2), geralmente
se pensa em Éfeso. Mas esta opinião pressupõe que o autor do evangelho seria o
Discípulo Amado, o qual seria o apóstolo João–o que está em questão. C. K. Barrett
alega para esta localização outros testemunhos, como o de Polícrates e a proximidade de
João com Melito de Sardes e os Atos de João77. Contudo, podem-se avançar, também,
argumentos para uma origem em Alexandria ou em Antioquia78. Certeza não temos por
enquanto.
7. O texto
Na tradição manuscrita antiga, nenhum escrito do Novo Testamento é melhor
atestado que o Evangelho segundo João79. Ao menos dois papiros remontam ao séc. II80,
ainda que a datação exata continue objeto de discussão. Durante muito tempo, o papiro
52, contendo o texto de Jo 18,31-33 e 18,37-38, foi considerado como o fragmento mais
antigo do todo o Novo Testamento. Muitas vezes, sob alegação de K. Aland, era situado
73
Assim, M. HENGEL, Frage, 313-320, e.o. Quanto a tal redator “sacerdotal”, cf. M.-L. RIGATO,
Lʼ “apostolo”.
74
Esta é também a visão de C. K. BARRETT 142, do qual aqui apontamos a introdução se seu comentário,
138-149.
75
Para isso, cf. J. A. FISCHER, Die Apostolischen Väter, 114.
76
Cf. J. BEUTLER, Johannesbriefe.
77
Cf. C. K. BARRETT 143.
78
Cf. ibid., 143-146.
79
Cf. K. ALAND, B. ALAND, Der Text des Neuen Testaments, 97
80
Cf. ibid., com K. ALAND, Der Text des Johannesevangeliums.
Beutler B -21
por volta de 125 d.C. Nos últimos anos, porém, essa datação está sendo questionada;
parece mais seguro situar o fragmento em algum momento do séc. II81. Da mesma época
data o papiro 90, com o texto de Jo 18,36–19,1; 19,2-7. Em torno de 200, temos o
papiro 66 (Bodmer II), que contém a maioria do Quarto Evangelho. A presença do
Quarto Evangelho no Egito é atestada também pelo papiro Egerton 2, que combina
extratos do Evangelho segundo João com fragmentos sinópticos.
Sete fragmentos de papiro são atribuídos ao séc. III82: pap. 5, com fragmentos de
Jo 1, Jo 16 e Jo 20; pap. 28, com o texto de Jo 6,8-12.17-22; pap. 39, com Jo 8,14-22;
pap. 45, com trechos de Jo 4–5 e 10–11; pap. 75 (Bodmer XV), com o texto de 1,1–
11,45.48-57; 12,3–13,10; 14,815,10; pap. 80, com o texto de Jo 3,34; e pap. 95,
contendo Jo 6,26-29.36-38.
A qualidade do pap. 75 (= Bodmer XIV para Lucas e Bodmer XV para João) é
corroborada sobretudo pelo Codex Vaticanus (B). Neste encontra-se, como constataram
Carlo M. Martini83 para Lucas e Calvin L. Portner84 para João, uma tradição textual
antiga, provindo do Egito e de altíssima confiabilidade. Pap. 66 concorda em grande
medida com esta forma do texto, embora represente, com os papiros 45, 46 e 47 (dos
papiros Chester Beatty), um tipo textual mais livre85. Um problema especial constitui a
perícope da mulher adúltera Jo 7,52–8,11, que será tratado na exegese ad locum.
8. Canonicidade
Desde o início de sua transmissão, o Evangelho segundo João é considerado texto
sagrado. Já falamos, acima (§ 6), das fases prístinas de sua atestação. Desde que se
começou a registrar os evangelhos, incluiu-se Quarto Evangelho. O registro mais antigo
talvez seja o Canon Muratori, datado por volta de 200 d.C. Ele anota, no n. 9: “Quartum
evangeliorum Johannis ex discipulis”86. Mais ou menos da mesma época datam os
antigos prólogos dos evangelhos, conservados para Marcus, Lucas e João. Eles atestam
a autenticidade do Evangelho segundo João sob alegação de Papias, discípulo do
evangelista, e salientam a diferença com Marcião, do qual João se teria distanciado
expressamente87.
Nos primeiros registros mais elaborados dos escritos neotestamentários, o
Evangelho segundo João tem, desde o início, seu lugar indiscutido. Entre estes, em
primeiro lugar, o assim chamado Decretum Damasi, que é transmitido em conexão com
um concílio romano, sob o papa Damaso no ano de 382 (DH 180). Mesmo que algumas
partes desse decreto talvez sejam de tempos ulteriores, esta parte é considerada
substancialmente autêntica.
Um concílio de Cartago, em 397, redige, por um lado, um cânone dos escritos
sagrados que inclui quatro evangelhos, sem dúvida aqueles que então estavam em voga
81
Assim, agora, B. NONGBRI, Use and Abuse.
O panorama se refere a Nestle-Aland 27ª ed., 684-689; cf. Nestle-Aland 28ª ed., 792-797; também K.
ALAND, B. ALAND, Der Text des Neuen Testaments 106-111.
83
C. M. MARTINI, Codice B.
84
C. L. PORTER, Papyrus Bodmer XV.
85
Cf. K. e B. ALAND, Der Text des Neuen Testaments 97, 103, 105, 109. Documentação e avaliação do
acervo dos manuscritos maiúsculos e dos papiros, agora em U. B. SCHMID, The New Testament in Greek
IV (cf. Bibliografia).
86
Texto em K. ALAND, Synopsis 538.
87
Texto em K. ALAND, Synopsis 533.
82
Beutler B -22
de modo geral (DH 186). Os concílios ulteriores só precisam apelar a esta tradição;
assim, o concílio de Florença no Decreto para os Jacobitas (DH 1355) e o concílio de
Trento na 4ª sessão (DH 1350).
9. Atualidade
O Evangelho segundo João sempre exerceu fascínio especial. Na Igreja antiga,
serviu de base para as grandes controvérsias cristológicas e trinitárias. No início da
Idade Média, Lutero viu nele o “único, lindo e reto evangelho principal”88. A razão era
que nele a fé em Jesus aparece como tema central. No século passado, Rudolf
Bultmann retomou essa visão, tornando-a o centro de seu comentário. Isso, no empenho
de livrar o Quarto Evangelho do mito e de reinterpretá-lo existencialmente.
O debate da desmitologização pertence ao passado, mas seu objetivo continua
digno de contemplação. A época atual é caracterizada por um rápido declínio da
plausibilidade da mensagem cristã, sobretudo nas nações ocidentais industrializadas.
Quem busca encontrar um acesso novo ou aprofundado à fé, não encontraria isso num
sistema de sentenças doutrinais, em grande medida independentes umas das outras, mas
numa mensagem singela, que se deixasse resumir, acolher e interpretar numa única frase
fundamental. O Quarto Evangelho corresponde em grande medida a essa busca. Basta
trazer à memória sua última frase: “Jesus realizou ainda muitos outros sinais diante dos
discípulos, que não estão escritos neste livro. Mas estes estão escritos para que creiais
que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida, em seu nome”
(Jo 20,30s.).
Pertence às características e vantagens do Quarto Evangelho o fato de exibir, entre
os escritos do Novo Testamento, a cristologia provavelmente mais desenvolvida e
refletida. Jesus aparece constantemente como o “Filho de Deus” ou, sem mais, o
“Filho”, e é neste sentido que se entende sua messianidade. Ele é um com o Pai (Jo
10,30) e constitui o fundamento da unidade dos discípulos com ele, com o Pai e entre si
(17,21). Como Logos divino, ele é desde a eternidade, antes de se tornar carne (1,1-18).
Tal afirmação da preexistência não é corriqueira no Novo Testamento. Há paralelos nos
hinos ou fragmentos pré-paulinos (Gl 4,4; Fl 2,2-11; Cl 1,15-18) ou na Carta aos
Hebreus (1,3). Na fé nele decide-se a salvação ou a condenação do ser humano.
Segundo o Quarto Evangelho, Jesus propõe e fundamenta a pretensão de ser o
Messias e Filho de Deus, enviado por Deus; isso, especialmente nas grandes
controvérsias com os representantes do povo e da religião dos assim chamados
“judeus”. Depois da aniquilação sistemática dos judeus na Europa Central durante a
ditadura de Hitler, vem-se repetindo que o uso linguístico de João pode facilitar os
preconceitos antijudaicos, como de fato o tem feito. Diante disso, não basta explicar que
João, ao falar dos “judeus”, visava ao grupo dos líderes em Jerusalém no tempo de
Jesus. Os leitores do Quarto Evangelho, que o liam em conjunto com os outros escritos
do Novo Testamento, certamente ganharam a impressão de que “os judeus”, no sentido
de povo e comunidade religiosa judaicos, perseguiram Jesus e, no fim, o entregaram à
execução89. Considerando isso, um antijudaísmo cristão e pós-cristão não foi apenas
88
M. LUTHER, Vorrede zum Neuen Testament, in: Luther Deutsch. Die Werke Martin Luthers in neuer
Auswahl für die Gegenwart, edit. K. ALAND, Bd. V, 37-42: 42 (WA DB 6,2).
89
Cf. J. BEUTLER, Identity.
Beutler B -23
possível, mas também real. Os pogroms medievais depois da liturgia da Sexta-Feira
Santa – que trazia a leitura da paixão segundo João – atestam isso claramente.
Entre os comentários recentes, o de Klaus Wengst tem o grande mérito de tomar
como ponto de partida a polêmica de João contra os “judeus”. Esta polêmica tem sua
expressão mais contundente em Jo 8,44 (os “judeus” como filhos do diabo). Sem
camuflar essa tendência do Quarto Evangelho, Wengst mostra até que ponto este
evangelho está enraizado no judaísmo, pois se baseia, sobretudo, na tradição rabínica.
Com isso, Wengst tem a vantagem de demonstrar ao mesmo tempo o parentesco do
Quarto Evangelho com o judaísmo hoje, que é moldado pelo rabinismo. Desvantagem
pode ser que o Evangelho segundo João surgiu e foi redigido num momento em que o
tradição rabínica normativa apenas estava na fase inicial, logo depois da ruína de
Jerusalém. Esta dificuldade, Wengst a percebe e enfrenta com a observação legítima de
que a tradição rabínica já existia por mais tempo e se revelou em grande medida
estável90.
É possível iluminar o enraizamento do Evangelho segundo João no judaísmo de
outra maneira ainda: mostrando a ancoragem dos grandes temas da teologia joanina no
Antigo Testamento e no judaísmo intertestamentário. É o caminho que seguimos neste
comentário. Enquanto, segundo Rudolf Bultmann e a pesquisa por ele influenciada, a
gnose constituía o decisivo pano de fundo histórico-religioso do Quarto Evangelho,
modificou-se essa visão depois da II Guerra Mundial. Prescindindo da recentemente
percebida necessidade de observar mais atentamente a ancoragem do Quarto Evangelho
no judaísmo, também descobertas recentes convidaram para essa mudança de
paradigma. Por um lado, a descoberta da biblioteca gnóstica de Nag Hamadi, em 1945,
permitiu uma datação mais exata dos textos gnósticos, com a constatação de que estes,
via de regra, pressupõem o cristianismo, em vez do contrário. Do outro lado, as
descobertas textuais do mar Morto, desde 1947, mostram a existência de um judaísmo
de tendência dualista na Palestina anterior à Guerra Judaica (66-70 d.C.). Este dualismo
mostra fortes paralelos com os textos dualistas do Novo Testamento, especialmente os
da literatura joanina. Deste modo apresentou-se, desde então, sobretudo na literatura de
língua francesa e inglesa, no lugar do paradigma gnóstico, o de um parentesco mais
intenso do Evangelho segundo João com o Antigo Testamento e o judaísmo. Dois
exemplos, entre outros, são certamente os comentários de Rudolf Schnackenburg (19651984) e de R. E. Brown (1966-1970).
O presente comentário se esforçara, portanto, de modo especial, para mostrar as
raízes do pensamento e da teologia joaninos no Antigo Testamento e no judaísmo
intertestamentário, complementando assim o comentário de Klaus Wengst. Em ambos
os casos, pretende-se visualizar o Evangelho segundo João em sua proximidade ao
judaísmo e não apenas em sua oposição crítica91.
Há ainda outra razão por que o Quarto Evangelho parece possuir atualidade hoje.
Ele convida suas leitoras e leitores à confissão intrépida de sua fé, o que em muitas
partes do mundo é um desafio extremamente atual. Durante muito tempo prevaleceu a
ideia de que a conclusão primitiva do Quarto Evangelho (Jo 20,30s.) fosse circunscrita
suficientemente com a fé em Jesus como Messias e Filho de Deus. Mostraremos,
porém, que se acrescenta outro empenho, o de conduzir à confissão intrépida de Cristo.
Esta finalidade vem à luz, sobretudo, através da estratégia narrativa do Quarto
90
91
Cf. K. WENGST I 32.
Vgl. dazu J. BEUTLER, Judaism; ID., L’Ebraismo.
Beutler B -24
Evangelho e através das figuras exemplares que vivem a confissão intrépida, como o
cego de nascença em Jo 9, Nicodemos em sua evolução até participar no sepultamento
de Jesus sob os olhos da potência ocupadora, ou Tomé, que declara: “Vamos nós
também para morrermos com ele!” (Jo 11,16)92.
10. Nossa exegese
A exegese que aqui apresentamos segue a orientação escolhida para nosso
comentário às Cartas de João no “Regensburger Neues Tesament”93. No início de cada
secção encontra-se a tradução do texto em pauta, que é uma reelaboração da
Einheitsübersetzung de 1980. As divergências são dadas a conhecer*.
O primeiro passo da explicação (I) concerne às questões introdutórias. Delimitada
a unidade textual, estudamos sua situação no contexto. Depois, procuramos determinar
a composição da mesma e, na medida do possível, também o gênero literário do próprio
texto e de seus modelos subjacentes. Mas renunciamos a atribuir sistematicamente
partes do texto a escritos-fonte. Mencionamos, sim, a atribuição de determinados
trechos à redação joanina, preferencialmente onde tratamos da exegese pormenorizada
do texto.
O segundo passo (II) é a exegese pormenorizada. Consideramos o texto em pauta
em primeiro lugar com os meios da análise sincrônica. Estuda-se, portanto, a gramática,
a semântica e a pragmática do texto. Na continuidade, executamos também a abordagem
diacrônica. Nesta, o texto é interpretado diante da tradição que ele utiliza, seja de
natureza protocristã, seja pré-cristã, especialmente judaica.
No terceiro passo (III), tenta-se inserir o tema do texto nos dias de hoje. Trata-se
da mensagem do texto, não apenas no sentido de uma pragmática linguística
supratemporal, mas em consideração às leitoras e leitores de hoje. Aqui se faz sentir,
evidentemente, a perspectiva do comentador. Procuramos aqui ter diante dos olhos as
leitoras e leitores que, conscientemente, se veem confrontados com as tensões do
momento presente, no campo social, cultural, religioso e político. Também este tipo de
leitura pode ser “leitura espiritual”. “Mas quando ele vier, o Espírito da Verdade, ele
vos conduzirá em toda a verdade. Ele não falará por si mesmo, mas dirá tudo o que tiver
ouvido e vos anunciará o que está por vir.” (Jo 16,13).
92
Para esta visão, cf. acima, secção 3; também J. BEUTLER, Faith and Confession; ID., “Lasst uns mit ihm
gehen”.
93
Vgl. J. BEUTLER, Johannesbriefe.
*
Para a presente versão em língua portuguesa adotamos uma tradução própria do texto evangélico,
adaptada à exegese do Autor do comentário, do qual mantivemos as discussões, muito esclarecedoras
com a Einheitsübersetzung alemã [N. do T.]
Beutler B -25
EXEGESE
A PALAVRA DE DEUS ENTRA NO MUNDO (1,14–54)
O Evangelho segundo João abre solenemente com o Prólogo (1,1-18). Este canta a
“en-carn-ação” do Logos eterno. Em sua Palavra, Deus entra na história humana e
participa dela. Muitos comentadores antepõem ao evangelho o Prólogo como texto
separado. Contudo, há muitos argumentos para tratá-lo em conexão com os capítulos
subsequentes. O testemunho do Batista (1,19-34) já veio preparado no Prólogo (1,68.15). O “Jesus Cristo” já nomeado no Prólogo (1,17) é agora apresentado por João
Batista. O Batista conduz a Jesus os primeiros discípulos (1,35-51), que se tornam as
testemunhas do primeiro sinal de Jesus, em Caná (2,1-12). A primeira Páscoa leva Jesus
a Jerusalém, onde purifica o Templo (2,13-25) e entra em diálogo com o conselheiro
Nicodemos (3,1-21). A partir daí encontramos Jesus, em círculos concêntricos, a
caminho de novas regiões: da Judeia (3,22-36) através da Samaria (4,1-42) para a
Galileia (4,43-45), onde realiza o segundo sinal em Caná (4,46-54). O afastamento de
Jerusalém significa também abertura para novos grupos humanos: os samaritanos, que
não estão unidas à Judeia numa fé plena, e os galileus, que, como “terra de Zabulon e
Neftali”, são por Isaías chamados “a região dos gentios” (texto de Is 8,23, assumido em
Mt 4,14-16). Destarte, Jesus, na sequência de sua primeira romaria a Jerusalém, inicia
uma viagem que o leva a pessoas sempre mais afastadas de Jerusalém, de seu culto e de
sua fé. A partir de 5,1 haverá uma mudança: Jesus usa agora as festas de peregrinação
para se manifestar a seu povo e a seus líderes (exceto a Páscoa de Jo 6,4, na Galileia).
Por isso, não convém ver, nos caps. 2–12 (como faz R. Bultmann), “a revelação da
doxa diante do mundo”, e tampouco nos caps. 5–12 (como faz a Einheitsübersetzung de
1980). Deve-se distinguir entre a manifestação de Jesus diante do mundo, em Jo 1–4, e
sua manifestação diante de seu povo, em Jo 5–10, com uma visão retrospectiva em Jo
12,37-43 e um último apelo à fé em Jo 12,44-50.
1. O Prólogo (1,1-18)
1 1 No princípio era a Palavra, e a Palavra estava junto de Deus, e a Palavra era
Deus. 2 Ela estava, no princípio, junto de Deus. 3 Tudo foi feito por meio dela, e
separado dela foi feita coisa nenhuma. O que tem sido feito nela 4 era vida, e a vida era
a luz dos homens. 5 E a luz brilha nas trevas, e as trevas não a acataram.
6
Surgiu um homem, enviado por Deus; seu nome era João. 7 Ele veio como
testemunha, para dar testemunho da luz, para que todos pudessem crer por meio dele.
8
Não era ele a luz, mas ele devia dar testemunho da luz. 9 A luz verdadeira, que
ilumina todo homem, veio ao mundo. 10 Ele estava no mundo, e o mundo foi feito por
ele, mas o mundo não o reconheceu. 11 Veio para o que era seu, mas os seus não a
acolheram. 12 A quantos, porém, o acolheram, deu-lhes poder de se tornarem filhos de
Deus: os que creem no seu nome, 13 que foram gerados não do sangue, nem da vontade
da carne, nem da vontade do varão, mas de Deus.
14
E a Palavra se fez carne e veio morar entre nós, e nós contemplamos a sua
glória, glória como do unigênito do Pai, pleno de graça e de verdade. 15 João dá
Beutler B -26
testemunho dele e proclama: “Foi dele que eu disse: ‘Aquele que vem depois de mim
passou à minha frente, porque era antes de mim”. 16 Todos nós, de sua plenitude,
recebemos graça por graça, 17 pois a Lei foi dada por meio de Moisés, a graça e a
verdade vieram por meio de Jesus Cristo. 18 A Deus, ninguém jamais o viu; o unigênito,
que é Deus e repousa sobre o coração do Pai, ele no-lo fez conhecer.
I
O quarto evangelista não inicia seu relato de Jesus com uma cena histórica
particular como a atividade de João Batista em Marcos ou a descrição da origem
terrestre de Jesus, como em Mateus e Lucas. Ele nos reconduz ao início primordial,
como mostra a alusão a Gn 1,1 LXX em Jo 1,1 – ou melhor, ainda mais atrás, antes de
todo o tempo, na eternidade de Deus. Desta eternidade vem o Logos e, a partir dela,
entrou no mundo para se tornar carne.
Literariamente, o Prólogo joanino constitui uma unidade que se destaca
claramente do texto subsequente. Enquanto, no Prólogo, os versículos que falam do
testemunho de João se integram na linguagem do hino e no seu desenvolvimento
temático, a secção sobre o testemunho do Batista em 1,19-34 entra claramente na parte
narrativa do evangelho. A martyría de João Batista, mencionada em 1,6-8 e 15, agora é
especificada quanto ao conteúdo e situada historicamente.
A pesquisa atual considera o Prólogo de João uma unidade literária passível de
explicação coerente em si. A esta posição antecedeu um século de hipóteses literáriocríticas acerca da origem do Prólogo. Nessa investigação prevaleceu a distinção entre os
versículos de ritmo mais poético e outros que se parecem antes com prosa. Assim, J.
Wellhausen, em 1908, estranhou que, no v. 6, no meio do Prólogo, “o Batista cai como
neve dentro da eternidade”1. A investigação do séc. XX ficou fortemente marcada pela
hipótese de que por trás de Jo 1,1-18 está um hino pré-joanino. Pensou-se até em dois
hinos, porque os vv. 14 e 16 se distinguem, estilisticamente, dos versículos
introdutórios. Quanto ao aspecto religioso-histórico, Bultmann pensava num hino
gnóstico dos círculos do Batista, mas logo surgiu a hipótese de um hino cristão, ou
mesmo de dois. Mas estas hipóteses nunca chegaram a ser plenamente evidenciadas.
Hoje prefere-se uma leitura sincrônica2.
Quanto à composição propõem-se, principalmente, três modelos. Muitos autores
veem no Prólogo uma construção linear. H. J. Holtzmann lembra exemplos dos Santos
Padres para uma divisão tripartite: vv. 1-5, a preexistência do logo e seu papel na
criação; vv. 6-13, a preparação da encarnação; vv. 14-18, a encarnação3. Em tempos
recentes insiste-se mais na identidade do Logos com Jesus Cristo, embora este só venha
nomeado no v. 17. Tripartições semelhantes encontram-se com frequência nos
comentários. H. Lausberg indica um fundamento linguístico para esta estrutura
tripartite4. Ponto de partida é a presença do termo “Logos” nos vv. 1 e 14. Em 1,1-5
desdobra-se o tema na base de referências à tradição veterotestamentária. Nos vv. 6-13,
Lausberg vê referências à tradição do Novo Testamento. Nos vv. 14 e 16 , ele vê a
releitura da tradição do Êxodo. O mesmo autor pensa que, nos vv. 6-7, João tenha
1
J. WELLHAUSEN, Evangelium, 8.
Um bom panorama da crítica literária do Prólogo se encontra em P. HOFRICHTER, Im Anfang, 13-82. Cf.
também J. BEUTLER, Johannes-Prolog, 78-84. Para contribuições recentes desde 1988, cf. M. THEOBALD,
“Der älteste Kommentar”.
3
H. J. HOLTZMANN 26.
4
H. LAUSBERG, Johannes-Prolog.
2
Beutler B -27
utilizado um antigo “exórdio” do evangelho, para criar um novo exórdio, que
sintetizasse o evangelho e preparasse o leitor para os temas principais. L. Schenke vê
nos vv. 1-5 um “mito”, em 6-13, “história” e em 14-18, a “confissão da comunidade”5.
Uma série de autores vê no Prólogo uma estrutura concêntrica. Teve muita
influência a proposta de M.-E. Boismard6 de ver o Prólogo como construção
concêntrica em torno do v.13. Boismard lê aqui o singular “que foi gerado ... de Deus”,
embora não possa apoiar isso em nenhum manuscrito grego da Antiguidade (cf. adiante,
v. 13). Assim o centro não seria o enunciado sobre a encarnação, mas a afirmação do
nascimento virginal do Filho de Deus. I. de la Potterie7 contesta esse modelo,
acertadamente, com quatro argumentos: o modelo é estático, não dinâmico; não
reconhece o lugar central da encarnação; as duas secções acerca do Batista (vv. 6-8 e
15) não são idênticas, pois a segunda fala no tempo presente; os vv. 1 e 18 não se
correspondem (o v.18 pressupõe o Logos encarnado).
Para superar as dificuldades, alguns autores, como I. de la Potterie8, sugeriram
uma estrutura em forma de espiral para o Prólogo de João. Os temas são retomados e
desenvolvidos em nível superior. A maneira como os autores dividem o texto
permanece, porém, discutível, porque se baseiam em visões semânticas e teológicas,
não linguísticas.
Olhando para trás, faz mais sentido partir de uma estrutura linear do Prólogo de
João. Nesta perspectiva merece atenção e anuência a proposta de H. Lausberg9, que se
assemelha à de J. Zumstein10, embora este não pressuponha expressamente a
contribuição de Lausberg. Segundo estas propostas, podemos reconhecer no Prólogo
três partes principais, construídas uma em cima da outra: a origem da palavra divina
(vv. 1-5), seu destino (vv. 6-13) e, enfim, sua encarnação e acolhida pela comunidade
(vv. 14-18).
Devemos partir do texto de João como nos foi transmitido. Por isso dispensamos
inicialmente a hipótese de fragmentos hínicos subjacentes ao Prólogo, embora ela seja
verossímil para os vv. 1-5, 10-12 e 14.16. Explicamos o texto com o reconhecido
procedimento metódico da exegese intratextual, com análise linguístico-sintática,
semântica e pragmática do texto, desde que sua forma se apresente segura. Será
considerada também a influência do mundo literário em que o Prólogo nasceu. Com H.
Lausberg e outros, vemos por trás do vv. 1-5 o início do livro do Gênesis, bem como de
tradições sapienciais que falam da entrada da Sabedoria no mundo humano; por trás dos
vv. 6s. e 15, a influência de tradições neotestamentárias acerca de João Batista; e por
trás dos vv. 14-18, tradições mosaicas que remontam ao livro do Êxodo11.
Abordaremos, pois, o Prólogo de João como um texto homogêneo e unitário. Não
julgamos que o texto justifique uma divisão bipartida, com uma primeira parte nos vv.
1-13 (o Logos antes da encarnação) e uma segundo nos vv. 14-1812. Pelo contrário,
mostraremos que o texto, desde o v. 4, fala da vinda de Cristo como Palavra divina no
5
L. SCHENKE, Johannes. Kommentar, 22-36.
M.-É. BOISMARD, Prologue.
7
I. DE LA POTTERIE, Structure.
8
Ibid.
9
Cf. supra, nota 4.
10
J. ZUMSTEIN, Prologue; Prolog.
11
Para as tradições judaicas por trás do Prólogo, cf. U. MARKSTAHLER, Prolog
12
Para esta distinção entre lo,goj a;sarkoj e lo,goj e;nsarkoj, que remonta aos Pais da Igreja, cf. ainda X.
LÉON-DUFOUR, Lecture I, 48-50.
6
Beutler B -28
meio dos homens. Os vv. 4s. e 9s. são altamente parecidos. Inspirados pelo mito da
vinda da sabedoria divina, falam das vicissitudes da Palavra divina entre os homens,
sem mencionar explicitamente sua vinda na carne. Esta vem à fala, explicitamente, só
nos vv. 14-18, e só aqui menciona-se, pela primeira vez e explicitamente, o nome de
Jesus Cristo. Assim confirma-se a construção homogênea do Prólogo: o movimento se
desloca de uma linguagem escondida e implícita para uma linguagem manifesta e
explícita. Aquele no qual a Palavra divina veio ao mundo e permanece entre os homens
é Jesus Cristo.
O lugar da questão da pré-história do Prólogo joanino foi ocupado sempre mais,
nestes últimos tempos, pela pergunta por sua função. Isso está ligado à mudança do
paradigma, que se afasta da abordagem histórico-crítica e se volta para a consideração
literária dos textos neotestamentários. No centro do interesse encontra-se agora a
relação do Prólogo com o desdobramento do resto do Quarto Evangelho. Esta relação
pode ser vista mais literariamente ou mais teologicamente. De modo geral, ambas as
perspectivas se encontram interligadas.
Uma proposta recente quer ver no Prólogo joanino um texto para a legitimação
das posições teológicas do Evangelho segundo João13. A cristologia joanina aparece
aqui ancorada na missão da Palavra divina desde a eternidade. Assim, o Quarto
Evangelho pode ser útil para discussões com grupos que, dentro do seu âmbito
religioso, representam um credo divergente.
Michael Theobald, desde sua tese de habilitação14, vem estudando a relação do
Prólogo joanino com o resto do evangelho. Para Theobald, o Prólogo é a introdução ao
Quarto Evangelho como um todo, escrito com a finalidade de introduzir seu público
leitor nos grandes temas do mesmo. Pode-se partir da hipótese de que essa introdução –
como, aliás, acontece de costume – foi composta depois que a obra ficou pronta. Assim
se entende por que alguns conceitos do Prólogo (como o Logos personificado ou a
“graça”) não tornam a aparecer no restante do texto.
Outro estudo recente examina o Prólogo precisamente como prólogo15. Este
gênero literário é conhecido desde a Antiguidade. Já ano séc. VI a.C. encontra-se um
modelo no autor grego Téspis de Ática, que, com este gênero, introduz seu público na
ação desenvolvida no seu drama. Posteriormente, o prólogo será utilizado também para
discursos, ao lado de dramas e narrativas dramáticas. João – como único entre os
evangelistas – parece ter utilizado este gênero para introduzir seus leitores na mensagem
do seu evangelho e para apresentar as figuras principais: Jesus Cristo, o Logos eterno,
Moisés e João Batista.
Jean Zumstein16 vê o Prólogo segundo seu modelo da “releitura”. Tais “releituras”
(“Neulesungen”) ocorrem na Bíblia em diversas formas: como título, como inter ou
intratextualidade (remissivas entre textos diversos textos ou para dentro do mesmo
texto) e como paratexto. Esta última forma se encontra, segundo Zumstein, no Prólogo
de João e no epílogo, cap. 21. Um paratexto tem a função de olhar para trás, para um
texto concluído, ou de preparar os leitores para a leitura do texto. Tal texto protege o
leitor de mal-entendidos, fornece a chave para a decodificação da obra literária e orienta
13
Vgl. J. F. MCGRATH, Prologue.
M. THEOBALD, Fleischwerdung; e desde então ID., Geist– und Inkarnationschristologie, bem como seu
comentário e o estudo “Der älteste Kommentar”.
15
Vgl. E. HARRIS, Prologue.
16
J. ZUMSTEIN, Prologue; Prolog.
14
Beutler B -29
o leitor diante da leitura. Zumstein encontra a legitimação para o prólogo como
paratexto sobretudo em Aristótelos (Rhet. 3, 1414b, 19ss.). Com este subsídio
conseguimos entender melhor a função do Prólogo joanino dentro do Quarto
Evangelho.
Se se pode suspeitar que o Prólogo foi acrescentado apenas na última fase
redacional do Quarto Evangelho, explica-se mais facilmente por que seus conceitos e
temas centrais não se encontram no restante do evangelho, pelo menos não
explicitamente. Assim, o Logos personificado e sua colaboração na criação, e também o
conceito da “graça”. Por outro lado, porém, a Palavra constitui uma das representações
sustentadoras do Evangelho segundo João. Já no próprio Prólogo percebe-se um
movimento do ser divino do Logos em direção à sua missão junto aos seres humanos.
Ele é “luz” e “vida” para os homens. João testemunha dele. Todos devem passar a crer
nele (1,7; cf. 1,12). A explicação do Prólogo mostrará em particular como se anuncia,
no Prólogo, a vinda do Logos divino.
II
A origem da Palavra de Deus (1,1-5)
Os primeiros cinco versículos do Prólogo joanino falam da origem da Palavra
divina. Apresentam-se, quanto à forma e o conteúdo, como uma unidade coerente e
destacada do contexto subsequente. Característico para o conjunto é a composição em
escadinha. Um conceito que se encontra no fim do enunciado anterior é retomado no
início do posterior, na linha seguinte. Lá, ele é esclarecido por um terceiro conceito, que
por sua vez aparece no início da terceira linha (a–b, b–c, c–d). Nas primeiras três linhas,
o conceito “Logos” conduz ao termo “Deus” no início da segundo linha. Este é
desdobrado na terceira linha pelo termo “Logos”, que provém da primeira linha. Assim
se dá no interior do v. 1 uma inclusão entre a primeira e a terceira linha. O v. 2 retoma o
primeiro termo da primeira e o segundo da segunda linha. Assim eles são reduplicados.
Quanto ao conteúdo, trata-se da presença junto a Deus do Logos divino, bem como de
seu ser divino. O v. 3 descreve o papel do Logos divino na criação. O tempo gramatical
muda do imperfeito para o aoristo. A locução “o que tem sido feito”, no fim do v. 3, em
nossa análise é incluída no próximo versículo, como se justifica na exegese detalhada:
“O que tem sido feito nela, era (a) vida”. Já divisamos aqui a transição da criação para o
desígnio da salvação. A “vida” e a “luz”, que se contrapõe às trevas, são dons da
salvação. Estão ligados à Palavra divina de modo permanente (tempo imperfeito) e sua
oferta marca o presente (a luz “brilha” nas trevas, presente), porém, foi rechaçada
historicamente (aoristo). Assim, já os versos iniciais do Prólogo introduzem às
vicissitudes do Logos no mundo. Quanto à forma, percebemos que nos vv. 3-5 a
construção em escadinha continua: o termo “foi feito” leva ao bem que é a “vida”.
“Vida” leva a “luz”, “luz” a “trevas”, e “trevas”, à rejeição do Logos. Assim o conjunto
inteiro dos primeiros versos do Prólogo mostra-se, estilisticamente, uma unidade
fechada.
A construção apresenta-se assim:
– a Palavra junto ao Pai antes de todo começo (vv. 1-2);
– a participação da Palavra na obra da criação (v. 3ab);
– a significação da Palavra para os homens e as vicissitudes que ela conhece (vv. 3c-5).
1,1-2
Beutler B -30
O início do Prólogo de João reconduz ao início primordial. “No princípio” dirige
o olhar para a criação e a história. Biblicamente, retoma-se Gn 1,1: “No princípio, Deus
criou ...”. No Prólogo joanino, antes de qualquer ação de Deus, trata-se de seu ser, mais
exatamente, do ser do Logos divino: seu ser divino e sua natureza divina. O Logos é
desde a eternidade. Entenda-se: ele está junto de Deus e voltado para ele (como sugere a
preposição grega pros). E ele é de essência divina: theós, no fim do v. 1, é predicado,
significando que ele é Deus. Precisamente este Logos – que era desde o princípio e que
estava junto de Deus, sendo de essência divina – estava desde o princípio junto de Deus,
como, reassumindo, confirma o v. 2.
1,3ab
Depois da evocação da presença eterna da Palavra divina junto a Deus, o texto
passa para o papel da Palavra na criação do mundo. Nota-se certa ênfase. O enunciado
do texto no v. 3a é repetido num paralelismo sinonímico com dupla negação. Assim, o
mundo todo, sob todos os aspectos, remonta à Palavra divina como mediadora da
criação. Na mudança do imperfeito para o aoristo já se prepara a transição para o olhar
sobre a história.
1,3b-4
Com Nestle-Aland (28ª ed.) e GNT (4ª ed.) incluímos o termo ho egéneto do fim
do v. 3 na frase seguinte. Um artigo de K. Aland justifica isso de modo conclusivo17. A
lição que assim se propõe é a mais difícil e, por isso, preferível. Entre as traduções
antigas, a saídica e a sirociretânia atestam a lição do texto de Aland, e assim também a
maioria das testemunhas latinas antigas e o Diatessaron de Taciano. A maioria dos
textos gregos ulteriores prefere a lição que inclui “o que tem sido feito” no v. 3, mas em
certo número desses manuscritos se mantém a lição anterior. Os manuscritos mais
antigos não têm pontuação, mas ocasionalmente aparece um espaço entre as palavras,
como é o caso aqui (códices C e D, e também pap. 75). Os Santos Padres do séc. II e da
primeira metade do séc. III da Gália, África, Egito e Palestina conhecem
exclusivamente a lição preferida por Aland. Tanto os textos gnósticos como os
antignósticos desta época a supõem. No séc. IV começa a se incluir predominantemente
“o que tem sido feito” na frase anterior. Isso poderia ter sua origem na luta da Igreja
grega contra os arianos (que consideravam o Logos como “feito”), embora a lição por
nós preferida se verifique também algumas vezes anteriormente à discussão antiarianita.
No Ocidente, esta tendência ainda não é atestada nesse momento. Quanto ao conteúdo, a
lição que liga “o que tem sido feito” ao texto anterior fica aquém do nível teológico do
Quarto Evangelho, pois representa uma mera repetição. Por esta razão e outras
semelhantes, diversas edições do texto do Novo Testamento18, bem como comentários e
traduções, adotam a lição preferida por Aland19.
Mas como entender? Aparentemente, o termo ho gégenon se liga ao egéneto do v.
3ab. Contudo, a diferença do tempo gramatical (do aoristo ao perfeito) adverte contra
uma simples identificação dos dois termos. Trata-se agora daquilo que, de modo
permanente (perfeito), veio a ser pela Palavra e atua no presente. Assim prepara-se o
17
K. ALAND, Eine Untersuchung zu Joh 1,3.4; cf. também B. M. METZGER, Textual Commentary, ad
locum; E. L. MILLER, Salvation-History.
18
Cf. TISCHENDORF (81969), WESTCOTT-HORT (1881), V. SODEN (1913) und VOGELS (31949).
19
Cf. os comentários de R. BULTMANN (1941), R. E. BROWN (1966), J. BECKER (1978), F. MOLONEY
(1998), G. R. BEASLEY-MURRAY (21999) e C.S. KEENER (20005) e entre as traduções com comentário, a
Bíblia de Jerusalém. H. THYEN, o] ge,gonen, defende a lição tradicional.
Beutler B -31
presente phaínei do v. 5. Parece que no fim do v. 3 se trata de outro modo do vir a ser
que no ser criado do v. 3ab. O texto passa, ao que parece, para a ordem da salvação.
Quando, porém, se deixa começar a frase com ho gégonen, o termo en autṓi suscita
problema. A este respeito, os comentadores propõem, principalmente, três modelos.
Uma possibilidade é interpretar ho gégonen no início da frase como casus pendens: “O
que tem sido/está feito, nisso ele era a vida”; “ele” seria então entendido
cristologicamente: o Logos (assim R. Bultmann, J. Becker, G. R. Beasley-Murray, M.
Theobald20, a Bíblia de Jerusalém). Sem esta interpretação cristológica, pode-se dizer
também: “O que tem sido/está feito, nisso havia vida”. Não haveria muita diferença no
sentido, porque “a vida” no contexto seguinte deve ser entendida soteriologicamente. A
interpretação melhor é defendida por E. L. Miller e já se encontra em R. E. Brown: eles
fazem de “o que tem sido/está feito” não um casus pendens, mas o sujeito de uma frase
nominal, devendo ser ligado a “nele”: “O que tem sido/está feito nele, era (a) vida”.
Assim se mantém a referência cronológica ao Logos, e o casus pendens,
linguisticamente difícil, é evitado. Neste caso, o Prólogo passaria já neste lugar para a
missão no mundo, da criação para a história da salvação. Também do ponto de vista
prosódico recomenda-se esta intepretação. Mantém o esquema da escadinha dos três
primeiros versículos, que determina também a frase seguinte até o v. 5. Quanto à
semântica, segue-se ao egéneto do v. 3b o gégonen do final do v. 3: um deslocamento
da ideia da criação ao acontecer de vida e luz na história. Mas este deslocamento pode
facilmente passar desapercebido, o que então conduz às conhecidas dificuldades de
compreensão, que levaram um autor tão renomado como C. K. Barrett a desistir de uma
preferência entre as possíveis compreensões. A transição da criação “pelo” (diá) Logos,
no v. 3a, ao gégonen en (“tem sido/está feito em”) como início do v. 4, que incomodou
Bultmann, pode ser explicada pela indicação de que no v. 4 não se trata mais da criação
“por”, mas da salvação “no” (en) Logos. À guisa de mediação entre os dois
pensamentos remetemos a Cl 1,16: hóti en autṓi ektísthē ta pánta (R. E. Brown).
Com “luz” e “vida” introduzem-se dois termos centrais da teologia joanina. Como
ele dá a vida (cf. 3,16.36), e é a vida (cf. 14,6), assim Jesus é a luz do mundo (cf. 9,5;
8,12; 12,46). A encarnação da Palavra divina ainda não se expressou aqui diretamente,
mas parece suposta.
1,5
A luz brilha nas trevas. Também este enunciado se refere ao destino da Palavra
divina no mundo. João exprime isso com o dualismo de “luz” e “trevas”. Segundo ele
pertence à missão da luz no mundo brilhar para dentro das trevas e delas libertar a
humanidade (cf. 8,12; 12,36.46).
Há discussão em torno do fim do primeiro conjunto do Prólogo: kai hē skotía autò
ou katélaben21. Alega-se Jo 12,35 para traduzir “E as trevas não a subjugaram”22. Mas
trata-se de um caso isolado no Quarto Evangelho. O dicionário do Novo Testamento de
Bauer indica como significado básico para o verbo katalambánō: “captar, adquirir”,
significado que se desloca na direção de “compreender”. Onde o sentido é “subjugar,
dominar” acresce o elemento surpresa, que parece excluído pelo phaínei de Jo 1,5 (cf.
1Ts 5,4; Mc 9,18). Se, sobretudo, versões e comentários anglossaxônicos (como RSV)
20
M. THEOBALD, “Der älteste Kommentar”, 58s.
Cf. agora J. BEUTLER, “Und die Finsternis hat es nicht ergriffen”.
22
Recentemente H. THYEN, ad locum; M. THEOBALD, “Der älteste Kommentar”, 50, com nota 9; ID.,
“Welt” bei Paulus und Johannes, 423.
21
Beutler B -32
traduzem autò ou katélaben como “não a subjugaram”, fazem isso não em última
instância sob influência da maioria dos Padres gregos desde Orígenes. Nisso, não se
presta atenção ao modo como Orígenes chegou à sua interpretação. O erudito
alexandrino tem antes de tudo um interesse teológico. Segundo ele as trevas não são
capazes de vencer a luz divina por razões fundamentais. Ele introduz em seu texto um
conceito suplementar, a saber, o da perseguição. As trevas perseguem a luz e tentam
dominá-la, mas não são capazes disso23. Essa ideia da “perseguição”, porém, não se
encontra no texto joanino. A tradição latina não a conhece e fica, portanto, com o
sentido de “compreender”. A favor deste sentido pleiteia o contexto de Jo 1,5. Nos vv.
10 e 11 se diz: “Estava no mundo, e o mundo foi feito por ela, mas o mundo não a
reconheceu. Veio para o que era seu, mas os seus não a acolheram”. Passando por cima
do parêntese dos vv. 6-8, que tratam do Batista, parece exatamente este ser o sentido do
v. 5 .
A referência dos primeiros versículos do Prólogo aos primeiros versículos da
Bíblia, Gn 1,1–2,4a, é patente. Ambos os textos começam com “no princípio” e
contrapõem “luz” e “trevas”. Ao “Deus disse” de Gênesis corresponde em João “a
Palavra”. Ambos os textos falam do “vir a ser” (egéneto é a forma mais frequente na
versão grega do primeiro relato da criação). Ambas falam da “vida” como obra de Deus
(em Gênesis com referência aos seres vivos, Gn 1,92-30).
Por outro lado, parece que textos veterotestamentários relativas à Sabedoria e sua
missão à humanidade influenciaram do Prólogo de João. Alguns desses textos parecem
pressupor a preexistência da sabedoria (Pr 8,22-36; Sab 9,9s.; Eclo 24,1-22); outros, não
(Sb 6,12-16; 7,22–8,1)24. É mister, porém, notar as diferenças entre esses textos e o
Prólogo joanino25. Os textos do Antigo Testamento falam da “Sabedoria”, não do
“Logos”26. Também são diferentes as funções da sabedoria e do Logos. Nos textos
sapienciais falta a criação “pelo” (diá) Logos, a oposição dualista entra “luz” e “trevas”
(encontrada, antes, no relato da criação) e a conexão entre o dom da “vida” e a recepção
da Sabedoria ou do Logos.
Para essas conexões encontramos os paralelos mais próximos em Fílon de
Alexandria27. No doutrina do Logos segundo Fílon confluem as grandes tradições
filosóficas de sua época: a representação estoico do Logos como um princípio racional
que permeia o mundo e a doutrina platônica do Logos como alma do mundo no sentido
do Timeu. Decerto, em Fílon influi o relato da criação do Gênesis, o que pertence aos
deslocamentos característicos. O tema de uma colaboração do Logos na criação do
mundo, em Fílon, poderia remontar o platonismo médio. A cooperação instrumental do
Logos na criação ultrapassa as representações sapienciais do papel da Sabedoria na
criação (cf. all. III,96; cher. 127; migr. 6; spec. 1,81; no rabinismo, cf. Abot 3,15 para a
criação do mundo pela Torá; cristão primitivo, 1Cor 8,6 Jesus Cristo como aquele “por
meio de quem tudo existe”; Cl 1,16 como aquele em quem tudo foi criado e em quem
tudo subsiste). O Prologo de Joao tem em comum com Fílon também a oposição entre
23
Cf. Origène, Commentaire sur saint Jean, Tome I (Livres I-V). Texte critique, avant-propos, traduction
et notes par C. BLANC (SC 120), Paris ²1996, 324-327 (Comm. in Jo 2, XXVII, 167.168-170).
24
Cf. J. BEUTLER, Johannes-Evangelium (u. –Briefe), 657; ID., Johannesevangelium, Johannesbriefe, 34;
ID., Der Johannes-Prolog, 88 (= Neue Studien, 224); C. STICHER, “Frau Weisheit”; M. GORDLEY,
Prologue.
25
Cf. T. H. TOBIN, The Prologue of John.
26
Mas cf. a referência a Sb 9,1s. em A. NICACCI, Logos e Sapienza, 79.
27
Cf. outra vez T. H. TOBIN, The Prologue of John; BEUTLER, Johannes-Evangelium (u. –Briefe), 657s.,
ID., Johannesevangelium, Johannesbriefe, 34-36.
Beutler B -33
luz e trevas, a ordenação do Logos para o âmbito da luz e seu papel na origem da
“vida”28. Estas conexões se mostram com maior clareza em De Opificii Mundi 29–35.
Continua controverso saber até que ponto textos como a Trimórfica Protenoia
(NHC XIII,1) podem servir para a comparação com o Prólogo joanino. Mas, em todo o
caso, este texto de Nag Hammadi pressupõe o cristianismo.
As vicissitudes da Palavra divina na história (1,6-13)
A transição para os versos que se referem ao Batista, muitas vezes, é percebido
como ruptura estilística e teológica no interior do Prólogo joanino. Lembramos que já J.
Wellhausen estranhou porque, no v. 6, de repente, o Batista “cai como neve na
eternidade”. Esta ruptura aparece mais fortemente ainda quando, como muitos querem,
se pretende ver um hino pré-joanino por trás do Prólogo. Com esta hipótese oferece-se
também uma explicação para a ruptura no v. 6. O evangelista teria introduzido neste
lugar uma tradição a respeito do Batista, ou ele mesmo teria comentado o hino
preexistente pelos versículos dedicados ao Batista.
Renunciamos aqui a qualquer hipótese literário-crítica e apenas constatamos uma
mudança estilística no interior do Prólogo. Passa-se do estilo hínico para um estilo mais
narrativo. Esta transição percebe-se também na mudança dos tempos presente,
imperfeito e perfeito dos primeiros quatro versículos para o aoristo no v. 6. Esse aoristo
já se apresentou no egéneto da criação no v. 3 e no katélaben da reação à revelação do
Logos, no v. 5.
Como já avisamos na secção anterior, não vemos na transição vv. 1-5 do Prólogo
para os vv. 6-13 a guinada da eternidade ou pré-história para a história. Nossa
compreensão dos vv. 4-5 exclui tal visão: o Logos divino, luz dos homens, brilha até o
dia de hoje no mundo, mas o mundo não quis abrir-se a essa luz. Portanto, nesse texto
não nos encontramos em algum cinzento tempo pré-histórico. Olhando assim, a
introdução do Batista não pode ter o sentido de abrir uma nova fase da história da
salvação. Só serve para chamar a atenção da comunidade leitora para um confronto
importante: não João é a luz do mundo, mas o Logos divino, que logo mais será
chamado com seu próprio nome: Jesus Cristo (v. 17).
Convém ver os vv. 6-13 como uma secção própria do Prólogo, sobretudo quando
se lê o v. 13 no plural. Os autores que leem o v. 13 no singular (“que foi gerado... de
Deus) veem este versículo em íntima união com o v. 14. Como acima dissemos, estes
autores são os que fazem do v. 13-14 o centro de uma estrutura concêntrica. Contudo,
mesmo I. de la Potterie mostrou ressalvas quanto a essa hipótese, embora ele, por sua
parte, leia o singular29.
A secção inteira se deixa dividir em duas partes. No início estão os vv. 6-8. Eles
introduzem o Batista, falam de sua missão e o contrapõem à “luz”. Ele não era a luz, só
devia dar testemunho da luz. As duas primeiras frases usam o aoristo, a terceira (v. 8), o
imperfeito. E com a troca do sujeito (to phṓs) prepara-se a transição para o versículo
seguinte.
Os vv. 9-13 podem então ser vistos como uma subsecção própria, como acontece
na divisão do texto de Aland-Nestle (28ª ed.). Dentro desta subsecção podem-se
distinguir duas partes. Primeiro constata-se o fracasso da missão da “luz” no mundo e
28
29
Cf. T. H. TOBIN, The Prologue, 262-265.
Cf. I. DE LA POTTERIE, Structure.
Beutler B -34
aos que são seus (vv. 9-11). Depois, fala-se daqueles que a acolheram (vv. 12-13). A
transição linguística se realiza pelo verbo parélabon no fim do v. 11 e o élabon no
início do v. 12 (essa duplo uso confirma também o katélaben do v. 5 no sentido de
“acolher”).
1,6-8
Por três vezes já, o Prólogo usou o verbo gínesthai. No v. 3 lemos com repetição
que tudo “foi feito” (egéneto) pela Palavra divina. No v. 4, interpretamos ho gégonen no
sentido de que o que nela “está feito” era a vida. Assim, a expressão já ganhou um
sentido que aponta para a história. Com o egéneto ánthrōpos do v. 6, entramos
definitivamente na história conhecida. O sentido da expressão pode ser traduzido por
“surgiu, apareceu”. Isso se deduz também do contexto: João Batista foi enviado por
Deus e “veio” para dar testemunho (v. 7). Aparece aqui a concretização crescente que
reconhecemos como marca fundamental do Prólogo joanino: desde a criação em direção
à história humana em geral, até o momento histórico do surgimento do Batista.
É notável que o quarto evangelista recuse a João o título de “Batista”. Nem
mesmo relata o batismo de Jesus por João como o encontramos nos outros evangelhos.
A razão disso é a teologia joanina, que vê no Batista, exclusivamente, a testemunha de
Jesus. A secção 1,19-34 serve inteirinha para essa finalidade. Acrescem a isso Jo 3,26 e
5,33. Aqui, no Prólogo, o significado de João parece ao mesmo tempo relativizado e
valorizado: ele não é outra coisa senão testemunha de Jesus Cristo, luz e salvador do
mundo. Os exegetas remetem regularmente a certa veneração que o Batista gozava em
círculos judaicos e, talvez, também em círculos cristãos (cf. At 19,3s.). Ao lado de tal
finalidade apologética, que visa a garantir a unicidade de Cristo, o papel de João se
insere também na teologia joanina do testemunho. Segundo esta, não apenas João
testemunha a favor de Jesus, mas o próprio Deus Pai, as Escrituras de Israel, as obras de
Jesus, o Espírito e os discípulos de Jesus são testemunhas em seu “grande processo”
com o mundo (cf. Jo 5,31-40; 8,12-20; 10,25; 15,26s.)30. A conexão de martyreîn com a
preposição perí no sentido de testemunhar acerca de uma pessoa, no caso, Jesus, é
característica do quarto evangelista e se encontra no Novo Testamento raras vezes fora
do Evangelho segundo João. Geralmente, em João, a expressão significa o testemunho
“a favor” de Jesus. O texto aqui fala do testemunho a favor da “luz”, utilizando o termo
que, no início do Prólogo, descrevia a missão da Palavra divina em sua entrada no
mundo.
O testemunho, no Evangelho segundo João, sempre serve para suscitar a fé em
Jesus. Assim, Jo 3, com sua menção ao testemunho do Batista (3,26), termina na
promessa de vida eterna para aqueles que acolhem Jesus na fé (3,36). A secção inteira
Jo 5,31-40 serve para a finalidade de conduzir a Jesus, com base no repetido testemunho
a favor de Jesus (cf. 5,38). Coisa semelhante vale para Jo 8,12-20, mesmo se aí falta o
verbo pisteuein; os conceitos aparentados são “reconhecer” e “julgar”.
E evidente, em Jo 1,6-8, a influência da tradição sinóptica dos inícios da atividade
pública de João Batista. Em Mc 1,3 está: egéneto Iōánnēs baptízōn em tḗi erḗmōi (cf.
também Mt 3,1; Lc 3,2). Em sua forma primitiva, o relato de João talvez tenha sido
semelhante31.
30
Cf. J. BEUTLER, Martyria, 209-306; ID., Art. marture,w( marturi,a in EWNT II, 968-968.
Assim já R. E. BROWN I 27s. com M.-É. Boismard; recentemente M. THEOBALD, “Der älteste
Kommentar”, 49s. Neste caso, não teria sido acrescentado ao Prólogo o texto sobre João Batista, mas,
31
Beutler B -35
1,9-11
Depois da “digressão” a respeito de João Batista, nos vv. 6-8, o texto do Prólogo
volta aos versículos iniciais, sobretudo o v. 5. Um elemento de continuidade encontra-se
no conceito de “luz”, utilizado na evocação da missão do Batista nos vv. 7-8. É possível
que, originalmente, o v. 5 continuava no v. 10 32. É possível também que, num hino
original, os vv. 5 e 9 se tenham seguido33. A opinião de Schnackenburg é de que o hino
começava com os vv. 1-4 e continuava no v. 934.
No início do v. 9 há um problema de tradução. As palavras erkhómenon eis ton
kósmon podem estar ligados quer a ḗn to phṓs to alḗthinon, quer a pánta ánthrōpon. As
opiniões se dividem, mas a maioria dos estudiosos prefere a ligação a ḗn to phṓs to
alḗthinon. A ideia do “homem vindo ao mundo” parece antes alheia ao mundo bíblico e
joanino, enquanto a vinda do Cristo ao mundo é uma representação corriqueira,
precisamente em João. Alegam-se os seguintes textos para o “vir” de Cristo da parte de
Deus: Jo 5,43; 7,28; 1,14.21; 9,39; 10,10; 12,47; 13,3; 16,28; 18,37 35. Jo 1,9 aproximase, sobretudo, de Jo 9,39 e 12,47, visto que nestes textos o “vir” está ligado ao tema da
“luz” (cf. também 8,14). Assim, Jo 1,9 pode ser traduzido por uma construção
perifrástica: “A luz verdadeira, que ilumina todo homem, veio [lit. estava vindo]* ao
mundo”; ou por uma frase de identificação: “(A Palavra) era a luz verdadeira, que
ilumina todo homem. Ela veio ao mundo”. É assim que a maioria das traduções recentes
entende a frase36.
Quanto ao conteúdo, o v. 9 retoma a vinda da luz ao mundo do v. 5. A ideia de
que esta luz ilumina todo homem é retomada do v. 4. Segundo o v. 9, a luz não vem
somente para os “iluminados”, mas para “todo homem”. Este universalismo continua no
v. 10. Como o mundo inteiro é obra da criação pela Palavra de Deus, o mundo deveria
acolhê-la. As palavras kai ho kósmos di’autoû egéneto podem ter sido acrescentadas
para acentuar a conexão com o v. 3. A rejeição da Palavra divina pelo “mundo” parece
irrestrita. O mundo não (re)conheceu essa Palavra. Num paralelismo exato com este
enunciado, o v. 11 escreve: “Ele veio a que é seu, e os seus não a acolheram”. Quem são
esses “seus”? Pode-se pensar nos judeus, mas a visão universalista do contexto
desaconselha isso. Trata-se dos seres humanos que, na Palavra, foram criados por Deus,
“todos” (v. 7), “todo homem” (v. 9), o “mundo” (v. 10). O destino da Sabedoria divina
entra aqui no sentido em que está em Provérbios, na Sabedoria ou no Eclesiástico37.
Estes hinos mostram que a Palavra participa da obra da criação. Segundo Pr 8,31, ela se
“alegrava em estar com os filhos dos homens”. O hino de Eclo 24 louva a missão da
Sabedoria no mundo e sua acolhida em Israel e no monte Sião. Identificar “os seus” em
Jo 1,11 com Israel estaria em franca contradição com essas representações sapienciais.
1,12-13
Segundo muitos autores38 o v. 12ab pertenceria ao suposto hino pré-joanino,
enquanto as linhas seguintes (v. 12c-13) teriam sido acrescentadas pelo evangelista.
inversamente, o hino preexistente teria sido anteposto a um início de evangelho que corresponderia a Jo
1,6s.
32
Cf. a referência em A. DETTWILER, Le prologue johannique, 188 com nota 16.
33
Assim o mesmo A. DETTWILER, loco cit.
34
Cf. SCHNACKENBURG I 221.
35
EWNT II 143 (T. SCHRAMM).
36
Cf. Bíblia de Jerusalém, RSV e Einheitsübersersetzung, divergentes do texto de Lutero.
37
Cf. acima, com. ao v. 5.
38
Cf. A. DETTWILER, Le prologue, e o panorama em M. THEOBALD, “Der älteste Kommentar”, 57.
Beutler B -36
Assim se explicaria uma dificuldade lógica: por um lado promete-se, aos que creem, a
filiação divina (12ab), mas por outro lado (12c-13) só pode chegar à fé quem é nascido
de Deus e não apenas dos pais físicos. “Acolher” a Luz/a Palavra (v. 12a) é equivalente
a “crer” na Luz (v. 12c). Esta fé se apresenta como dom divino, fruto de um nascimento
de Deus. O v. 13 exclui toda a colaboração humana no nascimento de quem nasceu de
Deus, quer física (ex haimátōn) ou psicológica (ek thelḗmatos sárkos ... andrós). A ideia
de tal nascimento ou geração a partir de Deus é, antes, estranha à Bíblia, mas encontra
paralelos na mitologia oriental e greco-romana (pense em nomes como “Diógenes” e
“Hermógenes”). Do ponto de vista teológico, a aparente contradição entre a filiação
divina como condição ou como consequência da fé provavelmente se resolve pela visão
complementar: a fé pressupõe, por um lado, a graça divina, mas, por outro, conduz
também à filiação divina; ora, como o quarto evangelista não dispunha de um sistema
que permitisse harmonizar os dois aspectos, ele os justapôs, de modo que a visão certa
se dá na contemplação simultânea de ambos.
Não há, até agora, plena concórdia quanto ao texto do v. 13. No lugar do plural
“os que nasceram/foram gerados de Deus”39, apresenta-se, desde a Antiguidade, embora
raramente, a lição no singular (“o que nasceu/foi gerado de Deus”). O plural serve de
base para o texto de Nestle-Aland (28ª ed.) e do GNT (4ª ed.), obtendo a nota de
plausibilidade mais alta (A = sem dúvida). É a lição do todos os manuscritos gregos. O
singular aparece a partir do séc. II, pela primeira vez em Tertuliano, possivelmente
também em Hipólito, certamente em Ireneu, na Epistula Apostolorum, no códice “b” da
Vetus Latina (Codex Veronensis), no assim chamado Liber Comicus (lecionário de
Toledo) e em alguns manuscritos da tradição siríaca40. I. de la Potterie41 e J. Galot42
indicam estas testemunhas. Mas esta atestação externa continua muito fraca, por faltar
completamente nos manuscritos gregos do Novo Testamento. Isso explica a avaliação
dos editores de Nestle-Aland (28ª ed.) e do GNT (4ª ed.). A atestação externa da lição
no plural recebe o apoio dos papiros do II e III séculos (pap. 66 e 75) e do próprio
Tertuliano, que a menciona ao polemizar contra ela43.
Olhemos, pois, os critérios internos. Segundo Tertuliano, o plural provém dos
gnósticos, para dar uma base escritural à origem do homem espiritual. Este argumento
não convence, como já observa B. M. Metzger44. Os gnósticos distinguem entre os
homens do espírito, os pneumáticos, e os demais, os homens da carne. Afirmar que
todos os homens se originam de Deus e não da mulher estaria em contradição com as
convicções gnósticas. Do outro lado, entende-se a origem da leitura no singular a partir
do empenho dos autores da Igreja antiga por encontrar em João o nascimento virginal de
Jesus, atestado por Mateus e Lucas. O termo autoû no fim do v. 13 pode ter provocado
esta adaptação45. Investigações novas que favorecem a lição no singular geralmente não
a atribuem ao texto canônico do Evangelho segundo João46.
39
A tradução costumeira “gerados” é defendida por M. J. J. MENKEN, “Born of God”, mas resta a
dificuldade do mundo imagético de Jo 3,3-8.
40
Cf. SCHNACKENBURG I 240s.
41
I. DE LA POTTERIE, La conception.
42
J. GALOT, Être né de Dieu.
43
B. M. METZGER, Textual Commentary ad locum.
44
Cf. ibid.
45
Cf. ibid.
46
Segundo M. THEOBALD, Le prologue, a variante no singular é uma modificação tardia do texto
canônico do Evangelho de João. Se, não obstante, nesta publicação mais antiga, ele a defende, é por
influência da exegese católica de língua francesa; veja, porém, ultimamente, seu comentário ad locum. A
Beutler B -37
A encarnação da Palavra e sua acolhida na comunidade (1,14-18)
Os últimos cinco versículos do Prólogo do Quarto Evangelho são considerados
pela maioria dos exegetas como o ápice deste texto joanino fundamental. Finalmente
aparece agora no texto o nome Jesus Cristo (v. 17). Reaparecem também os termos
lógos e theós dos versículos iniciais, para serem aplicados a Jesus. A impressão de uma
inclusão entre o v. 1 e os vv. 14-18 confirma-se pelo fato de que a confissão de fé em
Jesus como “Deus” voltará no evangelho apenas mais uma vez: na confissão de fé de
Tomé, quase no fim do relato evangélico de João, em Jo 20,28, antes do epílogo do cap.
21. Isso sugere, portanto, uma inclusão mais ampla, que abrangeria a forma original do
evangelho inteiro. A encarnação do Logos, porém, não encontra ressonância no restante
do evangelho. Teologicamente, constitui, com certeza, o ponto alto do Prólogo. O
percurso ulterior do evangelho descreverá o caminho desse Logos que se tornou carne.
Quando se considera a articulação de Jo 1,14-18 nota-se, antes de tudo, a
diferença de estilo e conteúdo entre o v. 15 e seu contexto. Os vv. 14 e 16, em estilo
hínico, mostram continuidade e cantam a encarnação da Palavra e seu efeito na
comunidade. O v. 15, ao contrário, reata com a menção ao Batista nos vv. 6-8 e não se
enquadra na prosódia dos versos vizinhos. Os vv. 17 e 18 voltam mais para essa
prosódia e se revelam também aparentadas entre si.
1,14
O verso central divide-se em cinco linhas. As duas primeiras falam da encarnação
do Logos e de sua habitação “no meio de nós”, expressão que traz à cena a comunidade
leitora. Esta constitui o sujeito da terceira linha: ela contemplou a glória da Palavra feita
carne. As duas últimas linhas desdobram essa “glória” com vistas a seu portador e seu
efeito na comunidade leitora.
A primeira linha é marcada pelo pela linguagem e pensamento joaninos. As linhas
seguintes retomam mais visivelmente o vocabulário e as representações das Escrituras
de Israel. Como dissemos antes47, encontra-se por trás dos vv. 1-5 do Prólogo o relato
da criação do Gênesis, por trás dos versículos seguintes a tradição evangélica a respeito
de João Batista e por trás de 1,14.16-18, a tradição do Êxodo. Este modo de ver é
compartilhado por muitos exegetas de João. A figura de Moisés é mencionada somente
no v. 17, mas a teofania do Sinai está por trás da secção inteira a partir do v. 14. Para a
tradição sacerdotal, a criação tem seu acabamento no erguimento da “Tenda” entre os
filhos de Israel (Ex 40). Nesta tenda, Deus habita no meio de seu povo e descansa de
suas obras48. Na tradição targúmica, os termos “shekiná” (“morada” na tenda),
“palavra” e “glória” de Deus substituem o termo Deus. Evita-se assim mencionar o seu
nome. Todos esses termos encontram-se no Prólogo de João e no presente versículo. O
binômio “graça e verdade” [kháritos kai alētheías]* vem das palavras que Moisés ouviu
na teofania de Ex 34: “O SENHOR, o SENHOR, Deus misericordioso e clemente, lento
para a ira e rico em bondade/graça e fidelidade/verdade”, sendo que os dois últimos
termos na tradução grega (Septuaginta) soam polyéleos kai alēthinós. O novo em Jo
Bíblia de Jerusalém lia na edição original de 1955 o singular, e assim também a tradução alemã da mesma
(Freiburg 1968); mas a edição inglesa “The New Jerusalem Bible” (London 1985) se decide pelo plural.
P. Hofrichter teria primeiro preferido a lição no singular, mas depois voltou para o texto canônico no
plural (HOFRICHTER, Im Anfang). Segundo ele o singular se encontrava em um prólogo joanino original,
que como hino autônomo estaria na base tanto aos textos gnósticos quanto ao evangelho de João. Mas
esta hipótese não conseguiu se impor.
47
Veja acima, I.
48
Cf. K. WENGST, ad locum, e D. BÖHLER, Abraham, 32.
Beutler B -38
1,15 consiste em anunciar que este Deus se revelou em Jesus Cristo, o Logos encarnado.
Para isso não há paralelos judaicos, nem protocristãos. Ele é o Filho “unigênito”, o que
lembra Isaac em Gn 22. E por que o Prólogo diz que o Logos se tornou “carne” e não
homem/ser humano? A razão poderia ser que, na época da redação do Prólogo, a
verdadeira humanidade de Jesus, sua existência em carne e sangue, seu nascimento e
sua morte já se tornaram objeto de discussão e impugnação da parte dos círculos
protognósticos. Assim se entende a ênfase dada à carne de Jesus nos textos joaninos
tardios no Evangelho segundo João (Jo 6,51-56) e nas cartas (1Jo 4,2s.; 2Jo 7).
Invertendo o raciocínio pode-se concluir que o Prólogo, ou pelo menos esta secção do
Prólogo, pertence à última fase do Evangelho segundo João, como “releitura”, embora
disso não segue que estes versos sejam pós-joaninos49.
1,15
No v. 15 reaparece a figura do João Batista, já mencionada antes, nos vv. 6-8. A
menção a ele assinalou a entrada da Palavra divina na história dos homens, e sua
nomeação como testemunha a favor de Jesus, o começo do “grande processo” entre
Jesus e o mundo. Como observa I. de la Potterie50, existe uma diferença gramatical entre
os vv. 6-8 e o v. 15. Nos vv. 6-8, o testemunho de João aparece como um acontecimento
do passado. João surgiu e deu testemunho a favor da luz, Jesus, o Logos. Segundo o v.
15 o, testemunho de João é um acontecimento presente: João “dá testemunho dele e
proclama”. O perfeito kékragen provavelmente tem aqui, em paralelismo com martyreî,
o significado do presente51. O conteúdo de seu testemunho antecipa Jo 1,30, mas,
contrariamente a esse versículo, o v. 15 faz da precedência de Jesus sobre João o
enunciado principal. Fisicamente, Jesus vem atrás de João Batista, mas, no tempo,
apresenta-se aos israelitas depois dele; contudo, ele é primeiro e remonta mais longe no
tempo. Assim, João Batista torna-se testemunha da preexistência de Jesus, o que
significa para o leitor: até na eternidade (cf. vv. 1-2). Para os leitores antigos, o mais
antigo merecia respeito maior. Aliás, os leitores do Evangelho segundo João sabiam que
Jesus não apenas era mais antigo que João, mas antecedia qualquer cômputo do tempo.
1,16
O v. 16 reata com o v. 14. Volta a primeira pessoa do plural, que já se encontrava
no v.14: o “nós” da comunidade cantando louvor. Reencontra-se também a menção à
“graça”. No v. 14, ele é mencionada como eco reconhecível da tradição do Êxodo. No v.
16, o sentido é mais pronunciadamente cristão. A expressão khárin anti kháritos pode
ser entendida em diversos sentidos: “graça por graça”, “graça sempre maior”, ou “uma
graça em vez da outra”. A primeira interpretação parece a mais provável52, também
porque logo se segue a expressão “plenitude” (plḗrōma). Exceto aqui, esta expressão
encontra-se no Novo Testamento somente em Paulo e sua escola e assinala a plenitude
da salvação escatológica em Cristo (cf. sobretudo Cl 1,19; Ef 1,10.23).
1,17-18
Nos últimos três versículos, o texto volta à terceiro pessoa do singular. Duas
antíteses constituem o conteúdo de ambos os versículos: no v. 17, a graça da Lei por
mediação de Moisés e a vinda de graça e verdade em Jesus Cristo; e no v. 18, a
49
Assim em G. RICHTER, Fleischwerdung.
Ver acima, I.
51
Cf. o verbete em W. BAUER, Wörterbuch.
52
Cf. H THYEN, Erwägungen, com R. SCHNACKENBURG, R. E. BROWN, B. LINDARS, e mesmo M.
LUTHER.
50
Beutler B -39
invisibilidade de Deus e sua contemplação por Jesus, o “exegeta” do Pai. O dom da Lei
por mediação de Moisés e a vinda da graça e verdade por Cristo podem ser entendidos
de diversas maneiras. Segundo alguns, trata-se de um paralelismo antitético, portanto,
de uma contraposição. Essa compreensão já se reconhece no pap. 66 e em algumas
outras testemunhas textuais antigas. Autores recentes, pelo contrário, preferem um
paralelismo em clímax: a graça e a verdade que vieram por Jesus Cristo superam o dom
da Lei mediado por Moisés. Para os leitores não se trata, então, de uma diferença
quantitativa, mas qualitativa. Há certa ironia no fato de que o dom da “graça e verdade”
em Jesus é uma expressão que vem precisamente da segundo manifestação de Deus a
Moisés no Sinai, Ex 34,6 LXX (cf. acima, v. 14).
A antítese formulada no v. 18 se inspira no livro do Êxodo. Depois do episódio do
bezerro de ouro, Moisés solicita um novo encontro com Deus. Este pedido é atendido
em parte, por Deus, mas ele acrescenta: “Não poderás ver minha face, porque ninguém
pode ver-me e permanecer vivo” (Ex 33,20). Moisés verá de Deus somente as costas,
quando ele passar diante dele; seu rosto, ele não o poderá enxergar (Ex 33,23). Que
ninguém jamais viu Deus é um tema que João repete (cf. 5,37; 6,46; também 14,9). Só
Jesus o viu, ele, que “repousa sobre o coração do Pai”, em contraste com Moisés, que o
viu apenas pelas costas. A razão disso é que Jesus é o “unigênito”53, do mesmo ser e
natureza do Pai: “Deus”54. Por isso, só ele pode dar a conhecer algo da parte do Pai e ser
o seu “exegeta”55. (Quanto ao lugar “sobre o coração” do Pai, cf. o Discípulo Amado,
que, segundo Jo 13,25, na ceia terá um lugar semelhante, junto ao coração de Jesus, e
será o seu comunicador).
III
O que diz este texto para o público leitor hoje?56 Para responder a esta pergunta
deve-se observar, por um lado, a estratégia narrativa do texto e, por outro, o horizonte
de expectativa e compreensão das leitoras e leitores de hoje.
Como se mostrou, o Prólogo de João leva o leitor passo a passo ao conhecimento
da palavra de Deus na figura histórica de Jesus Cristo. O véu é levantado apenas no
v.17, mas o acontecer da encarnação da Palavra em história humana é anunciado desde
o v. 3. “Luz” e “vida” são comunicadas à pessoa humana, na Palavra divina, em
manifestação histórica. É disso que o Batista deu testemunho, e o enunciado da
encarnação no v. 14 apenas torna explícito o que já antes se podia ouvir em surdina.
A resposta adequada ao anúncio da vinda da Palavra divina na história é a fé. É
dela que trata, sobretudo, a parte central do Prólogo, os vv. 6-13. O testemunho do
Batista pretende conduzir a esta fé. E quem a encontra, torna-se filho de Deus e mostrase filho de Deus.
53
Para este termo, cf. M. MORGEN, Le (Fils) monogène.
Em vez de qeo,j muitos manuscritos leem no v. 18 ui`o,j. Cf. a discussão em particular em B. METZGER,
Textual Commentary, ad locum. A lição qeo,j encontra-se atestada também nos P 66 e P 75 , dos séculos IIIII (no P 75 com o artigo, como também em outros manuscritos), no Sinaiticus prima manu¸ no Vaticanus
e no C prima manu. A lição ui`o,j é menos bem atestada (A C3 K G D Q Y f1.13, alguns minúsculos, M lat
syc.h) e pode ter sido influenciada por textos semelhantes, como Jo 3,16.18; 1Jo 4,9. O artigo pode ter sido
influenciado pelo título “Filho” (Metzger).
55
L. DEVILLERS. Le sein du Père, 70, entende de modo totalmente diferente o verso final do Prólogo: “Le
Fils unique, Dieu, Celui qui Est (cf. Ex 3,14 et egō eimi de Jean), dans le sein du Père, lui, a conduit”.
Esta proposta é bastante hipotética e tropeça no fato de que nos contextos anterior e posterior o assunto é
a comunicação da Palavra ou do conhecimento de Deus, mas não do acesso a ele.
56
Para a história da recepção do Prólogo, cf. M. ENDERS, R. KÜHN, “Im Anfang war der Logos”.
54
Beutler B -40
Os evangelhos sinópticos começam com o relato da atividade inicial de Jesus
(Marcos) ou de sua origem (Mateus e Lucas). Em contraste com eles, o evangelista João
abre seu evangelho com um cântico que canta a origem divina da Palavra. A partir do v.
14, os cantores desse cântico aparecem expressamente como “nós”. Assim são
integrados no relato do princípio primordial, antes dos séculos. Cantam isso com o autor
e seu círculo. Destarte, não apenas se ouve um relato, mas releva-se uma confissão de fé
que se expressa no culto. Esta maneira de falar da encarnação de Deus parece bem
adequada a seu objeto. Da vinda de Deus ao homem não se pode falar, afinal, na
linguagem objetivante de um relato, mas apenas na forma do anúncio, ao qual
corresponde, na comunidade dos que creem, a afirmação de sua fé. Assim, o Prólogo de
João é ao mesmo tempo expressão de seu tempo e discurso adequado sobre Deus
também no sentido do pensamento teológico de hoje57.
2. O testemunho de João Batista (1,19-34)
19
Este é o testemunho de João, quando os judeus enviaram, de Jerusalém,
sacerdotes e levitas para lhe perguntar: “Quem és tu?”. 20 Ele confessou e não negou;
ele confessou: “Eu não sou o Cristo”. 21 Perguntaram: “Quem és, então? Tu és Elias?”
Respondeu: “Não sou”. – “Tu és o profeta?” – “Não”, respondeu ele. 22 Perguntaramlhe: “Quem és, afinal? Precisamos dar uma resposta àqueles que nos enviaram. Que
dizes a respeito de ti mesmo?” 23 Ele declarou: “Eu sou a voz de alguém que grita no
deserto: ‘Endireitai o caminho do Senhor!’”, como disse o profeta Isaías. 24 Eles
tinham sido enviados da parte dos fariseus. 25 Perguntaram a João: “Por que, então,
batizas, se não és o Cristo, nem Elias, nem o profeta?” 26 João lhes respondeu: “Eu
batizo com água. Mas entre vós está alguém que vós não conheceis: 27 aquele que vem
depois de mim, e do qual eu não sou digno de desamarrar as correias da sandália!”
28
Isso aconteceu em Betânia, do outro lado do Jordão, onde João estava batizando.
29
Na manhã seguinte, João viu que Jesus vinha a seu encontro e disse: “Eis o
Cordeiro de Deus, aquele que tira o pecado do mundo. 30 Este é de quem eu disse:
‘Depois de mim vem um homem que passou à minha frente, porque era antes de mim’!
31
Eu também não o conhecia, mas vim batizar com água para que ele fosse
manifestado a Israel”. 32 João ainda testemunhou: “Eu vi o Espírito descer do céu,
como pomba, e permanecer sobre ele. 33 Também eu não o conhecia, mas aquele que
me enviou disse-me: ‘Aquele sobre quem vires o Espírito descer e permanecer sobre
ele, é ele quem batiza com Espírito Santo’. 34 Eu vi e, por isso, testemunho: este é o
Filho de Deus!”
I
Com Jo 1,19 inicia-se, depois do Prólogo, a narrativa do Evangelho segundo João.
No início, em Jo 1,19-51, encontramos quatro cenas conectadas entre si quanto ao
cenário, a cronologia e os atores. Uma nota cronológica ulterior, em 2,1, completa a
sequência das cenas, formando uma “semana inicial”, que no seu tempo
contemplaremos e que termina nas bodas de Caná. As quatro primeiras cenas são
separadas umas das outras pelas notas cronológicas “na manhã seguinte” em Jo
1,29.35.43. Todas elas se passam na margem do rio Jordão. As duas primeiras se
mostram interligadas, bem como as duas últimas. As cenas Jo 1,19-28 e 1,29-34 estão
57
Para isso, cf. J. BEUTLER, “Und das Wort ist Fleisch geworden”.
Beutler B -41
unidas pelo tema comum do “testemunho”, já introduzido em Jo 1,6-8 e 1,15. O v. 1,19
serve de “sobrescrito” para esta secção, Jo 1,19-34. A dupla menção ao “testemunhar”
em 1,32-34 completa a moldura da secção.
A divisão da secção é evidenciada pelas indicações de cenário e pelo conteúdo. A
nota cronológica “na manhã seguinte” de 1,29 divide o texto em duas partes, cujos
conteúdos se mostram muito próximos. Em Jo 1,19-28, o Batista fala de si mesmo e de
sua atuação, mas de Jesus só fala indiretamente; em 1,19-34 fala de Jesus diretamente
como sendo aquele que há de vir. Por isso podemos intitular 1,19-28 “O testemunho
indireto de João acerca de Jesus” e 1,29-34, “O testemunho direto de João acerca de
Jesus”.
Na parte narrativa do Quarto Evangelho, o testemunho do Batista em 1,19-34
forma uma inclusão com 10,40-42, onde o Batista é mencionado pela última vez,
novamente na paisagem do rio Jordão: ele não fez sinais, mas tudo o que falou a
respeito de Jesus era verdade e, por ele, muitos passaram a crer em Jesus. Assim, o
Batista deixa definitivamente a cena e deixa seu lugar, ao lado de Jesus, ao amigo deste,
Lázaro (Jo 11–12), antes que ocupe Discípulo Amado (Jo 13–21). Com isso demarcamse também as partes principais do evangelho.
II
O testemunho indireto de João acerca de Jesus (1,19-28)
Esta perícope pode ser dividida em duas partes com base em indícios formais e de
conteúdo. No meio da perícope encontra-se a nota do v. 24, dizendo que os sacerdotes e
levitas enviados a Jesus foram enviados da parte dos fariseus. Os vv. 19-23 respondem à
pergunta dirigida a João: “Quem és tu?”, os vv. 25-28 à pergunta do porquê de seu
batismo.
1,19-23
Nos vv. 19-23 o assunto é a pessoa de João, nos vv. 25-28, a sua atuação, o seu
batismo. No início, no v. 19, apresenta-se um sobrescrito, redigido em estilo tipicamente
joanino (pronome demonstrativo inicial seguido de uma frase definitória, cf. Jo 15,12;
17,3; 1Jo 3,11 etc.). Não é totalmente claro até onde vai a secção assim introduzida.
Muitos comentadores pensam: até 1,34. Mas o testemunho do Batista tem alcance para
lá deste versículo, pois é retomado na indicação “Eis o cordeiro de Deus” de 1,35. E,
como já mencionamos, em 3,22-30; 5,33-35 e 10,40-42 encontram-se outras menções
ao Batista. Por isso, pode-se ver em Jo 1,19 o sobrescrito de toda a primeira parte do
evangelho. Além disso, neste versículo introduzem-se os outros atores da primeira parte
do Evangelho segundo João: sacerdotes e levitas enviados de Jerusalém para ganhar
informações acerca da pessoa e da atividade de João Batista. Os que os enviam são “os
judeus”, entendidos como os que exercem a responsabilidade sobre o povo judeu em
Jerusalém.
Do fim do v. 19 até o v. 23, o grupo de versículos é marcado por frases nominais
no tempo presente. No centro da narrativa está a figura do Batista. Sua resposta à
delegação de Jerusalém é introduzida por uma frase solene: “Ele confessou e não negou;
ele confessou ...”. Pela primeira vez apresenta-se aqui a importância do “confessar” para
a comunidade leitora do Quarto Evangelho. Já apontamos para isso antes58.
58
Cf. supra, Introdução, 3; J. BEUTLER, Faith and Confession.
Beutler B -42
A resposta de João pode ser articulada em uma parte negativa e uma parte
positiva. O enunciado mais importante para os leitores do Quarto Evangelho encontrase na primeira parte, negativa: João não é o Cristo. Este enunciado retoma o que foi dito
sobre o Batista no Prólogo (1,6-8): João “não é a luz”, que é o Logos encarnado em
Jesus Cristo. Além disso, João recusa a identificação com Elias, cuja volta se esperava
para o tempo final. Nem é o profeta anunciado de acordo com Dt 18,18. A razão dessa
recusa consiste no fato de que sempre se relacionava com a figura de Elias a
representação do “precursor”, papel que o Quarto Evangelho não admite. A origem de
Jesus é de outra ordem: do ponto de vista do quarto evangelista é impossível que ele
tenha precursor59.
A resposta positiva do Batista nos vv. 22-23 cita Is 40,3 LXX, já utilizado pelos
sinópticos no mesmo contexto. O “Batista” (o Quarto Evangelho nunca o indica com
este termo) não é mais do que a voz de alguém que clama no deserto, convidando a
preparar o caminho para o Senhor. Textualmente, a citação corresponde em grande
medida à Septuaginta, com uma diferença no termo “aplanai” (euthýnate), que hoje se
tende a atribuir ao evangelista e não a uma fonte pré-joanina. Evidentemente, também o
egṓ (“eu”) na introdução da citação vem da mão do evangelista. Para um autor cristão
como o quarto evangelista não há dúvida de que o kýrios de Is 40,3 significa Jesus, o
Senhor da comunidade cristã, no qual Deus veio visitar seu povo. João Batista não
aparece como seu precursor, mas como a voz que anuncia a sua chegada.
Por trás da secção Jo 1,19-23 e dos versículos seguintes, até o v. 34, é possível
reconhecer a tradição sinóptica. De imediato se reconhece a entrada em cena do Batista
segundo Mc 1,2-11. Que o quarto evangelista não oferece uma descrição do Batista e
sua pregação penitencial permite concluir que ele se baseia principalmente em Marcos e
não na tradição paralela de Mateus e Lucas (Q). As divergências em relação a Marcos se
derivam da intervenção redacional do quarto evangelista60.
Logo no início da perícope, no v. 19, percebe-se a influência da perspectiva
joanina. Introduz-se o tema que é determinante para o quarto evangelista: o testemunho.
A delegação de Jerusalém abre uma primeira fase crítica da relação entre Jesus ou o
Batista e as autoridades judaicas de Jerusalém. O evangelista fala de “sacerdotes e
levitas”, com a intenção de dar aos enviados de Jerusalém um perfil modesto. Este
vocabulário não é indício de uma fonte joanina autônoma.
O fato de que, desde o início, o olhar se volta para a pessoa do Batista, mais uma
vez se deixa explicar em vista dos interesses literários e teológicos do evangelista.
Desde o Prólogo, a relação entre o Batista e Jesus é um tema central. Que João não usou
a citação de Malaquias que aparece nos sinópticos (Ml 3,1) explica-se pela intenção do
evangelista de não apresentar o Batista como precursor de Jesus. Quando, mesmo assim,
a citação de Isaías aparece na boca do Batista, no Evangelho segundo João, ela ganha
mais peso. A introdução pela fórmula “ele confessou e não negou, ele confessou” se
explica pela importância da confissão do Batista, como já apontamos antes61.
Por que perguntam os delegados de Jerusalém ao Batista se ele é o Cristo, Elias ou
um dos profetas? Comentadores como J. Becker apontam que esses títulos faltam na
59
Cf. D.-A. Koch, Der Täufer, 1970s.
Cf. ainda D.-A. KOCH, Der Täufer; também É. TROCMÉ, Jean et les Synoptiques, e E. D. FREED, Jn
1,19-27.
61
Cf. supra, com. ao v. 20.
60
Beutler B -43
tradição sinóptica a respeito do Batista. U. Busse62 e D.-A. Koch63 perceberam que a
sequência desses títulos pode ter sido gerado a partir de Mc 8,27-30 parr. Acrescente-se
Mc 6,14-1664. No texto de Mc 8, os discípulos respondem à pergunta de Jesus sobre a
opinião do povo a seu respeito: alguns dizem João Batista, outros, Elias, outros, algum
dos profetas. E Pedro responde em nome do grupo dos discípulos: “Tu és o Messias”. O
Quarto Evangelho menciona este título no início da presente perícope. Evidentemente,
elimina a menção ao Batista e continua logo com os títulos de Elias e do profeta, aqui
entendido como “o Profeta” no sentido de Dt 18,18.
Outros elementos da cena introdutória de Marcos faltam em João, por exemplo, a
menção ao “ermo” como cenário da atividade de João, pois esse elemento acentuaria
demais o papel do João como profeta. Assim também a descrição de seu vestuário e
alimentação, que apontariam na mesma direção. Para o quarto evangelista, João é a
testemunha de Jesus, nada mais e nada menos.
1,24-28
A segunda subsecção nos fornece mais informação sobre o grupo mencionado no
começo, em 1,19. Há duas maneiras de interpretar a sintaxe do v. 24. Muitas vezes, ele é
traduzido: “E os enviados eram dentre os fariseus”. Mas neste caso esperar-se-ia o
artigo hoi antes de apestalménoi. Ora, o artigo falta nos manuscritos mais antigos. Ele
se encontra-se como correção secundária em alguns manuscritos (‫א‬2 Ac C3 Ws); no mais,
tem pouca atestação (K N G D Q 0234 f1.13 33 u. a. M boms). Por isso traduzimos: “Eles
tinham sido enviados da parte dos fariseus”. A preposição ek equivale então a apó.
Também em outros lugares em João, os fariseus aparecem como o grupo hegemônico
em Jerusalém, certamente sob influência da época da redação do Quarto Evangelho,
depois de 70 d.C., quando os fariseus representavam o único grupo influente que restava
no judaísmo. Como eles eram leigos, dificilmente se imagina que os sacerdotes e levitas
mencionados no v. 19 lhes tenham obedecido.
A resposta de João à pergunta por que ele batizava não indica, de imediato, o
sentido de sua atividade, mas a liga a Cristo. Enquanto ele, o Batista, batiza com água,
está no meio dos judeus, na margem do rio Jordão, um que vem depois dele e do qual
ele não é digno de desatar a sandália. Esperar-se-ia aqui uma palavra sobre o Espírito
Santo que Jesus deve conceder, mas esta palavra só é citada na cena seguinte, no v. 33.
Aqui, nos vv. 24-28, o assunto é a dignidade de Jesus, inclusive em comparação com o
Batista. O fato de os judeus não o reconhecerem é interpretado por meio do tema do
Messias desconhecido (v. 26). No fim da perícope vem, a indicação do lugar, retroativa
e bem no estilo de João; não convém atribuí-lo a outra mão que a sua65. [Pela menção a
Betânia em 1,28]* o relato da vida pública de Jesus constitui uma inclusio com a
Betânia de Jerusalém em 11,1, e a fórmula “no outro lado do Jordão” remete
antecipadamente a Jo 10,40-4266.
A pergunta pela origem de Jo 1,24-28 leva à conclusão de que o trecho é
fortemente marcado pela mão do evangelista. A distinção terminológica entre “os
62
U. BUSSE, Das Eröffnungszeugnis, 39.
D.-A. KOCH, Der Täufer, 1972.
64
Cf. E. D. FREED, Jn 1,19-27: 1947s.
65
Cf. G. VAN BELLE, Les parenthèses; C. J. BJERKELUND, Tauta egeneto.
66
As tentativas de localizar a Betânia de 1,28 até hoje não deram certo. Desde o tempo de orígenes
encontram-se também as variante textuais Betabara e Betaraba. Cf. recentemente D. EARL, ʽ(Bethany)
Beyond the Jordan’; J. M. HUTTON, “Bethany beyond the Jordan”.
63
Beutler B -44
judeus” no v. 19 e “os fariseus” no v. 24 não aponta para fontes diversas, mas explica-se
pelo uso linguístico do quarto evangelista, que também em outros lugares parece usar os
dois termos como sinônimos67. A resposta do Batista no v. 26 corresponde a Mc 1,8. O
quarto evangelista, porém, suprime o anuncio do Batista a respeito do mais forte que
ele, que há de vir depois dele, porque aqui isso exprimiria apenas uma diferença
quantitativa entre ele e Jesus. Para o quarto evangelista, isso não seria suficiente. Assim
falta neste lugar a segunda metade da palavra do Batista, o anúncio daquele que batiza
com o Espírito Santo. O quarto evangelista traz esta palavra no v. 33, relacionando-a
com a descida do Espírito Santo sobre Jesus. Nos vv. 24-28, é a figura do Batista que
está no primeiro plano. Jesus vem depois do Batista, mas tem dignidade maior do que
ele. Isso é expresso com uma palavra colhida de Marcos: o Batista não é digno de
desatar a correia da sandália de Jesus. Esta palavra encontra-se em Mc 1,7 par. e
também em At 13,25, como aponta É. Trocmé68. Isso pode ser um indício interessante
para a origem histórico-traditiva deste tema em João. O tema do Messias desconhecido
é ao mesmo tempo tradicional e joanino: o mundo e os que lhe pertencem não
reconhecem Jesus, a luz verdadeira (assim já em Jo 1,10-11).
O testemunho direto de João acerca de Jesus (1,29-34)
Os versículos seguintes poderiam ser intitulados “o testemunho de João acerca de
Jesus”, mas isso não se recomenda, pois, como vimos, também os vv. 19-28 já tratavam
de um testemunho de João em favor de Jesus, ainda que de forma indireta. O batista
negou ser o Messias ou, de alguma maneira, um “precursor” do Messias. A nova cena
começa, no v. 29, com uma indicação do tempo (“na manhã seguinte”) e termina no v.
34, antes da nova indicação da manhã seguinte no v. 35.
Nos vv. 29-34, o Batista vê Jesus vindo em sua direção e o aponta com as
palavras: “Eis o Cordeiro de Deus”. Na sequência, o Batista dá testemunho de sua
própria experiência espiritual, quando viu o espírito descer sobre Jesus e permanecer
sobre ele. A cena se encerra com um testemunho sobre Jesus que corresponde
perfeitamente ao credo da comunidade joanina.
Segundo critérios de linguagem e de conteúdo, a cena de vv. 19-34 pode ser
subdividia em duas, como faz a edição do texto de Nestle-Aland. A segunda subdivisão
é emoldurada pelo tema do “testemunhar” nos vv. 32 e 34 (martyreîn). O Batista dá
testemunho de uma visão e de uma audição que lhe ocorreram no seu primeiro encontro
com Jesus. Este primeiro encontro está descrito nos vv. 29-31. No meio e no fim das
declarações do João Batista, nos vv. 29-31 e 42-34, aparece uma identificação: houtós
estin (v. 30 e v. 34): “Este é de quem eu disse ...”, “Este é o Filho de Deus”.
1,29-31
Os vv. 29-31 podem ser intitulados “O Cordeiro de Deus”. A secção começa, no
v. 29, com a indicação temporal “na manhã seguinte”, início de uma nova cena. Pode-se
supor que os ouvintes de João não são mais a delegação de Jerusalém. São as multidões
populares que vieram até o Jordão para ouvir João e se fazer batizar por ele. “Ele viu ...
e disse: Eis...” é uma fórmula bíblica, como mostra R. E. Brown (ad locum, e cf. 1,47).
O “vir” de Jesus pode ter um sentido mais profundo (o “vir” daquele que há de vir, cf.
67
Cf. a referência a Jo 9 em D.-A. KOCH, Der Täufer, 1972s.
Cf. E. TROCMÉ, Jean et les Synoptiques. Segundo ele, o adjetivo a;xioj no sentido de “digno” só se
encontra em Jo 1,27 e At 13,25, contra i``kano,j em Mc 1,7, par. Mt 3,11; Lc 3,16.
68
Beutler B -45
1,9; 4,35s.). Mas qual é o sentido da palavra “Eis o Cordeiro de Deus”? Com R. E.
Brown podemos distinguir três significações principais:
– um cordeiro apocalíptico, como mencionado em textos apocalípticos contemporâneos
(Test.Jos. 19,8; Hen.Aeth. 90,38 etc.): uma figura escatológica e messiânica do tempo
final. Tal interpretação é preferida, sobretudo, por autores que procuram salvar a palavra
sobre o cordeiro como dito histórico do Batista;
– o cordeiro pascal, por causa da importância da Páscoa durante a vida e a paixão de
Jesus segundo João (assim C. K. Barrett);
– o cordeiro mencionado no quarto cântico do Servo de Deus (Is 53,7), que diante dos
tosquiadores não abre a boca e que simboliza o próprio Servo. Esta interpretação se
recomenda por causa da importância do Servo de Deus para o quarto evangelista,
sobretudo em Jo 12,20-4369. Combina bem com esta interpretação o tema da expiação
do pecado, visto que, no quarto cântico, o Servo este toma sobre si a culpa de muitos
(referência alegada por R. E. Brown, que acolhe esta interpretação). Quando se assume
esta interpretação, fica mais compreensível a lição “este é o eleito de Deus” no v. 34 (cf.
adiante).
Diferentemente do texto de Isaías, Jesus, o cordeiro verdadeiro, não leva os
pecados [plural]*, mas o pecado do mundo. O singular, escolhido pelo evangelista João,
corresponde ao de Paulo. O quarto evangelista prefere este modo de falar, porque, no
fim das contas, só há um pecado, a incredulidade, que consiste em não acreditar em
Jesus e sua missão (cf. Jo 16,9). Este é “o pecado do mundo”70.
O v. 30 se liga ao anterior pelo termo “vir”. Segundo o v. 29, João viu Jesus
“vindo” e deu seu testemunho sobre sua obra salvadora. Agora se interpreta o “vir” de
Jesus no sentido da precedência de Jesus em relação ao Batista. O versículo é
semelhante a 1,15. Em 1,15 parece pressuposto o v. 30, mas no v. 30 pressupõe-se a
referência a um testemunho anterior do Batista quanto à precedência temporal de Jesus
em relação a ele. O enigma pode se resolver pela hipótese de que as tradições sobre
João Batista já pertenciam à tradição oral da comunidade joanina71.
Quando o Batista, no v. 31, afirma que ele não conheceu Jesus antes de eles se
encontrarem, ele retoma o motivo do messias desconhecido do v. 26. A única tarefa de
João consiste em tornar Jesus conhecido. Mesmo sua atividade como batizador não teria
outra finalidade senão á de tornar Jesus conhecido ao povo de Israel. Compreensão
semelhante já se encontrava nos vv. 24-27, nos quais o Batista, interrogado quanto ao
sentido de sua atividade batismal, respondeu com uma palavra a respeito de Jesus que
devia vir e cuja sandália ele não era digno de desatar. O tema do batizar “com água”
fornece um elemento linguístico que une as duas secções.
1,32-34
Os últimos três versículos da secção poderiam ser intitulados “O Filho (ou o
Eleito) de Deus”. Deixamos para depois o problema textual-crítico de qual dos dois
títulos cristológicos deve ser escolhido. Em comparação com os versículos anteriores, o
testemunho do Batista torna-se, aqui, mais concreto. Retoma-se a palavra acerca dos
dois batismos, o do Batista, com água, e o que Jesus proporcionará, com Espírito Santo.
69
Cf. J. BEUTLER, Griechen.
A conexão com o Servo do Senhor é vista por D. RUSAM, Das “Lamm Gottes”, e D. SCHWIND, “Seht
das Lamm Gottes”. Segundo ambos, o Servo do Senhor leva/tira o pecado do mundo enquanto ele envia o
Espírito. O termo “Cordeiro de Deus” deve portanto ser lido no contexto joanino de 1,29-34.
71
Cf. E. TROCMÉ, Jean et les Synoptiques.
70
Beutler B -46
A condição para este batismo era a descida deste Espírito sobre Jesus. João participou
desse evento e pode, portanto, testemunhar a respeito. A imagem da pomba como
símbolo do Espírito Santo é tradicional e mostra novamente a dependência do
evangelista de tradições semelhantes.
Segundo o v. 33, retomando um motivo do v. 31, João não conhecia Jesus antes
de eles se encontrarem. Seu conhecimento a respeito de Jesus foi-lhe dado e revelado
por Deus, isto é, por aquele que o encarregara de batizar com água. Agora ele deve
anunciar ao povo um batismo novo, administrado por Jesus, um batismo com Espírito
Santo. A condição para este batismo era, como ele acentua novamente, que o Espírito
descesse sobre Jesus e permanecesse sobre ele. Notável é que, em todo este primeiro
capítulo, nunca se diz que João batizou Jesus. A escuta da voz celestial, segundo o
Quarto Evangelho, também não é relacionado com a cena do batismo como nos
sinópticos. O quarto evangelista restringe o papel do “Batista” a ser testemunha de
Jesus, à custa de nunca chamá-lo de “Batista”. Para o quarto evangelista seria mais
adequado falar em “João, a testemunha”.
Quando o Espirito Santo desce sobre Jesus e permanece sobre ele, segue-se disso
que Jesus deve ser o Filho de Deus. Embora originado na tradição, o título tem seu
fundo na experiência de fé do Batista: ele “viu”, com os olhos da fé, que Jesus é o Filho
de Deus e pode testemunhar disso.
No fim do v. 34 há um problema de crítica textual. Nestle-Aland (28ª ed.) lê, com
a maioria dos manuscritos antigos e as edições modernas, bem como os tradutores e
comentadores, ho hyiòs toû theoû, mas existe uma lição variante ho eklektòs toû theoû
(‫ *א‬b e ff2 sys.c). Esta variante tem menor atestação, mas merece atenção72. Não há
grande diferença quanto ao sentido. Ambos os títulos parecem apontar para o Servo de
Deus, pelo menos, se se supõe por trás do texto joaneu a cena do batismo de Jesus
segundo os sinópticos (Mc 1,11 par.), onde, de acordo com Is 42,1, se lê sy eî ho hyiós
mou ho agapētós, en soì eudókēsa (cf. Is 42,1 LXX; Iakwb o` pai/j mou( avntilh,myomai
auvtou/\ Israhl o` evklekto,j mou( prosede,xato auvto.n h` yuch, mou..). Se não for original, o
termo eklektós pode ter entrado no texto exatamente por causa da proximidade do texto
de Isaías. Objetivamente é importante que, em todo o caso, a confissão cristológica do
Batista é influenciada pela figura do Servo de Deus. No decorrer do Evangelho segundo
João encontraremos repetidamente esta cristologia73.
III
A secção introdutória do Evangelho segundo João, depois do Prólogo, está sob o
signo do “testemunho”. Para leitoras e leitores de hoje abrem-se, a partir daqui,
perspectiva importantes.
Em primeiro lugar, lembra-se ao público leitor que sua fé repousa sobre um
fundamento firme. Para o quarto evangelista, João Batista é testemunha de Jesus,
testemunha de sua origem e missão divinas. Assim o Batista representa outras
testemunhas de Jesus, como se mostrará ao longo o evangelho. A corrente se estende
desde o Discípulo Amado e autor do Evangelho (Jo 21,24) até o círculo inteiro dos
discípulos (Jo 15,26s.). A mensagem do evangelho é fidedigna.
72
Esta lição é preferida novamente por T.-M. QUEK, A Text-Critical Study; cf. L. MORRIS 134. T. FLINK,
“Son and Chosen” defende a – igualmente fracamente atestada – lição (P 75* [a] ff2c sa) evklekto.j ui`o,j.
73
Cf. em relação a isso J. BEUTLER, Griechen
Beutler B -47
Na medida em que vivem seu discipulado, as leitoras e leitores são integrados
nesta fileira de testemunhas. Não basta que tenham condições e disposição para falar de
sua fé, eles devem também testemunhá-la, isto é, falar dela de tal modo que eles
mesmos estejam por trás.
Isso, então, conduz à confissão de fé. Assim como de João se disse: “Ele
confessou e não negou, ele confessou ...” (Jo 1,20), também eles devem sentir-se
chamados a confessar. E como, no caso de João, isso aconteceu diante de uma
delegação crítica, também as leitoras e leitores de hoje devem confessar sua fé diante de
um foro que nem sempre se mostra simpático e aberto à fé cristã. Nisso pode consistir a
atualidade da secção aqui tratada.
Beutler B -48
3. A vocação dos primeiros discípulos (1,35-51)
35
Na manhã seguinte, João estava lá, de novo, com dois dos seus discípulos.
Contemplando Jesus que andava em redor, disse: “Eis o Cordeiro de Deus”! 37 Os
dois discípulos ouviram esta declaração de João e passaram a seguir Jesus. 38 Jesus
voltou-se para trás e, vendo que eles o seguiam, perguntou-lhes: “Que procurais?”
Eles responderam: “Rabi (que quer dizer Mestre), onde moras?” 39 Ele respondeu:
“Vinde e vereis”! Eles foram e viram onde morava; e permaneceram com ele aquele
dia. Era por volta da hora décima. 40 André, irmão de Simão Pedro, era um dos dois
que tinham ouvido a declaração de João e seguido Jesus. 41 Ele foi encontrar primeiro
o próprio irmão, Simão, e lhe falou: “Encontramos o Messias (que quer dizer
Cristo)!”. 42 Então, conduziu-o até Jesus. Olhando para ele, Jesus lhe disse: “Tu és
Simão, filho de João. Tu te chamarás Cefas (que quer dizer Pedro)!”.
36
43
Na manhã seguinte, Jesus quis partir para a Galileia, encontrou Filipe e disselhe: “Segue-me”! (44 Filipe era de Betsaida, a cidade de André e de Pedro.) 45 Filipe foi
encontrar Natanael e disse-lhe: “Encontramos Jesus, o filho de José, de Nazaré, aquele
sobre quem escreveram Moisés, na Lei, e os Profetas”. 46 Natanael perguntou: “De
Nazaré pode vir algo de bom?” Filipe respondeu: “Vem e vê”! 47 Jesus viu Natanael
vindo a ele e disse a seu respeito: “Eis, verdadeiramente, um israelita em quem não há
falsidade!” 48 Natanael disse-lhe: “De onde me conheces?” Jesus respondeu: “Antes
que Filipe te chamasse, quando estavas debaixo da figueira, eu te vi”. 49 Natanael
exclamou: “Rabi, tu és o Filho de Deus, tu és o Rei de Israel!” 50 Jesus respondeu-lhe:
“Estás crendo só porque falei que te vi debaixo da figueira? Coisas maiores que estas
verás”. 51 E disse-lhe ainda: “Amém, amém, digo-vos: vereis o céu aberto e os anjos de
Deus subindo e descendo sobre o Filho do Homem!”
I
Depois do testemunho de João Batista acerca de Jesus (Jo 1,19-34) segue outro,
em que o próprio Jesus aparece como protagonista. É o relato das primeiras vocações de
discípulos (Jo 1,35-51). A figura de João aparece ainda nos três primeiros versículos,
mas, depois, se retira para o segundo plano. Depois que João concluiu seu testemunho e
levou os primeiros discípulos até Jesus, sua tarefa terminou. Como a secção anterior,
também esta é subdividida em duas partes pela indicação temporal “na manhã seguinte”
(Jo 1,35.43, cf. 1,29). Assim se distinguem duas subsecções: a vocação dos primeiros
três discípulos (1,35-42) e a vocação de mais dois (1,43-51).
II
A vocação dos primeiros três discípulos (1,35-42)
Sob muitos aspectos, a subsecção 1,35-42 pode ser dividida em duas cenas: os vv.
35-39 e 40-42. A primeira cena é emoldurada por duas indicações temporais: “na manhã
seguinte” (v. 35) e “por volta da hora décima” (v. 39). Os personagens da ação são João,
dois discípulos ainda não identificados e Jesus. A segunda cena começa com a
identificação de um dos discípulos que encontraram Jesus: André. Este encontra seu
irmão Simão (Pedro), o leva a Jesus e aponta este como Messias. Jesus se dirige a
Simão e lhe dá um novo nome.
Quanto à sequência das duas secções 1,35-42 e 1,51-53, notam-se diversas
semelhanças entre elas: uma pessoa encontra Jesus e apresenta a ele uma ou duas outras.
Assim, João Batista indica Jesus, que ele mesmo havia encontrado anteriormente, a dois
Beutler B -49
discípulos. André, um dos dois, encontra o próprio irmão e apresenta-lhe Jesus como
Messias. Na sequência, aquele que encontrou Jesus leva um ou diversos outros a Jesus.
Jesus fita as pessoas que lhe são apresentadas e dirige-se a elas com uma pergunta e um
convite ou presságio relativo a tal pessoa (“Tu te chamarás Cefas”).
Na subsecção 1,35-42 ocorrem diversos verbos característicos para a sequência
inteira até o v. 51: “ver” ou “contemplar” (vv. 36.38.39[bis].42), encontrar (v. 41, cf.
43[bis].45) e “permanecer” (vv. 38-39).
A crítica literária antiga distinguia na inteira secção 1,35-51 entre a “fonte dos
sēmeîa” e sua reelaboração pela mão do evangelista, que seria responsável pelos
versículos 43 e, em parte, 35s. e 51, que são um pouco diferentes quanto à forma da
vocação74. Tais tentativas são hoje, em geral, abandonadas. Neste respeito, deve-se
observar a possível dependência de João em relação aos evangelhos sinópticos75.
Quanto a isso devem ser examinadas as cenas de vocação dos três primeiros evangelhos
(Mc 1,16-20 parr.; 3,13-19 parr.; Lc 5,1-11; cf. Mt 16,16-19). A influência dessas cenas
no nosso texto é inegável, apesar das diferenças evidentes, entre as quais: a estrutura
diferente da vocação (exceto a de Filipe, no v. 43) e o fato de que Pedro, nos sinópticos,
só recebe seu novo nome no auge da atividade pública de Jesus.
Na exegese recente, examina-se a secção das vocações dos discípulos mais em
perspectiva narrativa e teológica. K. Scholtissek76, entre outros, vê na sequência dos
títulos cristológicos em Jo 1,35-51 uma introdução mistagógica ao mistério de Jesus,
tanto para os catecúmenos como para os já crentes. Há um aprofundamento da fé em
Jesus. Começando com o “Cordeiro de Deus” (v. 36), encontramos as designações
“Rabi” e “Mestre” (v. 39), “Messias” (v. 41), “aquele sobre quem escreveram Moisés,
na Lei, e os Profetas” (v. 45), “o Filho de Deus, o Rei de Israel” (v. 49) e “o Filho do
Homem” (v. 51). Junto com os discípulos, as leitoras e leitores são assim introduzidos,
passo a passo, no mistério de Jesus.
Do ponto de vista narrativo, descobre-se nesta secção mais claramente o convite
ao discipulado77. A iniciativa vem de João Batista, o qual, com seu testemunho,
apresenta Jesus a dois discípulos com as palavras: “Eis o cordeiro de Deus”. Os
discípulos tomam então a inciativa e conduzem outras pessoas a Jesus: André leva até
ele seu irmão Simão Pedro; Filipe leva seu amigo Natanael. Há uma exceção: no v. 43,
Jesus se dirige imediatamente a Filipe. Contudo, apesar de diferença na forma literária,
este versículo não pode ser separada do contexto. A forma diferente pode ser explicada
por duas razões: a retomada de uma tradição que se aproxima mais dos sinópticos (com
a sequência “viu/encontrou” – “disse: Segue-me”), e/ou a intenção do quarto evangelista
de destacar Filipe como apóstolo especialmente estimado na comunidade joanina (cf.
6,5.7; 12,22; 14,8s.).
1,35-37
Até agora João Batista só falou como testemunha de Jesus no sentido geral. Agora
é narrado como ele “contempla” Jesus caminhando por aí e dirige para ele a atenção de
74
Assim, continuando o modelo de R. Bultmann, J. BECKER no seu comentário (ad loc.);
semelhantemente H.-J. KUHN, Christologie und Wunder. Este distingue em Jo 1,35-51a figura de Jesus
como taumaturgo e profeta que tem o dom de conhecer os corações (vv. 47s.) e sua figura como Messias
(assim proclamado nos vv. 41 e 49). M. THEOBALD, 50 defende a Semeiaquelle por trás de 1,19-28.35-50.
75
Como percebe também por H.-J. KUHN, loco citato.
76
K. SCHOLTISSEK, Rabbi; semelhantemente A. MEYER, Kommt und seht.
77
Neste sentido G. FISCHER – M. HASITSCHKA, Sulla tua parola.
Beutler B -50
dois dos seus discípulos, com as palavras: “Eis o Cordeiro de Deus”. Já explicamos,
acima, o significado dessa designação (cf. v. 29). Em vez de procurar um significado
histórico (por exemplo, como sendo uma tradução errônea do termo aramaico ambíguo
talya, que pode significar “cordeiro” ou “servo”), preferimos ver neste termo uma
condensação da soteriologia joanina. O batista apresenta Jesus a seus discípulos não em
primeira linha como Messias, mas como Salvador, o qual salvará o mundo por sua
missão que o levará morte na cruz. Os dois discípulos “ouvem” esta mensagem e a
acatam: “seguem” a Jesus. Observa-se muitas vezes que este verbo é entendido, aqui,
num sentido primeiramente literal, como “ir após alguém” – neste caso, para conhecer
Jesus.
1,38-39
Esta interpretação se sustenta também a partir do v. 38: Jesus se volta e vê os dois
discípulos de João seguindo-o. Então pergunta: “Que procurais?”. O “ver” corresponde
aos relatos de vocação nos sinópticos (cf. Mc 1,16.19 parr.; 2,14). Já a pergunta “Que
procurais?” não se encontra em tais textos. É possível ver nesta pergunta de Jesus toda
uma teologia do chamado à fé: o encontro com Jesus não leva à aceitação de uma
mensagem alheia ao ser humano, inculcada nele de fora, mas à saciação da mais própria
nostalgia do homem78. Também a resposta dos dois discípulos é bem característica de
João: o verbo “permanecer” (ménein) é um termo preferencial de João. Já o
encontramos na cena da visão e da audição do Batista junto ao Jordão: ele “vê” o
Espírito descer sobre Jesus e “permanecer” sobre ele (Jo 1,32s.). Em 1,38, o termo
significa “morar”. Isso faz pensar no Prólogo: “E a Palavra se fez carne e habitou entre
nós” (Jo 1,14). Jesus respondeu à pergunta dos discípulos não simplesmente com uma
informação, mas com um convite: “Vinde e vede”. O narrador retoma estes dois verbos
para descrever a reação dos dois discípulos: “Eles foram e viram...”. Logo depois, ele
retoma o tema do “permanecer”: eles viram “onde morava [= permanecia]*; e
permaneceram com ele aquele dia”. O movimento narrativo se desloca do
“morar/permanecer” de Jesus para o “permanecer” dos discípulos. Com os olhos fitos
em Jesus, os discípulos participam da experiência da comunidade cristã de João:
“habitou entre nós, e nós contemplamos a sua glória, glória como do unigênito do Pai,
pleno de graça e de verdade” (Jo 1,14). A indicação do tempo “Era por volta da hora
décima” aponta em diversas direções. No Evangelho segundo João, momentos
importantes na vida e na paixão de Jesus são registrados hora por hora. Para os
discípulos, esta hora décima significou o ponto de virada decisivo na vida deles.
1,40-42
As vocações em Jo 1,35-51 são como uma avalanche amontoando sempre mais
neve. Pode-se pensar também numa corrida de estafetas, em que cada atleta passa o
bastão ao seguinte. Assim, André, um dos dois primeiros chamados, encontra seu irmão,
Simão, e lhe diz: “Encontramos o Cristo! (que quer dizer Messias)”, e o leva até Jesus.
Em torno desta cena surgem muitas perguntas. A primeira, muito comentada, diz
respeito ao “outro discípulo” chamado por Jesus, segundo Jo 1,40s. Para a tradição
eclesiástica, ele foi João, o irmão de Tiago. O argumento principal é a tradição paralela
dos sinópticos (Mc 1,16-20 parr.), segundo a qual João [filho de Zebedeu]* estava entre
os quatro que Jesus chamou com seus primeiros discípulos, ao lado de seu irmão Tiago
(não mencionado em Jo 1) e o par de irmãos, André e Pedro. Como a tradição eclesial
78
Cf. na secção seguinte a referência a J. PAINTER, The Quest.
Beutler B -51
identifica o apóstolo João com o Discípulo Amado, parece natural identificar o “outro
discípulo” com João; em tempos recentes, porém, tal identificação tem sido
questionada. Do ponto de vista metódico, parece que se deve questionar a interpretação
do Evangelho segundo João a partir de Marcos. Gramaticalmente, deve-se distinguir
entre “um discípulo” e “o discípulo”. Isso vale sobretudo para o discípulo mencionado
no relato da Paixão (Jo 18,15), no qual muitos veem o Discípulo Amado. Em Jo 1,40 a
identidade do “outro discípulo” não parece ter significação particular79.
Outro tema hoje interessante é o fato de que os primeiros chamados de Jesus eram
irmãos. Especialmente em João aparece uma conexão evidente ente parentesco, amizade
e discipulado80.
Os vv. 40-41 mencionam uma dupla identificação: André chama a Jesus “o
Messias, o Cristo”, e Jesus chama a Simão “Cefas, Pedro”. A primeira identificação
causa admiração neste lugar da narrativa. O público leitor se pergunta como André,
depois de seu primeiro encontro de poucas horas, pôde concluir que Jesus é o Messias,
ainda antes de seus primeiros “sinais”. O problema se resolve quando se leva em conta a
perspectiva pós-pascal de João, que pressupõe e sintetiza uma longa evolução até a
confissão de fé formulada por André. Neste respeito, o Quarto Evangelho distingue-se
claramente dos três primeiros, segundo os quais Pedro chega a confessar Jesus como
Messias somente no fim da atividade pública (Mc 8,27-30). Segundo Mateus é neste
momento que Simão recebe seu novo nome (cf. Mt 16,17-19); em Marcos, o apelido
“Pedro” aparece somente no relato da vocação dos Doze (Mc 3,16s.). Pode-se aceitar
seguramente a influência da tradição sinóptica sobre Jo 1,42.
Existe uma diferença notável entre a cena de Jo 1,40-42 e os paralelos sinópticos.
Nestes, o novo nome de Simão vem unido a uma nova missão (sobretudo em Mt 16,1719; e em Lc 5,1-11, onde o novo nome é ligado à nova missão de Pedro de ser pescador
de homens; cf. tb. Jo 21,1-17). Em Jo 1,40-42, a designação de Simão como “Cefas,
Pedro” corresponde à de Jesus como Messias. Nos dois casos, isso se refere à pessoa,
não à obra. Ao acolher o anúncio de quem é Jesus, o próprio Pedro recebe sua nova
identidade. Esse modo de ver corresponde ao de Jo 1,35-39: estar com Jesus e ver onde
ele mora precede qualquer empenho a serviço dele. Um paralelo a este modo de ver se
encontra já em Mc 3,14s.: “E ele instituiu doze para que estivessem com ele e para que
os enviasse a anunciar e a expulsar demônios com autoridade”. Não se exclui que exista
conexão literária entre os dois textos.
A vocação de mais dois discípulos (1,43-51)
A secção que agora se segue é destacada da anterior pela fórmula introdutória “na
manhã seguinte”. Fórmula semelhante encontra-se em 2,1 (“No terceiro dia”). Por isso
podemos considerar 1,43-51 como unidade textual autônoma. Esta impressão se
corrobora ao olharmos os personagens (discípulos novos, Jesus) e a ação mesma: tratase de novos primeiros encontros de futuros discípulos com Jesus.
Com base no conteúdo e na forma (o “encontrar” mais outro discípulo), podem-se
distinguir os vv. 43-44 e 45-51. Jesus encontra Filipe e este, Natanael, apresentando-o
depois a Jesus. A última palavra de Jesus, no v. 51, rompe o quadro de uma cena de
diálogo e abre o horizonte para um círculo de ouvintes mais amplo (em última instância,
a comunidade leitora), mediante o uso do plural: “Vereis”.
79
80
Cf. NEIRYNCK, The Anonymous Disciple.
Cf. A. DESTRO; M. PESCE, Kinship, Discipleship, and Movement.
Beutler B -52
Quanto à forma, o chamamento de Filipe no v. 43 se distingue dos outros
encontros de discípulos com Jesus em Jo 1,35-51. Não um discípulo (cf. vv. 41.45), mas
Jesus mesmo “encontra” o novo discípulo. Não há outra caracterização de Jesus. Ele
fala com plena autoridade e chama Filipe para o seguimento. Não se diz como Filipe
reage ao chamado, mas isso pode concluir-se de seu comportamento: ele anuncia a
Natanael que ele encontrou aquele sobre o qual escreveram Moisés e os profetas (v. 45).
O primeiro encontro de Natanael com Jesus segue o mesmo esquema que se pode
observar nos vv. 35-42: um dos dois discípulos “encontra” seu irmão Simão, diz a ele
que encontrou o Messias e o leva a Jesus. De modo igual, Filipe, depois de seu
chamamento, diz a Natanael que ele “encontrou” aquele de quem escreveram Moisés e
os profetas e, depois de ter vencido o ceticismo de Natanael, o leva até Jesus.
Para esclarecer a diferença entre ambas as formas de chamamento ou de “primeiro
encontro com Jesus”, os estudiosos propõem essencialmente dois modelos. Segundo J.
L. Martyn81, João teria retrabalhado o v. 43. Este, em sua forma original, teria possuído
a forma de “um discípulo encontra outro”. Em 1,41 se diz que André encontrou
“primeiro” seu irmão Simão; esperar-se-ia que, depois, André encontrasse outro. Em
vez disso, o evangelista apresentou Jesus encontrando Filipe. Martyn vê sua hipótese
confirmada nisto, que se explicaria mais facilmente que André quisesse voltar á Galileia
do que Jesus partir para essa parte da terra de Israel.
J. Painter82 prefere, com a maioria dos autores, o outro modelo. No v. 43 teríamos
um “relato de vocação” na forma que se aproxima da que encontramos nos sinópticos
(Mc 1,16-20 parr.; 2,14; 3,13-19 parr.; Lc 5,1-11). Sob a influência da escola de
Lovaina, número crescente de pesquisadores conta, hoje, com a influência direta dos
evangelhos sinópticos no Quarto Evangelho. João teria reelaborada principalmente Mc
1,16-20 e teria dado a estes relatos de vocação uma forma nova, a de “histórias de
busca” (“quest stories”). Tais histórias seguem o seguinte esquema: uma pessoa busca
alguém ou algo e o “encontra”, e então segue uma palavra final do protagonista
principal.
1,43-44
O breve relato da vocação de Filipe destaca-se em relação ao contexto pelo modo
como começa: “NN. encontrou um discípulo nominalmente mencionado e disse-lhe”. Já
no v. 41 notamos este esquema. No início do v. 43 está uma indicação temporal que
destaca as duas últimas vocações de discípulos das anteriores – talvez em função do
esquema de sete dias que vai até Jo 2,1. A intenção de Jesus de partir para a Galileia e a
palavra de vocação que ele dirige a Filipe mostram que é ele quem age. Nisso, a
soberania de Jesus fica tão salientada que uma descrição da reação de Filipe ao chamado
de Jesus pode ser dispensada. Na realidade, qual foi sua reação pode-se deduzir dos
versículos seguintes.
O narrador informa, num comentário analéptico, que Filipe vem de Betsaida, a
cidade de André e de Pedro. A menção à origem de Filipe se encontra repetida em
12,21. Ali se trata da vinda dos gregos a Jesus e do fato de Filipe ser o intermediário.
Isto pode ter sido importante para João, já que Betsaida se encontrava no lado oriental
da foz do Jordão no lago de Genesaré; a cidadezinha pertencia à área de Herodes Filipe
e conhecia forte influência helenista. Isso certamente era significativo para o público
81
J. L. MARTYN, The Gospel of John in Christian History, 29-54, representado de modo extenso em J.
PAINTER, Quest, 145-148.
82
J. PAINTER, loco citato.
Beutler B -53
leitor de João. Além disso, os nomes de Pedro e André são gregos. André colabora na
cena de Jo 12,21-36. Nos sinópticos, Betsaida aparece em Mc 6,45; 8,22; Lc 9,19; 10,14
par. Mt 11,21, sem menção a discípulos chamados por Jesus.
1,45-46
Os versículos finais do capítulo, que contam como Natanael é chamado à fé,
podem ser divididos no diálogo de Filipe e Natanael (vv. 45-46) e o de Jesus e Natanael
(vv.47-51). Este último diálogo se deixa dividir no caminho de Natanael à fé (vv. 47-49)
e a palavra final de Jesus, v. 51, preparada pelo v. 50. Encontra-se, nesta parte, uma
série de enunciados cristológicos, de forma cumulativa, preparando o auge que é a
palavra sobre o Filho do Homem no v. 51. Jesus é “aquele sobre quem escreveram
Moisés, na Lei, e os Profetas” (v. 45), é chamado de “Rabi” e, depois, reconhecido
como “Filho de Deus, Rei de Israel” (v. 49). O ápice e ponto final é a autodesignação de
Jesus como “Filho do Homem” (v. 51).
Inicialmente prepara-se o encontro de Natanael com Jesus. Adota o esquema do v.
41, que foi modificado no v. 43. Filipe “encontra” Natanael e lhe anuncia que ele e seus
companheiros “encontraram” aquele de quem escreveram Moisés, na Lei, e os profetas.
Está presente aqui a visão joanina de que não apenas esta ou aquela passagem da
Escritura aponta para Jesus, mas a inteira Escritura de Israel, quando bem entendida, dá
testemunho de Jesus (cf. Jo 5,39)83. Moisés escreveu a respeito dele (Jo 5,46). Se os
dois discípulos no sepulcro tivessem compreendido as Escrituras, não teriam procurado
o entre os mortos aquele que vive (Jo 20,9).
Para Natanael, o escândalo consiste nisto, que o protagonista do tempo final,
esperado por Israel, vem de Nazaré, lugar totalmente insignificante em perspectiva
bíblica e aparentemente mal afamado, pois Natanael pergunta: “De Nazaré pode sair
alguma coisa boa?”. Contra um argumento desses, nada como a experiência do encontro
pessoal, que afasta o preconceito: “Vem e vê” – eco do “Vinde e vede” do v. 39.
1,47-49
Os vv. 47-51 consistem num diálogo entre Jesus e Natanael, em que duas vezes
uma palavra de Jesus é seguida por uma de Natanael, antes que Jesus encerre o diálogo.
Por causa do tema, os vv. 50-51 se deixam distinguir como uma breve subsecção.
Filipe disse a Natanael: “Vem e vê” (v. 46). Natanael vem até Jesus, mas, antes de
ele “ver” quem é Jesus, este é quem o “vê” chegar. A cena lembra o encontro dos
primeiros discípulos com Jesus segundo os vv. 35s., quando João Batista vê Jesus
chegando e aponta para ele. Encontramos aqui a mesma injunção: “Vê!” (íde). Jesus
tem uma visão definida de Natanael e a expressa. Natanael é um “verdadeiro israelita,
em quem não há falsidade”. A expressão de Jesus se insere numa série de textos nos
quais aparece, em João, uma valorização positiva de Israel. A estes pertence também a
palavra final de Natanael: “Tu és o rei de Israel” (v. 49) – que se repete em 12,13.
Textos semelhantes que mencionam o termo “Israel” são 1,31 e 3,10. Ajudam para
situar melhor a frequente utilização crítica da expressão “os judeus” em João, pois estes
são os membros e lideres do povo judeu que recusam a fé, mas não “Israel”84.
83
Vgl. J. BEUTLER, Der Gebrauch von “Schrift”; M. J. J. Menken, Old Testament Quotations;
PÄPSTLICHE BIBELKOMMISSION, Israel und seine Heilige Schrift; M. LABAHN, Jesus und die Autorität der
Schrift.
84
Vgl. J. BEUTLER, The Identity.
Beutler B -54
Assim como Natanael reage à palavra de Filipe com uma pergunta cética, ele
reage de modo cético à palavra elogiosa de Jesus (v. 48). O narrador valoriza
positivamente essa atitude crítica, como mostra a palavra elogiosa de Jesus. Natanael
não podia entender que Jesus possuía o conhecimento dos corações. Jesus o havia visto
debaixo da figueira antes que Filipe o chamasse. Assim, ele exibe poder supra-humano,
concedido por Deus. É isso que enseja em Natanael a exclamação: “Rabi, tu és o Filho
de Deus, tu és o Rei de Israel!” O tratamento “Rabi” insere Jesus entre os mestres de
Israel, mas o título duplo supera de muito esse nível e corresponde ao credo da
comunidade joanina. Já no primeiro encontro, Natanael alcança a visão de fé à qual os
leitores de João chegarão depois do fim do evangelho (cf. Jo 20,31). Mais claramente do
que nos versículos anteriores se mostra, aqui, que o relato das vocações dos discípulos
em Jo 1 está escrita numa perspectiva pós-pascal.
O título “Filho de Deus” tem raízes antigas na religião greco-romana e também na
oriental (cf. acima, a respeito da filiação divina, Jo 1,12). Mas não falta tradição judaica
para este tema. Significativa é a remissiva de Jesus à “Lei” em Jo 10,34-36 (no caso, ao
Sl 82,6), para legitimar sua pretensão de ser “Filho de Deus” ou até Deus mesmo. De
acordo com estudos recentes existia uma tradição judaica segundo a qual no monte
Sinai os israelitas receberam o privilégio de serem filhos de Deus e imortais, mas, pelo
pecado, perderam esse privilégio. Jesus teria então arrogado novamente para si esse
privilégio de Israel85.
A confissão de Jesus como “Rei de Israel” permanece reservada ao Evangelho
segundo João no Novo Testamento. Segundo o relato da Paixão nos sinópticos (Mc
15,32//Mt 27,42), os sumos sacerdotes, escribas e anciãos citam este título para zombar
de Jesus crucificado, desafiando-o a descer da cruz se possui essa autoridade régia. No
Quarto Evangelho (Jo 12,13), a multidão aclama Jesus por ocasião de sua entrada em
Jerusalém com este título, ausente do modelo sinóptico (Mc 11,9s. par.). A multidão,
portanto, apropria-se deste título. E Natanael, no texto aqui considerado, se mostra
precursor dessa confissão. Ao mesmo tempo, ele formula a confissão de Jesus como “o
Cristo, o Filho de Deus” na comunidade leitora de João (Jo 20,31).
No Evangelho segundo João, é preciso distinguir entre o Messias judaico, o dos
samaritanos e o cristão. Muitas vezes fala-se no Evangelho segundo João do Messias no
sentido da expectativa messiânica de Israel no tempo do Segundo Templo. Neste uso
prevalece a imagem de um Messias da casa de Judá como rei e salvador escatológico de
Israel. Para esta imagem do Messias compare-se Jo 1,19-21.25 com 1,27, onde o Batista
fala de “aquele que há de vir”; e ainda Jo 7,26.31.41-42; 9,22; 10,24; 12,34, nas
controvérsias sobre a identidade de Jesus.
Distinga-se desse Messias aquele dos samaritanos. Assim, a mulher da Samaria se
pergunta se Jesus não seria “aquele que há de vir”, com possível alusão ao Taheb, o
Messias dos samaritanos (Jo 4,29).
No sentido cristão encontramos a designação de Jesus como “Cristo” em João
quase sempre em conexão com o título “Filho de Deus”. Aqui percebemos uma
evolução progressiva desde a frase “encontramos o Messias” (Jo 1,41) até a confissão
de Natanel “Rabi, tu és o filho de Deus, tu és o Rei de Israel” (1,49). Ambos os títulos
aparecem juntos na confissão de Marta (11,27) e também no primeiro final do
Evangelho segundo João (20,31). A dignidade régia de Jesus, como já dissemos, é
85
Vgl. J. BEUTLER, “Ich habe gesagt”.
Beutler B -55
reconhecida também pelos romeiros em Jerusalém (12,13), e até mesmo por Pilatos (Jo
10,12,15-19: o letreiro da cruz). Para os cristãos, “Jesus Cristo” torna-se o nome próprio
de Jesus e a síntese de sua missão (cf. Jo 1,17; 17,3).
1,50-51
Poderíamos pensar que a confissão de Natanael “Rabi, tu és o filho de Deus, tu és
o Rei de Israel” fosse o auge das designações cristológicas de Jo 1,35-51. Mas isso não
é o caso. Jesus promete a Natanael que ele verá coisas maiores ainda do que a revelação
dos segredos de seu coração: “Vereis o céu aberto e os anjos de Deus subindo e
descendo sobre o Filho do Homem!”. Quem é este Filho do Homem?
Neste lugar alude-se aparentemente a Gn 28,12: a escada do céu, pela qual Jacó vê
os anjos de Deus subirem e descerem. Enquanto no hebraico “nela/nele” (bô) se refere à
escada, João aplica esse adjunto adverbial a Jesus. R. Schnackenburg86 distingue três
categorias de textos que falam do Filho do Homem em João:
– o Filho do Homem que vem do céu e para lá volta (Jo 3,13; 6,62);
– o Filho do Homem enaltecido (Jo 3,14; 8,28; 12,34c);
– o Filho do Homem glorificado (Jo 12,23; 13,31s.).
Com os textos do cap. 6 que falam do Filho do Homem como doador do celeste
pão da vida, nosso texto de 1,51 insere-se no primeiro grupo, que fala do Filho do
Homem que vem de Deus, permanece unido a Deus e a Deus volta.
A fonte imediata das representações joaninas do Filho do Homem encontra-se nos
evangelhos sinópticos e, ali, sobretudo nos textos que falam do sofrimento e morte
iminentes e de sua ressurreição. Além disso, mostra-se, em João, a influência dos textos
veterotestamentários que falam do “Servo de Deus” e de seu “enaltecimento” e
“glorificação” vindouros (Is 52,13 LXX). Em João, o Servo é identificado com o Filho
do Homem87.
Permanece aberta a pergunta de quando, segundo Jo 1,51, os discípulos (ou os
leitores) verão as coisas maiores e os anjos subirem e descerem sobre o Filho do
Homem. Seria natural pensar aqui no relato imediatamente subsequente, as bodas de
Caná, que, decerto, deve ser entendido como o início da revelação de Jesus em seus
sinais. De fato, neste sinal, os discípulos contemplam a gloria de Jesus, de modo que
podem chegar à fé (2,11). Esta visão de sua glória se repetirá (cf. Jo 1,14) e se
aprofundará até a percepção de sua glória no enaltecimento junto ao Pai (cf. Jo 13,31s.;
17,24).
III
No relato das vocações dos discípulos em Jo 1,35-51 reconhecemos dois modelos
da origem do discipulado segundo João. Discípulos chegam a Jesus por causa do
testemunho de outros discípulos que o encontraram primeiro. Mas há também a
soberania de Jesus, que sponte sua se dirige a alguém e o convida a segui-lo.
A livre iniciativa de Jesus se mostra na vocação de Filipe em 1,43. Por iniciativa
sua, ele “encontra” Filipe e o chama ao seguimento. Manifesta-se aqui um elemento
indispensável das vocações à fé e ao seguimento, e este elemento é pressuposto também
nos outros relatos. Também onde há mediação humana, Jesus é quem chama.
86
87
R. SCHNACKENBURG I 412.
Cf. J. BEUTLER, Greeks; ID., Griechen.
Beutler B -56
Nas outras cenas de vocação, em nossa secção, a mediação humana ocupa o
primeiro plano. João Batista encaminha os dois primeiros discípulos a Jesus; um deles,
André, encaminha seu irmão Cefas/Pedro; Filipe, depois de sua vocação, encaminha
Natanael. Os pressupostos humanos ajudam aqui para a transmissão da fé. André, o
“outro discípulo”, Pedro e Filipe vêm do mesmo lugar, Betsaida; e André e Pedro são
irmãos.
Jesus, por seu lado, leva em consideração limites e preconceitos humanos na
vocação dos primeiros discípulos. Isso se vê na vocação de Natanael. Este expressa, de
imediato, preconceitos contra um homem que vem de Nazaré, e isso se aceita. Jesus
contrapõe ao ceticismo de Natanael um julgamento positivo a respeito dele. Também o
ceticismo ulterior de Natanael, quando perguntando de onde Jesus o conhece, é
superado; e então Natanael pode formular sua confissão de fé. Assim, Natanael é levado
a sério, com todos os seus preconceitos, e isso encoraja os leitores do Quarto Evangelho
para, passo a passo, se deixar conduzir acima de seus possíveis preconceitos até a
confissão de sua fé em Jesus Cristo.
Fundamental é, no relato das vocações dos discípulos em Jo 1,35-51, a pergunta
de Jesus aos dois futuros discípulos no v. 38: “Que procurais?”. Jesus não pensa em
primeiro lugar em realizar algum projeto próprio. Ele deseja atender o desejo mais
profundo da pessoa que ele encontra e que ele quer chamar para seu seguimento.
Quando os discípulos dizem: “Mestre, onde moras/permaneces?”, ele os convida a vir
com ele e a ver seu lugar de permanência. E eles “permanecem” com ele naquele dia.
Atendendo a nostalgia de dos seus futuros discípulos Jesus lhes dá uma nova casa,
deixando-os participar de sua “permanência”. Também nisso as leitoras e leitores do
Evangelho segundo João poderão sentir-se tocados, em todos os tempos. Não se lhes
impõe uma existência nova, mas eles são convidados a experimentar, na comunidade e
com Jesus, a saciação de suas mais profundas nostalgias.
4. O primeiro sinal de Jesus em Caná (2,1-12)
2 1 E no terceiro dia, houve uma festa de casamento em Caná da Galileia, e a
mãe de Jesus estava lá. 2 Também Jesus e seus discípulos foram convidados para a
festa de casamento. 3 Quando faltou vinho, a mãe de Jesus lhe disse: “Eles não têm
vinho!” 4 Jesus lhe respondeu: “Mulher, que desejas de mim? A minha hora ainda não
chegou”. 5 Sua mãe disse aos que estavam servindo: “Fazei tudo o que ele vos disser!”
6
Estavam ali seis talhas de pedra, comportando dois ou três metretas, para os ritos
judaicos de purificação. 7 Jesus disse aos que estavam servindo: “Enchei as talhas de
água”! E eles as encheram até a borda. 8 Então disse: “Agora, tirai e levai ao
encarregado da festa”. E eles levaram. 9 O encarregado da festa provou da água
mudada em vinho, sem saber de onde viesse, embora os serventes que tiraram a água o
soubessem. Então, chamou o noivo 10 e disse-lhe: “Todo o mundo serve primeiro o
vinho bom e, quando os convidados já estão ébrios, serve o inferior. Tu guardaste o
vinho bom até agora”. 11 Este início dos sinais, Jesus o realizou em Caná da Galileia; e
manifestou sua glória, e os seus discípulos creram nele. 12 Depois disso, Jesus desceu
para Cafarnaum, com sua mãe, seus irmãos e seus discípulos, e lá permaneceram por
não muitos dias.
I
A narrativa da mudança de água em vinho nas bodas de Caná encerra a vocação
dos primeiros discípulos e, ao mesmo tempo, abre uma nova secção, que se estende, no
Beutler B -57
mínimo, até o segundo sinal de Jesus em Caná (a cura do filho do funcionário, Jo 4,4654)88. No final de Jo 1,35-51 ressoou: “Coisas maiores que estas verás ... vereis o céu
aberto e os anjos de Deus subindo e descendo sobre o Filho do Homem!” (Jo 1,50s.).
Uma primeira realização desse anúncio encontra-se, precisamente, no primeiro sinal de
Jesus como manifestação de sua glória diante de seus discípulos (2,11). Por outro lado,
este sinal inaugura, no Evangelho segundo João, uma secção inteira, que os autores
gostam de chamar “o livro dos sinais” (Jo 1–12), com a ressuscitação de Lázaro (Jo
11,1-44) como seu auge e encerramento. Prescindindo dessa função de dobradiça, nosso
texto revela também pontos de contato com algumas secções em Jo 13–21. Michèle
Morgen89 aponta os contatos entre a refeição comunitária em 2,1-11 e a última ceia de
Jesus com os seus, em Jo 13,1-30, bem como a importância de tais refeições no
judaísmo e no cristianismo antigos. Além disso, a presença da mãe de Jesus nas bodas
de Caná forma inclusão com a cena ao pé da cruz, onde a mãe está novamente presente
e Jesus a trata com o mesmo termo, “Mulher”, que parece distante, mas só em aparência
(Jo 19,25-27). Maria, cujo nome não é mencionado, é percebida em seu papel feminino
e histórico-salvífico, que transcende a individualidade. O tema da glória de Jesus aponta
de antemão para sua consumação como aquele que será glorificado na sua morta na cruz
e na ressurreição.
A narrativa da mudança de água em vinho nas bodas de Caná se tornou, mais que
outros textos em João, objeto de pesquisa e hipótese. Até recentemente discutiram-se
problemas literário-críticos, de modo especial quanto ao diálogo, de difícil
compreensão, entre Jesus e sua mãe, nos vv. 3-4, cuja aporia se procurou resolver pela
distinção de fontes e camadas. Controvertido é também o fundo histórico-religioso da
narrativa: deve ser procurado principalmente na Bíblia (o simbolismo das núpcias de
Deus com seu povo e a refeição sagrada) ou no ambiente greco-helenista (o paralelo do
milagroso fornecimento de vinho do deus Dioniso)? Tais perguntas serão tratadas num
excurso adiante.
Independentemente de sua pré-história, nosso texto como está aí recebe diversas
explicações. Para alguns autores, o relato do milagre do vinho em Caná tem, antes de
tudo, um sentido cristológico. Outros propõem um sentido mariano, outros, ao menos
ou também, um sentido feminista. O que preferir? Tratando dessas questões, faz sentido
partir do exame semântico do próprio texto. Podem-se distinguir quatro campos
semânticos que dão corpo ao texto: as núpcias e sua celebração, a refeição, as relações
humanas no diálogo e a sequência temporal de “antes” e “depois” (água/vinho, vinho
inferior/vinho bom, carência/abundância). Isso será tratado na análise da narrativa.
A construção da secção se percebe, sobretudo, na sequência dos diálogos. Os vv.
1-3a constituem a introdução narrativa da história. Nos vv. 3b-4 temos o diálogo entre
Jesus e sua mãe, seguido, no v. 5, de uma palavra da mãe aos auxiliares. O v.6 prepara
narrativamente o milagre. Este se inicia no v. 7 com uma ordem de Jesus aos auxiliares,
seguida da execução. Segue uma segundo ordem de Jesus, com sua execução, no v. 8,
em que aparece também o responsável da festa. Este, no v. 9, constata a abundância
surpreendente de vinho excelente, manda chamar o esposo e observa que ele guardou o
vinho bom até esse momento (v. 10). Então a história se encerra, não com uma palavra
88
R. E. BROWN, I, p. XI, vê em Jo 2-4 uma subsecção própria, “De Caná a Caná”. F. J. MOLONEY, 62S.,
reconhece nisso uma construção simétrica emoldurada pelos dois sinais de Caná, mostrando Jesus
primeiro em diálogo com um judeu em Jerusalém e, depois, com os samaritanos. M. KIERSPEL, Religion,
vê antes uma construção quiástica, em cujo centro se encontram o diálogo e os discursos de Jo 3.
89
M. MORGEN, Le festin.
Beutler B -58
de Jesus, mas com um comentário teológico do evangelista, que expõe o sentido
profundo do acontecido (v. 11). A secção é encerrada por uma notícia sobre a partida de
Jesus de Caná a Cafarnaum, no v. 12 90.
II
2,1-3a
Os versículos iniciais expõem a situação da narrativa, a começar com as
indicações de tempo e lugar. O “terceiro dia” pode ser contado a partir do primeiro dia
da vocação dos discípulos em 1,35 ou, mais provavelmente, a partir do indício
cronológico anterior, em 1,43. Caná da Galileia é mencionada também em 4,46 e se
mostra um dos lugares preferenciais da atividade de Jesus91. Surpreende que a mãe de
Jesus seja mencionada antes dele; o texto não explica isso, nem histórica, nem
teologicamente. Na história inteira não se menciona a noiva; a mãe de Jesus, de certo
modo, ocupa esse lugar, o que aponta para o seu o papel histórico-salvífico. A carência
do vinho prepara o tema dominante da narrativa. Os discípulos são mencionados aqui
como testemunhas do acontecimento, tendo competência de compreender o sentido
profundo retrospectivamente; dentro da narrativa, eles não têm nenhuma função.
2,3b-4
A narrativa propriamente inicia-se por um diálogo entre Jesus e sua mãe. Esta
toma a palavra por primeira, o que corresponde ao papel de protagonista na narrativa,
como já observamos, e chama a atenção de Jesus para fato de que o vinho começa a
faltar. A resposta de Jesus, aparentemente dura quando tomada literalmente, tem
paralelos veterotestamentários em Jz 11,12; 2Sm 16,10; 19,22; 1Rs 17,18 92. “Ainda não
chegou a minha hora” deve ser entendido como afirmação e não como pergunta (“A
minha hora acaso ainda não chegou?”)93. De imediato, Jesus parece não atender o
pedido de sua mãe para acudir ao jovem casal. Deste modo, o narrador liga a glória de
Jesus em última instância à hora de seu enaltecimento na cruz em direção do Pai. Cf. Jo
12,23; 13,31s.
2,5
Maria age como se não tivesse ouvido a resposta de Jesus. Ela dá ordem aos que
estão servindo para que encham de água as talhas de pedra e, destarte, prepara o
caminho para o milagre. Na configuração atual do texto, sua atitude pode significar
também que a revelação de Jesus pode começar a qualquer momento, talvez como
antecipação da glória vindoura de Jesus em sua hora.
2,6-8
Os versículos que agora se seguem relatam o diálogo entre Jesus e os que servem
à mesa. Jesus toma as providências para o milagre da mudança de água para vinho que
vai acontecer. As talhas vazias devem imediatamente ser enchidas com água. A
observação acerca dos costumes da purificação dos judeus sugere a seqüência
90
M. GIRARD, Cana, vê uma construção simétrica em Jo 2,1-12.
S. BERGLER, Von Kana nach Jerusalem, 30, fundamenta novamente a localização deste lugar em
Khirbet Kaná, um lugar atualmente abandonado ao norte de Kafr Kenna, que hoje é mostrado aos
peregrinos.
92
Textos alegados por T. STRAMARE, La risposta, 185, o qual dá à resposta de Jesus um sentido positivo:
“O que é meu, é teu”.
93
Também com esta interpretação, T. STRAMARE (cf. nota anterior) se encontra bem sozinho.
91
Beutler B -59
“antigo/novo” na ordem da salvação, que é característica da narrativa inteira94. Remetese à abundância da água que é tornada disponível e que prepara a abundância do vinho a
ser servido. Jesus ordena aos auxiliares que levem ao responsável da mesa algo da água
com que encheram as talhas. O texto dá a impressão de que a água só se transforma em
vinho no momento de ser tirada das talhas e levada para a mesa; o enchimento das
talhas ainda não produziu o milagre95.
2,9-10
Do diálogo seguinte entre o responsável da mesa e o esposo conclui-se que
aconteceu um milagre. Nenhum dos dois parece saber de onde vem este vinho
excelente, que foi guardado até o fim, contrariamente aos costumes do país. Quem tem a
última palavra não é Jesus, mas o responsável da mesa. Isso provavelmente tem algo da
“ironia joanina”. Em outros “apotegmas”, a última palavra está, via de regra, com o
protagonista principal – nos evangelhos, normalmente, Jesus. Será que isso significa
que o responsável da refeição é Jesus?
2,11
O fim da narrativa é formulado pelo evangelista. Como dissemos, nem o
responsável da mesa, nem o esposo sabiam de onde surgiu o vinho bom. Só os
discípulos de Jesus parecem ter percebido o que Jesus fez. Neste primeiro “sinal”
revelou-se, diante dos olhos deles, a “glória” de Jesus como Cristo e Filho de Deus. Eles
viram “coisa maior”, como tinha sido anunciado a Natanael (1,50) – e verão mais ainda:
“quando o Filho do Homem subir para onde ele estava primeiro” (Jo 6,62). As leitoras e
leitores estão sendo convidados a participar nesta experiência da glória do Filho do
Homem. Assim poderão confessar, com o hino de abertura do evangelho: “E a Palavra
se fez carne e habitou entre nós, e nós contemplamos a sua glória, glória como do
unigênito do Pai, pleno de graça e de verdade” (Jo 1,14).
2,12
Num versículo de transição, o narrador remete ainda uma vez ao início da
narrativa (vv. 1-2). Jesus parte, e, a seu lado, mencionam-se sua mãe, seus discípulos e
também os seus irmãos, que, pelo que parece, estiveram entre os convidados da festa.
Os irmãos ocupam no Quarto Evangelho um papel muito subalterno (cf. ainda Jo 7,3). É
só com os discípulos que as leitoras e leitores se podem identificar no seu caminho à fé.
Cafarnaum encontra-se no nosso evangelho, fora desta secção, apenas ainda em Jo 6
(vv. 17, 24 e 59), como cenário do discurso de Jesus sobre o pão da vida, e não possui
em João um peso comparável ao que tem nos sinópticos. Para João, é uma localidade na
Galileia, de onde Jesus parte para suas viagens de peregrinação a Jerusalém.
Excurso: A origem da história do milagre do vinho em Caná
A história do milagre do vinho em Caná se encontra isolada na tradição
evangélica. A leitura atenta revela uma série de mal-entendidos. Durante muito tempo,
esses problemas eram examinados com o método literário-crítico; tentava-se esclarecer
as tensões pela distinção de fontes e camadas. Discutiam-se, entre outras coisas, o lugar
original desse relato no Evangelho segundo João, a pertença da mãe e dos discípulos à
forma originária do relato, o caráter original do diálogo de Jesus e sua mãe nos vv. 3-4,
94
Para a interpretação destas categorias temporais no sentido da história da salvação, em Jo 2,1-11, cf. B.
OLSSON, Structure and Meaning. O “antes” e “depois” é destacado também por M. GIRARD, Cana, 102.
95
Vgl. dazu B. OGNIBENE, Lʼignoranza.
Beutler B -60
a referência ao rito de purificação judaico e a numeração dos sinais no versículo
conclusivo. W. Lüthgetmann apresentou de modo cabal essas discussões literáriocríticas, de modo que não precisamos repeti-las aqui96.
Parece-nos mais importante a pergunta como se pode esclarecer historicamente o
núcleo da narrativa, o milagre do vinho numa festa de casamento. Houve precedentes?
Onde? A pesquisa move-se fundamentalmente em duas direções. Uns remetem aos
precedentes e paralelos bíblicos. R. E. Brown, entre outros, os alista97. No interior do
Novo Testamento remete-se, como paralelo da mudança de água em vinho, antes de
tudo à multiplicação milagrosa dos pães. Esta tradição encontra-se não só nos sinópticos
(Mc 6,32-34 parr.; Mc 8,1-9 par.), mas no próprio Quarto Evangelho (Jo 6,1-15). Os
estudiosos observam, além das concordâncias, também as diferenças. No caso da
multiplicação dos pães, Jesus dispõe de uma matéria dada, que ele aumenta, enquanto,
nas bodas de Caná, ele proporciona vinho que antes não havia. Aliás, trata-se de vinho,
não de pão. Restam diferenças consideráveis.
Algumas histórias do ciclo dos grandes profetas Elias e Eliseu segundo os livros
dos Reis mostram proximidade com o texto de Jo 2,1-11. Nesse ciclo encontra-se, em
2Rs 4,42-44, um precedente para a multiplicação dos pães: Eliseu faz distribuir a cem
pessoas vinte pães de cevada e alguns grãos frescos, e eis que é suficiente e até tem de
sobra. Aparentados são também o fornecimento milagroso de farinha e azeite à viúva de
Sarepta pelo profeta Elias (1Rs 17,1-6) e de azeite, a outra viúva, por Eliseu (2Rs 4,1-7).
Todos esses milagres são da categoria dos “milagres-presente”, à qual também é
atribuída a transformação de água em vinho nas bodas de Caná pela maioria dos
estudiosos. Mas observam-se diferenças notáveis entre as histórias veterotestamentárias
e Jo 2,1-11: em nenhuma delas trata-se de vinho, e em todas elas o presente é dado a
partir de uma matéria disponível, que é aumentada.
Outros precedentes bíblicos ilustram o tema do banquete escatológico. A imagem
das núpcias para representar a relação entre Deus e seu povo já se encontra no tempo
pré-exílico. O texto mais antigo é Os 2,1–3,5: depois da infidelidade de Israel, surge
uma nova fidelidade, que é dom de Deus. Os mesmos temas ocorrem em Ez 16. Nos
períodos exílico e pós-exílico, as núpcias tornam-se símbolo da aliança de amor entre
Deus e seu povo no tempo messiânico (Is 54,4-8; 62,4-5)98. O próprio Jesus usa as
imagens do banquete e das núpcias para descrever a salvação que está chegando (Mt
8,11; 22,1-14; Lc 22,16-18)99. As núpcias aparecem como imagem da plenitude
messiânica no Apocalipse joanino (Ap 19,9). Para o vinho como elemento do banquete
escatológico, veja-se Is 25,6.
Todos esses elementos devem ser observados ao reconstruir o pano de fundo de Jo
2,1-11. Chamou nossa atenção a ausência da esposa e a presença da mãe de Jesus, que é
chamada de “mulher” (Jo 2,4). Assim pode-se atribuir à história um sentido simbólico:
no início de sua vida pública, Jesus celebra com seus discípulos a aurora de uma nova
era na história da salvação, o início de uma aliança nova e eterna, mediante a imagem
do banquete nupcial.
A alternativa ou, antes, a complementação da derivação das bodas de Caná de
modelos bíblicos, é a referência aos modelos helenistas. Apesar dos argumentos
96
Cf. W. LÜTGEHETMANN, Die Hochzeit von Kana, 41-122.
Cf. R. E. BROWN I 101-110.
98
A relevância deste motivo para 2,1-11 é tratada por J. VARGHESE, Imagery, 39-97.
99
Z. GARSKÝ, Wirken Jesu, 125-150, percebe muitas relações entre Mc 2,18-22 par. e Jo 2,1-11.
97
Beutler B -61
contrários alegados por E. Noetzel100, número crescente de autores conta com a
influência do culto de Dioniso em nosso texto, assim como já R. Bultmann havia
proposto em seu comentário de João. Mais recentemente deve-se mencionar aqui uma
contribuição do famoso professor de Novo Testamento de Tubinga, M. Hengel101, e
também a dissertação de Frankfurt de Z. Lüthgetmann102.
Para simplificar, permitimo-nos apresentar a influência do culto de Dioniso sobre
Jo 2,1-11 segundo seu tratamento na RAC103:
“Já a tradição da Grécia clássica conhece Dioniso como doador de vinho: de repente,
marinheiros nadam nele (Hymn. Hom. Bacch. 35-37 [77 Allen]), assim como os bacchi
em êxtase haurem leite e mel de um rio (Platão, Ion 534A). Segundo Eurípides o deus
deixa brotar da terra uma fonte de vinho quando uma bacante finca o bastão de Tiro na
terra (Bacch. 706s.); leite, vinho e mel fluem onde o deus põe o pé na terra (ibid. 142s.,
cf. 423s. 651s. 773s.), sim, ele mesmo está presente no vinho (284s.). Segundo Diodoro
da Silícia, uma fonte em Teos produz vinho em intervalos regulares, o que os habitantes
de Teos valorizam como prova de que Dioniso nasceu na cidade deles (Diod. Sic. 3,66,
3). Dois outros textos pertencem na realidade ao século II, mas contêm tradições que
podem ser mais antigas: segundo Luciano, os marinheiros encontraram perto das Colunas
de Hércules uma inscrição: ‘Até aqui chegaram Hércules e Dioniso’. Na proximidade
jorrava um rio de vinho precioso como o de Quios. Isso valia como sēmeîon de uma
presença de Dioniso (Ver. Hist. 1,7). Segundo Pausánias, os sacerdotes colocam na festa
de Tiena no templo de Dioniso em Êlis três cântaros vazios e lacram o templo à vista das
testemunhas; na manhã seguinte, os cântaros se encontram cheios de vinho precioso
(6,26,1s.). Em Andros, cada ano na festa de Dioniso, vinho escorre do seu templo. A
mesma tradição é conhecida de C. Plínio, o Antigo, já no século I d. C., para as nonas de
janeiro; a festa se chamava Theodosía (Hist. Nat. 2,231).
Tenha-se presente, porém, que a própria saga grega da origem de Dioniso tem um pé no
Oriente. Dioniso é o filho de Semele, que é a filha do filho régio Cadmos de Tebas, que
de Tiro (ou Sídon) veio para a Grécia. Moedas gregas da Siro-Palestina exibem motivos
ligados a Dioniso. Isso se verifica em Citópolis (Bet Shean), cidade situada na beirada da
Galileia, que se considerava cidade do nascimento e da primeira infância de Dioniso (cf.
tb. Plínio, Nat. hist. 5,74). Um texto de Aquiles Tácio desloca para Tiro a legenda ática
do dom da videira por Dioniso a um pastor hospitaleiro (Leuc. et Clyth. 2,2,1-6). Por trás
desse Dioniso deve-se ver, provavelmente, uma divindade da vegetação do Oriente
antigo, que Ovídio atesta para a Frígia (Met. 8, 879-683). Assim pode-se com M. Hengel,
que reúne estes dados [...]104, suspeitar uma origem oriental antiga por trás da tradição do
milagre de Caná.”
Quando, em nossa história, Jesus, à maneira de Dioniso, talvez apareça como
dispensador de alegria e abundância, essa visão combina com a que colhemos do Antigo
Testamento. Também aqui Jesus proporciona alegria experimentada corporalmente, no
banquete nupcial que ele torna possível.
100
E. NOETZEL, Christus und Dionysos.
M. HENGEL, The Interpretation of the Wine Miracle (em alemão: Der “dionysische”Jesus).
102
W. LÜTGEHETMANN, Die Hochzeit von Kana. Vgl. seitdem u. a. S. BERGLER, Von Kana in Galiläa
nach Jerusalem, 80-140; W. EISELE, Jesus und Dionysos. Este amplia a comparação com o mito de
Dioniso aos domínios vinho, bodas, mãe (ama), discípulos.
103
J. BEUTLER, Johannes-Evangelium (u. –Briefe): 652s. Aqui conforme: ID., Johannesevangelium,
Johannesbriefe, in: ID., Neue Studien, 30s.
104
Cf. supra, nota 101.
101
Beutler B -62
III
No início da vida pública de Jesus está, em João, não um apelo à penitência e à
conversão, nem um anúncio verbal do reinado de Deus que se aproxima. Jesus inicia
suas obras com um “ato de sinal”, que representa em imagem aquilo que ele veio trazer:
alegria escatológica nupcial, pelo dom do vinho em abundância a um casal de noivos.
As leitoras e leitores de hoje talvez se deixem tocar mais por isso do que pela
reprodução das primeiras palavras da pregação de Jesus. Precisamente na presente
cultura da imagem, a mensagem de Jesus talvez toque mais os corações deste modo do
que pela mera reprodução de palavras de Jesus. A imagem do milagre do vinho em
Caná nos mostra um Jesus que dá alegria em abundância, e isso, na celebração de uma
festa que, mais que qualquer outra, alegra o coração: uma festa de casamento.
5. A primeira Páscoa. A purificação do Templo (2,13-25)
13
Estava próxima a Páscoa dos judeus, e Jesus subiu a Jerusalém. 14 No Templo,
ele encontrou os que vendiam bois, ovelhas e pombas, e os cambistas em suas bancas.
15
Ele fez um chicote com cordas e a todos expulsou do Templo, junto com os bois e as
ovelhas; esparramou o dinheiro dos cambistas e derrubou suas bancas; 16 e aos
vendedores de pombas ele disse: “Tirai isso daqui. Não façais da casa de meu Pai um
mercado”! 17 Os discípulos se recordaram de que está escrito: “O zelo por tua casa me
devorará”. 18 Então os judeus perguntaram a Jesus: “Que sinal nos mostras para
fazeres estas coisas?” 19 Jesus respondeu: “Destruí este santuário, e em três dias eu o
erguerei”. 20 Os judeus, então, disseram: “Quarenta e seis anos durou a construção
deste santuário, e tu o erguerias em três dias?” 21 Ele, porém, falava do santuário que é
seu corpo. 22 Depois que Jesus fora reerguido dos mortos, os discípulos se recordaram
de que ele tinha dito isso e creram na Escritura e na palavra que Jesus havia dito.
23
Enquanto Jesus estava em Jerusalém, na festa da Páscoa, muitos creram no seu
nome, vendo os sinais que realizava. 24 Jesus, no entanto, não lhes dava crédito, porque
conhecia a todos 25 e não precisava de testemunho a respeito do ser humano, pois ele
bem sabia o que havia dentro do homem.
I
Depois das bodas de Caná, o relato da “Purificação do Templo” em Jo 2,13-22
chega bastante inesperado. Nos evangelhos sinópticos encontra-se na proximidade
imediata da paixão do Senhor e até pode expressar a razão por que Jesus foi preso. Esta
conexão não se reconhece em João. Por isso pergunta-se por que ele colocou esta cena
no início da trajetória de Jesus. Para a resposta a esta pergunta cabe uma análise
cuidadosa.
O problema da relação com tradição sinóptica apresenta-se também no interior da
perícope. Segundo uma pesquisa de H. Ulrichsen105, devemos distinguir, nesta unidade
textual, uma tradição sobre a “purificação do Templo” e outra, sobre uma controvérsia
entre as autoridades judaicas e Jesus acerca de sua autoridade. Os paralelos para Jo
2,14-17 encontram-se em Mc 11,15-17 par. Mt 21,12-13 e Lc 19,45-6. Estes textos
sinópticos não apenas mostram diferenças notáveis em comparação com o texto joanino,
mas também entre si. A diferença consiste, sobretudo, na situação que supõem. Em
105
J. H. ULRICHSEN, Jesus – der neue Tempel?
Beutler B -63
Marcos, a cena precede imediatamente o relato da Paixão e dá a impressão de ter
provocado, direta ou indiretamente, a prisão de Jesus. Em Mateus, esta conexão parece
menos firme, e em Lucas, menos ainda. De toda maneira, a purificação do Templo não é
mencionada no processo de Jesus; só é alegada a palavra a ele atribuída, de que
destruiria o Templo e em três dias o reconstruiria (Mc 14,58). Como observa E.
Bammel106, essa acusação era infundada, como também a acusação semelhante feita a
Estêvão (At 6,13-14). O fato de a ação de Jesus aparentemente não desempenhar papel
algum no seu processo mostra, segundo Bammel, que sua ligação à paixão de Jesus
pode ser secundária. Também a localização da purificação do Templo, em João,
necessita ser esclarecida. Como mostraremos, Jesus sobe para visitar o Templo, e nos
oito capítulos seguintes o Templo é o lugar preferido do ensinamento e da pregação de
Jesus. Um conflito com as autoridades judaicas neste lugar se deixa imaginar melhor no
fim da atividade pública de Jesus do que no início. Bammel expressa a suspeita de que o
lugar original da história seria no início de Jo 11: o perigo ao qual Jesus se expõe ao ir
visitar seu amigo em Betânia e a disposição dos discípulos para ir com ele e morrerem
(Jo 11,6) entendem-se melhor em conexão com a ação no Templo do que com o milagre
da ressuscitação de Lázaro. A proposta de Bammel merece estudo mais aprofundado,
mas convida de toda maneira a procurar o lugar original da purificação do Templo (que
geralmente é considerada um fato histórico) antes no fim do que no começo da atividade
pública de Jesus.
O relato da purificação do Templo exibe diferenças notáveis entre os três
sinópticos, e também entre estes e a forma joanina. Em nenhum dos três relatos
sinópticos mencionam-se, como em João, ovelhas e bois, nem o açoite. A palavra com a
qual Jesus [nos sinópticos]* legitima sua ação é tomada dos profetas Is 56,7 e Jr 7,11;
em João, os discípulos lembram-se do Salmo 69,10. Segundo Marcos (11,6), Jesus não
permitia que alguém carregasse qualquer coisa através do recinto do Templo; Lucas fica
muito geral e não menciona as pombas nem o fato de que Jesus derrubou as mesas dos
cambistas e dos vendedores. O acento está totalmente na palavra de Jesus, colhida das
Escrituras de Israel. Apesar dessas diferenças, existe consenso bastante geral de que,
nos diversos relatos, se trata do mesmo acontecimento, que só no Quarto Evangelho é
representado de maneira mais desenvolvida e teologicamente refletida.
Quanto à perícope seguinte, o pedido de um sinal, os autores remetem a Mc
11,27-33 par. Mt 21,23-27 e Lc 20,1-8. Nesta ação, Jesus responde à pergunta do sumo
sacerdote, dos fariseus e dos escribas, com uma contrapergunta acerca do batismo de
João. Acresce outro texto, segundo o qual Jesus é questionado acerca de sua autoridade:
a perícope do sinal de Jonas (Mt 12,38-43; 16,1-21a.4; Lc 11,16.29-32). Nesta perícope,
Jesus fala, em linguagem figurativa, de sua morte e ressurreição no terceiro dia. Este
texto, segundo Bammel107, estaria por trás de Jo 2,18-22, junto com Mc 14,57-59 par.
Mt 16,60s. (a comparar com At 6,13), acerca da destruição do Templo e de sua
reedificação108.
Até que ponto o evangelista no nosso relato repousa imediatamente sobre os
sinópticos está ainda em discussão. Tobias Nicklas109 vê sua conexão com os sinópticos
106
E. BAMMEL, Die Tempelreinigung.
Cf. supra, nota 106.
108
Nach M. STOWASSER, Tempelaktion, por trás de 2,14-19 estaria antes tradição antigo do que o texto
dos sinópticos. F. SCHLERITT, Passionsbericht, 173, vê por trás da perícope o relato pré-joanino da Paixão
que ele postula.
109
T. NICKLAS, “Tempelreinigung”.
107
Beutler B -64
no nível dos leitores e opõe-se, assim, a M. Labahn e M. Lang110, que pretendem
mostrar tal conexão no nível do próprio texto–e parece que estes estão certos.
Como é construída a secção Jo 2,13-25? Em primeiro lugar, deve-se separar a
cena da purificação do Templo, com a discussão sobre a autoridade (vv. 13-22), dos
versículos finais (vv. 23-25). O primeiro grupo de versículos é articulado em duas
metades, que exibem estrutura análoga111:
(1) v. 13
Moldura
(2) vv. 14-17 Purificação do Templo:
vv. 14-15
Ação de Jesus
v. 16
Palavra de Jesus
v. 17
Recordação dos discípulos
(3) vv. 18-22 Questão da autoridade:
v. 18
Reação dos judeus
v. 19
Palavra enigmática de Jesus
v. 20
Mal-entendido dos judeus
v. 21
Comentário do evangelista
v. 22
Recordação dos discípulos
Os versículos finais 23-25 ligam-se ao contexto anterior pelos temas da festa pascal (vv.
13 e 23), dos “sinais” (vv. 12, 18 e 23s.) e da fé/confiança (pisteúein, vv. 11s. e 23s.).
II
2,13-17
O relato da purificação do Templo começa com indicações de tempo e lugar.
Estando na Galileia, Jesus parte, pela primeira vez, para uma das festas de peregrinação
em Jerusalém. Mais tarde fará o mesmo para a festa anônima de 5,1 (provavelmente a
festa das Semanas) e para a festa das Tendas, em 7,2, antes da última Páscoa de 11,55;
12,1; 13,1. Suspeitamos que a Páscoa de 6,4 tenha sido acrescentada secundariamente a
este ciclo de festas de peregrinação judaicas112. Retirando-a da sequência das festas, a
atividade de Jesus segundo João parece inserir-se, com quatro viagens de peregrinação a
Jerusalém, no ciclo festivo judaico. Em Jesus, os tempos sagrados de Israel são levados
a termo.
A seguir, mostraremos como em Jesus também os lugares santos de Israel são
levados a termo. Este parece ser o sentido da história da “purificação do Templo” e das
palavras sobre o “Templo de seu corpo” que a acompanham. Decerto, não devemos
falar precipitadamente numa “teoria da substituição”. Segundo certo número de autores,
Jesus aparece em Jo 2,13-22 como o “novo Templo”. J. H. Ulrichsen113 submete essa
teoria a uma avaliação crítica, que adotaremos como nossa.
Na ação de Jesus descrita nos vv. 14-15 não se trata de uma abolição do culto.
Jesus expulsa do Templo pessoas humanas que introduzem o profano no Santuário: os
vendedores de gado e os cambistas. João acrescenta às pombas também as ovelhas e o
110
M. LABAHN, M. LANG, Johannes und die Synoptiker.
Cf. o artigo de J. H. ULRICHSEN, supra, nota 105, e J. FRÜHWALD-KÖNIG, Tempel und Kult. Seguimos
aqui J. H. ULRICHSEN.
112
Cf. supra, Introdução, secção 2.
113
J. H. ULRICHSEN, Jesus – der neue Tempel?
111
Beutler B -65
gado: estes são os animais que servem para os sacrifícios cotidianos no Templo114,
enquanto as pombas serviam para os sacrifícios dos pobres (cf. Lc 2,24). A palavra de
Jesus aos vendedores de pombas deixa claro que Jesus não quer abolir os sacrifícios,
mas só afastar todos os negócios profanos do Templo como lugar santo. Neste sentido
pode-se falar acertadamente de uma “purificação” do Templo, não de sua substituição.
Enquanto Jesus chama o Templo “a casa de meu Pai”, ele se identifica grandemente
com este lugar e esta instituição de Israel. A palavra a que Jesus recorre encontra-se em
Zc 14,21, portanto, nos últimos versículos do livro de Zacarias 115. Neste versículo
anuncia-se que nenhum “cananeu”–no sentido de comerciante–ainda ficará no Templo.
É esta a significação que Jo 2,16 supõe.
O versículo conclusivo, v. 17, menciona o “recordar-se” dos discípulos, bem
como o v. 22, que lhe corresponde. No v.17, os apóstolos recordam-se de imediato de
uma palavra dos salmos: “O zelo por tua casa me devorará” (Sl 69,10; o tempo futuro
vem da mão do evangelista). A mensagem para nossas leitoras e leitores consiste nisto:
Jesus, como o salmista, há de sofrer por causa de seu empenho pela casa do Senhor. Isso
está longe de uma abolição do culto. Jesus se empenha plenamente pela restauração da
santidade do lugar central do culto de Israel, mesmo correndo risco de vida.
2,18-22
A segunda cena, Jo 2,18-22, não contém ação, mas apenas um diálogo, que nem é
encerrado. À pergunta dos “judeus” acerca de sua autoridade, no v. 18, Jesus responde
com uma palavra enigmática (v. 19), que é entendida erroneamente pelos “judeus”,
como mostra a pergunta que eles fazem no v. 20. A esta pergunta, Jesus não responde
mais, mas o evangelista fornece um comentário que explica o sentido da palavra de
Jesus (v. 21). A secção termina com mais um comentário do evangelista a respeito dos
discípulos, apontando para sua compreensão da palavra de Jesus depois de sua
ressurreição dos mortos e sua fé naquele momento (v. 22).
Os “judeus” já foram mencionados no cap. 1 como aqueles que mandaram uma
delegação a João Batista para lhe perguntar quem ele era e por que ele batizava (Jo
1,19). No Evangelho segundo João, os “judeus”, muitas vezes, são representados como
autoridade central do povo judeu e de sua fé, em Jerusalém, encarregados de cuidar da
ortodoxia da fé judaica. Esses “judeus” exigem de Jesus um sinal legitimador. De fato,
depois do sinal inicial nas bodas de Caná (2,1-11), mencionam-se tais sinais na
atividade de Jesus em Jerusalém (cf. 2,23; 7,31; 11,47; 12,37). Outro pedido de sinal
situa-se no diálogo com a multidão em Jo 6,30, estranhamente, depois do sinal narrado
pouco antes (cf. 6,26). Em Jo 2,19, Jesus não se nega a indicar um sinal, mas oferece
um que os judeus não entendem. Ele os desafia a destruir o Templo, e em três dias ele o
reerguerá. Como já mencionamos antes (cf. acima, I), Jesus usa aqui uma palavra que
foi citada pelas “falsas testemunhas” no seu processo judaico. Para João, essa palavra
tinha um sentido mais profundo, como [para Mateus]* aquela outra que lhe foi
atribuída, a respeito do profeta Jonas, que ficou três dias no ventre do peixe e então saiu
daí. Os “judeus” não são capazes de entender a palavra de Jesus. O evangelista, como
“narrador onisciente”, oferece a explicação ao publico leitor: Jesus falou do Templo que
é seu corpo (v. 21). Amiúde conclui-se dessa explicação que, para os leitores, o corpo
de Jesus substituiu o Templo de Jerusalém. Ulrichsen objeta contra essa interpretação
114
Segundo S. HÜBENTHAL, Wie kommen Schafe und Rinder, as ovelhas e os bois vêm do Sl 69,31s.;
deste salmo provém também a citação em Jo 2,17.
115
Dazu S. HÜBENTHAL, Transformation, 322-367.
Beutler B -66
que João nada mais quis senão esclarecer a palavra enigmática de Jesus. Para Jesus, o
Templo continua sendo o lugar de referência de sua atividade pública no futuro, a
começar com suas viagens de peregrinação. O Templo será também o lugar preferido de
seu ensinamento (cf. 18,20). Só depois da destruição do Templo, que ocorreu antes da
redação do Quarto Evangelho, o corpo de Jesus, isto é, Jesus mesmo, deveria tornar-se o
único lugar da presença de Deus no meio dos homens–mais exatamente: o corpo
ressuscitado dentre os mortos116. Desse momento fala o v. 22, no qual a palavra de Jesus
é posta ao lado da Escritura (sem ser integrada nesta). Só a partir da Páscoa da
ressurreição é que as palavras e ações de Jesus se tornam compreensíveis, sob a guia do
Espírito.
2,23-25
Os últimos três versículos não se coadunam com a contagem dos sinais em 2,11 e
4,54 (cf. 21,4, que, segundo J.-P. Heekerens, seria um terceiro sinal, como parte de uma
coletânea de sinais da redação joanina117). Os autores que atribuem a contagem dos
sinais à hipotética “fonte dos sinais” do Quarto Evangelho veem em 2,23 a mão do
evangelista. Pode-se, contudo, imaginar este evangelista como autor dos vv. 23-25,
também sem aceitar a “fonte dos sinais”. Desde Jo 2,11 supõe-se uma coerência entre o
“ver” os sinais e a fé. Mas esta fé é ainda superficial. Jesus não “dá crédito” (ouk
epísteusen heautón – jogo de palavras) às pessoas que creem desse modo. E ele não
precisa receber de ninguém um testemunho sobre as pessoas humanas, pois ele as
conhece e sabe o que acontece no coração delas (cf. seu conhecimento de Natanael
antes de encontrá-lo, Jo 1,47s.; e o passado particular da samaritana, Jo 4,16-18). Se
estes três versículos remontam ao evangelista, confirmam certo ceticismo quanto a uma
conexão estreita demais entre o ver os sinais de Jesus e o crer nele, como já observamos
em 2,1-11. Assim como na história das bodas de Caná a “hora” de Jesus, assim serve de
chave hermenêutica, na presente secção, o saber sobre-humano de Jesus, que consegue
distinguir entre uma fé superficial, baseada em sinais, e uma forma mais profunda da fé,
que tem consciência do mistério de sua pessoa: a saber, o caminho que o Pai lhe
designou e que o conduzirá à morte violenta e – só deste modo – à ressurreição.
III
O deslocamento da história da purificação do Templo para o início do Evangelho
segundo João confere a este evangelho uma grande força dramática desde o início. Um
conflito acerca de Jesus e sua missão não é algo que cresce passo a passo. Tal conflito
determina o relato evangélico desde o início. Ponto de partida é o comércio em lugares
santos. A intervenção palpável de Jesus contra isso faz surgir a questão de sua
autoridade. Do mesmo modo como já na narrativa das bodas de Caná, mostra-se aqui
que a chave verdadeira do mistério de Jesus é seu caminho de vida até o fim. O lugar
novo e permanente da presença de Deus entre os homens será ele–seu corpo, que
através da porta da morte chegará à ressurreição. Os lugares santos de Israel não são,
por isso, abolidos, mas “suprassumidos” no sentido hegeliano: revezados, mas
conservados num nível superior.
116
Este esclarecimento deve ser observado na interessante dissertação apresentada em Frankfurt por R.
LÓPES ROSAS, La señal del Templo.
117
J.-P. HEEKERENS, Die Zeichen-Quelle der johanneischen Redaktion.
Beutler B -67
6. O diálogo com Nicodemos em Jerusalém (3,1-21)
3 1 Havia um homem, membro dos fariseus, chamado Nicodemos, um chefe dos
judeus. 2 À noite, ele foi se encontrar com Jesus e lhe disse: “Rabi, sabemos que vieste
como mestre da parte de Deus, pois ninguém pode fazer os sinais que tu fazes, se Deus
não está com ele”. 3 Jesus respondeu: “Amém, amém, digo-te: se alguém não nascer de
novo, não poderá ver o Reino de Deus!” 4 Nicodemos disse: “Como pode alguém
nascer, se já é velho? Acaso pode entrar uma segunda vez no ventre de sua mãe para
nascer?” 5 Jesus respondeu: “Amém, amém, digo-te: se alguém não nascer da água e
do Espírito, não poderá entrar no Reino de Deus. 6 O que nasceu da carne é carne; o
que nasceu do Espírito é espírito. 7 Não te admires do que eu te disse: É necessário
para vós nascer de novo. 8 O vento sopra onde quer, e tu ouves sua voz, mas não sabes
de onde ele vem, nem para onde vai. Assim é todo aquele que nasceu do Espírito”.
9
Nicodemos, então, perguntou: “Como pode isso acontecer?” 10 Jesus respondeu: “Tu
és o mestre de Israel e não conheces estas coisas? 11 Amém, amém, digo-te: nós falamos
do que conhecemos e damos testemunho do que vimos, mas vós não aceitais o nosso
testemunho. 12 Se vos falei das coisas da terra e não acreditais, como ireis crer quando
eu vos falar das coisas do céu? 13 Ninguém subiu ao céu, senão aquele que desceu do
céu: o Filho do Homem. 14 Como Moisés enalteceu a serpente no deserto, assim também
deve ser enaltecido o Filho do Homem, 15 a fim de que todo o que crer tenha, nele, vida
eterna”. 16 De fato, Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho unigênito, para que
todo o que nele crer não pereça, mas tenha vida eterna. 17 Pois Deus enviou o seu Filho
ao mundo, não para julgar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele. 18 Quem
crê nele não é julgado, mas quem não crê já está julgado, porque não creu no nome do
Filho unigênito de Deus. 19 Ora, o julgamento consiste nisto: a luz veio ao mundo, mas
os homens amaram mais as trevas do que a luz, porque suas obras eram más. 20 Pois
todo o que pratica o mal odeia a luz e não vai até a luz, para que suas ações não sejam
denunciadas. 21 Mas quem faz a verdade vai à luz, para que seja manifesto que suas
obras são obradas em Deus.
I
O diálogo com Nicodemos se destaca claramente do texto anterior. Contudo, às
vezes se tem proposto ver o começo em 2,23, porque Nicodemos aparentemente
pertence àqueles judeus que acreditam em Jesus por causa de seus sinais118. Mas isso
não se encontra explicitamente no texto. Parece, portanto, seguro deixar começar a
perícope em 3,1. Depois de sua última resposta, no v. 9, Nicodemos não é mais
mencionado e parece sair de cena como parceiro de diálogo de Jesus. O diálogo se
transforma, aos poucos, num monólogo, que finalmente parece virar um discurso do
evangelista. Por essa razão, muitos autores veem o fim do diálogo no v. 12, onde, pela
última vez, Jesus dá uma resposta na segunda pessoa (desta vez, no plural). R.
Schnackenburg vai ainda mais longe e percebe em Jo 3,13-21 e 3,31-36 “fragmentos de
discurso não situados”119, ligados secundariamente ao diálogo com Nicodemos. Com
base na análise literária e teológica, Schnackenburg conclui que, anteriormente, Jo 3,3136 se seguia imediatamente a 3,1-12 e tinha continuação em 3,13-21. Segundo R.
118
Assim agora M. GIRARD, Le paradigme, também por causa de uma estrutura quiástica em Jo 2,23 –
3,2.
119
R. SCHNACKENBURG, Die “situationsgelösten Redestücke” in Joh 3, assumido em seu comentário I
374-377.
Beutler B -68
Bultmann120, Jo 3,31-36 era, originalmente, a continuação de 3,1-21. A pesquisa sobre
João não acolheu estas propostas, e assim mantemos a ordem tradicional de Jo 3. Com
O. Hofius121 podemos ver em Jo 3,13-21 a continuação da resposta de Jesus à última
pergunta de Nicodemos no v. 9.
Por vezes nega-se a unidade literária e teológica desta perícope. Bultmann atribui
à “redação eclesial” por ele postulada a expressão que fala do novo nascimento, não só
do Espírito, mas “da água”, em Jo 3,5122. A escola bultmanniana considerou também os
vv. 19-21 parcialmente como secundários, visto que neles as obras humanas aparecem
como condição para a salvação. Segundo J. Becker123, esses versos demonstram
também um dualismo que diverge do evangelista: uma separação horizontal entre
pessoas boas e más, em vez da demarcação vertical, característica do evangelista, que
distingue entre o mundo “em cima”, o mundo da salvação de Deus, e o mundo
“embaixo”, no qual as pessoas, por enquanto, vivem para a salvação. Acrescem outros
problemas: a pressuposta escatologia e a relação de cristologia e soteriologia. Mas
também aqui mantemos a unidade literária da perícope, pelas razões que mostraremos
na exegese contínua.
A construção da perícope até o v. 12 pode ser determinada com base na análise
narrativa. A introdução, nos vv. 1-2b, fornece a apresentação dos personagens do
diálogo e a indicação do tempo (era noite). Os versículos seguintes articulam-se em três
turnos de diálogo entre Nicodemos e Jesus: vv. 2c-3, 4-8 e 9-12 (ou 21); a resposta de
Jesus é cada vez introduzida pelo “amém, amém” (vv. 3c, 5b e 10c). Onde termina
exatamente a terceira resposta de Jesus não se deixa dizer com certeza, porque as
palavras de Jesus, neste caso, se transformam progressivamente nas palavras do
evangelista, que fala de Jesus na terceira pessoa. Do v. 12 até o v. 17 constata-se um
encadeamento por palavras-gancho, semelhante ao que percebemos no início do
Prólogo (Jo 1,1-5):
12 “coisas do céu”
13 “céu”
14 “Filho do Homem”
16 “vida eterna”
17 “Filho”
18 “julgar”
13 “céu”
13 “Filho do Homem”
15 “vida eterna”
16 “Filho”
17 “julgar”
Nos vv. 18-21 não se percebe tal conexão. Ali, o movimento vai do “julgamento”
(vv. 18-19) para as “obras” (vv. 19-21). Como o tema do “julgar” já foi introduzido no
v. 17, não é possível atribuir sem problema os vv. 18-21 ou 19-21 a outra camada
literária que os vv. 12-17(18).
II
3,1-3
No início do capítulo, o evangelista introduz o leitor na situação do diálogo (v. 12b) e relata a primeira interlocução entre Jesus e Nicodemos (v. 2c-3). A maneira como
Nicodemos é introduzido lembra a Septuaginta (cf. 1Sm 1,1). Ele pertence ao grupo dos
fariseus e é chamado “um chefe dos judeus”. Esta designação não é bem exata, mas faz
120
R. BULTMANN 92s.
O. HOFIUS, Das Wunder, 34s.
122
R. BULTMANN 98, com nota 2.
123
J. BECKER I 173s., que aparentemente troca o sentido de “horizontal” e “vertical” (nós corrigimos).
121
Beutler B -69
pensar num membro do sinédrio, como se confirmará no cap. 7 (v. 48 e 50). João nunca
apresenta a composição do sinédrio de maneira exata (ao contrário de Mc 11,27), mas
fala de modo um tanto anacrônico de “sumos sacerdotes e fariseus” (cf. Jo 7,45). Um
membro desse grupo se dirige, de noite, a Jesus para interrogá-lo. Não é provável que
tenha escolhido esse horário porque os rabinos recomendaram o estudo noturno da Torá.
É mais provável que o tenha escolhido para não ser observado124; o que combina
perfeitamente com a imagem que o conjunto do Quarto Evangelho apresenta dele125.
Primeiro, Nicodemos vem até Jesus de noite, mas depois, no sinédrio, se posiciona
abertamente a favor de Jesus (7,50) e, no fim, mostra a coragem de requerer de Pilatos o
corpo de Jesus, condenado por alta traição (10,39). Desde o início do diálogo fica claro
que Nicodemos representa o povo judeu e sua religião. Dirige-se a Jesus com a alocução
“Rabi”. Sua expressão “(nós) sabemos” mostra que ele pensa poder classificar Jesus
direitinho. Considera Jesus um profeta, como aparece através de suas palavras:
“Sabemos que vieste como mestre da parte de Deus”. Segundo O. Hofius126, Nicodemos
mostra assim, desde as primeiras palavras, que ele não entendeu a missão de Jesus:
Jesus não “veio da parte de Deus”, ele se originou de Deus (exḗlthon ek ... apo ... para
toû theoû; Jo 8,42; 13,3; 16,27s). Deus não apenas está “com ele”, ele é Deus (cf. 1,18;
10,30). Seu valor se compreende não apenas em virtude dos “sinais” que ele realiza,
mas também, e antes de tudo, pela acolhida de sua palavra. Esperar-se-ia, nesta altura,
uma pergunta explícita de Nicodemos, mas ela não aparece no relato. Hofius pensa que
tal pergunta deveria referir-se à salvação, como aparece pela resposta de Jesus127. Na
sua resposta (v. 2c-3), Jesus capta a pergunta não expressa de Nicodemos e declara,
depois de uma solene fórmula introdutória, que é preciso nascer de novo para ver o
Reino de Deus. A expressão gennēthênai ánōthen é ambígua e pode significar tanto
“nascer de novo” como “nascer do alto”. Pensa-se geralmente que João escolheu
conscientemente tal expressão. Provavelmente significa o novo nascimento, que o
discurso leva à tona imediatamente a seguir. A expressão “ver o Reino de Deus” não é
tipicamente joanina, mas tem paralelos nos evangelhos sinópticos (Mc 9,1 par. Lc 9,27).
Nestes textos já se apresenta o pensamento da necessidade de se tornar como criança
para entrar no Reino de Deus (cf. Mt 18,3; cf. Mc 10,15)128. No Evangelho segundo
João, a expressão “Reino de Deus” só aparece no capítulo 3 (vv. 3 e 5) e só em 18,36s.
o Jesus joanino fala de “seu” reinado. O conceito determinante para falar da salvação,
em João, é “vida”. Se, neste texto, se diz que é preciso nascer de novo, tornar-se homem
novo, para ver o Reino de Deus, participar da salvação escatológica, esta visão se
distingue da do judaísmo, segundo a qual a participação da salvação depende
essencialmente da ação humana.
3,4-8
124
Esta interpretação literal da vinda de Nicodemos “de noite” está bem explicada em T. WIARDA,
Scenes, 168-173.
125
Cf. supra, Introdução, secção 3. Outra visão sobre a figura de Nicodemos, em J.-M. SEVRIN, The
Nicodemus Enigma, que vê em Nicodemos uma falta de fé explícita e pouco aprecia a coragem dele.
Semelhantemente R. HAKOLA, Burden.
126
O. HOFIUS, Das Wunder, 38.
127
IBID., 39s.
128
Segundo M. MORGEN, Jean 3, está por trás de Jo 3,1-12 a secção Mc 10,13-31par. Nos primeiros
versículos (Mc 10,13-16) o tema é “tornar-se como crianças/acolher crianças”; no chamamento do
homem rico (Mc 10,17-27) se trata das condições para entrar no Reino de Deus, e nos versos finais (Mc
10,28-31) se encontram as promessas para os que seguem Jesus. Todos esses elementos encontram-se em
Jo 3,1-12.
Beutler B -70
A pergunta de Nicodemos no v. 4 recebeu diversas explicações. Segundo alguns,
Nicodemos expressa um grotesco mal-entendido: ele pensa que a pessoa que quer
nascer de novo deve voltar para dentro do seio da mãe. Outros acham que a pergunta de
Nicodemos apenas demonstra que a palavra de Jesus sobre a necessidade do novo
nascimento lhe permanece incompreensível129. Esta interpretação é preferível. Fora da
fé, o acesso à mensagem de Jesus a respeito do novo nascimento lhe permanece
fechado.
A resposta de Jesus recomeça no v. 5 com a fórmula de afirmação “amém, amém,
te digo”. Os versículos seguintes são marcados por uma dupla oposição: nascimento x
novo nascimento, carne x espírito. Inicialmente, o tema é o novo nascimento. Segundo a
palavra de Jesus, só pode entrar no Reino de Deus quem é renascido da água e do
Espírito. O elemento água não é retomado a seguir; segundo Bultmann, é um acréscimo
da redação eclesial130. Mas o elemento água deixa-se explicar por duas razões. Por um
lado, pertence aos elementos ligados à Nova Aliança segundo Ez 36,25-27. Por outro
lado, muitos comentadores, e não só da Igreja católica, veem aí uma referência ao
batismo. É verdade que, na retomada do tema no v. 8, a água não mais é mencionada.
No lugar dele está uma imagem que já se encontra no Eclesiastes (Ecl 1,15): ninguém
sabe de onde vem o vento, nem para onde vai. Quando se entende “espírito”
literalmente, como sopro, pode-se dizer coisa semelhante de quem nasceu de novo, de
quem nasceu do Espírito131. Este espírito é contraposto à carne, que nada vale (cf. Jo
6,63). Ambos estes conceitos marcam mais a antropologia de Paulo que a de João. A
“carne” significa, nesta oposição, o ser humano como criatura ainda não salva.
3,9-12
Nicodemos toma a palavra pela terceira vez no v. 9. Por sua pergunta, ele
demonstra que não entendeu as palavras de Jesus. Ele continua numa visão meramente
humana e, daí, é incapaz de compreender as palavras de Jesus sobre o novo nascimento.
Não seria suficiente dar-lhe maior explicação, pois só na fé é que se tem acesso à
palavra de revelação de Jesus.
Na sua fala do v. 10, Jesus admira que Nicodemos não entende suas palavras.
Afinal, ele é “mestre de Israel”, mais, “o mestre de Israel”. Podemos ver aqui uma
alusão à designação de Jesus como “mestre” no início do diálogo (v. 2). De toda
maneira, para as leitoras e leitores é claro quem é “o mestre” de verdade. Neste sentido,
o plural “nós falamos do que conhecemos”, no v. 11, bem pode ser um eco do
“sabemos” do v. 2 [em grego, o verbo é o mesmo]*. Mais uma vez, a frase é introduzida
pela fórmula de afirmação “amém, amém, digo-te”; quanto ao conteúdo, Jesus se refere
a si mesmo pelo verbo no plural132. Pela primeira vez, no Evangelho segundo João,
Jesus aparece aqui como testemunha. Não dá um testemunho a respeito de si mesmo,
mas de coisas do céu. Isso pode mostrar influencia do pensamento apocalíptico133.
Assim como, no Prólogo, a luz não foi acolhida, acontece agora com o testemunho que
Jesus dá a respeito das coisas do céu, que ele viu (junto de Deus). Quando ele fala de
coisas da terra – provavelmente o discurso sobre a necessidade do novo nascimento – e
eles não acreditam nele, muito menos acreditarão quando falar das coisas do céu. Estas,
129
Neste sentido, O. HOFIUS, Das Wunder, 44-48.
BULTMANN 98 e nota 2. Mesma visão em J. SCHMIDL, Jesus und Nikodemus, e.o.
131
Segundo K. O. SANDNES, Whence and Whither, a origem misterioso de quem nasceu do Espírito e da
água corresponde à origem e destino misteriosos de Jesus.
132
Segundo O. HOFIUS, Das Wunder, 57, apresenta-se aqui a forma estilística da heterose.
133
Cf. J. BEUTLER, Martyria, cap. 7.
130
Beutler B -71
segundo Hofius134, seriam as verdades a respeito de Jesus Cristo e que serão
desdobradas nos versículos a seguir. O que está em jogo é, decisivamente, a fé. Quem
vai a Jesus sem a fé, não entenderá nem as coisas da terra, nem as do céu. Somente na fé
é que se abre o mistério da salvação em Cristo.
3,13-17
Nos cinco versículos seguintes, ocorre um movimento que se desloca das
fórmulas querigmáticas da fé em Cristo para a soteriologia. No fim do v. 17 aparece, de
fato, a forma verbal sōthênai “ser salvo”. Temos boas razões, segundo Hofius135, para
ver nestes versículos a continuação do diálogo de Jesus com Nicodemos sobre a
salvação, mesmo se esse diálogo não e mais mencionado e as palavras de Jesus
gradativamente se transformam em monólogo. Ao contrário dos vv. 1-12, nos vv. 13-17
mal se reconhece alguma tradição sinóptica subjacente. Só transparecem algumas
tradições veterotestamentárias e protocristãs, às quais dedicaremos nossa atenção in
loco.
No v. 13, Jesus fala pela primeira vez de si mesmo na terceira pessoa. Aplica a si
mesmo a expressão “Filho do Homem”. Segundo a tradição apocalíptica do livro de
Daniel (Dn 7,14), este Filho do Homem é uma figura do além. Há autores que veem
nesta tradição veterotestamentária a base para o Filho do Homem joanino, que sobe ao
céu136. Entre o Antigo Testamento e João se entrepõe a tradição sinóptica do Filho do
Homem. Os sinópticos conhecem três tipos de sentenças sobre o Filho do Homem: o
Filho do Homem que vem para julgar, o Filho do Homem presente sobre a terra e o
Filho do Homem que sofrerá, morrerá e ressuscitará. Este último tipo parece ter
exercido maior influência em João. É patente que João liga o título Filho do Homem a
enunciados que, em Is 42–53, se referem ao Servo de Deus, especialmente em Is 52,13–
53,12, o “quarto cântico do Servo”137. Pense-se, sobretudo, em Is 52,13 LXX, onde
lemos que o Filho do Homem “é enaltecido e glorificado”. Também Jo 3,13 parece
supor esta visão, mesmo se os versículos seguintes aludem a Nm 21,8s, a narrativa da
serpente no deserto. Em Jo 3,13 ainda não se exprime o “enaltecimento” do Filho do
Homem, mas somente sua subida. No v. 14, porém, o tema aparece. Para a “subida” de
Jesus ao Pai, veja-se Jo 6,62; 20,17. Em Jo 3,13, o tema da subida é introduzido em
vista da revelação. É o início do discurso sobre as “coisas do céu”. Só tem acesso a elas
aquele que, de junto de Deus, desceu do céu: o Filho do Homem. É provável que por
trás disso se esconda uma polêmica em relação a outras grandes figuras da história de
Israel, às quais, no tempo da literatura apocalíptica, se atribuíam viagens celestiais para
receber revelações divinas: Henoc, Moisés, Elias, Isaías, Baruc, Esdras...
No v. 14, o discurso passa da “subida” para o “enaltecimento”. Assim o olhar se
desloca da encarnação para a soteriologia. Contudo, o sentido do “enaltecimento”
continua discutível. Uns pensam que João, aqui, fala apenas do enaltecimento na cruz, a
ser seguido da glorificação138. Outros acham que o enaltecimento tem um sentido mais
amplo, que incluiria também o enaltecimento de Jesus junto ao Pai e a sua
glorificação139. Esta opinião parece mais de acordo com a visão joanina. Em Jo 3,14
134
O. HOFIUS, Das Wunder, 58s.
Cf. ibid., 34s.
136
Assim H. MERKLEIN, Gott und Welt, 269s., e.o.
137
Cf. J. BEUTLER, Greeks; ID., Griechen; D. O. OBIELOSI, Servant of God, 197-214.
138
Assim O. HOFIUS, Das Wunder, 61-63, com W. THÜSING, Die Erhöhung, e E. RUCKSTUHL, citado por
H. MERKLEIN, Gott und Welt, 270, nota 37.
139
Assim H. MERKLEIN, v. nota anterior, com R. BULTMANN, R. SCHNACKENBURG e outros.
135
Beutler B -72
trata-se do alteamento da serpente no deserto como apotropaico para os israelitas contra
as serpentes venenosas. O ponto de comparação, para João, está no enaltecimento para a
salvação do povo. Aqui há um encontro entre as duas tradições veterotestamentarias, a
do êxodo e a do Servo de Deus (Is 52,13 LXX). A ideia da salvação se exprime também
no deî (“deve”) divino, que aponta para a necessidade segundo o plano salvífico de
Deus.
A humanidade não encontra a salvação automaticamente, ex opere operato, sem
colaboração própria. Esta colaboração, segundo o v. 15, subsiste na fé em Jesus. O en
autôi, “nele”, deve ser ligado, aqui, à recepção da vida e não ao “crer em” Jesus: “a fim
de que todo o que crer tenha, nele, vida eterna”140. Os vv. 14-15 constituem uma
unidade sintática, como mostra o estudo de R. H. Gundry141, e têm seu ponto
culminante na oração final do v. 15. O enaltecimento da serpente no deserto prepara o
enaltecimento do Filho do Homem, que conduz à vida eterna de todos os que creem
nele.
A construção do v. 16 é semelhante à dos vv. 14-15; o v. 16cd corresponde ao v.
15. A palavra de Jesus significa uma promessa de vida eterna para todos os que creem
no Filho de Deus (aqui encontra-se a expressão pisteúein eis, que faltava no v. 15). Este
dom deve-se ao amor de Deus para o mundo. Este pensamento surpreende, porque, em
João, “o mundo” geralmente é contraposto a Deus e seu Enviado (cf. Jo 1,10!). De Jo
3,16 pode-se concluir que o amor de Deus à humanidade não conhece limite e que sua
vontade salvífica não exclui ninguém142. E em que consiste esse “dom” do Filho? Seria
possível pensar na entrega do Filho em sua morte na cruz, mas, neste caso, seria de se
esperar o verbo parédōken. Por isso, parece mais indicado interpretar o “dom” do Filho
como seu envio à humanidade.
E o v. 17 se conecta a isso? Segundo Hofius143, os vv. 13-17 apresentam um
quiasmo: no v. 13 observa-se o tema da encarnação, nos vv. 14-16 trata-se do envio do
Filho na sua morte salvífica, e o v.17 retoma o tema da encarnação. Mas esta proposta é
falha, porque entende o édōken do v. 16 no sentido de parédōken, o que não parece
recomendável. Seja como for, existe uma conexão entre o “envio” do Filho segundo o v.
17 e a descida do Filho do Homem no v. 13. O sentido deste envio é claro: trata-se da
salvação do mundo enquanto família humana.
3,18-21
Ao contrário do que pensam Bultmann e sua escola, o grupo de versículos
subsequente não se separa completamente do anterior. Mostra isso o fato de, já no v. 17,
aparecer o tema do “julgar”, como também aparece o acento posto na necessidade da fé,
não só no v. 18, mas já nos vv. 15 e 16. Quando se propõe ver em Jo 3,13-21 a
continuação e desdobramento do diálogo com Nicodemos, os vv. 13-17 podem intitularse “o novo nascimento em virtude da fé no Filho enviado pelo Pai”, e os vv. 18-21, “o
novo nascimento em virtude das obras da verdade”.
O v. 18 retoma o versículo anterior e o interpreta, assim como antes o v. 15
completou o v. 14, e o v. 16cd o enunciado de 16ad. O que há de novo é o tema do
140
Lemos com Nestle-Aland28 evn auvtw/|, de acordo com os manuscritos antigos P 75 e B; é lectio difficilior
e, por isso, preferível. P 66 L leem evpV auvtw/|, a maioria dos manuscritos tem eivj auvto,n, assimilação à
terminologia joanina com pisteu,ein.
141
R. H. GUNDRY, The Sense and Syntax, 373-376.
142
Cf. J. BEUTLER, So sehr hat Gott. Segundo E. E. POPKES, Love of God, o versículo é criação joanina.
143
O. HOFIUS, Das Wunder, 59s.
Beutler B -73
julgamento: quem não “crê no nome do Filho unigênito de Deus” já está julgado. Neste
lugar encontramos, pela primeira vez, a escatologia joanina como ela foi analisada e
apresentada, recentemente, por J. Frey144. É característico, para João, a convicção de
que o julgamento final tem lugar já na hora da fé ou da recusa da fé. Esta visão, porém,
é completada por outra, segunda a qual haverá um julgamento no fim (compare Jo 5,2527 com 5,28-29). Recomenda-se explicar esta tensão antes a partir de tradições diversas
do que a partir de camadas literárias divergentes, como fazem Bultmann e sua escola.
O v. 19 pressupõe o anterior (v. 18) e continua a ideia de que o julgamento
acontece no momento presente, e não em algum último dia145. Indica o fundamento do
pecado do mundo e do julgamento: as pessoas amaram mais as trevas do que a luz,
porque suas ações eram más. Estes dois enunciados se interpretam mutuamente. As
“más ações” não significam ações condenáveis moralmente, mas a rejeição da luz, que
desde o Prólogo é descrita como dada com o Logos divino.
O mesmo pensamento volta no v. 20. Todo aquele que faz o mal, odeia a luz e não
vai à luz. Caso contrário, suas más ações são denunciadas. Os comentadores discutem
se se encontram, aqui na terra, homens maus desde o início, no sentido do evangelista, e
homens da luz. De um lado, acentua-se o significado da predestinação para a salvação,
do outro, que todos os humanos, como tais, necessitam da graça para o perdão dos
pecados e a salvação. Na exegese de Jo 3,18-21 cabe prudência, porque este texto não
apresenta visão suficiente para solucionar a relação difícil da predestinação divina com
a liberdade humana146.
Assim como aquele que comete ações más evita a luz, também os filhos da luz
procuram a luz, para que suas boas ações se tornem manifestas como tais. A expressão
“fazer a verdade” não é grega, é hebraica. Encontra-se também em 1Jo 1,6, comentada
por R. E. Brown147, com alegação de exemplos da literatura hebraica, da Septuaginta e
da literatura intertestamentária. A expressão encontra-se nos textos de Qumrã, e.o. (cf.
1Q S 8,1-2). No uso lingüístico hebraico, “verdade” (emet) não significa o acesso à
realidade empírica ou teórica, mas antes a realidade como se manifesta a partir da
revelação de Deus. Quem “faz a verdade” é aquele que se abre à palavra de Deus. Como
filho da luz, chega à luz, e seus atos podem manifestar-se como bons.
III
O pensamento do novo nascimento tem raízes bíblicas, mas não se deixa deduzir
delas completamente. Na parte Jo 1,19-34, o Batista anuncia um batismo vindouro na
água e com o Espírito Santo, a ser administrado por Jesus (Jo 1,33). Em Ez 36,25-27
encontramos a purificação escatológica com água e uma renovação pelo Espírito. O
novo nascimento é mais afim com textos sincretistas do fim da Antiguidade. É de se
considerar sobretudo o Tratado XIII “De regeneratione” do Corpus Hermeticum. Em
relação a isso, C. H. Dodd elaborou as correspondências e as diferenças em comparação
com o Evangelho segundo João148. Em ambos os escritos o ser humano chega à vida
eterna mediante uma forma de conhecimento em virtude de um novo nascimento, que
faz a pessoa sair do domínio do corpo ou da carne para o domínio do Nous ou do
144
Cf. J. FREY, Die johanneische Eschatologie, I-III.
“Julgar” não significa apenas a “distinção”, mas o veredicto no sentido dos vv. 17-18, como acentua
acertadamente M. GOURGES, Hautè de estin.
146
Este livre arbítrio é contestado por O. HOFIUS, Das Wunder, 79s., em solidariedade com M. Lutero.
147
R. E. Brown, The Epistles, 200.
148
C. H. DODD, The Interpretation, 44-53.
145
Beutler B -74
Espírito. Ambos os escritos falam da necessidade da purificação, a qual, porém, não é o
último passo. Segundo ambos os escritos, o ser humano chega à filiação divina com a
ajuda do Logos. O papel de Hermes como Revelador corresponde, nisso, ao de Cristo, o
Filho de Deus encarnado149. Mas importa observar as diferenças. Os leitores cristãos do
Quarto Evangelho chegam à salvação não somente por um conhecimento outorgado por
Deus, mas pela fé. É exatamente isso que a continuação de Jo 3,1-12 coloca na luz. Na
fé, eles não se confessam simplesmente a favor do Logos, mas do Logos encarnado, que
deve seguir um caminho de sofrimento. Tudo isso é alheio ao pensamento helenístico:
precisa ser pregado, e crido.
7. Jesus na Judeia. Novo testemunho do Batista (3,22-36)
22
Depois disso, Jesus foi com seus discípulos para a terra da Judéia. Ele ficava lá
com eles e batizava. 23 Ora, também João estava batizando, em Enon, perto de Salim,
porque lá havia muita água, e vinham lá para serem batizadas. 24 João, de fato, ainda
não tinha sido lançado na prisão. 25 Surgiu então, da parte dos discípulos de João, com
um judeu, uma discussão acerca da purificação. 26 Eles foram até João e disseram-lhe:
“Mestre, aquele que estava contigo do outro lado do Jordão e de quem tu deste
testemunho, eis que está batizando, e todos vão a ele”. 27 João respondeu: “O homem
não pode receber coisa alguma, se não lhe for dada do céu. 28 Vós mesmos sois
testemunhas de que eu disse: ‘Eu não sou o Cristo, mas fui enviado à sua frente’.
29
Quem tem a noiva é o noivo, mas o amigo do noivo, que está lá ouvindo-o, enche-se
de alegria por causa da voz do noivo. Esta é a minha alegria, e ela ficou completa. 30 É
preciso que ele cresça, e eu diminua”.
31
Aquele que vem de cima está acima de todos. Quem é da terra, pertence à terra
e fala coisas da terra. Aquele que vem do céu está acima de todos. 32 Ele dá testemunho
do que viu e ouviu, mas ninguém recebe o seu testemunho. 33 Quem recebe o seu
testemunho marcou com selo que Deus é verdadeiro. 34 De fato, aquele que Deus enviou
fala as palavras de Deus, pois ele dá o Espírito não por medida. 35 O Pai ama o Filho e
pôs tudo em suas mãos. 36 Aquele que crê no Filho tem a vida eterna. Aquele, porém,
que desobedece ao Filho não verá a vida, mas a ira de Deus permanece sobre ele.
I
Jo 3,22-36 apresenta aos exegetas alguns problemas. O início da perícope é
claramente demarcado em relação ao diálogo com Nicodemos, por novos indícios de
tempo e lugar. Mais difícil é dizer onde termina a perícope que começa em Jo 3,22. No
início se destacam os vv. 22-30 como unidade narrativa em forma de diálogo. Do v. 31
até o v. 36 seguem-se alguns enunciados de caráter geral, que lembram a parte
discursiva 3,12-31, com a qual, como dissemos, alguns autores os colocam em conexão.
Mais raramente se vê em 3,31-36 a continuação das palavras do Batista dos vv. 27-30.
Outros ouvem aqui a voz de Jesus. A maioria dos comentadores, porém, percebe aqui
enunciados do evangelista, ao qual remontaria este texto evangélico. De toda maneira,
estas palavras mostram continuidade antes com o contexto antecedente do que com o
subsequente. Possuem também ligações com o contexto antecedente quanto ao
conteúdo. Por isso, faz sentido tratá-las junto com este.
149
Cf. ibid. 49.
Beutler B -75
Olhando para os vv. 22-30 surpreende a notícia, no v. 22, de que Jesus chegou à
região de Judá, visto que já anteriormente sua presença nessa região tinha sido
mencionada. E como se explica que em 3,22 se afirma que Jesus batizou (v. 22), se no
v. 4,3 isso é negado? E quem é o “judeu” com o qual os discípulos do Batista, segundo
Jo 3,25, se envolvem em discussão? Será que o texto foi corrompido? E qual a conexão
entre o tema do batismo e o do esposo e do amigo no v. 29? Até que ponto o texto pode
ser considerado unitário e que é que ele apresenta do ponto de vista literário e
teológico?
Durante muito tempo, a pesquisa tentou resolver as tensões que aparecem
precisamente nesta primeira parte, pela diferenciação entre a tradição e a redação do
evangelista. Vale a pena ler, neste respeito, o artigo de J. W. Pryor 150, segundo o qual os
vv. 22-25 na maior parte remontam à tradição pré-joanina. João teria apenas
transformado, no v. 25, um diálogo com Jesus num diálogo com “um judeu”,
eliminando assim qualquer concorrência entre o Batista com seus discípulos, por um
lado, e Jesus, por outro. Para a tradição pré-joanina, uma atividade batismal de Jesus
não constituía problema. No v. 26, então, teríamos a transição para o texto do
evangelista.
Quanto à imagem do esposo em relação a Jesus, no v. 29, os autores costumam
lembrar Mc 2,18-20 par. Mt 9,14s. Além disso, É. Trocmé151 suspeita que já o Batista
tenha usado, para seu anúncio do tempo final, a imagem veterotestamentária de esposo e
esposa para indicar a relação de Deus e seu povo. Marcos teria dado a isso uma
interpretação cristológica. Jogar mais luz sobre esta questão será difícil, mas também
não é necessário para a interpretação do texto joanino em pauta.
Como é construída esta unidade textual e como ela pode ser explicada na
imanência do texto? Ajuda-nos aqui o artigo de T. Nicklas152. Segundo este autor, devese fazer uma distinção entre a crítica literária antiga, que analisava fontes e camadas, e a
nova, que interpreta o texto a partir de seus sinais linguísticos. Exatamente isto se impõe
como primeiro passo: muitas tensões geralmente tomadas como ponto de partida para
hipóteses diacrônicas, revelam-se na leitura mais atenta do texto como plenamente
inteligíveis. As tensões podem assim ser concebidas como “vazios” no texto, que o
autor conscientemente criou ou guardou, para convidar o público leitor a acompanhar o
pensamento.
T. Nicklas inclui em sua análise também Jo 4,1-3 e percebe uma construção
concêntrica: 3,22-24 e 4,1-3 constituem a “moldura” na qual é incluído o “diálogo”
entre o Batista e seus discípulos, 3,25-30.31-36. Parece, contudo, melhor conceber Jo
4,1-3 como unidade textual autônoma, como introdução num novo contexto geográfico,
como fundamentaremos mais adiante.
No interior da unidade textual Jo 3,22-26 separam-se reciprocamente os vv. 22-30
e 31-36. Ao vv. 22-34 descrevem a atividade batismal de Jesus e do Batista na Judeia e
se encerram com o parêntese lembrando que João ainda não tinha sido lançado à prisão
(v. 24). Segue-se, nos vv. 25-30, um diálogo entre os discípulos de João e ele mesmo a
respeito da atividade batismal de Jesus; mas não é claro até onde esse diálogo vai. A
interlocução parece terminar no v. 30. Seguem-se então, nos vv. 31-36, enunciados
sobre Jesus como aquele que vem de cima e sobre a fé nele, que se conectam ao
150
J. W. PRYOR, John the Baptist.
É. TROCMÉ, Jean 3,29.
152
Cf. T. NICKLAS, Literarkritik, 180s.
151
Beutler B -76
contexto antecedente apenas de maneira tênue. Isso indica grosso modo a divisão do
texto que vamos estudar.
II
3,22-24
Com um “depois disso” (meta taûta, cf. 5,1; 6,1; 7,1) característico inicia-se uma
nova secção narrativa. Como nos relatos joaninos de milagres segue-se, a uma parte
narrativa (aqui vv. 22-24), um diálogo (aqui vv. 25-30). No v. 22, depois da indicação
do tempo, introduzem-se os personagens: Jesus e seus discípulos. Os verbos “foi” e
“batizava”, no singular, referem-se em primeiro lugar a Jesus; os discípulos parecem
acrescentados posteriormente, servindo, provavelmente, para constituir um grupo
correspondente ao dos discípulos do Batista que aparecem no v. 25. O texto menciona,
sem reticências, que Jesus batizava, embora isso contradiga a correção introduzida em
Jo 4,2. Com T. Nicklas pode-se ver aqui uma provocação da curiosidade do público
leitor. Pode ser também que diversas camadas literárias aqui se chocam.
Teologicamente temos aqui, mais uma vez, a oposição entre o batismo com água e o
com o Espírito Santo.
A informação de que Jesus foi para “a Judeia” suscitou muitas perguntas. De fato,
em 2,13 já se mencionou a subida a Jerusalém, capital da Judeia. Leiamos, pois, o texto
com atenção. Embora Jerusalém seja a capital, a região como tal não foi mencionada em
2,13–3,21. Parece que o evangelista vê Jesus num movimento que sai de Jerusalém
(2,13), passa pela “Judeia” (3,22) e pela “Samaria” (4,4) e desemboca na “Galileia”
(4,43). Destarte, sua revelação como Palavra de Deus e Filho de Deus traça círculos
sempre maiores, afastando-se sempre mais do centro da fé judaica em direção da
periferia. Os habitantes de Sicar veem nele, com toda a razão, o “salvador do mundo”
(4,42). Este movimento corresponderia, assim, à missão que Jesus confia a seus
apóstolos em At 1,8, para que sejam suas testemunhas “em Jerusalém e em toda a
Judeia e em Samaria, e até os confins da terra”. João poria então a “Galileia” no lugar
desses “confins da terra”.
No v. 22, o evangelista pensa numa estada mais demorada de Jesus na “terra da
Judeia”: a escolha do imperfeito indica isso. A atividade batismal de Jesus deve ser
pensada com a mesma extensão temporal. No v. 23 fala-se do mesmo modo a respeito
da atividade batismal de João. Quanto à indicação do lugar, até hoje não se conseguiu
verificá-la; mais importante que o lugar geográfico preciso é a menção à água
abundante no lugar onde João batiza, como acentua, linguisticamente, o nome de
“Enon” (= “fonte”). Assim o batismo de João é duplamente evocado como batismo com
água, de acordo com o que o próprio Batista declarou ser característico dele (cf. Jo
1,26.33). Os leitores do Quarto Evangelho lembrarão que já em 1,33 foi anunciado
aquele que batizaria com Espírito Santo. O “vazio” completa-se, assim, pela memória
do público leitor. O v. 23 menciona explicitamente que “eles”, certamente em grupos,
iam até lá para serem batizado pelo Batista. Isso leva então à subsequente interpelação
dos discípulos.
Mas, antes de relatar esta, o evangelista introduz, no v. 24, uma informação que
antecipa o que acontecerá com o Batista mais tarde. Leitores familiarizados com a
tradição sinóptica (cf. Mc 1,14 par.) evidentemente sabem de que se trata; em 5,35, o
evangelista dá a prisão do Batista por pressuposta. A antecipação aqui em 3,24 serve, ao
que parece, para dar peso ao testemunho do Batista a seguir: é palavra de um homem
que garante seu testemunho com sua própria vida.
Beutler B -77
3,25-30
O diálogo seguinte, entre o Batista e os seus discípulos, articula-se em duas
secções menores. Nos vv. 25-26 temos a interpelação feita pelos discípulos de João, nos
vv. 27-30, a resposta deste – tenuamente conectada com os vv. 31-36. Os discípulos de
João aparentemente veem no batismo ministrado por Jesus e acolhido com grande
sucesso, uma concorrência com o batismo que o mestre deles ministra. Não é claro com
quem eles discutem. Segundo o texto, trata-se de “um judeu” – mas que vem fazer um
judeu lá onde caberiam discurso e resposta de Jesus? Muitos manuscritos apresentam a
lição ioudaíōn (“judeus” no plural) em vez de ioudaíou (“judeu”, no singular), mas as
mais importantes dentre as testemunhas textuais antigas não sustentam esta lição.
Aceite-se, pois, a lição mais difícil, ioudaíou, no v. 25. Se damos ao vocábulo o sentido
geográfico, como no caso da ioudaía gê (lit. “a terra judia”), no v. 22, podemos entender
que se trata de uma discussão entre os discípulos do Batista e um habitante da Judeia,
que podemos imaginar como sendo seguidor de Jesus153.
Surpreende também o objeto da discussão: a purificação. Já em Jo 2,6 falou-se em
“purificação (segundo o costume) dos judeus”. O leitor pode-se perguntar se, aqui, em
3,25, o batismo está sendo incluído nessa categoria.
Jesus é designado, pelos discípulos do Batista, como aquele “de quem tu deste
testemunho”. Esta expressão remete claramente a Jo 1,19-34. Assim também a
indicação do lugar, “além do Jordão”. Portanto, parece que está sendo retomado e
continuado esse testemunho do Batista a favor de Jesus, no caso, com respeito à relação
entre o Batista e Jesus. Esta parece ser vista criticamente pelos discípulos do Batista; o
sucesso de Jesus é considerado prejudicial para o sucesso de João.
A resposta de João, nos vv. 27-30, reata com o testemunho de 1,19-34. Segundo
este testemunho, Jesus é superior a João. Quando o sucesso de Jesus supera o de João, é
porque Deus assim o quer (v. 27; cf. 6,44; 19,11). João Batista não é, pessoalmente, o
Messias; ele apenas foi enviado à frente dele para lhe preparar o caminho (v. 28; cf.
1,20.23). Ele é apenas o amigo do esposo, que se alegra quando ouve a voz do esposo
no quarto nupcial (v. 29). Este deve crescer, ele, porém, diminuir (v. 30). A alternância
das imagens convida os leitores a uma colaboração criativa. Eles se lembrarão das
imagens bíblicas da relação nupcial entre Deus e seu povo, e também da cena das bodas
de Caná, em Jo 2,1-12, com seu mundo de simbolismo. A alegria que o amigo do
esposo sente é experimentada agora pela Batista, no seu último testemunho a favor de
Jesus. É uma alegria completa, da qual também o leitor deve participar154.
3,31-36
Como anunciado já na explicação introdutória (I), os vv. 31-36 conectam-se com
o contexto anterior de modo muito tênue. Porém, em vez de mudá-los de lugar, convém
explicá-los no lugar onde se encontram, no quadro do contexto maior. Podem ser lidos
como “releitura” de Jo 3,1-30, para usar os termos de Jean Zumstein. Os enunciados de
Jo 3,1-21, sobretudo acerca do novo nascimento, recebem continuação. Já em Jo 3,11s.,
esses enunciados ensejaram declarações a respeito de Jesus como aquele que traz uma
mensagem celestial. Outro tema que se retoma em 3,31-36 é o do dom do Espírito (v.
34), bem como o tema do testemunho (v. 32s). A mudança para a terceira pessoa
153
O sentido geográfico de VIoudai/oj é acentuado por M. LOWE, Who Are, e.o.
Boa exposição da alegria escatológica do Batista neste texto, por M. KEMPTER, Signification
eschatologique.
154
Beutler B -78
gramatical marca a delimitação em relação ao testemunho do Batista em 3,27-30: a
partir do v. 31, o orador não fala mais de si na primeira pessoa155.
Este grupo de versículos mostra correspondências entre os vv. 31-33 por um lado
e 34-36 por outro.
31
Aquele que vem de cima está acima de
todos. Quem é da terra, pertence à terra e
fala coisas da terra. Aquele que vem do
céu está acima de todos. 32 Ele dá
testemunho do que viu e ouviu, mas
ninguém aceita o seu testemunho. 33 Quem
aceita o seu testemunho marcou com selo
que Deus é verdadeiro.
34
De fato, aquele que Deus enviou fala as
palavras de Deus, pois ele dá o Espírito
sem medida. 35 O Pai ama o Filho e pôs
tudo em suas mãos. 36 Aquele que crê no
Filho tem a vida eterna. Aquele, porém,
que se recusa a crer no Filho não verá a
vida, mas a ira de Deus permanece sobre
ele.
No início está um enunciado sobre a mensagem que vem de cima, de Deus, como
testemunho ou palavra. A esta palavra ou testemunho segue-se uma resposta, que pode
ser de dois modos: de aceitação ou de rejeição. No primeiro caso, o crente, que aceita a
mensagem, atesta (lit. afirma com selo) que Deus é verdadeiro e recebe a promessa da
vida eterna (v. 36). Mas àquele que se recusa a crer anuncia-se a ira de Deus no
julgamento (ibid.). Estrutura semelhante já encontramos no Prólogo do Quarto
Evangelho. A frase dizendo que os seus não acolheram a palavra de Deus (Jo 1,5,9.10) é
compensada pela promessa de que todos os que creem neste palavra se tornam filho de
Deus (1,12s).
No início da passagem dos vv. 31-33 aparece a contraposição entre aquele que
vem de cima/do céu e aquele que é da terra. Já conhecemos a expressão “de cima”
(ánōthen) pelo diálogo entre Jesus e Nicodemos em Jo 3,3.7. Ali o sentido podia ser:
nascer “de cima” ou “de novo”. O primeiro sentido poderia ser sustentado pelo texto
que ora estamos analisando, mas tal correspondência não deve ser sobrestimada. O “vir”
de Jesus já foi mencionado nas palavras do Batista em 1,15.27.30. Este Jesus é aquele
que “vem de cima”. Segundo o v. 34, ele foi “enviado por Deus”. A este, que vem de
cima, opõe-se aquele que é da terra. Alguns poucos autores veem neste personagem
João Batista, o qual, em comparação com Jesus, tinha uma mensagem mais terrena e
mais humana (R. E. Brown). Mas é preferível ver naquele que é da terra qualquer um
que traz uma mensagem meramente humana. Isso não se pode dizer da mensagem
profética de João Batista, o “homem enviado por Deus” (1,6).
Aquele que vem de cima está acima de todos. O agir segue o ser. Visto que está
acima de todos, pode falar de cima, com pleno poder do Altíssimo156. Tal embaixador
celestial não apenas “fala” de coisas celestiais, ele dá testemunho delas. Este enunciado
lembra Jo 3,11, onde Jesus diz de si mesmo que ele “dá testemunho daquilo que viu”.
Por isso, o que ele diz é fidedigno. A representação de uma testemunha de coisas
celestiais ambienta-se nos textos apocalípticos. Deve, porém, ser distinguida da
representação, frequente em João, do testemunho a favor de Jesus e de sua missão da
155
M. STARE, “So nämlich liebte Gott die Welt”, vê em Jo 3,31-36 “o testemunho do Batista como eco
das palavras de Jesus na parte final do diálogo com Nicodemos” (74), sendo que Jo 3,31-36 retoma das
palavras de Jesus de Jo 3,9-21.
156
Convém manter a repetição de evpa,nw pa,ntwn evsti,n no V. 31 com Nestle-Aland, apesar dos colchetes,
que são devidos à ausência da repetição em P 75 a* D etc.
Beutler B -79
parte do Pai157. O texto não diz de modo unívoco qual seria o conteúdo da mensagem
celestial trazida por Jesus. Mas o contexto geral do Quarto Evangelho permite concluir
que o conteúdo de seu testemunho é dado com seu envio como revelador da parte do
Pai. O que ele deve anunciar e testemunhar é, exatamente, este envio, e só isso.
A dupla resposta que se pode dar à mensagem celestial já foi indicada no Prólogo,
como acima dissemos. A contradição entre a asserção genérica de que “ninguém aceita
o seu testemunho” e um grupo humano particular que, contudo, o aceita, se deixa
resolver com a indicação de que, para a acolhida da mensagem divina, é preciso a
predestinação de Deus e sua graça (cf. Jo 6,44). Só a partir de si mesmo, o ser humano
não pode entender nem aceitar a revelação divina.
A quem acolhe a mensagem divina não se apresenta nenhuma promessa, mas dele
se diz que “marcou com selo que Deus é verdadeiro”. O contrário seria fazer de Deus
um mentiroso, como se diz em 1Jo 1,10 a respeito daqueles que pretendem que não
pecam. A expressão “confirmar com selo” (sphragízein) encontra-se ainda uma vez em
João, em 6,27, onde é dito que Deus “marcou com selo” o seu Filho que enviou ao
mundo: ele o marcou com o selo da fidedignidade. De acordo com isso, os que aceitam
o testemunho do Filho confirmam o envio dele como revelador da parte do Pai e, ao
mesmo tempo, a fidedignidade do Pai que o enviou.
Nos vv. 34-36, inicialmente, o “ser enviado por Deus” corresponde ao “vir de
cima”. Também no restante, as palavras do v. 34 correspondem às de 31s., ainda que
com algumas modificações. A primeira diferença é que se diz de Jesus, o Enviado de
Deus: “ele dá o Espírito sem medida”. Assim, a palavra de revelação do Filho é ligada
ao dom do Espírito, e a secção 3,31-36, conectada com o diálogo de Jesus e Nicodemos
em 3,1-12. Na medida em que realça a dimensão pneumática da revelação, o autor
acentua a dimensão trinitária da salvação e, destarte, encerra o inteiro cap. 3.
A outra diferença em comparação com os vv. 31-33 consiste na afirmação de que
o Pai ama o Filho e pôs tudo em suas mãos (v. 35). Do amor do Pai para o Filho falam
os discursos de despedida (Jo 17,23.26). No início dos discursos é confirmado que Deus
pôs tudo nas mãos do Filho (Jo 13,3). Esta dupla correspondência mostra que nosso
texto do capítulo 3 se situa na proximidade dos discursos de despedida em sua forma
final (Jo 17 provavelmente pertence à última camada desses discursos e do conjunto do
Evangelho segundo João). Quanto ao conteúdo, pode-se ver neste motivo a influência
da teologia da Aliança do Antigo Testamento: Israel ama a Deus e é amado por ele, na
medida em que permanece fiel a seus mandamentos (cf. Dt 7,8s.13).
A promessa de vida eterna feita àqueles que creem no Filho é um motivo central
do Quarto Evangelho (cf. desde Jo 3,16.18 até o versículo final 20,31). A alternativa, a
incredulidade, no v. 36 é designada como “desobediência”. Essa desobediência leva à
“ira” de Deus, termo que ocorre em João só aqui e, em outros lugares, é representado
pelo termo “julgamento” (cf. Jo 3,17-21). Na tradição sinóptica, ao contrário, o termo
“ira” encontra-se na tradição da pregação penitencial do Batista (Lc 3,7). Alguns autores
concluem, desse parentesco linguístico, que Jo 3,31-36 faz parte do discurso do Batista
que se inicia em 3,27, mas isso nada mais é do que uma possibilidade.
157
Cf. J. BEUTLER, Martyria, 328ff. zu Joh 3,11.32; ID., art. marture,w, in EWNT II 960-962. Os textos de
Qumrã falam num “testemunho”, hdw[t, divino. Segundo o Rolo da Guerra (1 QM 11,7s.), os profetas são
os “videntes do testemunho” em relação à revelação do calendário da comunidade. Semelhante uso de
“testemunho” encontra-se no proêmio de 2 Henoc (eslavo). No Novo Testamento, o Apocalipse conhece
esse uso (cf. Ap 1,1s.).
Beutler B -80
III
Qual é a mensagem permanente de Jo 3,22-36, válida também para nós? O texto
convida a se envolver com um movimento. O ponto de partida é “a Judeia”, a “terra
judaica”. Apresenta-se João Batista, dando seu testemunho a respeito de Jesus.
Característico é, nestes vv. 22-30, o “antes” e o “depois”. João foi enviado antes do
Messias que ele anuncia, como já disse anteriormente. Quem vem depois dele é o
esposo da noiva que é o povo de Deus. Ele mesmo, João, é apenas o amigo do esposo;
ele não entra no quarto nupcial. Jesus deve crescer; ele, João, deve diminuir. Assim, o
texto permanece solidamente ancorado dentro do judaísmo de seu tempo com sua
expectativa da salvação escatológica, messiânica.
Nos vv. 31-36, porém, a perspectiva muda. Percebemos neste texto uma
“releitura”, leitura renovada da parte precedente. No lugar de um dualismo temporal
entra um dualismo espacial. Jesus não vem cronologicamente depois de seu precursor:
espacialmente, em virtude de sua origem, ele está acima de todos os que falam da
salvação. Ele apresenta uma mensagem celestial. Ele é enviado da parte do Pai. Nisso,
ele não traz somente a palavra e a mensagem de Deus, mas também o Espírito de Deus,
sem medida. Este pensamento reata com textos anteriores. Por um lado, o evangelista
aqui é marcado por representações apocalípticas, que conhecem o “testemunho” do
vidente do mundo celestial. Por outro lado, com a mudança da perspectiva temporal
para a perspectiva espacial, abre o texto para leitores helenistas, familiarizados com
Platão. O mundo autêntico de “cima” é contrastado com o mundo inautêntico de
“baixo”. Deste mundo de “cima” vêm a mensagem salvífica e o mensageiro salvador.
A mudança de perspectiva convida a refletir sobre rescritas mais avançadas da
mensagem salvadora. Representações espaciais do “mundo celestial” como o mundo
verdadeiro e como origem da salvação, frequentemente, causam mal-entendidos. Há
muita coisa que sugere que, hoje, é preciso considerar novamente e com mais
intensidade a dimensão temporal. O Concílio Vaticano II apropria-se da “alegria e
esperança” de toda a família humana. Isso abre novamente a mensagem da salvação em
direção ao futuro. E leva de volta para a esperança da salvação de Israel, da “Judeia”.
8. Jesus na Samaria (4,1-42)
4 1 Quando Jesus soube que os fariseus ouviram dizer que ele reunia mais
discípulos e batizava do que João 2–se bem que Jesus mesmo não batizasse, mas os seus
discípulos –, 3 ele deixou a Judéia e foi novamente embora para a Galileia. 4 Era
preciso que ele passasse pela Samaria. 5 Chegou, pois, a uma cidade da Samaria,
chamada Sicar, perto da propriedade que Jacó tinha dado a seu filho José. 6 Havia ali
a fonte de Jacó. Jesus, fatigado da viagem, sentou-se junto à fonte. Era por volta da
hora sexta.
7
Veio uma mulher da Samaria tirar água. Jesus lhe disse: “Dá-me de beber!”
Os seus discípulos tinham ido à cidade comprar algo para comer. 9 A samaritana
disse a Jesus: “Como é que tu, sendo judeu, pedes de beber a mim, que sou uma mulher
samaritana?” De fato, os judeus não se relacionam com os samaritanos. 10 Jesus
respondeu: “Se conhecesses o dom de Deus e quem é aquele que te diz: ‘Dá-me de
beber’, tu lhe pedirias, e ele te daria água viva”. 11 A mulher disse: “Senhor, não tens
sequer um balde, e o poço é fundo; de onde tens essa água viva? 12 Serás maior que
nosso pai Jacó, que nos deu este poço, do qual bebeu ele mesmo, como também seus
filhos e seus animais?” 13 Jesus respondeu: “Todo o que bebe dessa água, terá sede de
8
Beutler B -81
novo. 14 Aquele, porém, que beber da água que eu darei, nunca mais terá sede, mas a
água que eu darei se tornará nele uma fonte de água jorrando para a vida eterna”. 15 A
mulher disse então a Jesus: “Senhor, dá-me dessa água, para que eu não tenha mais
sede, nem tenha de vir aqui tirar água”.
16
Ele lhe disse: “Vai chamar teu marido e vem aqui!” 17 A mulher respondeu:
“Eu não tenho marido”. Jesus lhe disse: “Falaste bem que não tens marido. 18 De fato,
cinco maridos tiveste, e o que tens agora não é teu marido. Nisso falaste a verdade”.
19
A mulher lhe disse: “Senhor, vejo que tu és um profeta! 20 Os nossos pais adoraram
sobre esta montanha, mas vós dizeis que em Jerusalém está o lugar em que se deve
adorar”. 21 Jesus lhe respondeu: “Mulher, acredita-me: vem a hora em que nem nesta
montanha, nem em Jerusalém adorareis o Pai. 22 Vós adorais o que não conheceis. Nós
adoramos o que conhecemos, pois a salvação vem dos judeus. 23 Mas vem a hora, e é
agora, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade.
Estes são os adoradores que o Pai procura. 24 Deus é Espírito, e os que o adoram
devem adorá-lo em espírito e em verdade”. 25 A mulher disse-lhe: “Eu sei que virá o
Messias (isto é, o Cristo); quando ele vier, nos fará conhecer todas as coisas”. 26 Jesus
lhe disse: “Sou eu, que estou falando contigo”.
27
Nisto chegaram os discípulos e ficaram admirados ao ver Jesus conversar com
uma mulher. Mas ninguém perguntou: “Que procuras?”, nem: “Por que conversas
com ela?”. 28 A mulher abandonou a sua bilha e foi à cidade, dizendo às pessoas:
29
“Vinde ver um homem que me disse tudo o que eu fiz. Não será ele o Cristo?”
30
Saíram da cidade ao encontro de Jesus.
31
Enquanto isso, os discípulos insistiam com Jesus: “Rabi, come!” 32 Mas ele
lhes disse: “Eu tenho um alimento para comer que vós não conheceis”. 33 Os discípulos
comentavam entre si: “Será que alguém lhe trouxe alguma coisa para comer?” 34 Jesus
lhes disse: “O meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou e levar a termo
sua obra. 35 Não dizeis vós: ‘Ainda quatro meses, e aí vem a colheita!’? Pois eu vos
digo: levantai os olhos e vede os campos, como estão brancos para a colheita!
36
Aquele que colhe já recebe o salário; ele ajunta fruto para a vida eterna. Assim, o
que semeia se alegra junto com o que colhe. 37 Pois nisto está certo o provérbio ‘Um é
o que semeia e outro é o que colhe’: 38 eu vos enviei para colher o que não é fruto de
vossa fadiga; outros se fatigaram e vós colheis o fruto da sua fadiga”.
39
Muitos samaritanos daquela cidade acreditaram em Jesus por causa da
palavra da mulher que testemunhava: “Ele me disse tudo o que eu fiz”. 40 Os
samaritanos foram a ele e pediram que permanecesse com eles; e ele permaneceu lá
dois dias. 41 Muitos outros ainda creram por causa de sua palavra. 42 E até disseram à
mulher: “Já não é por causa daquilo que contaste que cremos, pois nós mesmos
ouvimos e sabemos que este é, verdadeiramente, o Salvador do mundo”.
I
Com a partida de Jesus da Judeia para a Galileia e sua etapa na Samaria, João
inicia, pelo que parece, uma nova secção. Convém delimitá-lo em 4,42, onde termina a
presença de Jesus na Samaria. A chegada de Jesus na Galileia, em Jo 4,43-45,
representa uma nova secção, antes do segundo sinal de Jesus em Caná da Galileia em Jo
4,46-54. Depois do começo em Jerusalém (2,13) e na Judeia (3,22) vemos agora Jesus a
caminho de novas paisagens da Terra Santa e de novas coletividades humanas.
A construção da unidade textual acontece segundo pontos de vista narrativos. Os
primeiros seis versículos podem ser compreendidos como introdução. Jesus chega à
Beutler B -82
Samaria e, cansado pela viagem, assenta-se junto à fonte de Jacó. Com a chegada da
samaritana, no v. 7, começa uma nova secção narrativa, colocando em cena o diálogo de
Jesus com a mulher da Samaria (Jo 4,7-26). Esta parte pode ser dividida em duas: o
diálogo sobre a água que Jesus primeiro pede e depois promete (vv. 7-15); e o diálogo
seguinte, sobre o marido da mulher e o verdadeiro lugar do culto, trazendo, no fim, a
autorrevelação de Jesus (vv. 16-26). Os vv. 27-30 são caracterizados por um duplo
movimento: a volta da mulher para a sua cidade e a saída dos habitantes em direção a
Jesus. Os vv. 31-38 descrevem o diálogo de Jesus com os seus discípulos, que haviam
saído para comprar pão (v. 8), com o tema do alimento de Jesus e a transição para o
tema da obra missionária (vv. 31-38). Com os vv. 39-42, a narrativa alcança seu
encerramento: o testemunho da samaritana e o anúncio do próprio Jesus fazem com que
muitos passem a crer em Jesus como “salvador do mundo”.
O breve esboço do desenvolvimento narrativo mostra uma história bem
construída, que, à primeira vista, não revela muito ensejo para hipóteses de fontes e
camadas. Contudo, não faltam propostas neste sentido até hoje. Modelos mais antigos
de distinção de fontes e camadas foram tratados na dissertação de Andrea Link158. A
autora defende pessoalmente um modelo de quatro etapas, distinguindo a fonte dos
sēmeîa, o escrito básico, a composição do evangelista a e a redação pós-joanina.
Hipóteses semelhantes, sem a etapa do escrito básico, encontram-se em Jürgen
Becker159 e Michael Theobald160. Este último, porém, vê somente em 4,9c uma possível
redação secundária. Ao contrário destes autores, outros partem de um texto unitário,
renunciando a hipóteses referentes ao desenvolvimento genético. Entre eles, Birger
Olsson161, Teresa Okura162 e J. E. Botha163. Sempre de novo aponta-se a importância da
tradição bíblica para a compreensão do diálogo de Jesus com a samaritana164. No que
segue mostrar-se-á, sobretudo, este aspecto.
II
A chegada de Jesus à fonte de Jacó (4,1-6)
Os primeiros seis versículos de Jo 4 introduzem os diálogos que se seguem até o
v. 42. Descrevem principalmente um movimento topográfico. Jesus deixa a Judeia e vai
à Samaria, onde se assenta junto à fonte de Jacó. Olhando de perto, vemos que esta
unidade narrativa se divide em duas partes. Os vv. 1-3 descrevem a partida de Jesus da
Judeia rumo à Galileia e a justificam. Nos vv. 4-6, Jesus continua seu caminho até a
fonte de Jacó, onde, cansado, se senta. Entretanto, os três primeiros versículos podem
também ser entendidos como encerramento de uma unidade narrativa maior, iniciada
em 3,22, considerando que a descrição da atividade batismal de João em 3,22-24 e em
4,1-3 emoldura a cena de diálogo e discurso de 3,25-36165.
4,1-3
158
Cf. A. LINK, “Was redest du mir ihr?”, 103-177.
J. BECKER I 196-199.
160
M. THEOBALD I 304s.; vgl. ID., Abraham, 163-168.
161
B. OLSSON, Structure.
162
T. OKURE, Mission.
163
J. E. BOTHA, Jesus.
164
Um belo exemplo se encontra em J.-L. SKA, Jésus. Cf. ainda M. THEOBALD, Abraham.
165
Vgl. T. NICKLAS, Literarkritik, que vê em Jo 3,25-36 um novo e último testemunho do Batista.
159
Beutler B -83
Os vv. 1-3 constituem uma construção com três orações subordinadas (hōs ... hóti
... hóti) no v. 1 e a frase principal no v. 3; o v. 2 é um parêntesis. O enunciado central
dos três primeiros versículos encontra-se no v. 3: Jesus deixa a Judeia e parte para a
Galileia. A razão de sua partida está no v. 1: Jesus166 ficou sabendo que os fariseus
souberam que ele batizava mais que João Batista. Ele percebeu isso como um perigo
para sua segurança pessoal e a de seus discípulos; por isso, retirou-se da Judeia. Supõese aqui, claramente, que o batismo de Jesus era visto no mesmo nível que o de João:
criou-se uma situação de competição. Mas o v. 2 corrige esta impressão: não é Jesus
quem batiza, mas seus discípulos. Na óptica da separação de fontes ou camadas
literárias, parece que o evangelista corrige um texto subjacente, visto que, para ele, o
batismo de Jesus é de outra natureza que o de João. Jesus não batiza com água, mas com
o Espírito Santo (Jo 1,33). Seu batismo supera o do Batista. Na óptica da análise
narrativa, pode-se ver, na correção do v.2 em relação ao v. 1, um elemento de orientação
para o leitor. Por um lado fica claro agora de que natureza era o batismo administrado
por Jesus segundo Jo 3,22-24167. Por outro lado, o público leitor percebe o autor como
confiável, porque ele é capaz de corrigir ou de precisar os seus enunciados anteriores.
Assim cria-se um “vazio” que o leitor pode preencher168.
A origem histórica da notícia acerca da volta de Jesus da Judeia à Galileia não se
conhece. Em todo o caso, galileus voltando de Jerusalém para seu lugar são coisa
costumeira para os judeus. Na ida, seguem preferencialmente a estrada pelo vale do
Jordão, para não se contaminarem, a caminho, com o santuário samaritano. As cenas da
passagem de Jesus por Jericó (cf. Mc 10,46-52 par.) ilustram isso. Na volta, os romeiros
não precisam dessa precaução.
4,4-6
Os versículos seguintes podem ser vistos como introdução, propriamente, para o
diálogo de Jesus e da samaritana. A paisagem da Samaria aparece no v. 4 pela primeira
vez, e isso, não como término da jornada de Jesus, mas como situação de passagem.
Contudo, será o cenário de encontros e diálogos importantes. As indicações
topográficas, nestes versículos, vão do geral para o particular. Depois da região da
Samaria menciona-se a cidade de Sicar; depois, a fonte de Jacó e, finalmente, a beirada
da fonte, onde Jesus se assenta, fatigado da viagem. Só então vem a nota cronológica:
por volta da hora sexta, momento do grande calor do meio-dia. Segundo T. Okure169
percebemos aqui imagens da missão. Jesus está “fatigado” (kekopiakṓs) da viagem. O
termo escolhido é usado também no resto do Novo Testamento para o “afadigar-se” a
serviço do anúncio e do governo da comunidade (cf. Jo 4,38; 1Ts 5,12; 1Cor 16,16). A
cena seguinte serve, inteiramente, para descrever Jesus a serviço do anúncio e para
mostrar como outros – a mulher mesma, e também os discípulos – participam desse
empenho.
166
Com Nestle-Aland28 baseado em P 66* a D Q 086 f 1 e outros manuscritos lemos aqui o` VIhsou/j ¸ contra
a variante o` ku,rioj em P 66c.75 A B C K L Ws , e.o., e o texto majoritário. É mais provável o nome Jesus,
que ocorre três vezes, ter sido substituído por “o Senhor” do que o contrário. No evangelho de João o
título de “Senhor” é utilizado apenas para o Ressuscitado, mas no primeiro cristianismo ele é dominante.
167
Cf. T. NICKLAS, Literarkritik.
168
Cf. J. E. BOTHA, Jesus, 105. Segundo C. G. MÜLLER, Zeuge, o evangelista usa em Jo 4,1-3 o recurso
retórico da síncrise, a comparação de duas personalidades como nas Vitae Parallelae de Plutarco, na qual
se comparam figuras das antiguidades grega e romana. Ele mostra, nisso, a superioridade de Jesus sobre o
Batista, porque ele batiza não com água, mas com o Espírito Santo.
169
Cf. T. OKURE, Mission, 86, 91.
Beutler B -84
Sicar tornou-se capital dos samaritanos depois da destruição de Siquém por João
Hircano I, em 129 a.C.170 Que Jacó deu a seu filho José um campo nesta região se deixa
deduzir de indícios do Gênesis e de Josué: segundo Gn 33,18s., Jacó adquire um campo
na região de Siquém, segundo Gn 48,4 ele dá este terreno a seu filho José, e segundo Js
24,32, os restos mortais de José são sepultados no campo que Jacó dera a seu filho. M.
Theobald171 observa que o termo édōken, “ele deu”, em Jo 4,5, alude ao mesmo verbo
em Gn 24,32 LXX.
A fonte de Jacó não se encontra na Bíblia. Segundo J.-L. Ska172, M. Theobald e
outros173, o motivo remete a histórias de fontes que na Bíblia se encontram em três
lugares:
– Gn 24,10-21: o servo de Abraão encontra Rebeca junto a uma fonte na
proximidade da casa de seu avô Nacor;
– Gn 29,1-13: Jacó encontra Raquel junto à fonte;
– Ex 2,16-22: Moisés encontra, junto à fonte, Séfora com suas irmãs e os pastores
de Jetro, seu futuro sogro.
Os elementos de tais histórias de noivado (betrothal scenes) são descritas, na linha
de R. Alter174, neste sentido175: o noivo viaja a uma terra distante e aí encontra uma
jovem (ou diversas) junto a uma fonte. Tira-se água do poço. A jovem ou as jovens
correm para casa, para dar a notícia do encontro. Prepara-se um noivado, geralmente
ligado a uma refeição. M. W. Martin acrescenta mais elementos: a entrega de um
presente à noiva e a autoapresentação do candidato176. Outros elementos podem
acrescer. Assim, a influência das histórias bíblicas em Jo 4 parece segura177. A partir daí
podem ser entendidos os temas dos cinco maridos da samaritana e do verdadeiro lugar
de culto, desde que se conheça o valor simbólico do tema das núpcias em Israel. Cf.
adiante vv. 16-26.
O diálogo com a samaritana sobre a água viva (4,7-15)
No v. 7 entra em cena a mulher da Samaria. Inicia-se o diálogo de Jesus com a
mulher, que vai até o v. 26. Há sólidas razões para subdividir esta secção em 4,7-15
(com o tema da água viva) e 4,16-27 (com os temas dos maridos da mulher, do
verdadeiro culto e da identidade de Jesus).
A construção dos vv. 7-15 aparece na analise do fluxo narrativo. Podem-se
distinguir três momentos de discurso entre Jesus e a samaritana: vv. 7-9 (o v. 8 é um
parêntesis), vv. 10-12 e vv. 13-15. No fim do v. 9 entra um comentário do evangelista.
Do ponto de vista semântico, os vv. 7-15 são dominados pelos temas “água” e “beber”.
Os vv. 7 e 15 formam uma inclusão mediante os termos “vir... tirar (água)”. Assim, o
conjunto destes versículos mostra-se uma unidade textual fechada.
4,7-9
170
Vgl. aqui e para o que segue: M. THEOBALD, Abraham, 168-172.
Ibid., 168, nota 46
172
J.-L. SKA, Jésus.
173
M. THEOBALD, Abraham, 170.
174
R. ALTER, Art, 47-62.
175
Cf. M. W. MARTIN, Betrothal Journey Narratives, 597
176
Cf. M. W. MARTIN, Betrothal Journey Narratives, 508s.
177
A. E. ARTERBURY, Breaking the Betrothal Bonds, tenta reduzir estas histórias de fonte a cenas de
refeição, mas não convence.
171
Beutler B -85
O pedido de Jesus “Dá-me de beber” corresponde ao gênero literário das histórias
de fontes (cf. acima o comentário a vv. 4-6). Em Jo 4, este pedido pode ser visto em
conexão com o esforço e a fadiga, a fome e a sede de Jesus durante sua viagem. Sobre o
pano de fundo de outros textos do Quarto Evangelho, a sede de Jesus pode ser entendida
também como expressão de sua sede pela salvação da humanidade. Recordam-se
imediatamente as palavras de Jesus antes de morrer na cruz: “Tenho sede” (Jo 19,28).
Também estas palavras não exprimem somente a sede física de Jesus. Essa
compreensão do pedido de Jesus se confirma pelo v. 8: “Os seus discípulos tinham ido à
cidade comprar algo para comer”. Jesus aparece em nossa narrativa como um ser
humano que experimenta fome e sede, mas as carências físicas têm também seu lado
espiritual. Isso se esclarece, a seguir, quando Jesus significa que seu alimento é fazer a
vontade do Pai que o enviou, portanto, realizar a vontade salvífica do Pai (vv. 31-34).
O sentido profundo dessas palavras escapa à mulher da Samaria. Ela nem mesmo
atende ao pedido de Jesus, que pede que lhe dê de beber. Como sempre nesta sequência,
ela se desvia ou mostra incompreensão. Em vez de corresponder ao pedido de Jesus,
começa a discutir como Jesus, sendo judeu, pede um gole de água a ela, que é
samaritana. O narrador completa o texto acrescentando que os judeus não se relacionam
com os samaritanos178. Do ponto de vista narrativo, o pedido de Jesus não encontra nem
compreensão, nem atendimento. Ao mesmo tempo, é introduzido um tema importante
para a sequência do diálogo: a relação de judeus e samaritanos. Tornaremos a
aprofundar este tema (vv. 19-24).
O motivo da água encontra-se em quase todas as religiões. Bultmann vê a origem
literária do texto de Jo 4 na suposta fonte gnóstica dos discursos de revelação. Mais
próximo, porém, apresenta-se o pano de fundo bíblico do tema da água. Assim, o inicio
do Salmo 42-43: “Como a corça almeja as fontes d’água, assim minha alma almeja a ti,
ó Deus. Minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo. Quando irei e verei a face de
Deus?” Este salmo aparece citado no Evangelho segundo João diversas vezes179. Na
travessia do deserto Deus aliviou a sede de seu povo com água (Ex 17,1-7); este
acontecimento é retomado no Salmo 105,41. O profeta Ezequiel descreve a visão de
uma fonte que brota do Templo e se torna um rio que faz florescer o deserto (Ez 47). No
Evangelho segundo João, duas curas de enfermos situam-se na proximidade das águas:
a do aleijado em Jo 5 e a do cego de nascença em Jo 9. O motivo da água ocupa um
papel central em Jo 7, no contexto da festa das Tendas. No auge dessa festa, Jesus
proclama solenemente: “Se alguém tem sede, venha a mim, e beba quem crê em mim –
conforme diz a Escritura: Do seu interior correrão rios de água viva” (Jo 7,37s.). E
lembramo-nos das palavras de despedida de Jesus na cruz: “Tenho sede” (Jo 19,28).
Jesus mesmo experimenta sede, mas ao mesmo tempo tem o poder de estancar a sede de
seus irmãos humanos. Ele tem sede da salvação deles.
4,10-12
No segundo diálogo de Jesus e a samaritana apresentam-se dois novos temas: a
bebida que Jesus oferece e a sua pessoa. Em vez de insistir no seu pedido por água,
Jesus agora oferece à mulher uma bebida que ela ainda não conhece e que só se pode
conhecer quando se sabe quem é Jesus. No lugar da água da cisterna-fonte, Jesus
178
A expressão de João pode traduzir-se também assim: “Judeus e samaritanos não usam vasos em
comum” (assim D. DAUBE in JBL 69, 1950, 137-147), mas para tal tradução faltam paralelos
convincentes (cf. W. BAUER, Wörterbuch, ad vocem).
179
Cf. J. BEUTLER, Psalm 42/43 im Johannesevangelium.
Beutler B -86
oferece uma “água viva”, um dom de Deus, cujo sentido por enquanto escapa à mulher
(v.10).
De novo, a mulher é incapaz de entender as palavras de Jesus. A seus olhos, Jesus
está doido: ele não tem balde, e o poço é profundo. Assim, a mulher mostra que entende
as palavras de Jesus de modo meramente físico, natural, sem contar com um sentido
religioso mais profundo das palavras. Por outro lado, a mulher introduz um novo tema,
que será importante para o ulterior desenvolvimento do diálogo: uma comparação entre
Jesus e o patriarca Jacó, que fez o poço para seu filho e seu rebanho. Esse desconhecido,
que se sentou à beira da fonte de Jacó, acaso será maior que o patriarca Jacó? Os
comentadores veem na pergunta da samaritana um exemplo de “ironia joanina”: de fato,
para o público leitor ao qual o autor visa, Jesus é de fato maior que o patriarca Jacó,
apesar de a mulher que faz a pergunta não ter consciência disso.
4,13-15
A resposta de Jesus não menciona nem o balde, nem sua posição em relação ao
patriarca Jacó (que será mencionado mais adiante), mas descreve a natureza própria da
água que ele está oferecendo: será de tal natureza que não terá mais sede quem dela
beber. Tornar-se-á uma fonte cuja água brota para a vida eterna. Esta promessa antecipa
a mensagem do discurso do Pão da Vida em Jo 6,35: “Eu sou o pão da vida. Quem vem
a mim não terá mais fome, e quem crê em mim nunca mais terá sede”180.
Evidentemente, a mulher se encontra longe ainda desta visão de fé. Por isso, ela
responde com um pedido que está totalmente enquadrado neste mundo e nas
necessidades cotidianas: “Senhor, dá-me dessa água, para que eu não tenha mais sede,
nem tenha de vir aqui tirar água” (v. 15). Até agora, o diálogo não trouxe muito
progresso. Jesus só conseguirá romper o mal-entendido da mulher passando para um
tema radicalmente novo, que determinará o momento seguinte do diálogo (vv. 16-26).
O diálogo de Jesus e a samaritana sobre o verdadeiro culto (4,16-26)
“Vai chamar teu marido e vem aqui!”: esta ordem de Jesus surpreende neste lugar
e pede esclarecimento. Aliás, não é a única surpresa nesta secção. Qual é a conexão
entre o tema dos maridos da mulher e o do lugar de culto que Deus deseja? E como
estas perguntas se ligam à identidade de Jesus enquanto profeta e até, possivelmente,
Messias? E, finalmente, como compreender a expressão “a salvação vem dos judeus” na
perspectiva do Quarto Evangelho e no contexto de Jo 4?
A exegese histórico-crítica procurou resolver estas questões distinguindo fontes e
camadas literárias. Na Europa Central reinou durante muito tempo a influência de
Rudolf Bultmann, que distinguia entre um texto-fonte pré-joanino (a Fonte dos sēmeîa)
e o evangelista, ao qual se acrescenta exegéticas ainda um redator eclesial (que seria em
parte responsável pelo v. 22). As escolas bultmannianas evangélica181 e católica182
insistiam, e ainda insistem, nesta linha.
Em tempos recentes, essa “crítica” foi criticada. Julga-se que, enquanto não se
apresentam tensões insuperáveis, o texto deve ser explicado como um conjunto que faz
180
P. LÉTOURNEAU, Durst, 520, aponta paralelos na literatura judaica sapiencial, que veem na água uma
imagem da Sabedoria e da Lei. Mas ao lado das semelhanças existem diferenças. Assim, a Sabedoria diz
em Eclo 4,21: “Quem me ouve, tem fome ainda, quem me bebe, ainda tem sede”.
181
Cf.. os comentários de J. BECKER, S. SCHULZ e E. HAENCHEN.
182
Cf. G. RICHTER, Studien (edit. J. HAINZ; A. LINK), “Was redest du mir ihr?”; e o comentário de M.
THEOBALD.
Beutler B -87
sentido. Ora, nossa unidade textual deixa-se explicar muito bem, na forma que temos
diante de nós, como um conjunto que faz sentido; mostraram isso representantes
recentes da exegese sincrônica183. A seguir tentaremos abordar o texto desse modo. Para
isso serão mostradas tradições bíblicas que o influenciaram e que ajudam a perceber a
coerência interna dos temas muito diversificados desta secção.
A estrutura da secção reflete-se nos turnos do diálogo entre Jesus e a samaritana.
Os vv. 16-18 se mostram conectados pelo tema, como geralmente se reconhece. Nestes
versículos, o tema é a questão do marido (ou dos maridos) da mulher, numa sequência
Jesus-mulher-Jesus. Em seguida, a mulher da Samaria troca o tema e passa, nos vv.
19s., à pergunta do lugar de culto desejado por Deus. Jesus responde a sua pergunta nos
vv. 21-24. A isso se segue um último turno de pergunta e resposta entre a mulher e
Jesus, nos vv. 25s. Nota-se que, a partir do v. 19, a ordem dos atores nos diálogos se
inverte. É a mulher que toma a iniciativa e lança perguntas, às quais Jesus então
responde. Nisso se percebe o papel progressivamente mais ativo da mulher samaritana
neste diálogo.
4,16-18
A ordem “Vai chamar teu marido e volta aqui!” surpreende os leitores.
Explicações não faltam. Gail R. O’Day184 vê uma conexão com o versículo anterior na
palavra “aqui”. A mulher acabou de pedir a Jesus que lhe desse água viva para que ela
não precisasse mais voltar “aqui”. Jesus não reage a seu pedido, mas, ao contrário,
ordena à mulher de voltar “aqui” com seu marido. A autora americana vê neste uso
repetido do termo um exemplo da “ironia joanina”: Jesus retoma uma palavra que a
parceira do diálogo usou, mas em outra relação semântica e com outra finalidade. J.
Eugene Botha185 não concorda com esta proposta e lhe opõe outra: Jesus, no v. 16,
troca o tema conscientemente para, assim, poder continuar a conversa com a mulher.
Até este ponto, ele não tinha conseguido entrar em diálogo realmente pessoal com a
mulher (“to get through to her”, como diz H. Boers186). Pela troca súbita do tema isso se
tornaria possível, pensa Botha, recorrendo à teoria do “ato linguístico”.
Sem questionar essas considerações linguísticas em torno do texto, convém
chamar a atenção para o fundo bíblico desta cena. Lembramos um artigo de J.-L. Ska187,
que, com outros autores, remete às histórias de encontro junto à fonte que aparecem no
Antigo Testamento (Gn 24; o servo de Abraão encontrando Rebeca; Gn 29,1-13: Jacó
que encontra Raquel; Ex 2,16-22: Moisés que encontra Séfora e suas irmãs). Essas
histórias são sempre histórias de amor. No início, o homem ou a mulher pede água,
depois segue um diálogo, a mulher leva o homem consigo para casa, eles fazem
refeição, ele pede sua mão e eles se casam. Pode-se perguntar por que, em nossa
história, o final é diferente. Segundo J.-L. Ska, a samaritana em Jo 4 representa o povo
dos samaritanos e sua religião. Esta observação é apoiada pela resposta da mulher
dizendo que não tem marido. Jesus aproveita esta resposta e esclarece: ela teve cinco
maridos e o que ela tem agora não é o seu marido. Ska vê esta resposta de Jesus em
conexão com o tema da infidelidade de Israel para com seu Deus. A samaritana aparece
no papel da mulher do cap. 2 de Oseias, que se torna infiel ao seu “marido” e só é
183
Cf. G. R. O’DAY, Revelation; F. WESSEL, Die fünf Männer; G. VAN BELLE, Revelation; H. THYEN,
Eine ältere Quelle.
184
G. R. O’DAY, Revelation.
185
E. E. BOTHA, Jesus, 139-141.
186
H. BOERS, Neither on This Mountain.
187
J.-L. SKA, Jésus.
Beutler B -88
reabilitada quando acontece um novo compromisso matrimonial. Deste modo, não a
mulher, mas os samaritanos tornam-se “esposa” de Jesus. E cumpre-se a promessa de
nova fecundidade, segundo Os 2.
Para os cinco maridos da mulher alegaram-se diversas explicações. Eis as três
mais importantes: 1) Os cinco são os cinco maridos reais da mulher da Samaria. Como
os rabinos só permitem três casamentos sucessivos, ela é uma mulher de fama
questionável. E seu parceiro atual nem sequer é seu marido. 2) Os cinco maridos
significam as divindades dos samaritanos que, segundo 2Rs 17,30-32.41, as tribos
estrangeiras que migraram para Samaria trouxeram consigo. Verdade é que o texto de
2Rs fala em sete, mas Flávio Josefo (Ant. IX, 288) só fala em cinco. Os samaritanos
cultuaram essas divindades, e agora cultuam o Deus verdadeiro numa maneira que não
lhe agrada. 3) Os cinco maridos representam os cinco livros do Pentateuco188. A mulher
representa a Samaria, que segue a tradição do Pentateuco, mas não foi fiel a esse laço
com Deus.
A primeira proposta hoje em dia pouco se defende. Assim restam a segunda e a
terceira. Não se excluem mutuamente, necessariamente. Na cena do diálogo joanino, o
tema metafórico da vida matrimonial da mulher prepara a transição para o próximo
objeto da conversa, o lugar de culto que Deus deseja.
4,19-24
A partir de agora muda-se a ordem dos participantes do debate. A mulher toma a
iniciativa e dirige-se a Jesus com a questão do lugar de culto que Deus deseja189. Dirige
sua pergunta respeitosamente a Jesus, ao qual ela chama de “senhor” e no qual ela
reconhece um “profeta”. Segundo a fé dos samaritanos, só aos profetas era confiado
revelar as coisas secretas. Assim, o diálogo passa da focalização da mulher para a
pessoa de Jesus. Não é preciso pensar que Jesus tenha revelado à mulher os pecados
dela em particular. O que ele disse sobre a vida anterior dela pode explicar-se também
por seu conhecimento das experiências mais pessoais do parceiro do diálogo; pensemos
em seu conhecimento dos fatos pessoais de Natanael (Jo 1,48) ou em seu conhecimento
do ser humano em geral (2,23; cf. 13,21). A mulher pergunta agora a respeito do lugar
de culto que Deus deseja. Este tema era um ponto principal de discussão entre judeus e
samaritanos. Este novo tema se deixaria esclarecer a partir de uma compreensão
metafórica da situação matrimonial da mulher. Uma explicação mais simples pode ser o
fato de que o monte Garizim se encontra na proximidade imediata da fonte de Jacó190;
assim a transição se entende com facilidade.
Na resposta de Jesus (vv. 21-24) importa distinguir entre o ponto de partida e a
meta. Jesus parte de um culto que, segundo a vontade de Deus, registrada na Escritura,
deve acontecer em Jerusalém. Neste sentido, “a salvação vem dos judeus”. Mas o termo
final é um culto no qual as diferenças entre os diversos lugares de oração e sacrifício são
superadas. E o tempo em que isso acontece é o tempo do fim. João usa para enunciar
isso duas expressões: “Vem a hora” (v.21) e “Vem a hora, e é agora” (v. 23). Ambas as
maneiras de ver se complementam e não devem ser atribuídas a dois estágios diferentes
da redação191.
188
Assim F. WESSEL, Die fünf Männer.
A Einheitsübersetzung [e muitas traduções]* usam aqui e a seguir o verbo “adorar”, mas seria melhor
traduzir por “venerar” a Deus.
190
Cf. G. R. O’DAY e B. OLSSON, positivamente citados por J. E. BOTHA, Jesus, 143s.
191
Cf. a monografia em três volumes de J. FREY, Die johanneische Eschatologie.
189
Beutler B -89
E o que significa “em espírito e em verdade”? Não se trata de um culto puramente
interior, sem assembleia religiosa da comunidade, ritos e ministros; trata-se do culto do
tempo final. O Espírito será o “dom” de Deus no tempo por vir, o tempo da “Nova
aliança” (cf. Ex 36,26)192. De acordo com isso, “verdade”, neste texto e contexto, não é
a “concordância entre o conceito e a realidade” nem a “manifestação do ser enquanto
ser”. O conceito de verdade, na literatura joanina, não é moldado em sentido filosófico,
mas teológico, como I. de la Potterie, em sua dissertação193, mostrou de modo
esclarecedor em oposição a Bultmann. Em João, a representação da verdade tem feições
veterotestamentárias e protojudaicas, com correspondências inclusive nos textos de
Qumrã. Deriva-se da raiz hebraica emet e descreve antes uma relação entre pessoas
(Deus e seu povo) do que entre grandezas abstratas: a saber, a autocomunicação
fidedigna de Deus.
A palavra de Jesus “A salvação vem dos judeus” não significa que, até a chegada
de Jesus Cristo, a salvação viesse dos judeus, e depois, exclusivamente de Jesus e dos
cristãos. A salvação vem sempre dos judeus, como atesta, entre outros, K. Wengst194
com J. Calvin. Paulo falaria dos ramos que foram enxertados na oliveira de Israel (cf. R,
11,16-20). O ramo não sustenta a raiz, é a raiz que sustenta os ramos.
Como já dissemos, R. Bultmann e sua escola negam que Jo 4,22 venha do
evangelista João. A expressão “A salvação vem dos judeus” seria um acréscimo da
“redação eclesial” ou “joanina”. Mas é difícil ver por que, no fim do século I, a
comunidade, que se tornava cada dia mais gentio-cristã, teria tido interesse em
acrescentar uma frase dessas. É melhor abandonar tal hipótese.
4,25-26
O último turno do diálogo entre a samaritana e Jesus aproxima-se ainda mais do
mistério de Jesus; o Messias deve vir e instruir o povo a respeito do culto que Deus
deseja. Segundo Gail O’Day195 pode-se ver aqui um último exemplo da ironia joanina: a
mulher, sem o saber, exprime a convicção de fé da comunidade cristã; com esta
diferença, que o Messias não virá, mas já está presente; nem é um desconhecido, mas é
Jesus, que está diante dela e conversa com ela. É o que Jesus lhe anuncia: “Sou eu, que
estou falando contigo” (v. 26). Jesus é o “Taheb”, o Messias “vindouro” dos
samaritanos, mas também o Messias dos judeus; e logo mais ele e se revelará como o
“salvador do mundo”, como o proclamarão os samaritanos depois do encontro com ele
(v. 42).
Os exegetas se perguntam se as palavras de Jesus, “Sou eu”, significam mais que
sua identificação com o Messias vindouro de que falou a mulher. Parece natural ver
nesta expressão um exemplo do “Eu sou” com o qual Deus se autoapresenta no Antigo
Testamento (desde Êxodo até Ezequiel). Se esse sentido se confirmar, as palavras de
4,26 transcendem o messianismo e desembocam na cristologia joanina em sentido
pleno: Jesus se revela como Deus presente no meio dos homens.
A saída da mulher, a chegada dos discípulos e dos samaritanaos (4,2730)
4,27-30
192
Em sua dissertação romana, Worshipping, B. JOJKO ressalta a dimensão trinitária de Jo 4,20.
I. DE LA POTTERIE, Vérité.
194
K. WENGST I 174s.; neste respeito, cf. também G. VAN BELLE, Salvation.
195
G. R. O’DAY, Revelation.
193
Beutler B -90
A breve secção seguinte caracteriza-se pelo “ir/sair” e pelo “vir/chegar”.
Distingue-se um movimento triplo: os discípulos chegam a Jesus (êlthan, v. 27), a
mulher se vai (apêlthen, v. 28-29) para testemunhar acerca de Jesus; e os habites saem
da cidade (exêlthon, v. 30) para encontrar Jesus. Este resumo mostra que Jesus está no
centro da secção. Dele sai o movimento e a ele volta, depois de um primeiro, tímido
testemunho da mulher a seu respeito.
No início está a chegada dos discípulos, que tinham ido à cidade para comprar
víveres (cf. v.8). Acertadamente, Bultmann observa que os discípulos, voltando nesse
momento, ainda são testemunhas da conversa de Jesus e da samaritana. O tema ainda
não é o alimento, mas a admiração dos discípulos que se perguntam por que Jesus fala
com uma mulher. Para H. Boers196, o fato de Jesus falar com uma mulher não se
encaixa na coerência temática da secção; por isso, exclui o tema da sua análise
semântica. Contudo, não se deve limitar o arcabouço dos temas que aqui vêm à fala. Em
1,1-42, Jesus aparece como alguém que, de diversos modos, rompe com os costumes de
seu povo. A principal ruptura é em relação ao conflito entre judeus e samaritanos, mas
também a relação homem-mulher na sociedade do país vem à pauta. Ambos estes
aspectos, em que Jesus trilha caminhos novos, são apontados no v. 9, onde a samaritana
exprime sua admiração pelo fato de Jesus, um judeu, falar com ela, mulher da Samaria.
Assim, a admiração dos discípulos no v. 27 vem preparada desde longe. O texto do v.27
não diz simplesmente “Por que falas com ela?”, mas menciona o conteúdo da pergunta
que os discípulos não chegam a formular: “Que procuras?”. E. Cothenet197 vê nestas
palavras uma expressão da “procura” de Jesus pela salvação da samaritana, na qual se
exprime a procura de Deus pela salvação da humanidade.
Segundo o v. 28, a mulher abandona sua bilha e volta à cidade, para aí anunciar
quem ela encontrou. Os exegetas veem nisso, geralmente, um indício da pressa da
mulher ao sair do lugar. Contudo, pode-se ver aqui a expressão do processo de
aprendizagem que a mulher percorreu desde o início do encontro com Jesus. As leitoras
e leitores percebem que a mulher não precisa mais da água física que ela fora buscar
depois de ter encontrado Jesus, fonte e doador da água viva, que sacia a sede do ser
humano num sentido mais profundo. A mensagem da mulher aos habitantes da cidade
tem duas partes. Ela encontrou um homem que lhe disse tudo o que fez. Esta
experiência prova, no mínimo, que ele deve ser um profeta (cf. v. 19). Na segunda parte
do testemunho, a mulher transcende esse nível e pergunta se ele não seria o Messias. Os
exegetas não são concordes quanto ao sentido de sua pergunta. Alguns são céticos198. O
termo mḗti, “(acaso) não ?”, faria esperar uma resposta negativa (o mesmo termo ocorre
em Jo 8,22; 18,35). Outros199 julgam que a expressão tem sentido aberto, se não faz
pensar num resposta positiva200. À luz da análise narrativa (cf. o testemunho do v. 20),
parece mais provável que a mulher suspeita que Jesus seja o Messias do que o contrário.
Exatamente por isso, os habitantes saem da cidade de Sicar em direção a Jesus (v. 30).
196
H. BOERS, Neither on This Mountain
E. COTHENET, Nourriture.
198
Assim E. DANNA, A Note.
199
Cf. W. BAUER, Wörterbuch, sub voce; BLASS-DEBRUNNER, Grammatik, 427,2; SCHNACKENBURG I
478.
200
Assim H. BOERS, Neither on This Mountain.
197
Beutler B -91
O diálogo de Jesus com os discípulos sobre seu alimento e a colheita (4,3138)
A volta dos discípulos leva a um diálogo com Jesus sobre o alimento dele. Ao
convite dos discípulos para que Jesus coma (v. 31), conecta-se uma resposta de Jesus a
respeito de seu alimento; esta resposta vai até do v. 34. Depois, Jesus passa a falar da
colheita que está chegando, até o v. 38. Para a exegese pormenorizada convém
interpretar os vv. 31-34 e 35-38 separadamente, mostrando, porém, a sua coerência.
4,31-34
Os primeiros quatro versículos da secção se referem ao tema do alimento e do
comer. Assim como em ambas as secções anteriores do diálogo com a samaritana (cf. a
ordem “Dá-me de beber”, v.7; e “Vai chamar teu marido e vem aqui!”, v. 16), também
aqui a secção inicia-se com uma ordem. Desta vez, são os discípulos que ordenam a
Jesus: “Rabi, come!” Assim como nos dois exemplos anteriores, quem recebe a ordem
não atende. A reação de Jesus traz à memória a conversa sobre a água nos vv. 9-16.
Mas, ao contrário dessa conversa (e de 6,35), Jesus não fala aqui de uma bebida ou
alimento que ele fornece, mas de algo que ele recebe. Também este alimento deve ser
entendido figurativamente: o alimento consiste, para Jesus, no cumprimento da vontade
de quem o enviou, a saber, o Pai (v. 34). Os discípulos não são capazes de entender o
sentido e se perguntam se, entretanto, alguém teria trazido algo para Jesus comer (v.
33). O que é o alimento verdadeiro de Jesus escapa à compreensão dos discípulos (v.
32). A semelhança com o diálogo com a samaritana é evidente. Por outro lado, o tema
do alimento verdadeiro mostra parentesco com o de sua sede, em sentido metafórico.
Lembra-se que, no início da narrativa, Jesus se sentou, sedento e fatigado, na beirada da
fonte de Jacó e pediu à mulher da Samaria um gole de água (vv. 6ss.). Aprofundando,
percebemos que se tratava de sua sede pela salvação da humanidade, sede que o
acompanhará até suas últimas palavras na cruz (cf. 19,28).
Jesus tem sede de fazer a vontade do Pai. A vontade do Pai é a salvação dos
homens, a “vida eterna” no nome de Jesus. Isso nos conduz ao início da oração de
despedida de Jesus em Jo 17. Nos primeiros versículos desta oração vem à tona este
objetivo da vida e da missão de Jesus. Em Jo 17,4, Jesus fala da “obra” (érgon, no
singular) que ele deve “levar a termo” ou que ele “levou a termo” (teleioûn): são as
mesmas palavras de Jo 4,34. Assim já nos encontramos no campo lexical da missão, que
determina os quatro versículos seguintes.
4,35-38
O conceito da “colheita”, que domina os próximos versículos, não aparece alhures
em João, mas aparece, em sentido escatológico ou missionário, em outros lugares do
Novo Testamento. Nos evangelhos sinópticos o conceito se encontra nas parábolas de
Jesus para descrever figurativamente a colheita escatológica dos frutos da salvação ou
do julgamento (Mc 4,29; Mt 13,30.39) ou para descrever a missão (Mt 9,37s./Lc 10,2 =
Q). É neste último sentido que o termo é utilizado por João em 4,35ss., no quadro de um
provérbio. Este provérbio se refere à distância entre a floração das espigas e seu fruto na
hora da colheita. Ora, no mundo que Jesus aponta presente, essa distância desapareceu.
Com a floração já se apresenta a maturação: chegou o tempo da colheita–em Jesus. No
v. 36, o olhar se volta para a distinção entre o semeador e o que recolhe. Ambos se
alegrarão. Nesta altura, cita-se outro provérbio, que toca na distinção entre o semeador e
quem recolhe (v.37). Jesus aplica essa distinção à atual situação: outros semearam, e os
discípulos recolhem um fruto que eles não semearam. Apenas participam da “fadiga” de
quem semeou antes deles (v. 38). A terminologia remete à “fadiga” de Jesus no inicio
Beutler B -92
da conversa com a samaritana (4,6: kekopiakṓs). Lembramos que em 1Ts 5,12 esta
expressão é usada como termo técnico para o empenho pastoral.
Os exegetas têm opiniões diversas a respeito de quem são os que “se fatigaram”.
Há quem pense no Pai, outros em João Batista, outros ainda na mulher samaritana. Ao
responder a esta questão convém ter presente que o texto pressupõe uma atividade
missionária na região dos samaritanos no tempo do evangelista. Neste sentido, poder-seia pensar também nos primeiros missionários da região – segundo At 8,4-8, Filipe, antes
da chegada de Pedro e João (At 8,4-8)201.
Olhando para trás, retoma-se a pergunta da unidade temática do diálogo de Jesus
com os discípulos em Jo 4,31-38. Segundo nossa interpretação, que se liga à de autoras
e autores recentes202, Jo 4,1-42 é uma história simbólica. Sobretudo B. Olsson e T.
Okure salientaram o papel central da “obra” de Jesus nesta secção. Pode-se mostrar que
o aspecto missionário desde o início ocupa um papel na narrativa de Jo 4, desde o
momento em que Jesus, fatigado e sedento, se assenta na beirada da fonte e pede à
mulher: “Dá-me de beber” (4,7). Na última secção (4,31-38), esse tema é levado a
termo.
Muitos samaritanos passam a crer em Jesus (4,39-42)
4,39-40
Num primeiro momento, os samaritanos passam a crer em Jesus (como se lê com
a maioria dos manuscritos), graças ao testemunho da mulher, que anuncia que Jesus lhe
disse tudo o que ela fez. O evangelista não considera esta fé como insatisfatória;
todavia, ela permanece aberta a um progresso na compreensão203. Este progresso tornase possível graças à estada de dois dias de Jesus na cidade dos samaritanos, mencionada
no início do v.43. Durante essa estada, Jesus pode dirigir sua palavra aos samaritanos e
conduzi-los a uma compreensão mais profunda de sua pessoa e missão.
4,41-42
A palavra de Jesus é tomada, na segunda metade da secção, como razão por que
uma multidão ainda maior204 passa a crer nele. A palavra de Jesus se substitui ao relato
da mulher. Não que a palavra da mulher tenha sido supérflua: isso o texto não diz. Só
diz que os samaritanos “já não” acreditam (como antes) com base no relato da mulher,
mas (agora) acreditam com base no seu encontro pessoal com Jesus e sua palavra, que
os leva à confissão da fé, reconhecendo que “ele é, verdadeiramente, o salvador do
mundo”.
III
Também a história de Jesus e da samaritana é marcada por um movimento. Ponto
de partida é o pedido de Jesus por um gole de água. Ele precisará também de pão para
continuar seu caminho em direção aos homens. Mas, também para João, o homem não
vive só de pão e da água potável de cada dia. A samaritana e, com ela, as leitoras e
201
Assim entende o texto também M. THEOBALD, Die Ernte ist da.
Cf. B. OLSSON, Structure; T. OKURE, Mission; H. BOERS, Neither on This Mountain.
203
Não há razão suficiente para atribuir esses dois versículos, que mencionam a fé baseada numa palavra
profética, a uma Semeiaquelle, como fazem BULTMANN e sua escola; somente mostram as gradações na
confissão de fé dos samaritanos.
204
Que eles acreditavam “mais” em Jesus é uma lição de P 75 e uns poucos manuscritos da Vetus Latina;
não é original.
202
Beutler B -93
leitores são, para lá das necessidades cotidianas, conduzidos à bebida verdadeira, Jesus
como fonte de água viva; e ao alimento verdadeiro, o cumprimento da vontade salvífica
do Pai.
Esta vontade salvífica deseja a salvação também para os samaritanos, os “irmãos e
irmãs separados” do povo judeu. Não mais serão separados uns dos outros por
santuários separados, tradições separadas. Sim, aproxima-se um tempo, e com Jesus ele
irrompe, em que os verdadeiros adoradores adorarão Deus onde for que seja. Isso se
tornará possível no Espírito e em Jesus, e assim ele é verdadeiramente “o salvador do
mundo” (v. 42).
Não é insignificante que Jesus, na Samaria, se revela em primeiro lugar a uma
mulher. Já na Antiguidade e no protojudaísmo se podem perceber e observar barreiras
entre homens e mulheres. Jesus vence essas barreiras, para admiração de seus
discípulos. Por todos os tempos, seu procedimento incomoda, no duplo sentido da
palavra: primeiro como escândalo, depois como convite para seguir seu exemplo na
superação de preconceitos em relação às mulheres. Se a mulher de Sicar é anunciadora
da mensagem da salvação para seus compatriotas, então ela permanece exemplo para
mulheres a serviço do anuncio até o dia de hoje.
9. Jesus na Galileia (4,43-45)
43
Passados os dois dias, Jesus saiu dali, rumo à Galileia. 44 Jesus mesmo, de fato,
tinha testemunhado que um profeta não recebe honra em sua pátria. 45 Quando, então,
veio à Galileia, os galileus o receberam bem, porque tinham visto tudo o que fizera em
Jerusalém, por ocasião da festa, pois também eles tinham ido à festa.
I
Como geralmente se observa, em Jo 4,43-45 é retomado e continuado o relato da
partida de Jesus para a Galileia, de Jo 4,1-3. Quando, na leitura, se unem os vv. 43 e 45,
a lógica é clara: Jesus se vê ameaçado na Judeia, parte para a Galileia, chega
efetivamente aí depois do episódio da Samaria. Ele é recebido de braços abertos por
causa da fama que ele granjeou pelos sinais realizados em Jerusalém, pois os romeiros
que de lá voltaram já tinham feito o relato disso.
O v. 44, porém, causa um problema. Para sua viagem, Jesus se vale de um
provérbio: um profeta não é reconhecido em sua própria terra. Mas o que faz aí a
conjunção gar, “pois/de fato”? A crítica literária clássica tentou resolver o problema
distinguindo fontes e camadas. Um representante tardio dessa opinião é J. Becker:
segundo ele, o v. 44 seria uma glosa de um copista, posteriormente introduzida no texto.
Há poucos que aceitam esta explicação; a maioria dos exegetas lê o trecho como
unitário. Mas então, qual é a pátris, “pátria”, de Jesus e qual então o sentido de gar,
“pois/de fato”?
A explicação mais antiga vê na pátria de Jesus, em Jo 4,44, Jerusalém ou a Judeia.
Assim já Orígenes205 e Teodoro de Mopsuéstia206. É a interpretação que aqui tomamos
por base, como se pode ver adiante, II. Na pesquisa recente, a referência a Jerusalém é
205
206
Origenes, In Ioann. 13,54-55, SC 222 (ed. C. BLANC), 236-243.
CSCO 116 (ed. J.-M. VOSTÉ), 68.
Beutler B -94
reconhecida, sobretudo, na exegese anglossaxônica, mas também por alguns exegetas
europeus continentais207.
Quem vê na “pátria” de Jesus a Galileia (ou sua “cidade paterna”, Nazaré) se
apoia, via de regra, nos paralelos sinópticos Mc 6,1-6 par. Mt 13,53-58; Lc 4,16-30.
Observe-se, contudo, que os provérbios acerca do profeta que não encontra ouvido em
sua terra e do médico que não faz curas entre os seus se encontram também, sem o
quadro narrativo, no Evangelho de Tomé (n. 31) e no papiro POxy 1,6; mas o texto
deste papiro remonta, provavelmente, aos sinópticos, especialmente a Lucas (onde
aparece o tema do médico). Os que defendem que se trata de Nazaré ou da Galileia
pertencem geralmente ao âmbito de língua alemã, mas não todos208. A dificuldade dessa
interpretação consiste nisto, que o gár (“pois/de fato”) no v. 44 remete para o que
antecede, neste caso, a partida da Samaria rumo à Galileia. Se, então, Jesus parte para a
Galileia pelo motivo de o profeta não ser aceito em sua própria terra, parece que ele está
procurando a rejeição: os galileus o recebem de braços abertos, no v. 45, mas a fé deles
é imperfeita, porque baseada no ver dos sinais. Neste caso teríamos, no v. 44, uma
“ironia joanina”. As leitoras e leitores bem sabem que a Jesus não importa a honra que
vem dos homens, mas sim o cumprimento da vontade do Pai. A partícula gár pode,
neste caso, ser traduzido por “decerto, sem dúvida”209.
Esporadicamente aparecem outras interpretações em relação à “pátria” de Jesus.
João Crisóstomo pensa que se trate de Cafarnaum210; outros pensam na Palestina em
geral211; outros, no povo dos judeus (da Judeia e da Galileia), em oposição aos
samaritanos, que estariam representando os cristãos212; e outros ainda, no céu213.
II
4,43-45
Como já viu, acertadamente, Teodoro de Mopsuéstia, os vv. 43-45 reatam com
4,1-3. Criou-se para Jesus na Judeia uma situação ameaçadora, que lhe inspirou mudarse para a Galileia. A secção que conta seu encontro com a samaritana e os samaritanos,
em 4,4-42, é, então, uma espécie de intermezzo214. No fim desse intermezzo (v. 40)
207
Cf., e.o., E. C. HOSKYNS; C. H. DODD, Interpretation, 352; e um pouco diferente, Tradition, 238-241;
B. LINDARS; J. MARSH; B. LINDARS; D. M. SMITH; C. K. BARRETT; F. J. MOLONEY; B. REBSTOCK; B.
SCHWANK; C. S. KEENER; H. THYEN; J. WILLEMSE, La patrie; W. A. MEEKS, Galilee; B. OLSSON,
Structure, 27-29.143-147; R. T. FORTNA, Locale; J. M. BASSLER, Galileans; U. C. VON WAHLDE II 205209, quanto aos dois primeiros estádios da redação do evangelho de João. Para uma documentação
bastante completa desta visão e daquela que com ela compete, veja G. VAN BELLE, Faith; vgl. H. THYEN
284S.
208
Cf., e.o., B. WEISS; W. BAUER; R. BULTMANN; R. E. BROWN; R. SCHNACKENBURG; J. BLANK; R.
KYSAR; L. MORRIS; G. R. BEASLEY-MURRAY; K. WENGST; U. WILCKENS; L. SCHENKE; U. SCHNELLE; M.
THEOBALD; J. MCHUGH; U. C. VON WAHLDE II 205-209 para o terceiroestádio da redação do evangelho
de joão; G. VAN BELLE, Faith; A. STIMPFLE, Das “sinnlose ga,r”; C. HEIL, Jesus; Z. GARSKÝ, Das Wirken,
151. Segundo J. CORLEY, Dishonoured Prophet, o lógion se teria referido primeiramente a João batista e
sua estada na Pereia, depois, porém teria sido aplicado a Jesus e sua terra de origem, a Galileia.
209
Assim A. STIMPFLE, com autores mais antigos.
210
In Ioann. Homiliae, PG 59, 200; segundo S. BERGLER, Kana, 160, a menção se teria referido, na
primeira redação do evangelho joanino, a Cafarnaum.
211
A. LOISY.
212
So AUGUSTINUS, Hom. in Ev. Ioann. 16,3. Semelhantemente agora J. W. PRYOR, John 4:44, com E.
HIRSCH.
213
R. H. LIGHTFOOT, 34-36: 35; como possibilidade também em L. MORRIS.
214
CSCO I 16 (ed. J.-M. VOSTÉ), 68.
Beutler B -95
falou-se de uma permanência de dois dias de Jesus na cidade dos samaritanos. O v. 43
se refere a esses dois dias. O “ir embora” (à Galileia) do v. 3 torna-se, no v. 43, um
“sair” da cidade dos samaritanos. Repete-se a menção à Galileia como termo da viagem
de Jesus. O que importa para o evangelista é esta região, mais que os nomes particulares
de localidades e a ocorrência do termo Galileia nos versículos seguintes (vv. 45, 47 e
54).
A saída de Jesus rumo à Galileia é fundamentada por uma proposição causal com
gár. Depois do que falamos, esta fundamentação pode melhor ser referida aos vv. 1-3,
que mencionam a indisposição dos fariseus por causa do sucesso da atividade batismal
de Jesus. Onde e quando Jesus “testemunhou” o provérbio de que o profeta não granjeia
honra em sua própria pátria, não está no texto. De qualquer modo, refere-se à sua saída
da Judeia, rumo à Galileia. Por isso é preferível ver na “pátria” de Jesus a Judeia ou
Jerusalém. É verdade que Jesus não nasceu naquela cidade, mas é lá que, especialmente
no Evangelho segundo João, se encontra o centro de sua atividade. Ali é a pátria dos
profetas, e ali sempre de novo se cumpre o destino deles. Orígenes215 menciona aqui o
destino dos profetas segundo Hb 11,37 e At 7,52, mas também o desejo dos judeus de
verem Jesus crucificado, segundo Jo 19,15, bem como o enfeitar os túmulos dos
profetas, sem vontade de conversão, segundo Mt 23,29 e Lc 11,47. Aliás, os sábios e
doutos da Grécia não conheceram sorte melhor, segundo Orígenes. Também eles não
recebiam honra em sua pátria e não poucas vezes receberam ameaças, se não a morte216.
Se o vocabulário da palavra de Jesus em Jo 4,44 em grande parte corresponde ao
de Mc 6,4; Mt 13,57; Lc 4,24, não se deve concluir daí que o termo “pátria” signifique a
mesma coisa. Já em POxy 1,6 e EvThom 31, o lógion é transmitido de modo isolado.
João pode tê-lo utilizado em forma mais livre para fundamentar a rejeição de Jesus no
centro da fé e do povo judaicos.
Alega-se, muitas vezes, que também para o Quarto Evangelho Jesus vem da
Galileia, de Nazaré. Mas é preciso ver a quem se atribuem esses enunciados. Em Jo
1,45s. trata-se de Filipe e Natanael, sendo que este último se escandaliza com a origem
nazarena de Jesus. Em Jo 7,41.52, trata-se dos judeus na festa da Tendas ou dos
membros do Sinédrio, incapazes de imaginar um Messias que venha da Galileia. Para o
evangelista, a verdadeira origem de Jesus permanece desconhecida fora da fé (cf. Jo
7,27-29; 8,14. 19,9-11), pois ele vem do Pai.
À saída de Jesus rumo à Galileia segue-se, no v. 45, a sua chegada a esta região.
Os galileus lá o acolhem (edéxanto) de bom grado, o que lembra a formulação de Lc
4,24 (déktos estin), mas aqui em proposição positiva. A boa acolhida se explica pelas
coisas grandiosas que os peregrinos galileus viram em Jerusalém. Muitas vezes tenta-se
desvalorizar esta informação, sob alegação da crítica de Jesus em relação à fé
sensacionalista dos judaítas, em Jo 2,23-25. Também segundo Jo 4,48, uma fé baseada
unicamente em prodígios e sinais é insuficiente. Mas os sinais podem, de modo geral,
conduzir à fé. Isso vale para os discípulos no fim das bodas de Caná em 2,11 e está
implicado no final do evangelho, Jo 20,30s, que formula a sua finalidade. O funcionário
de Cafarnaum já testemunha sua fé no poder de Jesus (4,47.49) com base em sua
palavra (v. 50), antes que finalmente se constatam a sua fé e a de sua casa (v. 54).
Assim, pela segunda vez, em Caná da Galileia, firma-se a fé de pessoas da Galileia. Os
215
In Ioann. 13,54-55, SC 222 (ed. C. BLANC), 236-343.
Ibid. Exemplos concretos em vol. III a edição de Orígenes de C. BLANC, 241, nota 3. Mas veja
também em NEUER WETTSTEIN I/2, 257-260, na altura de Jo 4,44.
216
Beutler B -96
“galileus” do v. 45 devem ser vistos numa luz positiva, ao contrário dos “judeus”, que,
de modo crescente, se fecham para Jesus217.
III
A secção Jo 4,43-45 aproxima-nos do fim da primeira parte maior do Evangelho
segundo João, que intitulamos “A Palavra de Deus entra no mundo” (1,14-54). Depois
do prelúdio no vale do Jordão, na Judeia, com as primeiras vocações de discípulos,
começou um ciclo que se poderia intitular “De Caná a Caná” (Jo 2–4). Depois do relato
das bodas de Caná (2,1-12) vemos Jesus numa viagem que o conduz primeiro a
Jerusalém (2,13–3,21), depois a toda a Judeia (Jo 3,22-36). A caminho da Galileia,
Jesus se dirige aos samaritanos (Jo 4,4-42). Só depois, ele se dirige definitivamente à
Galileia. Os habitantes de Jerusalém não passam de uma fé bem imperfeita, e
Nicodemos, por sua parte, fica para trás como aquele que pergunta. Quanto mais Jesus
se afasta do centro da fé judaica, tanto mais ele encontra acolhida de bom grado. Isso se
mostra quando chega à Galileia.
O Jesus joanino não rompe, sem mais, com o judaísmo, mas ele põe em xeque sua
forma atual e, com isso, afasta-se das autoridades de Jerusalém. Só quem reconhece
Jesus compreendeu o sentido da tradição religiosa de Israel e de seu culto. Isso, as
pessoas na margem o entendem melhor do que os que estão no centro da fé de Israel.
Assim, este texto bem breve constitui um convite para refletir sobre “centro” e
“periferia”. Do mesmo modo que Jesus nos evangelhos sinópticos mostra seu amor
preferencial para as pessoas que vivem na margem da sociedade, publicanos e
prostitutas, assim ele faz no Quarto Evangelho para aqueles que estão na margem em
termos religiosos: samaritanos e galileus. Nisto transparece um desafio permanente para
todos os que, hoje, propagam a mensagem de Jesus.
217
Cf. J. M. BASSLER, Galileans. “Galileans symbolize those who receive the Word, Judeans symbolize
those who reject it.” (253). Cf., além de Jo 4,45, também 7,52 (quando Nicodemos se engaja por Jesus
perguntam se ele também é galileu). E os galileus que não aceitam as palavras de Jesus tornam-se judeus”
(Jo 6,41.52).
Beutler B -97
10. O segundo sinal de Jesus em Caná da Galileia (4,46-54)
46
Jesus veio novamente a Caná da Galileia, onde tinha mudado a água em vinho.
Havia um funcionário do rei, cujo filho se encontrava doente em Cafarnaum. 47 Quando
ouviu dizer que Jesus tinha vindo da Judéia para a Galileia, foi ao seu encontro e
pediu-lhe que descesse até Cafarnaum para curar o seu filho, que estava à morte.
48
Jesus lhe disse: “Se não virdes sinais e prodígios, não passareis a crer”. 49 O
funcionário do rei disse: “Senhor, desce, antes que meu filho morra!” 50 Ele respondeu:
“Vá, teu filho vive”. O homem acreditou na palavra de Jesus e foi. 51 Enquanto descia
para Cafarnaum, os empregados foram-lhe ao encontro para dizer que seu filho vivia.
52
O funcionário do rei perguntou a que horas o menino tinha melhorado. Eles
responderam: “Ontem, à hora sétima, a febre passou”. 53 O pai verificou que era
naquela hora que Jesus lhe tinha dito: “Teu filho vive”. Ele, então, passou a crer, com
toda a sua casa. 54 Este segundo sinal, Jesus o fez novamente depois de voltar da
Judéia para a Galileia.
I
O relato da cura do filho do funcionário régio em Jo 4,46-54 parece tradicional,
mas ao mesmo tempo misterioso. Pelo conteúdo, esta história se classifica junto a outros
semelhantes relatos de cura de Jesus. Nota-se, sobretudo, o parentesco com a cura do
filho do centurião de Cafarnaum em Mt 8,5-13 par. Lc 7,1-10. E aqui começam os
problemas. Os exegetas perguntam pela origem do relato joanino e sua relação com o
relato semelhante dos sinópticos. Se se pudesse mostrar uma dependência literária do
texto joanino em relação aos relatos de Mateus e Lucas, surgiria a pergunta se João
depende diretamente dos dois sinópticos ou, antes, da fonte subjacente, a fonte
hipotética chamada “Q”. Nesta fonte, a história do centurião de Cafarnaum é o único
exemplo de relato de milagre. Um grupo de autores rejeita a dependência de João dos
sinópticos e supõe, no lugar disso, outra fonte ou tradição. Nesta linha, sobretudo a
hipótese de uma “fonte dos sinais” ganhou certa difusão.
Além das questões da história da origem apresentam-se também perguntas a
respeito do sentido e da função do texto joanino no contexto global da obra. Com esta
história no fim dos quatro primeiros capítulos de seu evangelho, que é que o evangelista
quer transmitir a seu público leitor? Qual a função deste texto em vista da transição às
grandes controvérsias dos caps. 5–10? A resposta a esta pergunta ajudará para olhar os
caps. 1–4 retrospectivamente e refletir sobre sua função na estrutura global do
Evangelho segundo João.
O ponto de partida para as diversas hipóteses da crítica literária clássica (que
distingue fontes e camadas) consiste, por um lado, nos assim chamados textos paralelos
acima mencionados, e por outro, na constatação de certa falta de coerência e de
sequência lógica no texto de João. A este respeito, mencionam-se facilmente os vv. 48 e
49 do diálogo entre Jesus e o funcionário. De fato, bem observado, o funcionário não
pediu a Jesus nenhum sinal como base para sua fé, mas apenas uma ajuda para seu filho
gravemente enfermo. Assim, a resposta de Jesus no v. 48 não cabe bem dentro do
contexto. E o problema continua nos versículos seguintes: a palavra do funcionário no
v. 49 não leva em consideração a resposta de Jesus, mas repete o pedido anteriormente
feito de que Jesus cure seu filho antes que seja tarde. Quando Jesus, no v. 50, promete
que seu filho viverá, a fé do funcionário é ligada à palavra de Jesus. Portanto, ele mostra
aquela fé que, no v. 48, Jesus rechaçou. E não combina com isso a observação final, de
Beutler B -98
que o funcionário, depois de se ter convencido da cura realizada, “passou a crer com
toda a sua casa” (v. 53).
Uma resposta clássica para estes problemas consiste na hipótese de que o
evangelista utilizou e uma “fonte dos sinais” (“fonte dos sēmeîa”). Esta fonte, cuja
existência foi conjeturada primeiro por A. Fauré218, teve aceitação sobretudo junto a R.
Bultmann e sua escola. Esta fonte teria como característica sua cristologia que vê Jesus
como um “homem divino” (theîos anḗr), que prova sua origem e autoridade divinas
sobretudo por sinais milagrosos, que devem levar à fé nele como homem enviado por
Deus (cf. Jo 2,23-25; 4,45, ou a palavra de Nicodemos em Jo 3,2). O evangelista teria
ficado cético diante de tal caminho para a fé e diante de tal fé tão imperfeita, e teria
expressado sua ressalva por rearranjos redacionais para corrigir a cristologia insuficiente
da fonte dos sēmeîa. Bultmann encontrou um exemplo de tal correção no diálogo que já
mencionamos e no qual os vv. 48s. teriam sido inseridos. A escola de Bultmann apontou
outro exemplo no diálogo entre Jesus e sua mãe em Jo 2,4s., onde se fixa a conexão
entre o milagre de Jesus e sua “hora”.
A hipótese de uma “fonte dos sēmeîa” não é mais tão amplamente aceita hoje219.
É problemático reconstruir tal fonte hipotética com base em critérios principalmente
teológicos, sem um testemunho direto. Um avanço seria a aceitação da dependência da
composição de Jo 4,46-54 em relação à “fonte Q”, que também é hipotética, mas que
pode ser reconstituída a partir da matéria comum de Mateus e Lucas ausente de
Marcos220. Por outro lado, existe também a possibilidade de fazer remontar a substância
de Jo 4,46-54 diretamente a ambos os relatos do centurião de Cafarnaum em Mateus e
Lucas. Esta tese é defendida vigorosamente por F. Neirynck221, e é plausível. Um
argumento forte para a dependência direta de Jo 4,46-54 dos sinópticos consiste no fato
de que João retoma de modo direto Mt 8,13, um versículo que, sem dúvida, pertence à
redação de Mateus (e não à “fonte Q”), com a expressão da cura “naquela hora” (Jo
4,53). Outro motivo sinóptico–muitas vezes considerado como acréscimo joanino–é a
recusa de Jesus em conceder “sinais e prodígios”. Para este elemento, Neirynck remete
para o evangelho de Marcos, a saber, Mc 7,26-29; 8,11s.; 9,19; 13,22. Esses textos
foram retomados recentemente por G. R. Beasley-Murray e U. Schnelle em seus
comenários.
Como então se deixam explicar as diferenças de João em relação à tradiçao
sinóptica em Mateus e Lucas? Para João, o “funcionário régio” não é um pagão
(romano), mas aparentemente um judeu (contra a opinião de J. Becker e U. Schnelle).
Com base nisso, era natural fazer dele não um oficial da potência ocupadora, mas um
funcionário do governante local, o rei Herodes Antipas. Assim, as palavras de Jesus
acerca da salvação futura dos gentios se tornaram supérfluas. Na composição joanina
entrou, no lugar delas, o diálogo sobre a fé em Jesus por causa de sua palavra. A
substituição de Cafarnaum por Caná pode ser explicada pela intenção do autor de
aumentar a distância entre o lugar da palavra de Jesus e o de sua realização. De resto,
Caná podia servir como referência ao primeiro sinal, interligando os dois primeiros
sinais num momento importante do evangelho: o início do relato joanino sobre a
atividade pública de Jesus. Assim se lança o arco “de Caná a Caná”, como já o intitulou
218
A. FAURÉ, Die alttestamentlichen Zitate, 107-112, citado por R. BULTMANN 78, nota 4.
Recentemente M. THEOBALD, ad locum.
220
Assim B. LINDARS, Capernaum.
221
F. NEIRYNCK, Jean 4,46-54, e.o., contra S. LANDIS, Das Verhältnis.
219
Beutler B -99
H. Van den Bussche, seguido por diversos autores, entre os quais R. E. Brown no seu
comentário.
II
Quando olhamos para o texto que está aí, podemos dividir a narrativa em duas
partes que se correspondem222. Primeiro: depois da chegada de Jesus em Caná, a
chegada do funcionário régio, seu diálogo com Jesus e sua partida para Cafarnaum (vv.
46-50). A isso conecta-se uma segunda sequência, semelhante: a descida do funcionário
até Cafarnaum, a conversa com seus servos e o fim da narrativa com a conversão da
inteira casa do funcionário (vv. 51-54). Essa divisão serve de base para a análise a
seguir.
4,46-50
Nos vv. 46-47, temos a exposição que introduz a narrativa. Duas vezes mencionase a volta de Jesus para a Galileia. Esta parte da Terra Santa desempenha nas
experiências de Jesus, por enquanto, um papel positivo. Na Judeia, ao contrário, ele
encontrou resistência (cf. 4,1-3). Na Samaria, ele encontrou fé, mas não podia ficar ali,
porque era da Galileia. Na Galileia, foi recebido de braços abertos (4,43-45), ainda que
a forma da fé que ele lá encontrou fosse imperfeita. Neste ponto se inicia o nosso relato.
Pode ser lido como uma introdução na verdadeira fé223. A ocasião se oferece com a
chegada do funcionário régio de Cafarnaum, cidade que Jesus já tinha visitado uma vez
(2,12). O funcionário pede a Jesus que o acompanhe para curar seu filho gravemente
enfermo. Não pede a Jesus um “sinal”, e talvez nem sequer um milagre, mas ele vê em
Jesus alguém que realiza coisas maravilhosas, só isso, nada mais e nada menos. Assim
se entende a palavra de Jesus: “Se não virdes sinais e prodígios...”. O homem não
entende o sentido das palavras de Jesus, mas fica firme em sua confiança: Jesus pode
curar o seu filho, e por isso ele repete seu pedido. Jesus não atende diretamente, mas
assegura, ao pai preocupado, que seu filho vive (com as palavras de Elias à viúva de
Sarepta, 1Rs 17,23). O pai acredita na palavra de Jesus e volta para Cafarnaum.
4,51-54
À partida do funcionário régio de Cafarnaum para Caná corresponde agora sua
partida de Caná para Cafarnaum. Novamente descreve-se um diálogo, agora entre o
funcionário e seus servos. Estes lhe comunicam que seu filho “vive”. E quando o
funcionário pergunta em que hora entrou a melhora, eles lhe informam que foi na hora
sétima. O funcionário reconhece que essa foi a hora em que Jesus lhe havia dito “Teu
filho vive”, e com toda a sua casa abraça a fé (em Jesus). Aponta-se ainda que este foi o
segundo sinal que Jesus realizou depois de sua chegada à Galileia, vindo da Judeia.
Como se vê, a fé autêntica em Jesus continua sendo o tema central. Nos versículos
finais mostra-se um outro aspecto desta fé, o comunitário: “Ele, então, abraçou a fé,
com toda a sua casa”. A fórmula “ele com a sua casa” encontra-se repetidamente nos
Atos dos Apóstolos, em conexão com a piedade, a salvação ou a fé de famílias inteiras
(At 10,2; 11,14; 16,15.31.34; 18,8: J. Becker). Decerto ainda não podemos falar, neste
lugar, da fundação de uma “comunidade cristã doméstica”. Mas, de toda maneira, já se
tinha esboçado, no relato da fé da samaritana e de seus concidadãos, um tempo em que
“os campos já estão brancos para a colheita”. Um momento semelhante parece
anunciar-se também na Galileia por ocasião do encontro com Jesus.
222
223
Cf. a análise penetrante de A. G. VAN AARDE, Narrative Criticism.
Cf. ibid.
Beutler B -100
III
Com o relato da cura do filho do funcionário régio em Jo 4,46-50 fecham-se
diversos círculos concêntricos.
De Caná a Caná
O segundo “sinal” de Jesus, Jo 4,46-54, remete de diversas maneiras ao primeiro,
Jo 2,1-11. Com base neste, os discípulos chegam à fé em Jesus (2,11). O modo desta fé,
porém, permanece indefinido, e enquanto se baseia no sinal que viram, continua
marcado por um elemento de incompletude. O longo caminho de Jesus, de 2,13 até
4,45, descreve também um caminho das formas da fé. Muitos hierosolimitanos chegam
a crer em seu nome, mas baseiam sua fé sobre os sinais operados por Jesus. Por isso,
Jesus não se fia a eles (2,23-25). Não são capazes de perceber o sinal que supera todos
os outros, sua morte e ressurreição, e mesmo os discípulos não são capazes disso (2,22).
Nicodemos aparece como o representante da fé incompleta dos hierosolimitanos (3,1-3)
e não ficamos sabendo a que compreensão da fé conduziu o seu diálogo (não encerrado)
com Jesus. Um caminho da fé encontra-se também nos samaritanos e na representante
do grupo, a mulher da Samaria. Da confissão de que Jesus é profeta, por ter-lhe revelado
os segredos de sua vida, a mulher chega a uma fé messiânica inicial, e esta enseja
também a fé de seus compatriotas, que reconhecem em Jesus “o salvador do mundo”
(4,42). Um desenvolvimento semelhante pode ser visto nos galileus. Também eles
chegam primeiro a uma fé inicial com base nos sinais que Jesus tinha realizado em
Jerusalém (4,45), porém, são então convidados a aprofundar essa fé. Os galileus
percorrem este trecho do caminho na figura do funcionário régio, que, a partir de uma fé
baseada nos sinais de Jesus, alcança a fé que se baseia na palavra de Jesus. E assim
tornam-se possíveis as primeiras comunidades na Samaria e na Galileia.
A escola da fé dos discípulos
Numa leitura a partir do fim do cap. 4, também o relato a respeito dos primeiros
discípulos recebe um sentido mais profundo. Nos caps. 2–4, os discípulos não ocupam o
primeiro plano, mas estão presentes o tempo todo. O papel deles é salientado no
primeiro sinal de Caná. Depois deste sinal, são mencionados ocasionalmente (3,22), e
mais expressamente no cap. 4 (4,8.27.31-38). No aprofundamento da fé do funcionário
régio, eles podem descobrir também uma escola para si mesmos: um caminho que
conduz da fé em Jesus baseada nos sinais a uma fé que se fundamenta em sua palavra.
O dom da vida
A palavra com que o evangelista expressa a cura do filho do funcionário régio e a
reversão da ameaça da morte, “Teu filho vive” (4,50.51.53), parece ter sido escolhida
conscientemente. Quando se olha para trás, pode-se descobrir, nesta palavra-chave,
outro gancho: uma conexão com o Prólogo de João (1,1-18). “O que tem sido feito nela
era vida, e a vida era a luz dos homens. E a luz brilha nas trevas, e as trevas não a
acataram” (Jo 1,3-5). Esta vida, concedida por Jesus, Logos divino e unigênito Filho de
Deus (Jo 1,1.18), permite a todos os que nele acreditam tornar-se filhos de Deus (Jo
1,12s.). Lida a partir daqui, a palavra de Jesus em Jo 4,50, “Teu filho vive”, recebe um
sentido mais profundo: no filho Unigênito é proporcionada a Vida, a Luz dos homens,
que nos transforma em filhos de Deus. Esta mensagem transcende o tempo e é atual
também, e exatamente, quando a humanidade se preocupa com a base de sua vida.
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