Beutler A – 1 Beutler: Observações para a revisão textual As formas gramaticais “1ª pessoa”, 2ª pessoa” etc. – usar o numérico [ ] = tradução acrescentada pelo Tradutor [ ]* = explicitação acrescentada pelo Tradutor, ausente do original. Se há mudança de sujeito, e de acordo com a gramática de Napoleão M. de Almeida, eu geralmente coloco vírgula antes da conjunção “e”. Se o sujeito continua o mesmo, normalmente não insiro vírgula. Adaptar a bibliografia inicial à norma da editora. As referências de fonte nas notas de rodapé seguem um sistema próprio do autor, que dificilmente poderá ser modificado (semelhante o livro anterior da coleção, “Contexto e surgimento do Movimento de Jesus”). Manter a grafia “clássica” em: secção – sinóptico! Não separar as abreviaturas “s.” e “ss.” [=“e seguintes(s)”] do número que precede. Favor destacar as correções introduzidas e submeter ao tradutor antes da diagramação. para o diagramador: Em geral, reproduzir o mais fielmente possível a diagramação do original alemão. Umas três vezes coloquei em parágrafo recuado (a 1cm., corpo 11) citações longas que no alemão não são indicadas como tais. Nesses casos, seguir minha sugestão conforme os costumes da Loyola. Puxar para a margem os números dos versículos que estão sendo explicados. Eu os coloquei numa linha à parte, em negrito (no original estão na margem, e assim é que devem ficar). Para a bibliografia e o índice de citações, uma folha indicando as correções acompanha o exemplar do livro (= anexo do arquivo “Beutler III.def”); no índice algumas complementações foram acrescentadas a mão no livro. Eu verificarei devidamente depois da composição gráfica. Dados para folha de rosto: Evangelho segundo João Comentário Johannes Beutler Tradução: Johan Konings SJ Beutler A – 2 PREFÁCIO O comentário aqui apresentado remonta às minhas aulas sobre o Evangelho segundo João no Pontifício Instituto Bíblico em Roma, nos anos de 2000 até 2007, ano de minha volta à Alemanha. As aulas em Roma, todavia, têm antecedentes na minha docência em Frankfurt am Main, desde 1971. Assim conflui, neste comentário do Evangelho segundo João, o trabalho de toda uma vida, que encontrou expressão também em publicações. Meu interesse por João nasceu com minha dissertação na Universidade Gregoriana em 1972 sobre o tema do testemunho no Quarto Evangelho, publicada no mesmo ano, intitulada Martyria. Naquela época eu devia lecionar a Teologia fundamental com ênfase no Novo Testamento. O tema do testemunho em João parecia apropriado para dar uma resposta à pergunta acerca dos fundamentos da fé em Jesus segundo o Novo Testamento. Mas, em pouco tempo, meu trabalho sobre o Evangelho segundo João se emancipou, deixando para trás a problemática da Teologia Fundamental. O trabalho dos anos subsequentes, inclusive o comentário aqui presente, foi caracterizado pelo esforço de entender o Evangelho segundo João a partir de seu fundo veterotestamentário e judaico. Tinha progressivamente abandonado as hipóteses de documentos-fonte para o Quarto Evangelho. No lugar dessas fontes coloquei os evangelhos sinópticos, cuja importância para o Evangelho segundo João eu fui reconhecendo sempre mais, não em último lugar sob a influência da escola de Lovaina, orientada pelo Professor Frans Neirynck. A isso acrescentou-se o saldo do diálogo com Eduard Schweizer e com meus colegas da Alemanha, que reconheciam nas camadas ulteriores do Quarto Evangelho uma “releitura” dos textos anteriores. Esta abordagem levou-me à proposta de ver no capítulo 6 de João uma “releitura” do seu contexto. Quanto a isso, menciono como predecessores Barnabas Lindars e René Kieffer. Meu trabalho deve igualmente muita coisa ao diálogo internacional, especialmente no quadro da SNTS-Society of New Testament Studies, da qual sou membro desde 1975 e de cujos seminários sobre os Escritos Joaninos eu recebi mais que apenas saldo científico. Exprimo minha gratidão ao Verlag Herder, por ter acolhido meu texto e o ter tratado com cuidado exemplar. E agradeço, finalmente, todos os que me acompanharam na minha caminhada científica, desde os professores até os alunos, e inclusive também minha família, minha ordem religiosa e minhas amigas e amigos pessoais. A eles dedico esta obra, com gratidão. Frankfurt am Main, 5 de junho de 2013 Johannes Beutler SJ Beutler A – 3 Apresentação da tradução em língua portuguesa Faltava na biblioteca teológica brasileira um “grande” comentário do Evangelho segundo João. Escolhemos para publicação na “Biblica Loyola”, por causa de sua atualização científica e profunda visão teológica, o comentário de Johannes Beutler, fruto de sua docência na Alemanha e em Roma. Além disso, a escolha foi influenciada também pela afinidade acadêmica e abertura universal do Autor. A obra mostra sensibilidade pelas periferias do mundo, o que a aproxima do nosso continente, não desconhecido ao Autor. O leitor latino-americano poderá assim desfrutar a riqueza de conteúdo e a clareza de método que caracterizam a obra. Destacamos os aspectos hermenêuticos, metodológicos e didáticos. Quanto à hermenêutica, transparece amiúde a busca da encarnação histórica na óptica de uma Igreja pobre e serva. Quanto ao método, aprecia-se a sistematicidade e clareza com que são seguidos os diversos passos da exegese, servindo assim de escola para os muitos leitores que têm interesse bíblico, mas dificilmente encontram oportunidade de estudo avançado. Depois da riquíssima introdução geral, são tratadas as diversas secções, delimitadas segundo as indicações narrativas. Em cada secção, depois da tradução do texto bíblico, o Autor expõe (I) o contexto e a composição, (II) a exegese detalhada, com prioridade da abordagem sincrônica, completada pela diacrônica, e (III) finalmente, a hermenêutica para a atualidade. Procuramos praticar a “dupla fidelidade” ao texto original e ao destinatário da tradução. Algumas vezes, acrescentamos ao texto, entre [ ], o termo original alemão, outras vezes, breves esclarecimentos nossos, assinalados por [ ]*. A fim de aliviar a leitura aos que não dominam as línguas bíblicas, preferimos, via de regra, transliterar os termos gregos e hebraicos. Conservamos as anotações de fonte no rodapé e a bibliografia geral segundo o modelo original alemão. Quanto ao texto do Evangelho de João, enquanto o original alemão segue a Einheitsübersetzung, julgamos mais adequado para a edição em língua portuguesa usar uma tradução própria, nascida em margem de nosso trabalho de revisão da tradução da CNBB e adaptada às opções exegéticas do Prof. Beutler. Prof. Dr. Johan Konings, SJ FAJE–Faculdade Jesuíta de Filosofia e teologia Belo Horizonte (Brasil) Beutler A – 4 ENCAMINHANDO BIBLIOGRAFIA As abreviações de textos-fonte bíblicos e extrabíblicos judeu-cristãos, bem como de coleções, periódicos e obras de referência seguem S. SCHWERTNER, Internationales Abkürzungsverzeichnis für Theologie und Grenzgebiete, 2.ed., Berlin–NewYork, 1992. {{scan p. 11}} 1. Fontes a) Bíblia {{scan p. 11}} b) Outras fontes {{scan p. 12}} 2. Literatura a) Comentários {{scan p. 12}} b) Outra literatura {{scan p. 14-45}} [[p. 47]] Beutler B -5 INTRODUÇÃO 1. Natureza peculiar do Quarto Evangelho Ao aproximar-se do Evangelho segundo João, as leitoras e leitores dos evangelhos entram num mundo novo. Desde o início ouvem um linguajar novo. Desapareceram as palavras de Jesus sobre o Reino que está para chegar. Já o Prólogo do Quarto Evangelho (Jo 1,1-18) é marcado por conceitos ricos de conteúdo. Fala do Logos divino, que traz aos homens luz e vida; mas fala-se também do poder das trevas. Fala-se da verdade que Jesus proporciona e é, bem como da mentira que a ele se opõe. Sobretudo os grandes discursos de Jesus na primeira metade do evangelho e as controvérsias com os “judeus” são marcadas por este linguajar, mas ele está presente também nos discursos de despedida de Jesus, na véspera de sua via crucis. Até no derradeiro interrogatório perante Pilatos, Jesus afirma ser o rei que veio para dar testemunho da verdade. Este tom não se ouviu, anteriormente, nos evangelhos. É característico do Quarto Evangelho o dualismo do seu mundo linguístico e conceitual. Diversamente dos sinópticos, este dualismo não é de natureza temporal, mas espacial. Jesus vem “de cima”, seus adversários “de baixo”. Estes são “deste mundo”, ele é “não deste mundo”. Jesus proporciona e é a vida, e quem a ele se fecha anda nas trevas. Jesus apresenta e é a verdade, o Adversário é “o pai da mentira”. O “mundo” pode ser o espaço da missão do Filho, mas também o conjunto de tudo o que se opõe a Jesus e à sua mensagem. Como representantes do “mundo” que, em João, se opõe a Jesus, aparecem os “judeus”, num sentido bem específico (concretamente, trata-se das autoridades judaicas de Jerusalém, mas também dos representantes da religião judaica na medida em que se recusam a crer em Jesus). A pluralidade dos grupos judaicos, que ainda se reconhece nos evangelhos sinópticos, em João se reduz aos fariseus. Isso pode estar ligado à data tardia de sua composição. Depois da destruição de Jerusalém e do Templo, em 70 d.C., os saduceus, os zelotes e os essênios se tornaram irrelevantes. Sobrou somente o grupo dos fariseus como único a exercer alguma influência. Por isso, João identifica os fariseus com “os judeus”. A impressão de que o Evangelho segundo João seja antijudaico, porém, engana. Nenhum evangelho é tão fortemente marcado pelo judaísmo e pelas suas instituições como o Quarto Evangelho. Isso se percebe na organização do evangelho. Adiante, mostraremos pormenorizadamente que as viagens de Jesus às festas de peregrinação judaicas têm significado estruturante para o Evangelho segundo João. Entre a primeira Páscoa, em 2,13, e a última, em 11,55, encontram-se a festa anônima de 5,1 – que bem pode ser a festa das Semanas (Pentecostes) – e a festa das Tendas, em 7,2, que é prolongada na festa da Dedicação em 10,22. Prescindindo, pois, da festa da Páscoa de 6,4, que se celebra na Galileia, a vida pública de Jesus percorre o inteiro ciclo das festas judaicas. Jerusalém e o Templo oferecem o palco preferido para o ensino e a atividade de Jesus. E neste quadro são destacados alguns lugares específicos, como as piscinas de Siloé e de Bezata. A sequência dos fatos da vida de Jesus, no Quarto Evangelho, não corresponde sempre à dos evangelhos sinópticos. Jesus realiza a purificação do templo já em sua primeira visita a Jerusalém, por ocasião da Páscoa (2,13-22). Desenha-se assim um Beutler B -6 arcabouço de grande tensão dramática. De fato, já desde esse ato inicial aparece um conflito ameaçador entre Jesus e o judaísmo, paralelo, até certo ponto, com a deliberação de fariseus e herodianos para eliminar de Jesus, depois da cura em dia de sábado em Mc 3,6. Se Marcos parece fazer uma seleção intencional dos milagres de Jesus, essa tendência se reforça em João. Ele não menciona exorcismos, nem curas de leprosos, e o número das curas em geral se apresenta muito restrito. Restam a cura do filho do funcionário régio (4,46-54), a cura do aleijado (Jo 5), a cura do cego de nascença (Jo 9) e a ressuscitação de Lazaro dentre os mortos (Jo 11). Em compensação, estes milagres são teologicamente refletidos como “sinais” do pleno poder de Jesus, inclusive nas extensas cenas de diálogo que os seguem ou acompanham. Isso vale também para o sinal do pão em Jo 6. A transformação de água em vinho, nas bodas de Caná, é própria de João e é designada como “início dos sinais” (2,11), embora falte um discurso interpretativo de Jesus. A pesca milagrosa de Jo 21,1-14 não segue esse esquema, mas demonstra, por seu lado, profundos traços simbólicos. Procuram-se em vão, no Quarto Evangelho, as parábolas do Reino dos Céus, tão características de Jesus nos evangelhos sinópticos. Mas o quarto evangelista não despreza a linguagem figurativa ou metafórica. Ela lhe serve, principalmente, para descrever a identidade de Jesus, por exemplo, nas autopredicações “Eu sou”, típicas do evangelista e com as quais Jesus exprime quem ele é para aquele que crê (“Eu sou o pão da vida”, Jo 6,35; “Eu sou a luz do mundo”, 8,12). Por duas vezes encontramos em João uma forma literária, comparável à parábola ou semelhança, designada como “discurso figurativo” [Bildrede]: o discurso figurativo do bom pastor (10,1-5) e o da videira verdadeira (15,1-8). Nesta forma de discurso, aparentada à alegoria, interpenetram-se a dimensão da figura ou imagem e a da realidade evocada. Marcos inicia seu evangelho com a atuação de João Batista. Mateus e Lucas recuam mais no tempo e começam com um evangelho da infância. O quarto evangelista recua mais ainda: regressa, no seu Prólogo (1,1-18), até a origem de Jesus nas profundezas eternas de Deus. Quem Jesus é e de onde ele vem não mais é enunciado em termos biográficos, mas teológicos. A teologia característica do quarto evangelista já se manifesta no Prólogo; mais, encontra nele sua expressão insuperável. A Palavra divina, Jesus, não apenas se origina de Deus, mas ela mesma é Deus, isto é, ser divino. Este enunciado emoldura o Prólogo (1,1 e 18). No fim do evangelho –antes do apêndice que é o cap. 21 –, Tomé retoma ainda uma vez esse enunciado, fazendo dele sua profissão de fé e a da comunidade leitora: “Meu senhor e meu Deus” (Jo 20,28). Destarte, a confissão da divindade de Jesus emoldura o Evangelho segundo João inteiro em sua forma primitiva. Que Jesus é Filho de Deus é um enunciado supremo no evangelho de Marcos (cf. Mc 1,11; 9,7; 14,61; 15,39); em João, ele permanece como título cristológico dominante. Ao lado disso Jesus é muitas vezes chamado simplesmente “o Filho”, e também “o Filho do Homem”, como Jesus com frequência é chamado nos sinópticos. Tais predicados têm contato com o servo de Deus de Isaías: ele será “enaltecido e glorificado” (cf. Is 52,13 LXX). Assim entra em jogo a escatologia joanina. Em João não encontramos um discurso sobre o vindouro fim do mundo, nem sobre a destruição de Jerusalém, como em Mc 13 e paralelos. O tempo do fim não é anunciado para momento algum, nem para imediatamente: ele já irrompeu – provável referência a textos sinópticos como Mc 12,28; Lc 11,20. Em João, isso pode soar assim: “Vem a hora, e já chegou” – a hora dos Beutler B -7 verdadeiros adoradores em espírito e verdade (Jo 4,23) e, ao mesmo tempo, a hora em que os mortos ouvem a voz do Filho do Homem e se levantam para o julgamento ou para a salvação eterna (5,25). É, sobretudo, nesta antecipação do juízo final e da vida eterna para o tempo presente que João supera os sinópticos. O ponto culminante da História é a paixão, morte e ressurreição de Jesus – em termos joaninos: a “hora” do “enaltecimento” de Jesus sobre a cruz e rumo ao Pai. É deste ponto de observação que se devem entender as palavras de Jesus. Especialmente os discursos da despedida de Jesus em Jo 13–17 são pronunciados, consequentemente, desde a óptica do Enaltecido. Dentro de pouco tempo, ele não estará mais visivelmente presente entre os seus, mas lhes enviará seu substituto, o Paráclito, que introduzirá os discípulos em toda a verdade (Jo 16,13). Destarte, a comunidade dos discípulos de Jesus vive, depois da Páscoa, no tempo do fim e torna-se partícipe das promessas escatológicas. 2. Estrutura Até hoje se encontram as mais diversas teorias acerca da estrutura do Quarto Evangelho. Até num passado recente reinava, especificamente no mundo de língua alemã, dúvida de que se possa encontrar uma estrutura clara no Quarto Evangelho. Tal ceticismo encontra-se, por exemplo, no monumental comentário de R. Schnackenburg. Este ceticismo se fundamenta em parte na opinião de que o Evangelho segundo João passou por um longo processo de composição, na base de diversas fontes, de modo que sua forma original mal se deixa reconstruir. Os grandes comentadores do Quarto Evangelho articulam o texto principalmente na base de pontos de vista temáticos. R. Bultmann, por exemplo, divide o Evangelho segundo João em duas partes principais: “A revelação da doxa diante do mundo” (Jo 2– 12) e “A revelação da doxa diante da comunidade” (Jo 13–20). O cap. 1 seria prólogo e introdução, o cap. 21 epílogo ou apêndice. C. H. Dodd (Interpretation) divide o evangelho em “O livro dos Sinais” (2–12) e “O livro da Paixão” (13–20). R. E. Brown modifica a compreensão de Dodd, intitulando a segunda parte “O livro da Glória”, o que certamente é mais adequado. Ele divide a primeira parte em quatro secções: “Os dias de abertura da revelação de Jesus” (1,19-51); “De Caná a Caná” (caps. 2–4); “Jesus e as principais festas dos judeus” (caps. 5–10); e, finalmente, os caps. 11–12 como “Jesus a caminho da hora de morte e glória”. Neste esquema junta-se, à articulação temática, outra, que leva em consideração pontos de vista topográficos, cronológicos e litúrgicos1. Outros autores consideram como ponto de vista decisivo o drama. J. L. Martyn2 vê o “drama” do conflito entre Jesus e os judeus que lhe recusam a fé como determinante para o Evangelho segundo João. Porém, como esse conflito se prolonga através do evangelho inteiro, sua utilidade para estruturar o texto é relativa. Também Mark Stibbe, em suas diversas publicações3, e L. Schenke, no seu comentário, julgam a perspectiva dramática determinante. Este último organiza o Evangelho segundo João, depois do Prólogo, em duas partes: “A obra de Jesus diante do mundo dos homens como ‘descida do céu’” (Jo 1,19–12,36), em oito cenas, com um epílogo em 12,37-50; e, depois: “A obra de Jesus diante dos discípulos como ‘subida/enaltecimento ao céu’” (Jo 13,1–20,29), com um segundo epílogo em 20,30-31, uma continuação em 21,1-24 e 1 Abordagem desenvolvida por F. J. MOLONEY no seu comentário. J. L. MARTYN, History. 3 Cf. seu comentário e sua monografia John as Storyteller. 2 Beutler B -8 a conclusão do livro em 21,254. Schenke completa, porém, esta visão por outra, que articula o Evangelho segundo João segundo o modelo do drama antigo em cinco atos: exposição, repetição-condensação, auge, peripécia e desenlace5. À semelhança de Schenke, também H. Thyen ordena o Evangelho segundo João no tipo do drama, segundo o exemplo do exegeta dinamarquês G. Østenstad6. Mas a estruturação em atos e cenas parece por demais emprestada do gênero darmático para dar conta dos múltiplos indícios de articulação que o texto apresenta. Também M. Theobald, no seu comentário, vê o Quarto Evangelho como “narrativa dramática”7, embora admita não encontrar o drama “com exatidão no plano de composição do livro”8. De modo semelhante, George L. Parsenios se interessa pelo drama como elemento estruturador do Evangelho segundo João, num estudo que representa ampla literatura recente dos EUA9. Segundo Parsenios, não é o drama antigo como tal que nos ajuda a compreender melhor e Evangelho segundo João, mas sua elaboração na retórica da época romana10. As articulações cronológicas e litúrgicas orientam-se mais pelos sinais estruturais do texto. Assim, D. Mollat, em seu comentário na Bible de Jérusalem11, reconhece, em João, depois da “semana de abertura” (1,19–2,12), as principais festas judaicas de peregrinação como elementos estruturadores: a primeira Páscoa em Jerusalém, visitada por Jesus (2,13); a festa anônima de 5,1, que talvez seja a festa das Semanas; a Páscoa na Galileia em 6,4; a festa das Tendas (7,2) com a subsequente festa da Dedicação (10,22); e a Páscoa final (11,55; 12,1; 13,1–19,42). Esta proposta é recomendável por causa da interligação dos elementos estruturais temáticos, espaciais e temporais. Tornaremos a tratar disso. Recentemente alegam-se também elementos topográficos para a articulação do Evangelho segundo João. M. Rissi12 distingue, na sua proposta estrutural, três viagens de Jesus antes de seu caminho definitivo rumo a Jerusalém. Estas viagens começam na região não judaica, dos gentios, e, passando pela Galileia, conduzem a Jerusalém: 1,19– 3,36; 4,15,47; 6,1–10,39. Neste ponto começa a última viagem a Jerusalém (10,40– 12,41), a despedida de Jesus dos seus (13,1–14,31; os caps. 15–17 são acrescentados) e a volta ao Pai (18,1–20,31; o cap. 21 é acrescentado). No início encontra-se o Prólogo. Destarte temos uma estrutura de sete partes, com três vezes duas secções depois do Prólogo, tendo o ponto de reversão em 10,40. J. Staley13 retoma de M. Rissi sobretudo o ponto de reversão em 10,40 (em concordância com H. Thyen14), com a diferença de situar o início da nova secção em 4 L. SCHENKE, 17. L. SCHENKE, 16; ID., in: Das Johannesevangelium: Einführung – Text – dramatische Gestalt, 219. 6 G. ØSTENSTAD, Structure. 7 M. THEOBALD I 14. 8 Ibid. 29. 9 G. L. PARSENIOS, Rhetoric and Drama; cf. sobretudo o aceno a Jo-Ann BRANT, Dialogue and Drama. 10 Cf. ibid., 12: “The following monograph argues that the Gospel of John also resonates with the echoes of Athenian tragedy in the Roman Empire. And a key note in the harmony that links John to ancient tragedy is the legal emphasis of both.” 11 D. MOLLAT 32-36, 90. 12 M. RISSI, Aufbau. 13 J. STALEY, Structure. 14 H. THYEN, Johannes 10 e comentário; também M. LABAHN, que no artigo “Bedeutung und Frucht des Todes Jesu” (435) considera Joh 11–12 como uma espécie de “lente com evidentes tendências à convergência [Bündelung] e à interpretação”. 5 Beutler B -9 11,1 (também com Thyen). Stanley vê a ideia da “viagem” preparada já no Prólogo, visto que este descreve a descida e a subida do Logos. Apresenta-se assim uma estrutura em quatro viagens: 1,19–3,36; 4,1–6,18; 7,1–10,42; 11,1–21,25. O caminho de Jesus na primeira metade do evangelho (1,19–10,42) o leva de Betânia além do Jordão a Betânia de Jerusalém (1,28; 11,1.18). Acompanha de maneira determinante João Batista, como tal pela primeira vez em 1,28 e pela última vez em 10,42. Em seguida ele é “substituído” por Lázaro, que Jesus “amava” (11,5), e, depois, pelo “discípulo que Jesus amava” (para L. Devillers15, as três “testemunhas” de Jesus). R. Kieffer articula o Evangelho de João segundo quatro viagens de Jesus, que têm o mesmo ponto de partida, a saber, a terra adjacente do outro lado do Jordão (ou eventualmente do mar de Genesaré): Jo 1,19-51; 3,22-36; 6,1-6 e 10,40-42 16. F.F. Segovia, em duas contribuições17, observa que as viagens de Jesus regularmente o reconduzem a Jerusalém. Ele distingue, como M. Rissi, três viagens de Jesus (1,19–3,36; 4,1–5,2; 6,1–10,42) antes da última e decisiva, em 11,1. Estas viagens permitem ao leitor participar das vicissitudes do herói. Mas esta visão não considera a importância das festas de peregrinação judaicas para as viagens e para a estrutura do Evangelho segundo João. Recentemente procura-se, antes, combinar as características estruturais formais e as de conteúdo. Observa-se esse empenho no caso de G. Mlakuzhyil18 da escola de I. de la Potterie no Pontifício Instituto Bíblico. Ele considera que a cristologia tem importância decisiva para a compreensão e a estruturação do Quarto Evangelho. Depois de uma introdução cristológica (1,1–2,11), este autor distingue o “livro dos Sinais” (2,1–12,50), com as bodas de Caná como passagem de transição, e o “livro da hora de Jesus”, com 11,1–12,50 como transição (como H. Thyen, cf. supra). Em 20,30s. temos a “conclusão cristocêntrica” e em 21,1-25 um epílogo. Merece atenção que 2,1-11 e 11,1– 12,50 são vistos como passagens de transição. Menos convincente é que ele restringe o ciclo das festas judaicas às grandes controvérsias de Jesus com “os judeus” em Jerusalém, em Jo 5,1–10,42. Também a proposta de C. H. Giblin19 combina critérios estruturais formais e conteudísticos. O autor parte de indicações de lugar e de tempo no texto como também de indícios de estruturação dramática. Em Jo 1,19–4,54 descreve-se a missão universal de Jesus; em 5,1–10,42, a inimizade contra ele nas grandes controvérsias; e, a partir de 11,1, o amor de Jesus pelos seus até o fim. A transição formal para a segunda parte se dá em 13,1, conservando-se assim a tradicional bipartição do Evangelho segundo João. Pergunta-se, porém, se as indicações de tempo e lugar recebem a devida consideração. O presente comentário procura combinar os critérios de estruturação usados até aqui. Consideramos elementos topográficos, cronológicos, litúrgicos, formais e conteudísticos. De D. Mollat guardamos o papel das festas judaicas na estrutura do Evangelho segundo João20; de M. Rissi, J. Staley, R. Kieffer e F. F. Segovia, a importância das viagens até inclusive a última viagem a Jerusalém. Recomenda-se ver nas viagens a Jerusalém “subidas” de peregrinação às principais festas dos judeus. Um 15 L. DEVILLERS, Témoins. Vgl. R. KIEFFER, Johannesevangeliet II, 500. 17 F. F. SEGOVIA, Journeys of the Word; ID., Journeys of Jesus. 18 G. MLAKUZHYIL, Structure. 19 C. H. GIBLIN, Structure. 20 Seu background judaico é examinado em D. FELSCH, Feste. 16 Beutler B -10 ciclo anual das festas de romaria judaicas pode ter constituído a estrutura básica da parte narrativa do Evangelho segundo João entre 2,13 e 11,55. Por quatro vezes, Jesus toma o caminho de Jerusalém: para a primeira Páscoa, em 2,13; para a festa anônima, em 5,1; para a festa das Tendas, em 7,2; para a última Páscoa, em 11,1 (mencionada também em 11,55; 12,1 e 13,1). Para a Páscoa mencionada em 6,4, Jesus não parece subir a Jerusalém; talvez o cap. 6 inteiro tenha sido inserido ulteriormente sob influência dos sinópticos21. A festa da Dedicação, em Jo 10,22, está incluída neste quadro e não necessita de nova subida a Jerusalém, visto que Jesus já se encontra na cidade. Teologicamente falando, Jesus leva a termo os tempos e lugares santos de Israel (o Templo encontra-se no início e no fim). Acertadamente, os comentadores veem no início uma “semana de abertura” da vida pública de Jesus (1,19–2,12), com um esquema de sete dias, enquanto no fim temos uma semana para a volta ao Pai, iniciando-se com a unção em 12,1 (“seis dias antes da Páscoa). Junto a isso cabem, em Jo 11, os seis dias da história de Lázaro. 3. Finalidade Quando se pergunta pela finalidade ou objetivo da redação do Quarto Evangelho, a maioria dos comentadores, aponta para o primeiro final do Evangelho segundo João, 20,30s: “Jesus realizou ainda muitos outros sinais diante dos discípulos, que não estão escritos neste livro. Mas estes estão escritos para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida, em seu nome.”. Para a expressão “para que creiais”, os textos originais gregos apresentam duas lições variantes. A primeira, atestada por P 66vid a* B Q 892s l 2211, portanto, pela tradição textual mais antiga, de origem egípcia, lê hína pisteúēte no presente do subjuntivo; enquanto a outra lê o subjuntivo aoristo, hína pisteúsēte, atestado por a2 A C D K L N W G D Y f1.13 33 e testemunhas do texto majoritário. De acordo com a primeira lição, a finalidade do evangelho é corroborar os leitores na fé em Jesus; de acordo com a segunda, levar as pessoas à fé em Jesus. O testemunho documental, porém, aconselha preferir a primeira variante, e é o que fazem a maioria dos comentários recentes. Antigamente, a pesquisa gostava de perguntar pelos destinatários do Quarto Evangelho. Para tanto, muitas vezes se remetia à segunda variante mostrada acima. Nos comentários de R. Schnackenburg22 e de R. E. Brown23 encontra-se o elenco desses modelos, que ainda pode ser completado24. Eventualmente propõe-se que o Evangelho segundo João tem por finalidade ganhar os adeptos do Batista para a fé em Jesus. Remete-se então ao Prólogo, que diz expressamente que o Batista não era a luz, mas veio para dar testemunho da luz (Jo 1,8)25. Segundo o quarto evangelista, o próprio João Batista põe-se a serviço dessa finalidade (cf. Jo 1,19.32.34; 3,26; 5,33s.). De acordo com Jo 1,20, o Batista realça que ele não é o Messias. Segundo At 18,24–19,7, Paulo encontrou em Éfeso discípulos de Jesus que conheciam o batismo de João apenas. 21 Cf. J. BEUTLER, Joh 6, e a explicação de Jo 6 no presente comentário. R. SCHNACKENBURG I 146-153. 23 R. E. BROWN I LXVII-LXXIX. 24 Cf. J. BEUTLER, Martyria, 340-351. 25 Vgl. W. BALDENSPERGER, Prolog. 22 Beutler B -11 Outra opinião, representada por K. Bornhäuser26, propõe que o Evangelho segundo João é um “escrito missionário para Israel”. Tal opinião se baseia, além do acima citado final do evangelho, nas grandes controvérsias entre Jesus e “os judeus” acerca da afirmação de Jesus de ser o Cristo e Filho de Deus. Uma alternativa para esta opinião é ver no Quarto Evangelho um escrito dirigido aos gregos. Com ironia joanina, os ouvintes judeus se perguntam, em 7,35, se Jesus irá à diáspora dos gregos, para evangelizar ali. Tais gregos aparecem em 12,20 para ver Jesus. Acaso o Quarto Evangelho quer ganhá-los para a fé? Ou pensa-se em judeus da diáspora27? Outros destacam o interesse do Quarto Evangelho pelos samaritanos28. Contemplam-se, de modo especial, a viagem de Jesus através da Samaria e os diálogos e encontros que se seguem em Jo 4,1-42. Talvez aponte nessa direção a crítica do Quarto Evangelho em relação ao Templo, que o aproxima do movimento de Qumrã e dos helenistas do livro dos Atos. Também os gnósticos e os docetistas aparecem como possíveis destinatários do Quarto Evangelho. Nesta luz explica-se o destaque dado à “carne” de Jesus (cf. Jo 1,14; 6,51-56), bem como sua morte sangrenta na cruz e, em seguida, o lado aberto de Jesus, de onde fluem água e sangue (Jo 19,34s.)29. Em tempos recentes cresce a opinião de que o Quarto Evangelho pretende, em primeiro lugar, corroborar a fé dos leitores cristãos. Esta opinião não provém apenas da primeira variante textual de 20,31 (cf. acima), mas da própria índole do Quarto Evangelho. Em diversos textos fortes do Quarto Evangelho, discípulos representativos formulam a confissão à qual leva o evangelho inteiro de acordo com 20,30s. Pedro, como porta-voz dos Doze, declara, depois de um movimento de desistência no meio dos discípulos, em Jo 6,68s.: “A quem iremos nós, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna. Nós firmemente cremos e reconhecemos que tu és o Santo de Deus”. Depois, Marta, em 11,27, toma na boca a confissão da comunidade leitora de João: “Sim, Senhor, eu creio firmemente que tu és o Cristo, o Filho de Deus, aquele que deve vir ao mundo”. Tal confissão já vem preparada desde o primeiro capítulo (cf. André em 1,41 e Natanael em 1,49). O Evangelho segundo João pretende, portanto, conduzir à fé em Jesus, o Cristo e Filho de Deus, e corroborar essa fé. Segundo a opinião mais divulgada, sobretudo no mundo de língua alemã, este seria seu único objetivo. Talvez haja nisso alguma influência da Reforma, segundo a qual todo o interesse está em Cristo e na fé nele. No mundo anglófono percebe-se, ultimamente, que pertence à fé em Cristo também a confissão dessa fé30. Nisto podem jogar dois fatores: a maior independência em relação às ópticas confessionais da Europa central e a troca do paradigma, quando se prioriza a explicação dos textos neotestamentários não tanto a partir do autor, mas a partir do leitor. Sobretudo nos EUA cresce, nos últimos anos, uma exegese mais 26 K. BORNHÄUSER, Johannesevangelium. Assim J. A. T. ROBINSON, Destination; ao menos para Jo 12,20, H. KOSSEN, Greeks, pensa em gregos não judeus. 28 Em relação a isso, cf. já J. BOWMAN, Probleme, esp. 53-76: Die Samaritaner und das Evangelium, em que as pp. 55-61 se referem a João. 29 Cf. G. BORNKAMM, Interpretation, contra E. KÄSEMANN, Jesu letzter Wille, que vê no Evangelho de João um “docetismo ingênuo”. Mais em U. SCHNELLE, Christologie. 30 Cf., entre outros, R. E. BROWN I LXXVII-LXXIX; J. PAINTER, John, Witness, 12-15; J. DU RAND, Perspectives I 55; R. KYSAR 14-15, 310; ID., Fourth Evangelist, 147-165; ID., Maverick Gospel, 18-26. 27 Beutler B -12 pragmalinguística dos textos do Novo Testamento, que recorre ao instrumental da análise retórica e da resposta do leitor aos textos bíblicos (“reader response criticism”). Uma indicação para a necessidade de permanecer na fé e de se deixar corroborar nela já se encontra no próprio enunciado de Jo 20,31. O presente do subjuntivo, pisteúēte, significa exatamente: “para que continueis crendo”. Essa fidelidade pode terse tornado difícil nas circunstâncias dos leitores do Evangelho segundo João. Se querem viver autenticamente sua fé, devem também confessá-la exteriormente. E parece que isso está encontrando dificuldades. Por isso, desde o início, o Quarto Evangelho dá grande valor à confissão da fé em Jesus, quer direta quer indiretamente31. Diz-se do Batista, quando interrogado se ele é o Messias: “Ele confessou e não negou; ele confessou: ‘Eu não sou o Cristo’” (Jo 1,20). Percebe-se o acento posto na confissão. Mais adiante aparecem pessoas que acreditaram em Jesus, mas não confessam isso publicamente, por medo dos fariseus, visto que estes decidiram excluir da sinagoge todos os que publicamente confessassem Jesus (Jo 12,42). Para estes discípulos, a honra dos homens era mais importante que a de Deus (cf. Jo 5,5,41-44)32. Entre esses discípulos encontramos José de Arimateia, que, porém, corajosamente, acompanhado de Nicodemos, vai pedir a Pilatos o corpo de Jesus (Jo 19,38s.). Assim encontramos as figuras exemplares que, segundo o Evangelho de João, nos dão o exemplo da confissão intrépida de Jesus. Mencionemos novamente Nicodemos, membro do supremo conselho dos judeus. Da primeira vez, dirige-se a Jesus de noite, provavelmente por medo de ser visto. Isso ficará pairando sobre ele: é lembrado ainda em 19,39. Não se sabe como terminou sua conversa com Jesus em 3,1-21. Ele simplesmente some da cena, sem que os leitores fiquem sabendo o que ele aprendeu na conversa com Jesus. Quando, mais tarde, Jesus se torna objeto de acusação no supremo conselho, Nicodemos toma partido por ele e exige que se ouça o acusado, conforme a norma da Lei (Jo 7,50s.). Assim, Nicodemos se expõe a risco social, pois ele é “um deles” (v. 50). No fim do evangelho, Nicodemos vai com José de Arimateia pedir a Pilatos o corpo de Jesus. Desta vez, coloca a sua vida em jogo junto às autoridades romanas33. Pode-se pensar que o evangelista, mediante estes elementos biográficos, quer mostrar a seus leitores que devem confessar Jesus, sem consideração da própria vida ou posição. Como José de Arimateia, também Nicodemos pode ter sido um discípulo de Jesus “em segredo” (19,39s.); mas ele encontra a coragem de assumir sua fé quando é preciso. É o que também os leitores devem aprender. O modelo mais importante com o qual os leitores do Evangelho segundo João podem identificar-se é proposto, provavelmente, no cap. 9, a história do cego de nascença. Este recebe de Jesus não só a luz dos olhos, mas, passo a passo, chega também à fé em Jesus. Ao contrário de seus pais, ele arrisca confessar essa fé, apesar da decisão dos “judeus” (no caso, as autoridades judaicas de Jerusalém) de excluir da sinagoga qualquer um que aderir Jesus (Jo 9,22). Pouco depois, sua confissão resulta, de fato, na exclusão (9,34). Semelhante exclusão menciona-se também em 12,42 e 16,2. Segundo J. L. Martyn34 espelha-se aqui a situação do tempo depois da destruição do 31 Para o que segue, cf. J. BEUTLER, Faith and Confession. Cf. J. BEUTLER, Ehre Gottes. 33 R. J. CASSIDY, John’s Gospel, vê o escopo do Quarto Evangelho no encorajamento dos leitores à perseverança sob a perseguição romana, pois os conflitos com a autoridade judaica mal constituíam um perigo ainda. 34 J. L. MARTYN, History. 32 Beutler B -13 Templo, concretamente, a decisão do assim chamado “sínodo de Jâmnia” de incluir nas “Dezoito preces” uma condenação dos hereges. Os comentadores de hoje pensam que tal exclusão da sinagoga como contexto do Quarto Evangelho deve ser pensada, antes, em nível local. Em todo o caso, o cego de nascença permanece o exemplo clássico da pessoa que abraça a fé em Jesus, e isso, desconsiderando as consequências sociais35. Podemos alegar outros exemplos dessa intencionalidade dirigida ao leitor. Tomé, por exemplo, quando Jesus pela última vez toma o caminho de Jerusalém, diz com plena consciência do perigo aos outros discípulos: “Vamos nós também para morrermos com ele” (Jo 11,16)36. Há também Pedro, que, primeiro, nega Jesus três vezes, mas depois exprime de forma nova seu amor e aprende de Jesus que o levarão aonde ele não deseja ir (Jo 21,18). Temos ainda o Discípulo Amado, que, com a mãe de Jesus, segue o seu mestre até ao pé da cruz (Jo 19,25-27). E as mulheres, principalmente Maria Madalena, que, como discípulas fiéis, chegam para buscar e enterrar o corpo de Jesus (Jo 20,1-2). Temos Lazaro e suas irmãs, que acolhem Jesus, mesmo no momento da maior ameaça (Jo 12,1-11). E poderíamos prolongar ainda a lista. Jesus mesmo deseja de seus discípulos a disposição de segui-lo aonde seja que ele for. Onde ele estiver, estarão também seus discípulos. Como um grão de trigo, devem estar dispostos a cair na terra para produzir fruto (Jo 12,24-26). Tais passagens pertencem ao coração do Quarto Evangelho, não à margem37. Mostram ao leitor a que ele deve estar disposto no caso extremo. 4. Unidade literária e fontes Antes da introdução, no estudo do Evangelho segundo João, da análise linguística textual, que considera o texto como está aí, a discussão era dominada, pelo menos na Alemanha, pelo modelo literário-crítico de R. Bultmann. Este modelo, porém, não é imediatamente visível no seu comentário; por isso, D. M. Smith deu-se ao trabalho de oferecer uma apresentação sistemática38. Segundo Bultmann, o autor serve-se de três fontes de natureza diversa. Grande parte do Prólogo e a maior parte dos discursos de Jesus, no Quarto Evangelho, são por Bultmann atribuídas a uma fonte de discursos proveniente dos círculos batistas gnósticos. A partir do início do século XX ficaram acessíveis, de maneira mais fácil ou como novidade, os textos dos mandeus e dos maniqueus. Junto com as Odes de Salomão constituem o pano de fundo históricoreligioso para essa teoria39. O evangelista teria reinterpretado essa fonte no sentido do “paradoxo” entre a origem celeste do Logos e sua encarnação, e inserido no seu evangelho. Teria utilizado também uma fonte de “sinais” de Jesus e uma fonte com um relato da paixão, morte e ressurreição. Importante é, para Bultmann, de modo especial, a distinção entre a “fonte dos sinais” e o evangelista. A fonte vê em Jesus, segundo o modelo helenista, um “homem divino”, que, com base nos sinais que realiza, leva as pessoas à fé em sua dignidade profética e messiânica. O evangelista, porém, conduz os leitores a uma fé em Jesus voltada para sua palavra. Se o evangelho original estava 35 Cf. M. LABAHN, Der Weg eines Namenlosen. Cf. J. BEUTLER, “Lasst und mit ihm gehen” 37 Contra J. BECKER II 448f, o qual, com W. LANGBRANDTNER, Gott, considera Jo 12,24-26 interpolação secundária da redação eclesial, não em último lugar porque esses vv. visam ao seguimento dos discípulos e não apenas à sua fé. Neste sentido também C. DIETZFELBINGER 398. 38 D. M. SMITH, Composition; cf. recentemente M. LABAHN, Bultmanns Konzeption. 39 R. BULTMANN, Bedeutung. 36 Beutler B -14 voltado para esta fé em Jesus e a salvação que ele medeia no tempo presente, a ulterior “redação eclesial” acentuou mais a escatologia ainda por vir, na ressurreição e no julgamento, bem como a necessidade dos sacramentos de batismo e eucaristia e a importância do ministério eclesial. Graças a isso, o Quarto Evangelho se tornou aceitável para a Grande Igreja e pôde ser integrado no cânon dos quatro evangelhos. Para Bultmann, trechos narrativos como a primeira vocação dos discípulos em Jo 1,35-51 pertenciam basicamente à “fonte dos sinais”. Depois dele, esta teoria inicial foi ampliada na hipótese de um escrito básico e ou de um “evangelho dos sinais”40, e isso, com crescente espaço para a redação joanina, à qual pertenceriam, por exemplo, todas as partes do evangelho que falam do “Discípulo Amado”. No fim dessa evolução não sobrou praticamente mais nada daquilo que Bultmann atribuía ao “evangelista”. Esta constatação levou H. Thyen a preconizar uma nova abordagem 41, a chamar o redator final de “o evangelista”42, a abandonar de vez o inteiro modelo de camadas e fontes e a tomar como ponto de partida o Quarto Evangelho como texto unitário e coerente em si43. Esta tendência reforçou-se com a integração dos métodos da análise textuallinguística no estudo do Quarto Evangelho. Contudo, desconsiderar fontes e camadas não é a mesma coisa que negá-las. Para negá-las, seria preciso uma argumentação. Tal argumentação foi desenvolvida por E. Ruckstuhl e P. Dschulnigg 44 no que diz respeito à crítica do estilo, mas somente para isso. Continua em discussão a dependência do Quarto Evangelho em relação aos evangelhos sinópticos. Contra a tese de P. Gardner-Smith45, de que o Quarto Evangelho não supõe imediatamente os três primeiros, cresce, desde os anos de 1970, pelo menos no âmbito de língua alemã, a opinião da assim chamada “escola de Lovaina”, do Prof. F. Neirynck e seus colegas e alunos, segundo a qual o Evangelho segundo João teria conhecido e utilizado os evangelhos sinópticos. Claro, não se deve imaginar que João se tenha tornado um “quarto sinóptico”. Segundo a escola de Lovaina, ele utiliza os sinópticos de modo muito livre, e nem sempre com igual amplidão e intensidade. Contatos com os primeiros três evangelhos são demonstráveis, sobretudo, na tradição do Batista, em alguns milagres (a cura do filho do funcionário em Jo 4,46-54) e em Jo 6 (multiplicação dos pães, caminho sobre as águas, pedido de sinal, discurso do pão e divisão entre os discípulos com a confissão de fé de Pedro), bem como no relato da paixão, morte e ressurreição de Jesus. No presente comentário advogamos a dependência do Quarto Evangelho dos três primeiros, embora isso tenha sido contestado, ultimamente de novo, no âmbito anglófono46. Na presente explicação desconsideramos a utilização de outras fontes, visto que, precisamente no relato joanino de paixão, morte e ressurreição, se pode mostrar, em detalhe, como João desenvolve a tradição sinóptica de modo criativo, assim como já tinha feito na recepção da tradição acerca do Batista. 40 Cf. os comentários a João de J. BECKER und E. HAENCHEN, como também G. RICHTER, Studien. Vgl. R. T. FORTNA, Gospel of Signs; ID., Predecessor. 42 Vgl. H. THYEN, Entwicklungen. 43 Esta é a base do comentário a João de H. Thyen e também sua conclusão final em Studien. Para o comentário, cf. a recensão de J. BEUTLER in Bib. 89 (2008) 131-134; para Studien, a recensão do mesmo em CrSt 30 (2009) 219-222. 44 E. RUCKSTUHL, Einheit; ID., P. DSCHULNIGG, Stilkritik. 45 P. GARDNER-SMITH, Saint John. 46 Negam a utilização dos sinópticos por João: R. T. FORTNA, T. THATCHER (ed.), Jesus, 113-188; é vista criticamente em: F. LOZADA JR., T. THATCHER (ED.), New Currents. A datação de João antes dos sinópticos (defendida por K. BERGER, e.o.) é discutida por P. L. HOFRICHTER, Priorität. 41 Beutler B -15 Boa introdução na nova discussão da relação entre João e os sinópticos encontrase num extenso artigo de Michael Laban e Manfred Lang47. Constata-se, por um lado, crescente aceitação da dependência do Quarto Evangelho dos três primeiros, mas, por outro lado, também ressalvas em certo número de autores, e não somente naqueles que situam João em época mais remota. Aponta-se a dificuldade de explicar a distância relativamente grande entre João e seus três predecessores. Por um lado, deve-se levar em consideração sua criatividade literária e teológica–como a defendemos também no presente comentário –, mas, por outro lado, é possível que a tradição sinóptica tenha alcançado o Quarto Evangelho numa “oralidade segunda”, isto é, depois de uma “reoralização” ulterior dos sinópticos. E pode-se pensar também que João cite os sinópticos de cor. Neste caso, não se precisaria da “comunidade joanina” como mediadora da tradição. Um dos argumentos mais fortes para a aceitação da influência sinóptica em João permanece o gênero “evangelho”: é difícil pensar que ele tenha sido criado duas vezes simultaneamente48. Permanece notável a forte semelhança entre Jo 6 e a secção Mc 6,31–8,33. Acrescentam-se a isso algumas particularidades de Jo 6. Jesus não parece subir a Jerusalém para a Páscoa mencionada em Jo 6,4, aparentemente transferida para a Galileia. Além disso, aqui é levado à tona, pela única vez em João, o tema da eucaristia (6,72.51c-58). Acrescenta-se o tema da “ressurreição no último dia” (6,39.40.44.54). E só aqui encontramos, como antagonistas de Jesus, “judeus” que não sejam também habitantes da Judeia (a partir do v. 41). Adotamos, neste comentário, a hipótese da origem secundária deste capítulo49. Acrescentam-se outros textos que podem ter sido acrescentados à forma básica do evangelho. É o que a maioria dos estudiosos aceita quanto a Jo 21, mesmo aqueles que leem o evangelho em geral em chave sincrônica50. Parecem secundários também os capítulos 15–17. De fato, a ordem de partida de Jo 14,31 só é executada em 18,151. E há também razões para considerar o Prólogo como uma espécie de prefácio concebido no fim da obra, à guisa de chave de leitura52. Nem o conceito substantivado do Logos, entendido de maneira cristológica, nem a encarnação encontram-se mencionados no resto do Quarto Evangelho. Os acréscimos ao texto transmitido do Quarto Evangelho são aqui entendidos, em concordância com Jean Zumstein, Andreas Dettwiler e Klaus Scholtissek, como “releituras” de textos anteriores, ou seja, como leitura renovada à luz da situação do leitor. Esta visão se distingue da crítica literária clássica nisto, que não se trata de uma sucessão de autores, mas de textos. Assim, nosso comentário representa uma síntese de leitura sincrônica e diacrônica do Quarto Evangelho. Neste quadro cabe também a implicação, na exegese, das tradições do Antigo e do Novo Testamento. 5. Origem histórico-religiosa A questão da origem histórico-religiosa do Evangelho segundo João não se deixa responder para o evangelho como um todo. As matérias acolhidas nele são demasiadamente diversificadas. Por isso aconselha-se distinguir os diversos gêneros 47 Cf. M. LABAHN, M. LANG, Johannes und die Synoptiker. Cf. ibid., 504s., remissiva a H. THYEN. 49 Cf. J. BEUTLER, Joh 6. 50 Cf. o comentário de João de U. SCHNELLE. 51 Cf. J. BEUTLER, “Steht auf”. 52 Cf. J. BEUTLER, Johannesprolog. 48 Beutler B -16 literários dentro do Quarto Evangelho e examinar para cada gênero o fundo históricoreligioso53. Basicamente, pode-se distinguir entre matéria narrativa e matéria discursiva, no Quarto Evangelho. Acresce o Prólogo como gênero próprio com seu fundo históricoreligioso particular. A matéria narrativa mostra em geral bastante contato com tradições e textos bíblicos. Isso vale para os relatos joaninos de vocação e de milagre, bem como para o relato joanino da paixão, morte e ressurreição. Sobretudo os relatos de milagre têm interesse histórico-religioso e, como “sinais” interpretados, mantêm íntima conexão com a matéria discursiva. Os relatos de milagre em João demonstram bastante parentesco com relatos correspondentes da tradição sinóptica. Uma dessas histórias, a da cura do filho do funcionário régio (Jo 4,46-54), tem paralelo direto num relato análogo da matéria comum de Mateus e Marcos atribuída à “fonte Q” (Mt 8,5-13; Lc 7,1-10). Outras duas histórias de João ilustram que “cegos veem e coxos andam” (cf. Mt 11,5; Lc 7,22), a saber, a cura do paralítico em Jo 5,1-9b e a do cego de nascença em Jo 9,1-7. Relatos como estes provavelmente querem mostrar que se realizaram as promessas escatológicas de Is 35,5s. e 29,28. Também aqui está entre João e os textos proféticos a tradição sinóptica de curas análogas (Mc 8,22-26 par.; 19,46-52 parr., 2,112 parr.). Para a forma desses relatos de milagre remete-se, desde muito tempo, a textos helenísticos e judaicos54. A história da ressuscitação de Lázaro não tem paralelo sinóptico direto, mas, quanto à sua forma, é aparentada às ressuscitações de mortos nos sinópticos (cf. Mc 5,21-24.35-43 parr.; Lc 7,11-17). Também aqui há modelos veterotestamentários: as ressuscitações de mortos pelos profetas do reino do Norte (cf. Elias em 1Rs 17,17-24, Eliseu em 2Rs 4,18-37). A sequência do milagre do pão e da caminhada sobre as águas, com a aparição de Jesus aos discípulos, tem um precedente na tradição (cf. Mc 6,30-52 par.) e lembra uma sequência semelhante na tradição do êxodo: a travessia de Israel pelo mar Vermelho (Ex 14), a alimentação do povo no deserto (Ex 16) e a teofania do Sinai (Ex 19). A alimentação milagrosa de Jo 6 faz pensar nos presentes milagrosos propiciados por Elias (1Rs 17,7-16) e Eliseu (2Rs 4,4244), nos ciclos de milagres dos grandes profetas do Norte. Também aqui parece intervir a mediação da tradição sinóptica. A narrativa da transformação de água em vinho nas bodas de Caná, Jo 2,1-11, parece ter história traditiva particular. Até hoje não se encontraram paralelos convincentes para essa história. Supõe-se que haja influência da antiga lenda de Dioniso55. A influência dessa lenda é bastante provável, porque ela parece ter raízes orientais. Dioniso é o filho de Semele, filha do filho régio Cadmos, que de Tiro ou Sídon migrou para a Grécia. As moedas gregas da Siro-Palestina trazem motivos dionisíacos. A cidade de Citópole (hoje Bet Shean na Galileia inferior), segundo Plínio (Historia naturalis, 2,18,74), gabava-se de ser o lugar de nascimento de Dioniso. Com base neste fato e de outros que M. Hengel56 coletou, parece ter sentido a hipótese de influência da lenda de Dioniso no texto da transformação de água em vinho por Jesus, em Jo 2,1-11. Evidentemente, também imagens bíblicas como o vinho enquanto dom de Deus e as núpcias enquanto símbolo supremo da Aliança entre Deus e seu povo 53 Cf. J. BEUTLER, Gattungen. Cf. P. FIEBIG, Antike Wundergeschichten; ID., Rabbinische Wundergeschichten; ID., Jüdische Wundergeschichten; O. WEINREICH, Antike Heilungswunder, apreciado em R. BULTMANN, Geschichte, 223-260; M. DIBELIUS, Formgeschichte, 26-56. 55 Vgl. W. LÜTGEHETMANN, Hochzeit. Argumentos específicos de nossa explicação de Jo 2,1-11, cf. ad locum. 56 M. HENGEL, Messias. 54 Beutler B -17 influenciaram no texto (para o vinho, cf. Gn 49,10-12; Mc 14,25; para as núpcias e a refeição com imagens da alegria escatológica, Is 25,6; Mt 8,11 par. Lc 13,28s.; Mt 22,110 par. Lc 14,16-24; Ap 19,9). A designação dos milagres de Jesus como “sinais” (sēmeîa) pertence às particularidades do Quarto Evangelho. A origem pode ser judeu-helenista; ao menos, remonta ao texto da Septuaginta do livro do Êxodo. Daí pensar-se, sobretudo, nos “sinais” (sēmeîa) que Moisés realiza diante do faraó e que o legitimam como líder do povo de Deus (cf. Ex. 4,8s.28.30; 7.9; também 10,1s; 11,9s.), enquanto conduzem à “fé” em sua missão profética (Ex 4,5.8s.31). Esta conexão entre o ver “sinais” e a “fé” (por muitos atribuída à “fonte dos sinais” pré-joanina) aparece em Jo 2,11.23; 12.37; 20,30s. Também a conexão entre os “sinais” de Jesus e a manifestação de sua “glória” (dóxa; cf. Jo 11,4.40) parece preparada na Septuaginta; só que aí não se trata da manifestação da glória do taumaturgo (como em Jo 2,11; cf. 11,4). É caracteristica de João a conexão entre os milagres de Jesus como “sinais” e sua autorrevelação nos discursos de revelação e cenas de diálogo, no Quarto Evangelho. Assim, o discurso do pão em Jo 6 interpreta o sinal da multiplicação milagrosa do pão (Jo 6,1-15) por meio da autodenominação de Jesus como “pão da vida” (Jo 6,35.48.51). De modo semelhante, a palavra de Jesus autodesignando-se como “luz do mundo” (Jo 9,5) interpreta o “sinal” da cura do cego de nascença (Jo 9,1-7), e sua autodesignação como “a ressurreição e a vida” (11,25) interpreta o último sinal público, a ressuscitação de Lázaro dentre os mortos (Jo 11,1-44). Tal reinterpretação teológica dos sinais joaninos pode, seguramente, ser atribuída ao próprio evangelista57. A origem da matéria discursiva no Evangelho segundo João foi, no século XX, facilmente situada nos círculos gnósticos. R. Bultmann reconstruiu para o modelo subjacente [Vorlage] do Quarto Evangelho discursos de revelação mais extensos e tematicamente unidos, explicando-os, no seu comentário, na forma em que o evangelista os havia reelaborado. Bultmann e, como ele, seu aluno H. Becker58 situavam a origem desses discursos no ambiente gnóstico, que se manifesta nos textos dos mandeus e dos maniqueus, bem como nas Odes de Salomão e no Corpus Hermeticum. Uma dificuldade dessa hipótese consiste na necessidade de decompor os discursos joaninos que estão aí. Além disso, os textos alegados são nitidamente mais recentes que o Evangelho segundo João, o que torna improvável a dependência de João em relação a eles. Também a hipótese de um mito gnóstico do Homem Primordial [Urmensch] não se deixa corroborar solidamente59. Continua influente a tentativa, já empreendida por H. Becker, de descobrir uma forma primitiva do discurso joanino de revelação, que o quarto evangelista já teria encontrada pronta nos textos gnósticos subjacentes e que ele teria retomado. Conforme esta forma, haveria no início do breve discurso de revelação uma autopredicação do revelador, a qual se desdobrava a seguir. Com base nesta hipótese, E. Schweizer, em sua dissertação elaborada sob a direção de Bultmann, Ego Eimi60, estudou breves discursos joaninos de revelação, introduzidos pela fórmula “eu sou” e que teriam uma forma básica característica tomada da gnose (sobretudo, da gnose mandaica). S. Schulz61 57 Vgl. W. LÜTGEHETMANN, Hochzeit, 216-261. H. BECKER, Reden. 59 Cf. C. COLPE, Schule. 60 E. SCHWEIZER, Ego eimi, 114-124. 61 S. SCHULZ, Komposition, 85-90. 58 Beutler B -18 retomou esta proposta e apresentou um modelo ampliado das sentenças de revelação de João. Essas sentenças iniciam-se com a “autopredicação” do revelador (“Eu sou...”). Seguem-se, depois disso, um convite e uma promessa, ou eventualmente uma ameaça. Como exemplo sirva Jo 6,35: “Eu sou o pão da vida (autopredicação); quem vem a mim (convite) nunca mais terá fome, e quem crê em mim nunca mais terá sede (promessa)”. Já E. Schweizer suspeitava, para as imagens usadas nas autopredicações, precipuamente modelos veterotestamentários e judaicos. Essa suspeita foi verificada por S. Schulz, que incluiu em sua pesquisa os textos de Qumrã. Ele vê a forma dos discursos de revelação ilustrada também em textos gnósticos, principalmente mandaicos. Recentemente alegam-se também textos mais antigos encontrados em Nag Hamadi62. Assim encontrase no documento Brontē (O trovão, NHC VI,2) a sequencia de autoapresentação do revelador, convite e eventualmente promessa. Esse escrito não é diretamente gnóstico. Outras ilustrações encontram-se na parte final da versão longa do Apocryphon Johannis (NHC II,1 e IV,1), bem como na Protenoia Trimórfica (NHC XIII,1). Estes textos não pertencem à assim chamada gnose valentiniana; por isso, sua possível dependência de textos cristãos é menos provável. A datação desses textos é tão tardia, que não podem ser alegados como subjacentes aos discursos joaninos. As imagens que usam, o quarto evangelista as pode ter emprestado de seu ambiente judaico ou protocristão63. Fica a ser esclarecida a inserção das breves sentenças de revelação nas composições maiores de discursos e diálogos em João64. Pode-se pensar na influência de Platão. Em todo o caso, os diálogos joaninos mostram pouco semelhança com as controvérsias e diálogos didáticos da tradição sinóptica. Quanto ao gênero do discurso de despedida em João, existem exemplos helenísticos e, sobretudo, judaicos65. Ao lado desses modelos e exemplos extracristãos não se devem esquecer os cristãos. Sobretudo B. Lindars, solidário com R. E. Brown66, suspeita no Quarto Evangelho influência e acolhida de homilias da comunidade joanina. Esta intuição mostra-se fecunda e tem sido retomada por J. Frey67 quanto às tradições escatológicas em João. Para o fundo histórico-religioso do Prólogo remetemos à exegese que daremos ad locum. Também aqui as hipóteses a respeito de uma origem gnóstica acabaram substituídas por derivações a partir da tradição bíblica e judaica, sobretudo a judeuhelenista. Além dos escritos sapienciais do Antigo Testamento, mencione-se, sobretudo, Fílon de Alexandria. 6. Autor, lugar e data da composição É mais fácil perguntar pelo autor do Quarto Evangelho do que responder. Deve-se distinguir entre os indícios do próprio evangelho e os testemunhos acerca da origem do evangelho. Segundo o testemunho do próprio evangelho (Jo 21,24), o livro teria sido composto pelo “discípulo que Jesus amava” (cf. Jo 13,23; 19,26; 20,2; 21,7.20). Desde o fim do II século, este é identificado com o apóstolo e “discípulo do Senhor” João (cf. Ireneu, Adv. Haer. 2,22,5; Canon Muratori 9; Clemente de Alexandria, em Eusébio, 62 Cf. G. MACRAE, Nag Hammadi, 156s. Cf. a esse respeito E. SCHWEIZER na 2ª ed. de Ego eimi. 64 Cf. a esse respeito J. BEUTLER, Gattungen, 2551s. 65 Cf. F. CORTÉS, Discursos, e.o.; E. V. NORDHEIM, Die Lehre der Alten I. 66 R. E. Brown I C-CI. 67 Cf. J. FREY, Eschatologie III, 369-391, quanto a Jo 5,24-29. 63 Beutler B -19 Hist. Eccl. 6,14,7; Polícrato de Éfeso, ibid. 3,31,3)68. Não é fácil decidir se a tradição desde Ireneu concluiu a identificação do autor como sendo o Discípulo Amado a partir do próprio evangelho ou a partir de informação histórica. É notável que o nome “João” no Quarto Evangelho sempre se refere ao Batista ou ao pai de Simão (Jo 1,42; 21,15s.), enquanto em Jo 1,35-42, na vocação dos primeiros discípulos, falta João, o filho de Zebedeu. Acaso este seria um dos dois primeiros chamados mencionados em Jo 1,35.40? Já no II século se conhecia um João considerado autor do Quarto Evangelho. Com razão, M. Hengel aponta que, desde o início, o Quarto Evangelho pode ter sido transmitido sob o nome de João69. A testemunha mais importante para a origem do Evangelho segundo João no séc. II talvez seja Papias de Hierápole. Sua história eclesiástica em cinco volumes se perdeu, mas fragmentos sobreviveram. Num fragmento conservado em armênio70, ele mostra conhecer o Quarto Evangelho e o usa. Em outro fragmento, conservado, entre outros, em Eusébio (Hist. Eccl. 3,93s.), Papias aparentemente distingue entre o apóstolo João e um certo presbítero João; Eusébio ainda informa que os sepulcros de ambos podem ser vistos em Éfeso. Esta notícia de Eusébio oferece o ponto de partida para o grande estudo de Hengel, Die johanneische Frage [A questão joaneia]71. Ele conclui – e isto parece bastante plausível – que o “presbítero” da segunda e terceira cartas de João pode ser identificado com o autor da primeira carta, e este, com o “presbítero” mencionado por Papias. Baseado na proximidade estilística e teológica que existe entre a primeira carta e o evangelho, Hengel conclui que este conjunto de escritos joaninos provavelmente remonta ao “presbítero” de Éfeso. Não se confirmam, portanto, a suspeita de Eusébio, no referido texto, de que o Quarto Evangelho remonte ao apóstolo João e o Apocalipse, ao presbítero de Éfeso. No decorrer ulterior do séc. II, Justino conhece o Quarto Evangelho e o usa. No Diálogo 106,1, ele atribui às “memórias do Apóstolo” as notícias de Jo 20,17.19 e outros trechos72. O Diatessaron de Taciano inicia e termina com o Evangelho segundo João. O Evangelho segundo João parece pressuposto também no final secundário do evangelho de Marcos. O bispo Teófilo de Antioquia cita o Prólogo do Quarto Evangelho (Jo1,1-18) como equivalente às “escrituras sagradas” e o atribui a João (Ad Authol. 2,22). Entre os gnósticos, Basílides (segundo Hipólito, Haer. 7,22,4 s) cita Jo 1,9 entre os “evangelhos” e 2,4 como palavra do “Soter” (ibid. 7,27,5). Em Ptolomeu (citado por Epifânio, Haer. 33,6), Jo 1,3s. aparece como palavra do “Apóstolo”. O primeiro comentário ao Evangelho segundo João vem do gnóstico Heracleão. Os papiros 66 (séc. II-III) e 75 (séc. III) contêm, segundo indica seu sobrescrito/subscrito, o texto do evangelho “segundo João”. A identificação do autor do Evangelho segundo João com o “discípulo que Jesus amava” aparece, como dissemos, no próprio texto do evangelho (Jo 21,24). Todavia, para sua identificação com João, filho de Zebedeu, não temos testemunhos explícitos antes de Ireneu. Sobretudo, fica difícil imaginar um galileu como autor deste evangelho tão marcado pela diáspora judaica. Alguns estudiosos, pensando no “outro discípulo” que com Pedro entrou no pátio do sumo sacerdote, com o qual ele tinha parentesco (Jo 68 Todas essas referências e mais outras encontram-se em K. ALAND, Synopsis, 533-539. Cf. M. HENGEL, Evangelienüberschriften, 3. 70 Cf. F. SIEGERT, Papiaszitate, 607-609. 71 O texto de Papias se encontra em K. ALAND, Synopsis 531. Ali e na p. seguinte, mais referências. 72 Para esta secção, cf. J. BEUTLER, Johannesevangelium (und –Briefe), 646s., agora em ID., Neue Studien, 25s. O texto de Justino é citado em K. ALAND, Synopsis, 532. 69 Beutler B -20 18,15s.), sugerem que o autor tenha sido um discípulo de Jesus em Jerusalém. Também pode-se pensar que os editores do Quarto Evangelho deixaram traços que, por um lado, conduzem ao filho de Zebedeu e, por outro, a um discípulo oriundo dos círculos sacerdotais de Jerusalém73. Uma alternativa radical para estas hipóteses é aceitar que a figura do discípulo amado seja de todo fictícia ou, pelo menos, que sua conexão com a origem do Quarto Evangelho seja uma ficção literária. Há mais de um século, F. Overbeck representou esta opinião. Recentemente, o comentário de H. Thyen segue a mesma opinião. A discussão destas questões introdutórias continua. Do ponto de vista da abordagem literário-científica do Evangelho segundo João, a questão de sua mensagem é mais importante que a de seu autor. Para o tempo do surgimento do Quarto Evangelho, é importante a questão de sua relação com os evangelhos sinópticos. Se o Evangelho segundo João pressupõe os sinópticos–sobretudo, se pressupõe os três –, mal se pode datá-lo antes de 90 d.C.74. Por outro lado, aconselha-se datar o Evangelho segundo João, pelo menos quanto a seu conteúdo básico, antes das cartas de Inácio de Antioquia75, situadas nos últimos anos do imperador Trajano (98-117 d.C.). As partes do evangelho que designamos como “releitura” poderiam ser datadas depois da virada do século, mas não temos indícios confiáveis a este respeito. Certo é que reagem às tendências gnósticas desse tempo; daí, entre outras coisas, a acentuação da “carne” de Jesus como lugar de salvação (Jo 1,14; 6,51-56). Um estudo mais penetrante das cartas de João leva ao resultado de que estas (a julgar por 1Jo 1,1-4) antes pressupõem o Evangelho segundo João do que o inverso76. Também o lugar de origem do Evangelho segundo João continua objeto de discussão. Até hoje, com base no testemunho de Ireneu (Adv. Haer. 3,1.2), geralmente se pensa em Éfeso. Mas esta opinião pressupõe que o autor do evangelho seria o Discípulo Amado, o qual seria o apóstolo João–o que está em questão. C. K. Barrett alega para esta localização outros testemunhos, como o de Polícrates e a proximidade de João com Melito de Sardes e os Atos de João77. Contudo, podem-se avançar, também, argumentos para uma origem em Alexandria ou em Antioquia78. Certeza não temos por enquanto. 7. O texto Na tradição manuscrita antiga, nenhum escrito do Novo Testamento é melhor atestado que o Evangelho segundo João79. Ao menos dois papiros remontam ao séc. II80, ainda que a datação exata continue objeto de discussão. Durante muito tempo, o papiro 52, contendo o texto de Jo 18,31-33 e 18,37-38, foi considerado como o fragmento mais antigo do todo o Novo Testamento. Muitas vezes, sob alegação de K. Aland, era situado 73 Assim, M. HENGEL, Frage, 313-320, e.o. Quanto a tal redator “sacerdotal”, cf. M.-L. RIGATO, Lʼ “apostolo”. 74 Esta é também a visão de C. K. BARRETT 142, do qual aqui apontamos a introdução se seu comentário, 138-149. 75 Para isso, cf. J. A. FISCHER, Die Apostolischen Väter, 114. 76 Cf. J. BEUTLER, Johannesbriefe. 77 Cf. C. K. BARRETT 143. 78 Cf. ibid., 143-146. 79 Cf. K. ALAND, B. ALAND, Der Text des Neuen Testaments, 97 80 Cf. ibid., com K. ALAND, Der Text des Johannesevangeliums. Beutler B -21 por volta de 125 d.C. Nos últimos anos, porém, essa datação está sendo questionada; parece mais seguro situar o fragmento em algum momento do séc. II81. Da mesma época data o papiro 90, com o texto de Jo 18,36–19,1; 19,2-7. Em torno de 200, temos o papiro 66 (Bodmer II), que contém a maioria do Quarto Evangelho. A presença do Quarto Evangelho no Egito é atestada também pelo papiro Egerton 2, que combina extratos do Evangelho segundo João com fragmentos sinópticos. Sete fragmentos de papiro são atribuídos ao séc. III82: pap. 5, com fragmentos de Jo 1, Jo 16 e Jo 20; pap. 28, com o texto de Jo 6,8-12.17-22; pap. 39, com Jo 8,14-22; pap. 45, com trechos de Jo 4–5 e 10–11; pap. 75 (Bodmer XV), com o texto de 1,1– 11,45.48-57; 12,3–13,10; 14,815,10; pap. 80, com o texto de Jo 3,34; e pap. 95, contendo Jo 6,26-29.36-38. A qualidade do pap. 75 (= Bodmer XIV para Lucas e Bodmer XV para João) é corroborada sobretudo pelo Codex Vaticanus (B). Neste encontra-se, como constataram Carlo M. Martini83 para Lucas e Calvin L. Portner84 para João, uma tradição textual antiga, provindo do Egito e de altíssima confiabilidade. Pap. 66 concorda em grande medida com esta forma do texto, embora represente, com os papiros 45, 46 e 47 (dos papiros Chester Beatty), um tipo textual mais livre85. Um problema especial constitui a perícope da mulher adúltera Jo 7,52–8,11, que será tratado na exegese ad locum. 8. Canonicidade Desde o início de sua transmissão, o Evangelho segundo João é considerado texto sagrado. Já falamos, acima (§ 6), das fases prístinas de sua atestação. Desde que se começou a registrar os evangelhos, incluiu-se Quarto Evangelho. O registro mais antigo talvez seja o Canon Muratori, datado por volta de 200 d.C. Ele anota, no n. 9: “Quartum evangeliorum Johannis ex discipulis”86. Mais ou menos da mesma época datam os antigos prólogos dos evangelhos, conservados para Marcus, Lucas e João. Eles atestam a autenticidade do Evangelho segundo João sob alegação de Papias, discípulo do evangelista, e salientam a diferença com Marcião, do qual João se teria distanciado expressamente87. Nos primeiros registros mais elaborados dos escritos neotestamentários, o Evangelho segundo João tem, desde o início, seu lugar indiscutido. Entre estes, em primeiro lugar, o assim chamado Decretum Damasi, que é transmitido em conexão com um concílio romano, sob o papa Damaso no ano de 382 (DH 180). Mesmo que algumas partes desse decreto talvez sejam de tempos ulteriores, esta parte é considerada substancialmente autêntica. Um concílio de Cartago, em 397, redige, por um lado, um cânone dos escritos sagrados que inclui quatro evangelhos, sem dúvida aqueles que então estavam em voga 81 Assim, agora, B. NONGBRI, Use and Abuse. O panorama se refere a Nestle-Aland 27ª ed., 684-689; cf. Nestle-Aland 28ª ed., 792-797; também K. ALAND, B. ALAND, Der Text des Neuen Testaments 106-111. 83 C. M. MARTINI, Codice B. 84 C. L. PORTER, Papyrus Bodmer XV. 85 Cf. K. e B. ALAND, Der Text des Neuen Testaments 97, 103, 105, 109. Documentação e avaliação do acervo dos manuscritos maiúsculos e dos papiros, agora em U. B. SCHMID, The New Testament in Greek IV (cf. Bibliografia). 86 Texto em K. ALAND, Synopsis 538. 87 Texto em K. ALAND, Synopsis 533. 82 Beutler B -22 de modo geral (DH 186). Os concílios ulteriores só precisam apelar a esta tradição; assim, o concílio de Florença no Decreto para os Jacobitas (DH 1355) e o concílio de Trento na 4ª sessão (DH 1350). 9. Atualidade O Evangelho segundo João sempre exerceu fascínio especial. Na Igreja antiga, serviu de base para as grandes controvérsias cristológicas e trinitárias. No início da Idade Média, Lutero viu nele o “único, lindo e reto evangelho principal”88. A razão era que nele a fé em Jesus aparece como tema central. No século passado, Rudolf Bultmann retomou essa visão, tornando-a o centro de seu comentário. Isso, no empenho de livrar o Quarto Evangelho do mito e de reinterpretá-lo existencialmente. O debate da desmitologização pertence ao passado, mas seu objetivo continua digno de contemplação. A época atual é caracterizada por um rápido declínio da plausibilidade da mensagem cristã, sobretudo nas nações ocidentais industrializadas. Quem busca encontrar um acesso novo ou aprofundado à fé, não encontraria isso num sistema de sentenças doutrinais, em grande medida independentes umas das outras, mas numa mensagem singela, que se deixasse resumir, acolher e interpretar numa única frase fundamental. O Quarto Evangelho corresponde em grande medida a essa busca. Basta trazer à memória sua última frase: “Jesus realizou ainda muitos outros sinais diante dos discípulos, que não estão escritos neste livro. Mas estes estão escritos para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida, em seu nome” (Jo 20,30s.). Pertence às características e vantagens do Quarto Evangelho o fato de exibir, entre os escritos do Novo Testamento, a cristologia provavelmente mais desenvolvida e refletida. Jesus aparece constantemente como o “Filho de Deus” ou, sem mais, o “Filho”, e é neste sentido que se entende sua messianidade. Ele é um com o Pai (Jo 10,30) e constitui o fundamento da unidade dos discípulos com ele, com o Pai e entre si (17,21). Como Logos divino, ele é desde a eternidade, antes de se tornar carne (1,1-18). Tal afirmação da preexistência não é corriqueira no Novo Testamento. Há paralelos nos hinos ou fragmentos pré-paulinos (Gl 4,4; Fl 2,2-11; Cl 1,15-18) ou na Carta aos Hebreus (1,3). Na fé nele decide-se a salvação ou a condenação do ser humano. Segundo o Quarto Evangelho, Jesus propõe e fundamenta a pretensão de ser o Messias e Filho de Deus, enviado por Deus; isso, especialmente nas grandes controvérsias com os representantes do povo e da religião dos assim chamados “judeus”. Depois da aniquilação sistemática dos judeus na Europa Central durante a ditadura de Hitler, vem-se repetindo que o uso linguístico de João pode facilitar os preconceitos antijudaicos, como de fato o tem feito. Diante disso, não basta explicar que João, ao falar dos “judeus”, visava ao grupo dos líderes em Jerusalém no tempo de Jesus. Os leitores do Quarto Evangelho, que o liam em conjunto com os outros escritos do Novo Testamento, certamente ganharam a impressão de que “os judeus”, no sentido de povo e comunidade religiosa judaicos, perseguiram Jesus e, no fim, o entregaram à execução89. Considerando isso, um antijudaísmo cristão e pós-cristão não foi apenas 88 M. LUTHER, Vorrede zum Neuen Testament, in: Luther Deutsch. Die Werke Martin Luthers in neuer Auswahl für die Gegenwart, edit. K. ALAND, Bd. V, 37-42: 42 (WA DB 6,2). 89 Cf. J. BEUTLER, Identity. Beutler B -23 possível, mas também real. Os pogroms medievais depois da liturgia da Sexta-Feira Santa – que trazia a leitura da paixão segundo João – atestam isso claramente. Entre os comentários recentes, o de Klaus Wengst tem o grande mérito de tomar como ponto de partida a polêmica de João contra os “judeus”. Esta polêmica tem sua expressão mais contundente em Jo 8,44 (os “judeus” como filhos do diabo). Sem camuflar essa tendência do Quarto Evangelho, Wengst mostra até que ponto este evangelho está enraizado no judaísmo, pois se baseia, sobretudo, na tradição rabínica. Com isso, Wengst tem a vantagem de demonstrar ao mesmo tempo o parentesco do Quarto Evangelho com o judaísmo hoje, que é moldado pelo rabinismo. Desvantagem pode ser que o Evangelho segundo João surgiu e foi redigido num momento em que o tradição rabínica normativa apenas estava na fase inicial, logo depois da ruína de Jerusalém. Esta dificuldade, Wengst a percebe e enfrenta com a observação legítima de que a tradição rabínica já existia por mais tempo e se revelou em grande medida estável90. É possível iluminar o enraizamento do Evangelho segundo João no judaísmo de outra maneira ainda: mostrando a ancoragem dos grandes temas da teologia joanina no Antigo Testamento e no judaísmo intertestamentário. É o caminho que seguimos neste comentário. Enquanto, segundo Rudolf Bultmann e a pesquisa por ele influenciada, a gnose constituía o decisivo pano de fundo histórico-religioso do Quarto Evangelho, modificou-se essa visão depois da II Guerra Mundial. Prescindindo da recentemente percebida necessidade de observar mais atentamente a ancoragem do Quarto Evangelho no judaísmo, também descobertas recentes convidaram para essa mudança de paradigma. Por um lado, a descoberta da biblioteca gnóstica de Nag Hamadi, em 1945, permitiu uma datação mais exata dos textos gnósticos, com a constatação de que estes, via de regra, pressupõem o cristianismo, em vez do contrário. Do outro lado, as descobertas textuais do mar Morto, desde 1947, mostram a existência de um judaísmo de tendência dualista na Palestina anterior à Guerra Judaica (66-70 d.C.). Este dualismo mostra fortes paralelos com os textos dualistas do Novo Testamento, especialmente os da literatura joanina. Deste modo apresentou-se, desde então, sobretudo na literatura de língua francesa e inglesa, no lugar do paradigma gnóstico, o de um parentesco mais intenso do Evangelho segundo João com o Antigo Testamento e o judaísmo. Dois exemplos, entre outros, são certamente os comentários de Rudolf Schnackenburg (19651984) e de R. E. Brown (1966-1970). O presente comentário se esforçara, portanto, de modo especial, para mostrar as raízes do pensamento e da teologia joaninos no Antigo Testamento e no judaísmo intertestamentário, complementando assim o comentário de Klaus Wengst. Em ambos os casos, pretende-se visualizar o Evangelho segundo João em sua proximidade ao judaísmo e não apenas em sua oposição crítica91. Há ainda outra razão por que o Quarto Evangelho parece possuir atualidade hoje. Ele convida suas leitoras e leitores à confissão intrépida de sua fé, o que em muitas partes do mundo é um desafio extremamente atual. Durante muito tempo prevaleceu a ideia de que a conclusão primitiva do Quarto Evangelho (Jo 20,30s.) fosse circunscrita suficientemente com a fé em Jesus como Messias e Filho de Deus. Mostraremos, porém, que se acrescenta outro empenho, o de conduzir à confissão intrépida de Cristo. Esta finalidade vem à luz, sobretudo, através da estratégia narrativa do Quarto 90 91 Cf. K. WENGST I 32. Vgl. dazu J. BEUTLER, Judaism; ID., L’Ebraismo. Beutler B -24 Evangelho e através das figuras exemplares que vivem a confissão intrépida, como o cego de nascença em Jo 9, Nicodemos em sua evolução até participar no sepultamento de Jesus sob os olhos da potência ocupadora, ou Tomé, que declara: “Vamos nós também para morrermos com ele!” (Jo 11,16)92. 10. Nossa exegese A exegese que aqui apresentamos segue a orientação escolhida para nosso comentário às Cartas de João no “Regensburger Neues Tesament”93. No início de cada secção encontra-se a tradução do texto em pauta, que é uma reelaboração da Einheitsübersetzung de 1980. As divergências são dadas a conhecer*. O primeiro passo da explicação (I) concerne às questões introdutórias. Delimitada a unidade textual, estudamos sua situação no contexto. Depois, procuramos determinar a composição da mesma e, na medida do possível, também o gênero literário do próprio texto e de seus modelos subjacentes. Mas renunciamos a atribuir sistematicamente partes do texto a escritos-fonte. Mencionamos, sim, a atribuição de determinados trechos à redação joanina, preferencialmente onde tratamos da exegese pormenorizada do texto. O segundo passo (II) é a exegese pormenorizada. Consideramos o texto em pauta em primeiro lugar com os meios da análise sincrônica. Estuda-se, portanto, a gramática, a semântica e a pragmática do texto. Na continuidade, executamos também a abordagem diacrônica. Nesta, o texto é interpretado diante da tradição que ele utiliza, seja de natureza protocristã, seja pré-cristã, especialmente judaica. No terceiro passo (III), tenta-se inserir o tema do texto nos dias de hoje. Trata-se da mensagem do texto, não apenas no sentido de uma pragmática linguística supratemporal, mas em consideração às leitoras e leitores de hoje. Aqui se faz sentir, evidentemente, a perspectiva do comentador. Procuramos aqui ter diante dos olhos as leitoras e leitores que, conscientemente, se veem confrontados com as tensões do momento presente, no campo social, cultural, religioso e político. Também este tipo de leitura pode ser “leitura espiritual”. “Mas quando ele vier, o Espírito da Verdade, ele vos conduzirá em toda a verdade. Ele não falará por si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido e vos anunciará o que está por vir.” (Jo 16,13). 92 Para esta visão, cf. acima, secção 3; também J. BEUTLER, Faith and Confession; ID., “Lasst uns mit ihm gehen”. 93 Vgl. J. BEUTLER, Johannesbriefe. * Para a presente versão em língua portuguesa adotamos uma tradução própria do texto evangélico, adaptada à exegese do Autor do comentário, do qual mantivemos as discussões, muito esclarecedoras com a Einheitsübersetzung alemã [N. do T.] Beutler B -25 EXEGESE A PALAVRA DE DEUS ENTRA NO MUNDO (1,14–54) O Evangelho segundo João abre solenemente com o Prólogo (1,1-18). Este canta a “en-carn-ação” do Logos eterno. Em sua Palavra, Deus entra na história humana e participa dela. Muitos comentadores antepõem ao evangelho o Prólogo como texto separado. Contudo, há muitos argumentos para tratá-lo em conexão com os capítulos subsequentes. O testemunho do Batista (1,19-34) já veio preparado no Prólogo (1,68.15). O “Jesus Cristo” já nomeado no Prólogo (1,17) é agora apresentado por João Batista. O Batista conduz a Jesus os primeiros discípulos (1,35-51), que se tornam as testemunhas do primeiro sinal de Jesus, em Caná (2,1-12). A primeira Páscoa leva Jesus a Jerusalém, onde purifica o Templo (2,13-25) e entra em diálogo com o conselheiro Nicodemos (3,1-21). A partir daí encontramos Jesus, em círculos concêntricos, a caminho de novas regiões: da Judeia (3,22-36) através da Samaria (4,1-42) para a Galileia (4,43-45), onde realiza o segundo sinal em Caná (4,46-54). O afastamento de Jerusalém significa também abertura para novos grupos humanos: os samaritanos, que não estão unidas à Judeia numa fé plena, e os galileus, que, como “terra de Zabulon e Neftali”, são por Isaías chamados “a região dos gentios” (texto de Is 8,23, assumido em Mt 4,14-16). Destarte, Jesus, na sequência de sua primeira romaria a Jerusalém, inicia uma viagem que o leva a pessoas sempre mais afastadas de Jerusalém, de seu culto e de sua fé. A partir de 5,1 haverá uma mudança: Jesus usa agora as festas de peregrinação para se manifestar a seu povo e a seus líderes (exceto a Páscoa de Jo 6,4, na Galileia). Por isso, não convém ver, nos caps. 2–12 (como faz R. Bultmann), “a revelação da doxa diante do mundo”, e tampouco nos caps. 5–12 (como faz a Einheitsübersetzung de 1980). Deve-se distinguir entre a manifestação de Jesus diante do mundo, em Jo 1–4, e sua manifestação diante de seu povo, em Jo 5–10, com uma visão retrospectiva em Jo 12,37-43 e um último apelo à fé em Jo 12,44-50. 1. O Prólogo (1,1-18) 1 1 No princípio era a Palavra, e a Palavra estava junto de Deus, e a Palavra era Deus. 2 Ela estava, no princípio, junto de Deus. 3 Tudo foi feito por meio dela, e separado dela foi feita coisa nenhuma. O que tem sido feito nela 4 era vida, e a vida era a luz dos homens. 5 E a luz brilha nas trevas, e as trevas não a acataram. 6 Surgiu um homem, enviado por Deus; seu nome era João. 7 Ele veio como testemunha, para dar testemunho da luz, para que todos pudessem crer por meio dele. 8 Não era ele a luz, mas ele devia dar testemunho da luz. 9 A luz verdadeira, que ilumina todo homem, veio ao mundo. 10 Ele estava no mundo, e o mundo foi feito por ele, mas o mundo não o reconheceu. 11 Veio para o que era seu, mas os seus não a acolheram. 12 A quantos, porém, o acolheram, deu-lhes poder de se tornarem filhos de Deus: os que creem no seu nome, 13 que foram gerados não do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do varão, mas de Deus. 14 E a Palavra se fez carne e veio morar entre nós, e nós contemplamos a sua glória, glória como do unigênito do Pai, pleno de graça e de verdade. 15 João dá Beutler B -26 testemunho dele e proclama: “Foi dele que eu disse: ‘Aquele que vem depois de mim passou à minha frente, porque era antes de mim”. 16 Todos nós, de sua plenitude, recebemos graça por graça, 17 pois a Lei foi dada por meio de Moisés, a graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo. 18 A Deus, ninguém jamais o viu; o unigênito, que é Deus e repousa sobre o coração do Pai, ele no-lo fez conhecer. I O quarto evangelista não inicia seu relato de Jesus com uma cena histórica particular como a atividade de João Batista em Marcos ou a descrição da origem terrestre de Jesus, como em Mateus e Lucas. Ele nos reconduz ao início primordial, como mostra a alusão a Gn 1,1 LXX em Jo 1,1 – ou melhor, ainda mais atrás, antes de todo o tempo, na eternidade de Deus. Desta eternidade vem o Logos e, a partir dela, entrou no mundo para se tornar carne. Literariamente, o Prólogo joanino constitui uma unidade que se destaca claramente do texto subsequente. Enquanto, no Prólogo, os versículos que falam do testemunho de João se integram na linguagem do hino e no seu desenvolvimento temático, a secção sobre o testemunho do Batista em 1,19-34 entra claramente na parte narrativa do evangelho. A martyría de João Batista, mencionada em 1,6-8 e 15, agora é especificada quanto ao conteúdo e situada historicamente. A pesquisa atual considera o Prólogo de João uma unidade literária passível de explicação coerente em si. A esta posição antecedeu um século de hipóteses literáriocríticas acerca da origem do Prólogo. Nessa investigação prevaleceu a distinção entre os versículos de ritmo mais poético e outros que se parecem antes com prosa. Assim, J. Wellhausen, em 1908, estranhou que, no v. 6, no meio do Prólogo, “o Batista cai como neve dentro da eternidade”1. A investigação do séc. XX ficou fortemente marcada pela hipótese de que por trás de Jo 1,1-18 está um hino pré-joanino. Pensou-se até em dois hinos, porque os vv. 14 e 16 se distinguem, estilisticamente, dos versículos introdutórios. Quanto ao aspecto religioso-histórico, Bultmann pensava num hino gnóstico dos círculos do Batista, mas logo surgiu a hipótese de um hino cristão, ou mesmo de dois. Mas estas hipóteses nunca chegaram a ser plenamente evidenciadas. Hoje prefere-se uma leitura sincrônica2. Quanto à composição propõem-se, principalmente, três modelos. Muitos autores veem no Prólogo uma construção linear. H. J. Holtzmann lembra exemplos dos Santos Padres para uma divisão tripartite: vv. 1-5, a preexistência do logo e seu papel na criação; vv. 6-13, a preparação da encarnação; vv. 14-18, a encarnação3. Em tempos recentes insiste-se mais na identidade do Logos com Jesus Cristo, embora este só venha nomeado no v. 17. Tripartições semelhantes encontram-se com frequência nos comentários. H. Lausberg indica um fundamento linguístico para esta estrutura tripartite4. Ponto de partida é a presença do termo “Logos” nos vv. 1 e 14. Em 1,1-5 desdobra-se o tema na base de referências à tradição veterotestamentária. Nos vv. 6-13, Lausberg vê referências à tradição do Novo Testamento. Nos vv. 14 e 16 , ele vê a releitura da tradição do Êxodo. O mesmo autor pensa que, nos vv. 6-7, João tenha 1 J. WELLHAUSEN, Evangelium, 8. Um bom panorama da crítica literária do Prólogo se encontra em P. HOFRICHTER, Im Anfang, 13-82. Cf. também J. BEUTLER, Johannes-Prolog, 78-84. Para contribuições recentes desde 1988, cf. M. THEOBALD, “Der älteste Kommentar”. 3 H. J. HOLTZMANN 26. 4 H. LAUSBERG, Johannes-Prolog. 2 Beutler B -27 utilizado um antigo “exórdio” do evangelho, para criar um novo exórdio, que sintetizasse o evangelho e preparasse o leitor para os temas principais. L. Schenke vê nos vv. 1-5 um “mito”, em 6-13, “história” e em 14-18, a “confissão da comunidade”5. Uma série de autores vê no Prólogo uma estrutura concêntrica. Teve muita influência a proposta de M.-E. Boismard6 de ver o Prólogo como construção concêntrica em torno do v.13. Boismard lê aqui o singular “que foi gerado ... de Deus”, embora não possa apoiar isso em nenhum manuscrito grego da Antiguidade (cf. adiante, v. 13). Assim o centro não seria o enunciado sobre a encarnação, mas a afirmação do nascimento virginal do Filho de Deus. I. de la Potterie7 contesta esse modelo, acertadamente, com quatro argumentos: o modelo é estático, não dinâmico; não reconhece o lugar central da encarnação; as duas secções acerca do Batista (vv. 6-8 e 15) não são idênticas, pois a segunda fala no tempo presente; os vv. 1 e 18 não se correspondem (o v.18 pressupõe o Logos encarnado). Para superar as dificuldades, alguns autores, como I. de la Potterie8, sugeriram uma estrutura em forma de espiral para o Prólogo de João. Os temas são retomados e desenvolvidos em nível superior. A maneira como os autores dividem o texto permanece, porém, discutível, porque se baseiam em visões semânticas e teológicas, não linguísticas. Olhando para trás, faz mais sentido partir de uma estrutura linear do Prólogo de João. Nesta perspectiva merece atenção e anuência a proposta de H. Lausberg9, que se assemelha à de J. Zumstein10, embora este não pressuponha expressamente a contribuição de Lausberg. Segundo estas propostas, podemos reconhecer no Prólogo três partes principais, construídas uma em cima da outra: a origem da palavra divina (vv. 1-5), seu destino (vv. 6-13) e, enfim, sua encarnação e acolhida pela comunidade (vv. 14-18). Devemos partir do texto de João como nos foi transmitido. Por isso dispensamos inicialmente a hipótese de fragmentos hínicos subjacentes ao Prólogo, embora ela seja verossímil para os vv. 1-5, 10-12 e 14.16. Explicamos o texto com o reconhecido procedimento metódico da exegese intratextual, com análise linguístico-sintática, semântica e pragmática do texto, desde que sua forma se apresente segura. Será considerada também a influência do mundo literário em que o Prólogo nasceu. Com H. Lausberg e outros, vemos por trás do vv. 1-5 o início do livro do Gênesis, bem como de tradições sapienciais que falam da entrada da Sabedoria no mundo humano; por trás dos vv. 6s. e 15, a influência de tradições neotestamentárias acerca de João Batista; e por trás dos vv. 14-18, tradições mosaicas que remontam ao livro do Êxodo11. Abordaremos, pois, o Prólogo de João como um texto homogêneo e unitário. Não julgamos que o texto justifique uma divisão bipartida, com uma primeira parte nos vv. 1-13 (o Logos antes da encarnação) e uma segundo nos vv. 14-1812. Pelo contrário, mostraremos que o texto, desde o v. 4, fala da vinda de Cristo como Palavra divina no 5 L. SCHENKE, Johannes. Kommentar, 22-36. M.-É. BOISMARD, Prologue. 7 I. DE LA POTTERIE, Structure. 8 Ibid. 9 Cf. supra, nota 4. 10 J. ZUMSTEIN, Prologue; Prolog. 11 Para as tradições judaicas por trás do Prólogo, cf. U. MARKSTAHLER, Prolog 12 Para esta distinção entre lo,goj a;sarkoj e lo,goj e;nsarkoj, que remonta aos Pais da Igreja, cf. ainda X. LÉON-DUFOUR, Lecture I, 48-50. 6 Beutler B -28 meio dos homens. Os vv. 4s. e 9s. são altamente parecidos. Inspirados pelo mito da vinda da sabedoria divina, falam das vicissitudes da Palavra divina entre os homens, sem mencionar explicitamente sua vinda na carne. Esta vem à fala, explicitamente, só nos vv. 14-18, e só aqui menciona-se, pela primeira vez e explicitamente, o nome de Jesus Cristo. Assim confirma-se a construção homogênea do Prólogo: o movimento se desloca de uma linguagem escondida e implícita para uma linguagem manifesta e explícita. Aquele no qual a Palavra divina veio ao mundo e permanece entre os homens é Jesus Cristo. O lugar da questão da pré-história do Prólogo joanino foi ocupado sempre mais, nestes últimos tempos, pela pergunta por sua função. Isso está ligado à mudança do paradigma, que se afasta da abordagem histórico-crítica e se volta para a consideração literária dos textos neotestamentários. No centro do interesse encontra-se agora a relação do Prólogo com o desdobramento do resto do Quarto Evangelho. Esta relação pode ser vista mais literariamente ou mais teologicamente. De modo geral, ambas as perspectivas se encontram interligadas. Uma proposta recente quer ver no Prólogo joanino um texto para a legitimação das posições teológicas do Evangelho segundo João13. A cristologia joanina aparece aqui ancorada na missão da Palavra divina desde a eternidade. Assim, o Quarto Evangelho pode ser útil para discussões com grupos que, dentro do seu âmbito religioso, representam um credo divergente. Michael Theobald, desde sua tese de habilitação14, vem estudando a relação do Prólogo joanino com o resto do evangelho. Para Theobald, o Prólogo é a introdução ao Quarto Evangelho como um todo, escrito com a finalidade de introduzir seu público leitor nos grandes temas do mesmo. Pode-se partir da hipótese de que essa introdução – como, aliás, acontece de costume – foi composta depois que a obra ficou pronta. Assim se entende por que alguns conceitos do Prólogo (como o Logos personificado ou a “graça”) não tornam a aparecer no restante do texto. Outro estudo recente examina o Prólogo precisamente como prólogo15. Este gênero literário é conhecido desde a Antiguidade. Já ano séc. VI a.C. encontra-se um modelo no autor grego Téspis de Ática, que, com este gênero, introduz seu público na ação desenvolvida no seu drama. Posteriormente, o prólogo será utilizado também para discursos, ao lado de dramas e narrativas dramáticas. João – como único entre os evangelistas – parece ter utilizado este gênero para introduzir seus leitores na mensagem do seu evangelho e para apresentar as figuras principais: Jesus Cristo, o Logos eterno, Moisés e João Batista. Jean Zumstein16 vê o Prólogo segundo seu modelo da “releitura”. Tais “releituras” (“Neulesungen”) ocorrem na Bíblia em diversas formas: como título, como inter ou intratextualidade (remissivas entre textos diversos textos ou para dentro do mesmo texto) e como paratexto. Esta última forma se encontra, segundo Zumstein, no Prólogo de João e no epílogo, cap. 21. Um paratexto tem a função de olhar para trás, para um texto concluído, ou de preparar os leitores para a leitura do texto. Tal texto protege o leitor de mal-entendidos, fornece a chave para a decodificação da obra literária e orienta 13 Vgl. J. F. MCGRATH, Prologue. M. THEOBALD, Fleischwerdung; e desde então ID., Geist– und Inkarnationschristologie, bem como seu comentário e o estudo “Der älteste Kommentar”. 15 Vgl. E. HARRIS, Prologue. 16 J. ZUMSTEIN, Prologue; Prolog. 14 Beutler B -29 o leitor diante da leitura. Zumstein encontra a legitimação para o prólogo como paratexto sobretudo em Aristótelos (Rhet. 3, 1414b, 19ss.). Com este subsídio conseguimos entender melhor a função do Prólogo joanino dentro do Quarto Evangelho. Se se pode suspeitar que o Prólogo foi acrescentado apenas na última fase redacional do Quarto Evangelho, explica-se mais facilmente por que seus conceitos e temas centrais não se encontram no restante do evangelho, pelo menos não explicitamente. Assim, o Logos personificado e sua colaboração na criação, e também o conceito da “graça”. Por outro lado, porém, a Palavra constitui uma das representações sustentadoras do Evangelho segundo João. Já no próprio Prólogo percebe-se um movimento do ser divino do Logos em direção à sua missão junto aos seres humanos. Ele é “luz” e “vida” para os homens. João testemunha dele. Todos devem passar a crer nele (1,7; cf. 1,12). A explicação do Prólogo mostrará em particular como se anuncia, no Prólogo, a vinda do Logos divino. II A origem da Palavra de Deus (1,1-5) Os primeiros cinco versículos do Prólogo joanino falam da origem da Palavra divina. Apresentam-se, quanto à forma e o conteúdo, como uma unidade coerente e destacada do contexto subsequente. Característico para o conjunto é a composição em escadinha. Um conceito que se encontra no fim do enunciado anterior é retomado no início do posterior, na linha seguinte. Lá, ele é esclarecido por um terceiro conceito, que por sua vez aparece no início da terceira linha (a–b, b–c, c–d). Nas primeiras três linhas, o conceito “Logos” conduz ao termo “Deus” no início da segundo linha. Este é desdobrado na terceira linha pelo termo “Logos”, que provém da primeira linha. Assim se dá no interior do v. 1 uma inclusão entre a primeira e a terceira linha. O v. 2 retoma o primeiro termo da primeira e o segundo da segunda linha. Assim eles são reduplicados. Quanto ao conteúdo, trata-se da presença junto a Deus do Logos divino, bem como de seu ser divino. O v. 3 descreve o papel do Logos divino na criação. O tempo gramatical muda do imperfeito para o aoristo. A locução “o que tem sido feito”, no fim do v. 3, em nossa análise é incluída no próximo versículo, como se justifica na exegese detalhada: “O que tem sido feito nela, era (a) vida”. Já divisamos aqui a transição da criação para o desígnio da salvação. A “vida” e a “luz”, que se contrapõe às trevas, são dons da salvação. Estão ligados à Palavra divina de modo permanente (tempo imperfeito) e sua oferta marca o presente (a luz “brilha” nas trevas, presente), porém, foi rechaçada historicamente (aoristo). Assim, já os versos iniciais do Prólogo introduzem às vicissitudes do Logos no mundo. Quanto à forma, percebemos que nos vv. 3-5 a construção em escadinha continua: o termo “foi feito” leva ao bem que é a “vida”. “Vida” leva a “luz”, “luz” a “trevas”, e “trevas”, à rejeição do Logos. Assim o conjunto inteiro dos primeiros versos do Prólogo mostra-se, estilisticamente, uma unidade fechada. A construção apresenta-se assim: – a Palavra junto ao Pai antes de todo começo (vv. 1-2); – a participação da Palavra na obra da criação (v. 3ab); – a significação da Palavra para os homens e as vicissitudes que ela conhece (vv. 3c-5). 1,1-2 Beutler B -30 O início do Prólogo de João reconduz ao início primordial. “No princípio” dirige o olhar para a criação e a história. Biblicamente, retoma-se Gn 1,1: “No princípio, Deus criou ...”. No Prólogo joanino, antes de qualquer ação de Deus, trata-se de seu ser, mais exatamente, do ser do Logos divino: seu ser divino e sua natureza divina. O Logos é desde a eternidade. Entenda-se: ele está junto de Deus e voltado para ele (como sugere a preposição grega pros). E ele é de essência divina: theós, no fim do v. 1, é predicado, significando que ele é Deus. Precisamente este Logos – que era desde o princípio e que estava junto de Deus, sendo de essência divina – estava desde o princípio junto de Deus, como, reassumindo, confirma o v. 2. 1,3ab Depois da evocação da presença eterna da Palavra divina junto a Deus, o texto passa para o papel da Palavra na criação do mundo. Nota-se certa ênfase. O enunciado do texto no v. 3a é repetido num paralelismo sinonímico com dupla negação. Assim, o mundo todo, sob todos os aspectos, remonta à Palavra divina como mediadora da criação. Na mudança do imperfeito para o aoristo já se prepara a transição para o olhar sobre a história. 1,3b-4 Com Nestle-Aland (28ª ed.) e GNT (4ª ed.) incluímos o termo ho egéneto do fim do v. 3 na frase seguinte. Um artigo de K. Aland justifica isso de modo conclusivo17. A lição que assim se propõe é a mais difícil e, por isso, preferível. Entre as traduções antigas, a saídica e a sirociretânia atestam a lição do texto de Aland, e assim também a maioria das testemunhas latinas antigas e o Diatessaron de Taciano. A maioria dos textos gregos ulteriores prefere a lição que inclui “o que tem sido feito” no v. 3, mas em certo número desses manuscritos se mantém a lição anterior. Os manuscritos mais antigos não têm pontuação, mas ocasionalmente aparece um espaço entre as palavras, como é o caso aqui (códices C e D, e também pap. 75). Os Santos Padres do séc. II e da primeira metade do séc. III da Gália, África, Egito e Palestina conhecem exclusivamente a lição preferida por Aland. Tanto os textos gnósticos como os antignósticos desta época a supõem. No séc. IV começa a se incluir predominantemente “o que tem sido feito” na frase anterior. Isso poderia ter sua origem na luta da Igreja grega contra os arianos (que consideravam o Logos como “feito”), embora a lição por nós preferida se verifique também algumas vezes anteriormente à discussão antiarianita. No Ocidente, esta tendência ainda não é atestada nesse momento. Quanto ao conteúdo, a lição que liga “o que tem sido feito” ao texto anterior fica aquém do nível teológico do Quarto Evangelho, pois representa uma mera repetição. Por esta razão e outras semelhantes, diversas edições do texto do Novo Testamento18, bem como comentários e traduções, adotam a lição preferida por Aland19. Mas como entender? Aparentemente, o termo ho gégenon se liga ao egéneto do v. 3ab. Contudo, a diferença do tempo gramatical (do aoristo ao perfeito) adverte contra uma simples identificação dos dois termos. Trata-se agora daquilo que, de modo permanente (perfeito), veio a ser pela Palavra e atua no presente. Assim prepara-se o 17 K. ALAND, Eine Untersuchung zu Joh 1,3.4; cf. também B. M. METZGER, Textual Commentary, ad locum; E. L. MILLER, Salvation-History. 18 Cf. TISCHENDORF (81969), WESTCOTT-HORT (1881), V. SODEN (1913) und VOGELS (31949). 19 Cf. os comentários de R. BULTMANN (1941), R. E. BROWN (1966), J. BECKER (1978), F. MOLONEY (1998), G. R. BEASLEY-MURRAY (21999) e C.S. KEENER (20005) e entre as traduções com comentário, a Bíblia de Jerusalém. H. THYEN, o] ge,gonen, defende a lição tradicional. Beutler B -31 presente phaínei do v. 5. Parece que no fim do v. 3 se trata de outro modo do vir a ser que no ser criado do v. 3ab. O texto passa, ao que parece, para a ordem da salvação. Quando, porém, se deixa começar a frase com ho gégonen, o termo en autṓi suscita problema. A este respeito, os comentadores propõem, principalmente, três modelos. Uma possibilidade é interpretar ho gégonen no início da frase como casus pendens: “O que tem sido/está feito, nisso ele era a vida”; “ele” seria então entendido cristologicamente: o Logos (assim R. Bultmann, J. Becker, G. R. Beasley-Murray, M. Theobald20, a Bíblia de Jerusalém). Sem esta interpretação cristológica, pode-se dizer também: “O que tem sido/está feito, nisso havia vida”. Não haveria muita diferença no sentido, porque “a vida” no contexto seguinte deve ser entendida soteriologicamente. A interpretação melhor é defendida por E. L. Miller e já se encontra em R. E. Brown: eles fazem de “o que tem sido/está feito” não um casus pendens, mas o sujeito de uma frase nominal, devendo ser ligado a “nele”: “O que tem sido/está feito nele, era (a) vida”. Assim se mantém a referência cronológica ao Logos, e o casus pendens, linguisticamente difícil, é evitado. Neste caso, o Prólogo passaria já neste lugar para a missão no mundo, da criação para a história da salvação. Também do ponto de vista prosódico recomenda-se esta intepretação. Mantém o esquema da escadinha dos três primeiros versículos, que determina também a frase seguinte até o v. 5. Quanto à semântica, segue-se ao egéneto do v. 3b o gégonen do final do v. 3: um deslocamento da ideia da criação ao acontecer de vida e luz na história. Mas este deslocamento pode facilmente passar desapercebido, o que então conduz às conhecidas dificuldades de compreensão, que levaram um autor tão renomado como C. K. Barrett a desistir de uma preferência entre as possíveis compreensões. A transição da criação “pelo” (diá) Logos, no v. 3a, ao gégonen en (“tem sido/está feito em”) como início do v. 4, que incomodou Bultmann, pode ser explicada pela indicação de que no v. 4 não se trata mais da criação “por”, mas da salvação “no” (en) Logos. À guisa de mediação entre os dois pensamentos remetemos a Cl 1,16: hóti en autṓi ektísthē ta pánta (R. E. Brown). Com “luz” e “vida” introduzem-se dois termos centrais da teologia joanina. Como ele dá a vida (cf. 3,16.36), e é a vida (cf. 14,6), assim Jesus é a luz do mundo (cf. 9,5; 8,12; 12,46). A encarnação da Palavra divina ainda não se expressou aqui diretamente, mas parece suposta. 1,5 A luz brilha nas trevas. Também este enunciado se refere ao destino da Palavra divina no mundo. João exprime isso com o dualismo de “luz” e “trevas”. Segundo ele pertence à missão da luz no mundo brilhar para dentro das trevas e delas libertar a humanidade (cf. 8,12; 12,36.46). Há discussão em torno do fim do primeiro conjunto do Prólogo: kai hē skotía autò ou katélaben21. Alega-se Jo 12,35 para traduzir “E as trevas não a subjugaram”22. Mas trata-se de um caso isolado no Quarto Evangelho. O dicionário do Novo Testamento de Bauer indica como significado básico para o verbo katalambánō: “captar, adquirir”, significado que se desloca na direção de “compreender”. Onde o sentido é “subjugar, dominar” acresce o elemento surpresa, que parece excluído pelo phaínei de Jo 1,5 (cf. 1Ts 5,4; Mc 9,18). Se, sobretudo, versões e comentários anglossaxônicos (como RSV) 20 M. THEOBALD, “Der älteste Kommentar”, 58s. Cf. agora J. BEUTLER, “Und die Finsternis hat es nicht ergriffen”. 22 Recentemente H. THYEN, ad locum; M. THEOBALD, “Der älteste Kommentar”, 50, com nota 9; ID., “Welt” bei Paulus und Johannes, 423. 21 Beutler B -32 traduzem autò ou katélaben como “não a subjugaram”, fazem isso não em última instância sob influência da maioria dos Padres gregos desde Orígenes. Nisso, não se presta atenção ao modo como Orígenes chegou à sua interpretação. O erudito alexandrino tem antes de tudo um interesse teológico. Segundo ele as trevas não são capazes de vencer a luz divina por razões fundamentais. Ele introduz em seu texto um conceito suplementar, a saber, o da perseguição. As trevas perseguem a luz e tentam dominá-la, mas não são capazes disso23. Essa ideia da “perseguição”, porém, não se encontra no texto joanino. A tradição latina não a conhece e fica, portanto, com o sentido de “compreender”. A favor deste sentido pleiteia o contexto de Jo 1,5. Nos vv. 10 e 11 se diz: “Estava no mundo, e o mundo foi feito por ela, mas o mundo não a reconheceu. Veio para o que era seu, mas os seus não a acolheram”. Passando por cima do parêntese dos vv. 6-8, que tratam do Batista, parece exatamente este ser o sentido do v. 5 . A referência dos primeiros versículos do Prólogo aos primeiros versículos da Bíblia, Gn 1,1–2,4a, é patente. Ambos os textos começam com “no princípio” e contrapõem “luz” e “trevas”. Ao “Deus disse” de Gênesis corresponde em João “a Palavra”. Ambos os textos falam do “vir a ser” (egéneto é a forma mais frequente na versão grega do primeiro relato da criação). Ambas falam da “vida” como obra de Deus (em Gênesis com referência aos seres vivos, Gn 1,92-30). Por outro lado, parece que textos veterotestamentários relativas à Sabedoria e sua missão à humanidade influenciaram do Prólogo de João. Alguns desses textos parecem pressupor a preexistência da sabedoria (Pr 8,22-36; Sab 9,9s.; Eclo 24,1-22); outros, não (Sb 6,12-16; 7,22–8,1)24. É mister, porém, notar as diferenças entre esses textos e o Prólogo joanino25. Os textos do Antigo Testamento falam da “Sabedoria”, não do “Logos”26. Também são diferentes as funções da sabedoria e do Logos. Nos textos sapienciais falta a criação “pelo” (diá) Logos, a oposição dualista entra “luz” e “trevas” (encontrada, antes, no relato da criação) e a conexão entre o dom da “vida” e a recepção da Sabedoria ou do Logos. Para essas conexões encontramos os paralelos mais próximos em Fílon de Alexandria27. No doutrina do Logos segundo Fílon confluem as grandes tradições filosóficas de sua época: a representação estoico do Logos como um princípio racional que permeia o mundo e a doutrina platônica do Logos como alma do mundo no sentido do Timeu. Decerto, em Fílon influi o relato da criação do Gênesis, o que pertence aos deslocamentos característicos. O tema de uma colaboração do Logos na criação do mundo, em Fílon, poderia remontar o platonismo médio. A cooperação instrumental do Logos na criação ultrapassa as representações sapienciais do papel da Sabedoria na criação (cf. all. III,96; cher. 127; migr. 6; spec. 1,81; no rabinismo, cf. Abot 3,15 para a criação do mundo pela Torá; cristão primitivo, 1Cor 8,6 Jesus Cristo como aquele “por meio de quem tudo existe”; Cl 1,16 como aquele em quem tudo foi criado e em quem tudo subsiste). O Prologo de Joao tem em comum com Fílon também a oposição entre 23 Cf. Origène, Commentaire sur saint Jean, Tome I (Livres I-V). Texte critique, avant-propos, traduction et notes par C. BLANC (SC 120), Paris ²1996, 324-327 (Comm. in Jo 2, XXVII, 167.168-170). 24 Cf. J. BEUTLER, Johannes-Evangelium (u. –Briefe), 657; ID., Johannesevangelium, Johannesbriefe, 34; ID., Der Johannes-Prolog, 88 (= Neue Studien, 224); C. STICHER, “Frau Weisheit”; M. GORDLEY, Prologue. 25 Cf. T. H. TOBIN, The Prologue of John. 26 Mas cf. a referência a Sb 9,1s. em A. NICACCI, Logos e Sapienza, 79. 27 Cf. outra vez T. H. TOBIN, The Prologue of John; BEUTLER, Johannes-Evangelium (u. –Briefe), 657s., ID., Johannesevangelium, Johannesbriefe, 34-36. Beutler B -33 luz e trevas, a ordenação do Logos para o âmbito da luz e seu papel na origem da “vida”28. Estas conexões se mostram com maior clareza em De Opificii Mundi 29–35. Continua controverso saber até que ponto textos como a Trimórfica Protenoia (NHC XIII,1) podem servir para a comparação com o Prólogo joanino. Mas, em todo o caso, este texto de Nag Hammadi pressupõe o cristianismo. As vicissitudes da Palavra divina na história (1,6-13) A transição para os versos que se referem ao Batista, muitas vezes, é percebido como ruptura estilística e teológica no interior do Prólogo joanino. Lembramos que já J. Wellhausen estranhou porque, no v. 6, de repente, o Batista “cai como neve na eternidade”. Esta ruptura aparece mais fortemente ainda quando, como muitos querem, se pretende ver um hino pré-joanino por trás do Prólogo. Com esta hipótese oferece-se também uma explicação para a ruptura no v. 6. O evangelista teria introduzido neste lugar uma tradição a respeito do Batista, ou ele mesmo teria comentado o hino preexistente pelos versículos dedicados ao Batista. Renunciamos aqui a qualquer hipótese literário-crítica e apenas constatamos uma mudança estilística no interior do Prólogo. Passa-se do estilo hínico para um estilo mais narrativo. Esta transição percebe-se também na mudança dos tempos presente, imperfeito e perfeito dos primeiros quatro versículos para o aoristo no v. 6. Esse aoristo já se apresentou no egéneto da criação no v. 3 e no katélaben da reação à revelação do Logos, no v. 5. Como já avisamos na secção anterior, não vemos na transição vv. 1-5 do Prólogo para os vv. 6-13 a guinada da eternidade ou pré-história para a história. Nossa compreensão dos vv. 4-5 exclui tal visão: o Logos divino, luz dos homens, brilha até o dia de hoje no mundo, mas o mundo não quis abrir-se a essa luz. Portanto, nesse texto não nos encontramos em algum cinzento tempo pré-histórico. Olhando assim, a introdução do Batista não pode ter o sentido de abrir uma nova fase da história da salvação. Só serve para chamar a atenção da comunidade leitora para um confronto importante: não João é a luz do mundo, mas o Logos divino, que logo mais será chamado com seu próprio nome: Jesus Cristo (v. 17). Convém ver os vv. 6-13 como uma secção própria do Prólogo, sobretudo quando se lê o v. 13 no plural. Os autores que leem o v. 13 no singular (“que foi gerado... de Deus) veem este versículo em íntima união com o v. 14. Como acima dissemos, estes autores são os que fazem do v. 13-14 o centro de uma estrutura concêntrica. Contudo, mesmo I. de la Potterie mostrou ressalvas quanto a essa hipótese, embora ele, por sua parte, leia o singular29. A secção inteira se deixa dividir em duas partes. No início estão os vv. 6-8. Eles introduzem o Batista, falam de sua missão e o contrapõem à “luz”. Ele não era a luz, só devia dar testemunho da luz. As duas primeiras frases usam o aoristo, a terceira (v. 8), o imperfeito. E com a troca do sujeito (to phṓs) prepara-se a transição para o versículo seguinte. Os vv. 9-13 podem então ser vistos como uma subsecção própria, como acontece na divisão do texto de Aland-Nestle (28ª ed.). Dentro desta subsecção podem-se distinguir duas partes. Primeiro constata-se o fracasso da missão da “luz” no mundo e 28 29 Cf. T. H. TOBIN, The Prologue, 262-265. Cf. I. DE LA POTTERIE, Structure. Beutler B -34 aos que são seus (vv. 9-11). Depois, fala-se daqueles que a acolheram (vv. 12-13). A transição linguística se realiza pelo verbo parélabon no fim do v. 11 e o élabon no início do v. 12 (essa duplo uso confirma também o katélaben do v. 5 no sentido de “acolher”). 1,6-8 Por três vezes já, o Prólogo usou o verbo gínesthai. No v. 3 lemos com repetição que tudo “foi feito” (egéneto) pela Palavra divina. No v. 4, interpretamos ho gégonen no sentido de que o que nela “está feito” era a vida. Assim, a expressão já ganhou um sentido que aponta para a história. Com o egéneto ánthrōpos do v. 6, entramos definitivamente na história conhecida. O sentido da expressão pode ser traduzido por “surgiu, apareceu”. Isso se deduz também do contexto: João Batista foi enviado por Deus e “veio” para dar testemunho (v. 7). Aparece aqui a concretização crescente que reconhecemos como marca fundamental do Prólogo joanino: desde a criação em direção à história humana em geral, até o momento histórico do surgimento do Batista. É notável que o quarto evangelista recuse a João o título de “Batista”. Nem mesmo relata o batismo de Jesus por João como o encontramos nos outros evangelhos. A razão disso é a teologia joanina, que vê no Batista, exclusivamente, a testemunha de Jesus. A secção 1,19-34 serve inteirinha para essa finalidade. Acrescem a isso Jo 3,26 e 5,33. Aqui, no Prólogo, o significado de João parece ao mesmo tempo relativizado e valorizado: ele não é outra coisa senão testemunha de Jesus Cristo, luz e salvador do mundo. Os exegetas remetem regularmente a certa veneração que o Batista gozava em círculos judaicos e, talvez, também em círculos cristãos (cf. At 19,3s.). Ao lado de tal finalidade apologética, que visa a garantir a unicidade de Cristo, o papel de João se insere também na teologia joanina do testemunho. Segundo esta, não apenas João testemunha a favor de Jesus, mas o próprio Deus Pai, as Escrituras de Israel, as obras de Jesus, o Espírito e os discípulos de Jesus são testemunhas em seu “grande processo” com o mundo (cf. Jo 5,31-40; 8,12-20; 10,25; 15,26s.)30. A conexão de martyreîn com a preposição perí no sentido de testemunhar acerca de uma pessoa, no caso, Jesus, é característica do quarto evangelista e se encontra no Novo Testamento raras vezes fora do Evangelho segundo João. Geralmente, em João, a expressão significa o testemunho “a favor” de Jesus. O texto aqui fala do testemunho a favor da “luz”, utilizando o termo que, no início do Prólogo, descrevia a missão da Palavra divina em sua entrada no mundo. O testemunho, no Evangelho segundo João, sempre serve para suscitar a fé em Jesus. Assim, Jo 3, com sua menção ao testemunho do Batista (3,26), termina na promessa de vida eterna para aqueles que acolhem Jesus na fé (3,36). A secção inteira Jo 5,31-40 serve para a finalidade de conduzir a Jesus, com base no repetido testemunho a favor de Jesus (cf. 5,38). Coisa semelhante vale para Jo 8,12-20, mesmo se aí falta o verbo pisteuein; os conceitos aparentados são “reconhecer” e “julgar”. E evidente, em Jo 1,6-8, a influência da tradição sinóptica dos inícios da atividade pública de João Batista. Em Mc 1,3 está: egéneto Iōánnēs baptízōn em tḗi erḗmōi (cf. também Mt 3,1; Lc 3,2). Em sua forma primitiva, o relato de João talvez tenha sido semelhante31. 30 Cf. J. BEUTLER, Martyria, 209-306; ID., Art. marture,w( marturi,a in EWNT II, 968-968. Assim já R. E. BROWN I 27s. com M.-É. Boismard; recentemente M. THEOBALD, “Der älteste Kommentar”, 49s. Neste caso, não teria sido acrescentado ao Prólogo o texto sobre João Batista, mas, 31 Beutler B -35 1,9-11 Depois da “digressão” a respeito de João Batista, nos vv. 6-8, o texto do Prólogo volta aos versículos iniciais, sobretudo o v. 5. Um elemento de continuidade encontra-se no conceito de “luz”, utilizado na evocação da missão do Batista nos vv. 7-8. É possível que, originalmente, o v. 5 continuava no v. 10 32. É possível também que, num hino original, os vv. 5 e 9 se tenham seguido33. A opinião de Schnackenburg é de que o hino começava com os vv. 1-4 e continuava no v. 934. No início do v. 9 há um problema de tradução. As palavras erkhómenon eis ton kósmon podem estar ligados quer a ḗn to phṓs to alḗthinon, quer a pánta ánthrōpon. As opiniões se dividem, mas a maioria dos estudiosos prefere a ligação a ḗn to phṓs to alḗthinon. A ideia do “homem vindo ao mundo” parece antes alheia ao mundo bíblico e joanino, enquanto a vinda do Cristo ao mundo é uma representação corriqueira, precisamente em João. Alegam-se os seguintes textos para o “vir” de Cristo da parte de Deus: Jo 5,43; 7,28; 1,14.21; 9,39; 10,10; 12,47; 13,3; 16,28; 18,37 35. Jo 1,9 aproximase, sobretudo, de Jo 9,39 e 12,47, visto que nestes textos o “vir” está ligado ao tema da “luz” (cf. também 8,14). Assim, Jo 1,9 pode ser traduzido por uma construção perifrástica: “A luz verdadeira, que ilumina todo homem, veio [lit. estava vindo]* ao mundo”; ou por uma frase de identificação: “(A Palavra) era a luz verdadeira, que ilumina todo homem. Ela veio ao mundo”. É assim que a maioria das traduções recentes entende a frase36. Quanto ao conteúdo, o v. 9 retoma a vinda da luz ao mundo do v. 5. A ideia de que esta luz ilumina todo homem é retomada do v. 4. Segundo o v. 9, a luz não vem somente para os “iluminados”, mas para “todo homem”. Este universalismo continua no v. 10. Como o mundo inteiro é obra da criação pela Palavra de Deus, o mundo deveria acolhê-la. As palavras kai ho kósmos di’autoû egéneto podem ter sido acrescentadas para acentuar a conexão com o v. 3. A rejeição da Palavra divina pelo “mundo” parece irrestrita. O mundo não (re)conheceu essa Palavra. Num paralelismo exato com este enunciado, o v. 11 escreve: “Ele veio a que é seu, e os seus não a acolheram”. Quem são esses “seus”? Pode-se pensar nos judeus, mas a visão universalista do contexto desaconselha isso. Trata-se dos seres humanos que, na Palavra, foram criados por Deus, “todos” (v. 7), “todo homem” (v. 9), o “mundo” (v. 10). O destino da Sabedoria divina entra aqui no sentido em que está em Provérbios, na Sabedoria ou no Eclesiástico37. Estes hinos mostram que a Palavra participa da obra da criação. Segundo Pr 8,31, ela se “alegrava em estar com os filhos dos homens”. O hino de Eclo 24 louva a missão da Sabedoria no mundo e sua acolhida em Israel e no monte Sião. Identificar “os seus” em Jo 1,11 com Israel estaria em franca contradição com essas representações sapienciais. 1,12-13 Segundo muitos autores38 o v. 12ab pertenceria ao suposto hino pré-joanino, enquanto as linhas seguintes (v. 12c-13) teriam sido acrescentadas pelo evangelista. inversamente, o hino preexistente teria sido anteposto a um início de evangelho que corresponderia a Jo 1,6s. 32 Cf. a referência em A. DETTWILER, Le prologue johannique, 188 com nota 16. 33 Assim o mesmo A. DETTWILER, loco cit. 34 Cf. SCHNACKENBURG I 221. 35 EWNT II 143 (T. SCHRAMM). 36 Cf. Bíblia de Jerusalém, RSV e Einheitsübersersetzung, divergentes do texto de Lutero. 37 Cf. acima, com. ao v. 5. 38 Cf. A. DETTWILER, Le prologue, e o panorama em M. THEOBALD, “Der älteste Kommentar”, 57. Beutler B -36 Assim se explicaria uma dificuldade lógica: por um lado promete-se, aos que creem, a filiação divina (12ab), mas por outro lado (12c-13) só pode chegar à fé quem é nascido de Deus e não apenas dos pais físicos. “Acolher” a Luz/a Palavra (v. 12a) é equivalente a “crer” na Luz (v. 12c). Esta fé se apresenta como dom divino, fruto de um nascimento de Deus. O v. 13 exclui toda a colaboração humana no nascimento de quem nasceu de Deus, quer física (ex haimátōn) ou psicológica (ek thelḗmatos sárkos ... andrós). A ideia de tal nascimento ou geração a partir de Deus é, antes, estranha à Bíblia, mas encontra paralelos na mitologia oriental e greco-romana (pense em nomes como “Diógenes” e “Hermógenes”). Do ponto de vista teológico, a aparente contradição entre a filiação divina como condição ou como consequência da fé provavelmente se resolve pela visão complementar: a fé pressupõe, por um lado, a graça divina, mas, por outro, conduz também à filiação divina; ora, como o quarto evangelista não dispunha de um sistema que permitisse harmonizar os dois aspectos, ele os justapôs, de modo que a visão certa se dá na contemplação simultânea de ambos. Não há, até agora, plena concórdia quanto ao texto do v. 13. No lugar do plural “os que nasceram/foram gerados de Deus”39, apresenta-se, desde a Antiguidade, embora raramente, a lição no singular (“o que nasceu/foi gerado de Deus”). O plural serve de base para o texto de Nestle-Aland (28ª ed.) e do GNT (4ª ed.), obtendo a nota de plausibilidade mais alta (A = sem dúvida). É a lição do todos os manuscritos gregos. O singular aparece a partir do séc. II, pela primeira vez em Tertuliano, possivelmente também em Hipólito, certamente em Ireneu, na Epistula Apostolorum, no códice “b” da Vetus Latina (Codex Veronensis), no assim chamado Liber Comicus (lecionário de Toledo) e em alguns manuscritos da tradição siríaca40. I. de la Potterie41 e J. Galot42 indicam estas testemunhas. Mas esta atestação externa continua muito fraca, por faltar completamente nos manuscritos gregos do Novo Testamento. Isso explica a avaliação dos editores de Nestle-Aland (28ª ed.) e do GNT (4ª ed.). A atestação externa da lição no plural recebe o apoio dos papiros do II e III séculos (pap. 66 e 75) e do próprio Tertuliano, que a menciona ao polemizar contra ela43. Olhemos, pois, os critérios internos. Segundo Tertuliano, o plural provém dos gnósticos, para dar uma base escritural à origem do homem espiritual. Este argumento não convence, como já observa B. M. Metzger44. Os gnósticos distinguem entre os homens do espírito, os pneumáticos, e os demais, os homens da carne. Afirmar que todos os homens se originam de Deus e não da mulher estaria em contradição com as convicções gnósticas. Do outro lado, entende-se a origem da leitura no singular a partir do empenho dos autores da Igreja antiga por encontrar em João o nascimento virginal de Jesus, atestado por Mateus e Lucas. O termo autoû no fim do v. 13 pode ter provocado esta adaptação45. Investigações novas que favorecem a lição no singular geralmente não a atribuem ao texto canônico do Evangelho segundo João46. 39 A tradução costumeira “gerados” é defendida por M. J. J. MENKEN, “Born of God”, mas resta a dificuldade do mundo imagético de Jo 3,3-8. 40 Cf. SCHNACKENBURG I 240s. 41 I. DE LA POTTERIE, La conception. 42 J. GALOT, Être né de Dieu. 43 B. M. METZGER, Textual Commentary ad locum. 44 Cf. ibid. 45 Cf. ibid. 46 Segundo M. THEOBALD, Le prologue, a variante no singular é uma modificação tardia do texto canônico do Evangelho de João. Se, não obstante, nesta publicação mais antiga, ele a defende, é por influência da exegese católica de língua francesa; veja, porém, ultimamente, seu comentário ad locum. A Beutler B -37 A encarnação da Palavra e sua acolhida na comunidade (1,14-18) Os últimos cinco versículos do Prólogo do Quarto Evangelho são considerados pela maioria dos exegetas como o ápice deste texto joanino fundamental. Finalmente aparece agora no texto o nome Jesus Cristo (v. 17). Reaparecem também os termos lógos e theós dos versículos iniciais, para serem aplicados a Jesus. A impressão de uma inclusão entre o v. 1 e os vv. 14-18 confirma-se pelo fato de que a confissão de fé em Jesus como “Deus” voltará no evangelho apenas mais uma vez: na confissão de fé de Tomé, quase no fim do relato evangélico de João, em Jo 20,28, antes do epílogo do cap. 21. Isso sugere, portanto, uma inclusão mais ampla, que abrangeria a forma original do evangelho inteiro. A encarnação do Logos, porém, não encontra ressonância no restante do evangelho. Teologicamente, constitui, com certeza, o ponto alto do Prólogo. O percurso ulterior do evangelho descreverá o caminho desse Logos que se tornou carne. Quando se considera a articulação de Jo 1,14-18 nota-se, antes de tudo, a diferença de estilo e conteúdo entre o v. 15 e seu contexto. Os vv. 14 e 16, em estilo hínico, mostram continuidade e cantam a encarnação da Palavra e seu efeito na comunidade. O v. 15, ao contrário, reata com a menção ao Batista nos vv. 6-8 e não se enquadra na prosódia dos versos vizinhos. Os vv. 17 e 18 voltam mais para essa prosódia e se revelam também aparentadas entre si. 1,14 O verso central divide-se em cinco linhas. As duas primeiras falam da encarnação do Logos e de sua habitação “no meio de nós”, expressão que traz à cena a comunidade leitora. Esta constitui o sujeito da terceira linha: ela contemplou a glória da Palavra feita carne. As duas últimas linhas desdobram essa “glória” com vistas a seu portador e seu efeito na comunidade leitora. A primeira linha é marcada pelo pela linguagem e pensamento joaninos. As linhas seguintes retomam mais visivelmente o vocabulário e as representações das Escrituras de Israel. Como dissemos antes47, encontra-se por trás dos vv. 1-5 do Prólogo o relato da criação do Gênesis, por trás dos versículos seguintes a tradição evangélica a respeito de João Batista e por trás de 1,14.16-18, a tradição do Êxodo. Este modo de ver é compartilhado por muitos exegetas de João. A figura de Moisés é mencionada somente no v. 17, mas a teofania do Sinai está por trás da secção inteira a partir do v. 14. Para a tradição sacerdotal, a criação tem seu acabamento no erguimento da “Tenda” entre os filhos de Israel (Ex 40). Nesta tenda, Deus habita no meio de seu povo e descansa de suas obras48. Na tradição targúmica, os termos “shekiná” (“morada” na tenda), “palavra” e “glória” de Deus substituem o termo Deus. Evita-se assim mencionar o seu nome. Todos esses termos encontram-se no Prólogo de João e no presente versículo. O binômio “graça e verdade” [kháritos kai alētheías]* vem das palavras que Moisés ouviu na teofania de Ex 34: “O SENHOR, o SENHOR, Deus misericordioso e clemente, lento para a ira e rico em bondade/graça e fidelidade/verdade”, sendo que os dois últimos termos na tradução grega (Septuaginta) soam polyéleos kai alēthinós. O novo em Jo Bíblia de Jerusalém lia na edição original de 1955 o singular, e assim também a tradução alemã da mesma (Freiburg 1968); mas a edição inglesa “The New Jerusalem Bible” (London 1985) se decide pelo plural. P. Hofrichter teria primeiro preferido a lição no singular, mas depois voltou para o texto canônico no plural (HOFRICHTER, Im Anfang). Segundo ele o singular se encontrava em um prólogo joanino original, que como hino autônomo estaria na base tanto aos textos gnósticos quanto ao evangelho de João. Mas esta hipótese não conseguiu se impor. 47 Veja acima, I. 48 Cf. K. WENGST, ad locum, e D. BÖHLER, Abraham, 32. Beutler B -38 1,15 consiste em anunciar que este Deus se revelou em Jesus Cristo, o Logos encarnado. Para isso não há paralelos judaicos, nem protocristãos. Ele é o Filho “unigênito”, o que lembra Isaac em Gn 22. E por que o Prólogo diz que o Logos se tornou “carne” e não homem/ser humano? A razão poderia ser que, na época da redação do Prólogo, a verdadeira humanidade de Jesus, sua existência em carne e sangue, seu nascimento e sua morte já se tornaram objeto de discussão e impugnação da parte dos círculos protognósticos. Assim se entende a ênfase dada à carne de Jesus nos textos joaninos tardios no Evangelho segundo João (Jo 6,51-56) e nas cartas (1Jo 4,2s.; 2Jo 7). Invertendo o raciocínio pode-se concluir que o Prólogo, ou pelo menos esta secção do Prólogo, pertence à última fase do Evangelho segundo João, como “releitura”, embora disso não segue que estes versos sejam pós-joaninos49. 1,15 No v. 15 reaparece a figura do João Batista, já mencionada antes, nos vv. 6-8. A menção a ele assinalou a entrada da Palavra divina na história dos homens, e sua nomeação como testemunha a favor de Jesus, o começo do “grande processo” entre Jesus e o mundo. Como observa I. de la Potterie50, existe uma diferença gramatical entre os vv. 6-8 e o v. 15. Nos vv. 6-8, o testemunho de João aparece como um acontecimento do passado. João surgiu e deu testemunho a favor da luz, Jesus, o Logos. Segundo o v. 15 o, testemunho de João é um acontecimento presente: João “dá testemunho dele e proclama”. O perfeito kékragen provavelmente tem aqui, em paralelismo com martyreî, o significado do presente51. O conteúdo de seu testemunho antecipa Jo 1,30, mas, contrariamente a esse versículo, o v. 15 faz da precedência de Jesus sobre João o enunciado principal. Fisicamente, Jesus vem atrás de João Batista, mas, no tempo, apresenta-se aos israelitas depois dele; contudo, ele é primeiro e remonta mais longe no tempo. Assim, João Batista torna-se testemunha da preexistência de Jesus, o que significa para o leitor: até na eternidade (cf. vv. 1-2). Para os leitores antigos, o mais antigo merecia respeito maior. Aliás, os leitores do Evangelho segundo João sabiam que Jesus não apenas era mais antigo que João, mas antecedia qualquer cômputo do tempo. 1,16 O v. 16 reata com o v. 14. Volta a primeira pessoa do plural, que já se encontrava no v.14: o “nós” da comunidade cantando louvor. Reencontra-se também a menção à “graça”. No v. 14, ele é mencionada como eco reconhecível da tradição do Êxodo. No v. 16, o sentido é mais pronunciadamente cristão. A expressão khárin anti kháritos pode ser entendida em diversos sentidos: “graça por graça”, “graça sempre maior”, ou “uma graça em vez da outra”. A primeira interpretação parece a mais provável52, também porque logo se segue a expressão “plenitude” (plḗrōma). Exceto aqui, esta expressão encontra-se no Novo Testamento somente em Paulo e sua escola e assinala a plenitude da salvação escatológica em Cristo (cf. sobretudo Cl 1,19; Ef 1,10.23). 1,17-18 Nos últimos três versículos, o texto volta à terceiro pessoa do singular. Duas antíteses constituem o conteúdo de ambos os versículos: no v. 17, a graça da Lei por mediação de Moisés e a vinda de graça e verdade em Jesus Cristo; e no v. 18, a 49 Assim em G. RICHTER, Fleischwerdung. Ver acima, I. 51 Cf. o verbete em W. BAUER, Wörterbuch. 52 Cf. H THYEN, Erwägungen, com R. SCHNACKENBURG, R. E. BROWN, B. LINDARS, e mesmo M. LUTHER. 50 Beutler B -39 invisibilidade de Deus e sua contemplação por Jesus, o “exegeta” do Pai. O dom da Lei por mediação de Moisés e a vinda da graça e verdade por Cristo podem ser entendidos de diversas maneiras. Segundo alguns, trata-se de um paralelismo antitético, portanto, de uma contraposição. Essa compreensão já se reconhece no pap. 66 e em algumas outras testemunhas textuais antigas. Autores recentes, pelo contrário, preferem um paralelismo em clímax: a graça e a verdade que vieram por Jesus Cristo superam o dom da Lei mediado por Moisés. Para os leitores não se trata, então, de uma diferença quantitativa, mas qualitativa. Há certa ironia no fato de que o dom da “graça e verdade” em Jesus é uma expressão que vem precisamente da segundo manifestação de Deus a Moisés no Sinai, Ex 34,6 LXX (cf. acima, v. 14). A antítese formulada no v. 18 se inspira no livro do Êxodo. Depois do episódio do bezerro de ouro, Moisés solicita um novo encontro com Deus. Este pedido é atendido em parte, por Deus, mas ele acrescenta: “Não poderás ver minha face, porque ninguém pode ver-me e permanecer vivo” (Ex 33,20). Moisés verá de Deus somente as costas, quando ele passar diante dele; seu rosto, ele não o poderá enxergar (Ex 33,23). Que ninguém jamais viu Deus é um tema que João repete (cf. 5,37; 6,46; também 14,9). Só Jesus o viu, ele, que “repousa sobre o coração do Pai”, em contraste com Moisés, que o viu apenas pelas costas. A razão disso é que Jesus é o “unigênito”53, do mesmo ser e natureza do Pai: “Deus”54. Por isso, só ele pode dar a conhecer algo da parte do Pai e ser o seu “exegeta”55. (Quanto ao lugar “sobre o coração” do Pai, cf. o Discípulo Amado, que, segundo Jo 13,25, na ceia terá um lugar semelhante, junto ao coração de Jesus, e será o seu comunicador). III O que diz este texto para o público leitor hoje?56 Para responder a esta pergunta deve-se observar, por um lado, a estratégia narrativa do texto e, por outro, o horizonte de expectativa e compreensão das leitoras e leitores de hoje. Como se mostrou, o Prólogo de João leva o leitor passo a passo ao conhecimento da palavra de Deus na figura histórica de Jesus Cristo. O véu é levantado apenas no v.17, mas o acontecer da encarnação da Palavra em história humana é anunciado desde o v. 3. “Luz” e “vida” são comunicadas à pessoa humana, na Palavra divina, em manifestação histórica. É disso que o Batista deu testemunho, e o enunciado da encarnação no v. 14 apenas torna explícito o que já antes se podia ouvir em surdina. A resposta adequada ao anúncio da vinda da Palavra divina na história é a fé. É dela que trata, sobretudo, a parte central do Prólogo, os vv. 6-13. O testemunho do Batista pretende conduzir a esta fé. E quem a encontra, torna-se filho de Deus e mostrase filho de Deus. 53 Para este termo, cf. M. MORGEN, Le (Fils) monogène. Em vez de qeo,j muitos manuscritos leem no v. 18 ui`o,j. Cf. a discussão em particular em B. METZGER, Textual Commentary, ad locum. A lição qeo,j encontra-se atestada também nos P 66 e P 75 , dos séculos IIIII (no P 75 com o artigo, como também em outros manuscritos), no Sinaiticus prima manu¸ no Vaticanus e no C prima manu. A lição ui`o,j é menos bem atestada (A C3 K G D Q Y f1.13, alguns minúsculos, M lat syc.h) e pode ter sido influenciada por textos semelhantes, como Jo 3,16.18; 1Jo 4,9. O artigo pode ter sido influenciado pelo título “Filho” (Metzger). 55 L. DEVILLERS. Le sein du Père, 70, entende de modo totalmente diferente o verso final do Prólogo: “Le Fils unique, Dieu, Celui qui Est (cf. Ex 3,14 et egō eimi de Jean), dans le sein du Père, lui, a conduit”. Esta proposta é bastante hipotética e tropeça no fato de que nos contextos anterior e posterior o assunto é a comunicação da Palavra ou do conhecimento de Deus, mas não do acesso a ele. 56 Para a história da recepção do Prólogo, cf. M. ENDERS, R. KÜHN, “Im Anfang war der Logos”. 54 Beutler B -40 Os evangelhos sinópticos começam com o relato da atividade inicial de Jesus (Marcos) ou de sua origem (Mateus e Lucas). Em contraste com eles, o evangelista João abre seu evangelho com um cântico que canta a origem divina da Palavra. A partir do v. 14, os cantores desse cântico aparecem expressamente como “nós”. Assim são integrados no relato do princípio primordial, antes dos séculos. Cantam isso com o autor e seu círculo. Destarte, não apenas se ouve um relato, mas releva-se uma confissão de fé que se expressa no culto. Esta maneira de falar da encarnação de Deus parece bem adequada a seu objeto. Da vinda de Deus ao homem não se pode falar, afinal, na linguagem objetivante de um relato, mas apenas na forma do anúncio, ao qual corresponde, na comunidade dos que creem, a afirmação de sua fé. Assim, o Prólogo de João é ao mesmo tempo expressão de seu tempo e discurso adequado sobre Deus também no sentido do pensamento teológico de hoje57. 2. O testemunho de João Batista (1,19-34) 19 Este é o testemunho de João, quando os judeus enviaram, de Jerusalém, sacerdotes e levitas para lhe perguntar: “Quem és tu?”. 20 Ele confessou e não negou; ele confessou: “Eu não sou o Cristo”. 21 Perguntaram: “Quem és, então? Tu és Elias?” Respondeu: “Não sou”. – “Tu és o profeta?” – “Não”, respondeu ele. 22 Perguntaramlhe: “Quem és, afinal? Precisamos dar uma resposta àqueles que nos enviaram. Que dizes a respeito de ti mesmo?” 23 Ele declarou: “Eu sou a voz de alguém que grita no deserto: ‘Endireitai o caminho do Senhor!’”, como disse o profeta Isaías. 24 Eles tinham sido enviados da parte dos fariseus. 25 Perguntaram a João: “Por que, então, batizas, se não és o Cristo, nem Elias, nem o profeta?” 26 João lhes respondeu: “Eu batizo com água. Mas entre vós está alguém que vós não conheceis: 27 aquele que vem depois de mim, e do qual eu não sou digno de desamarrar as correias da sandália!” 28 Isso aconteceu em Betânia, do outro lado do Jordão, onde João estava batizando. 29 Na manhã seguinte, João viu que Jesus vinha a seu encontro e disse: “Eis o Cordeiro de Deus, aquele que tira o pecado do mundo. 30 Este é de quem eu disse: ‘Depois de mim vem um homem que passou à minha frente, porque era antes de mim’! 31 Eu também não o conhecia, mas vim batizar com água para que ele fosse manifestado a Israel”. 32 João ainda testemunhou: “Eu vi o Espírito descer do céu, como pomba, e permanecer sobre ele. 33 Também eu não o conhecia, mas aquele que me enviou disse-me: ‘Aquele sobre quem vires o Espírito descer e permanecer sobre ele, é ele quem batiza com Espírito Santo’. 34 Eu vi e, por isso, testemunho: este é o Filho de Deus!” I Com Jo 1,19 inicia-se, depois do Prólogo, a narrativa do Evangelho segundo João. No início, em Jo 1,19-51, encontramos quatro cenas conectadas entre si quanto ao cenário, a cronologia e os atores. Uma nota cronológica ulterior, em 2,1, completa a sequência das cenas, formando uma “semana inicial”, que no seu tempo contemplaremos e que termina nas bodas de Caná. As quatro primeiras cenas são separadas umas das outras pelas notas cronológicas “na manhã seguinte” em Jo 1,29.35.43. Todas elas se passam na margem do rio Jordão. As duas primeiras se mostram interligadas, bem como as duas últimas. As cenas Jo 1,19-28 e 1,29-34 estão 57 Para isso, cf. J. BEUTLER, “Und das Wort ist Fleisch geworden”. Beutler B -41 unidas pelo tema comum do “testemunho”, já introduzido em Jo 1,6-8 e 1,15. O v. 1,19 serve de “sobrescrito” para esta secção, Jo 1,19-34. A dupla menção ao “testemunhar” em 1,32-34 completa a moldura da secção. A divisão da secção é evidenciada pelas indicações de cenário e pelo conteúdo. A nota cronológica “na manhã seguinte” de 1,29 divide o texto em duas partes, cujos conteúdos se mostram muito próximos. Em Jo 1,19-28, o Batista fala de si mesmo e de sua atuação, mas de Jesus só fala indiretamente; em 1,19-34 fala de Jesus diretamente como sendo aquele que há de vir. Por isso podemos intitular 1,19-28 “O testemunho indireto de João acerca de Jesus” e 1,29-34, “O testemunho direto de João acerca de Jesus”. Na parte narrativa do Quarto Evangelho, o testemunho do Batista em 1,19-34 forma uma inclusão com 10,40-42, onde o Batista é mencionado pela última vez, novamente na paisagem do rio Jordão: ele não fez sinais, mas tudo o que falou a respeito de Jesus era verdade e, por ele, muitos passaram a crer em Jesus. Assim, o Batista deixa definitivamente a cena e deixa seu lugar, ao lado de Jesus, ao amigo deste, Lázaro (Jo 11–12), antes que ocupe Discípulo Amado (Jo 13–21). Com isso demarcamse também as partes principais do evangelho. II O testemunho indireto de João acerca de Jesus (1,19-28) Esta perícope pode ser dividida em duas partes com base em indícios formais e de conteúdo. No meio da perícope encontra-se a nota do v. 24, dizendo que os sacerdotes e levitas enviados a Jesus foram enviados da parte dos fariseus. Os vv. 19-23 respondem à pergunta dirigida a João: “Quem és tu?”, os vv. 25-28 à pergunta do porquê de seu batismo. 1,19-23 Nos vv. 19-23 o assunto é a pessoa de João, nos vv. 25-28, a sua atuação, o seu batismo. No início, no v. 19, apresenta-se um sobrescrito, redigido em estilo tipicamente joanino (pronome demonstrativo inicial seguido de uma frase definitória, cf. Jo 15,12; 17,3; 1Jo 3,11 etc.). Não é totalmente claro até onde vai a secção assim introduzida. Muitos comentadores pensam: até 1,34. Mas o testemunho do Batista tem alcance para lá deste versículo, pois é retomado na indicação “Eis o cordeiro de Deus” de 1,35. E, como já mencionamos, em 3,22-30; 5,33-35 e 10,40-42 encontram-se outras menções ao Batista. Por isso, pode-se ver em Jo 1,19 o sobrescrito de toda a primeira parte do evangelho. Além disso, neste versículo introduzem-se os outros atores da primeira parte do Evangelho segundo João: sacerdotes e levitas enviados de Jerusalém para ganhar informações acerca da pessoa e da atividade de João Batista. Os que os enviam são “os judeus”, entendidos como os que exercem a responsabilidade sobre o povo judeu em Jerusalém. Do fim do v. 19 até o v. 23, o grupo de versículos é marcado por frases nominais no tempo presente. No centro da narrativa está a figura do Batista. Sua resposta à delegação de Jerusalém é introduzida por uma frase solene: “Ele confessou e não negou; ele confessou ...”. Pela primeira vez apresenta-se aqui a importância do “confessar” para a comunidade leitora do Quarto Evangelho. Já apontamos para isso antes58. 58 Cf. supra, Introdução, 3; J. BEUTLER, Faith and Confession. Beutler B -42 A resposta de João pode ser articulada em uma parte negativa e uma parte positiva. O enunciado mais importante para os leitores do Quarto Evangelho encontrase na primeira parte, negativa: João não é o Cristo. Este enunciado retoma o que foi dito sobre o Batista no Prólogo (1,6-8): João “não é a luz”, que é o Logos encarnado em Jesus Cristo. Além disso, João recusa a identificação com Elias, cuja volta se esperava para o tempo final. Nem é o profeta anunciado de acordo com Dt 18,18. A razão dessa recusa consiste no fato de que sempre se relacionava com a figura de Elias a representação do “precursor”, papel que o Quarto Evangelho não admite. A origem de Jesus é de outra ordem: do ponto de vista do quarto evangelista é impossível que ele tenha precursor59. A resposta positiva do Batista nos vv. 22-23 cita Is 40,3 LXX, já utilizado pelos sinópticos no mesmo contexto. O “Batista” (o Quarto Evangelho nunca o indica com este termo) não é mais do que a voz de alguém que clama no deserto, convidando a preparar o caminho para o Senhor. Textualmente, a citação corresponde em grande medida à Septuaginta, com uma diferença no termo “aplanai” (euthýnate), que hoje se tende a atribuir ao evangelista e não a uma fonte pré-joanina. Evidentemente, também o egṓ (“eu”) na introdução da citação vem da mão do evangelista. Para um autor cristão como o quarto evangelista não há dúvida de que o kýrios de Is 40,3 significa Jesus, o Senhor da comunidade cristã, no qual Deus veio visitar seu povo. João Batista não aparece como seu precursor, mas como a voz que anuncia a sua chegada. Por trás da secção Jo 1,19-23 e dos versículos seguintes, até o v. 34, é possível reconhecer a tradição sinóptica. De imediato se reconhece a entrada em cena do Batista segundo Mc 1,2-11. Que o quarto evangelista não oferece uma descrição do Batista e sua pregação penitencial permite concluir que ele se baseia principalmente em Marcos e não na tradição paralela de Mateus e Lucas (Q). As divergências em relação a Marcos se derivam da intervenção redacional do quarto evangelista60. Logo no início da perícope, no v. 19, percebe-se a influência da perspectiva joanina. Introduz-se o tema que é determinante para o quarto evangelista: o testemunho. A delegação de Jerusalém abre uma primeira fase crítica da relação entre Jesus ou o Batista e as autoridades judaicas de Jerusalém. O evangelista fala de “sacerdotes e levitas”, com a intenção de dar aos enviados de Jerusalém um perfil modesto. Este vocabulário não é indício de uma fonte joanina autônoma. O fato de que, desde o início, o olhar se volta para a pessoa do Batista, mais uma vez se deixa explicar em vista dos interesses literários e teológicos do evangelista. Desde o Prólogo, a relação entre o Batista e Jesus é um tema central. Que João não usou a citação de Malaquias que aparece nos sinópticos (Ml 3,1) explica-se pela intenção do evangelista de não apresentar o Batista como precursor de Jesus. Quando, mesmo assim, a citação de Isaías aparece na boca do Batista, no Evangelho segundo João, ela ganha mais peso. A introdução pela fórmula “ele confessou e não negou, ele confessou” se explica pela importância da confissão do Batista, como já apontamos antes61. Por que perguntam os delegados de Jerusalém ao Batista se ele é o Cristo, Elias ou um dos profetas? Comentadores como J. Becker apontam que esses títulos faltam na 59 Cf. D.-A. Koch, Der Täufer, 1970s. Cf. ainda D.-A. KOCH, Der Täufer; também É. TROCMÉ, Jean et les Synoptiques, e E. D. FREED, Jn 1,19-27. 61 Cf. supra, com. ao v. 20. 60 Beutler B -43 tradição sinóptica a respeito do Batista. U. Busse62 e D.-A. Koch63 perceberam que a sequência desses títulos pode ter sido gerado a partir de Mc 8,27-30 parr. Acrescente-se Mc 6,14-1664. No texto de Mc 8, os discípulos respondem à pergunta de Jesus sobre a opinião do povo a seu respeito: alguns dizem João Batista, outros, Elias, outros, algum dos profetas. E Pedro responde em nome do grupo dos discípulos: “Tu és o Messias”. O Quarto Evangelho menciona este título no início da presente perícope. Evidentemente, elimina a menção ao Batista e continua logo com os títulos de Elias e do profeta, aqui entendido como “o Profeta” no sentido de Dt 18,18. Outros elementos da cena introdutória de Marcos faltam em João, por exemplo, a menção ao “ermo” como cenário da atividade de João, pois esse elemento acentuaria demais o papel do João como profeta. Assim também a descrição de seu vestuário e alimentação, que apontariam na mesma direção. Para o quarto evangelista, João é a testemunha de Jesus, nada mais e nada menos. 1,24-28 A segunda subsecção nos fornece mais informação sobre o grupo mencionado no começo, em 1,19. Há duas maneiras de interpretar a sintaxe do v. 24. Muitas vezes, ele é traduzido: “E os enviados eram dentre os fariseus”. Mas neste caso esperar-se-ia o artigo hoi antes de apestalménoi. Ora, o artigo falta nos manuscritos mais antigos. Ele se encontra-se como correção secundária em alguns manuscritos (א2 Ac C3 Ws); no mais, tem pouca atestação (K N G D Q 0234 f1.13 33 u. a. M boms). Por isso traduzimos: “Eles tinham sido enviados da parte dos fariseus”. A preposição ek equivale então a apó. Também em outros lugares em João, os fariseus aparecem como o grupo hegemônico em Jerusalém, certamente sob influência da época da redação do Quarto Evangelho, depois de 70 d.C., quando os fariseus representavam o único grupo influente que restava no judaísmo. Como eles eram leigos, dificilmente se imagina que os sacerdotes e levitas mencionados no v. 19 lhes tenham obedecido. A resposta de João à pergunta por que ele batizava não indica, de imediato, o sentido de sua atividade, mas a liga a Cristo. Enquanto ele, o Batista, batiza com água, está no meio dos judeus, na margem do rio Jordão, um que vem depois dele e do qual ele não é digno de desatar a sandália. Esperar-se-ia aqui uma palavra sobre o Espírito Santo que Jesus deve conceder, mas esta palavra só é citada na cena seguinte, no v. 33. Aqui, nos vv. 24-28, o assunto é a dignidade de Jesus, inclusive em comparação com o Batista. O fato de os judeus não o reconhecerem é interpretado por meio do tema do Messias desconhecido (v. 26). No fim da perícope vem, a indicação do lugar, retroativa e bem no estilo de João; não convém atribuí-lo a outra mão que a sua65. [Pela menção a Betânia em 1,28]* o relato da vida pública de Jesus constitui uma inclusio com a Betânia de Jerusalém em 11,1, e a fórmula “no outro lado do Jordão” remete antecipadamente a Jo 10,40-4266. A pergunta pela origem de Jo 1,24-28 leva à conclusão de que o trecho é fortemente marcado pela mão do evangelista. A distinção terminológica entre “os 62 U. BUSSE, Das Eröffnungszeugnis, 39. D.-A. KOCH, Der Täufer, 1972. 64 Cf. E. D. FREED, Jn 1,19-27: 1947s. 65 Cf. G. VAN BELLE, Les parenthèses; C. J. BJERKELUND, Tauta egeneto. 66 As tentativas de localizar a Betânia de 1,28 até hoje não deram certo. Desde o tempo de orígenes encontram-se também as variante textuais Betabara e Betaraba. Cf. recentemente D. EARL, ʽ(Bethany) Beyond the Jordan’; J. M. HUTTON, “Bethany beyond the Jordan”. 63 Beutler B -44 judeus” no v. 19 e “os fariseus” no v. 24 não aponta para fontes diversas, mas explica-se pelo uso linguístico do quarto evangelista, que também em outros lugares parece usar os dois termos como sinônimos67. A resposta do Batista no v. 26 corresponde a Mc 1,8. O quarto evangelista, porém, suprime o anuncio do Batista a respeito do mais forte que ele, que há de vir depois dele, porque aqui isso exprimiria apenas uma diferença quantitativa entre ele e Jesus. Para o quarto evangelista, isso não seria suficiente. Assim falta neste lugar a segunda metade da palavra do Batista, o anúncio daquele que batiza com o Espírito Santo. O quarto evangelista traz esta palavra no v. 33, relacionando-a com a descida do Espírito Santo sobre Jesus. Nos vv. 24-28, é a figura do Batista que está no primeiro plano. Jesus vem depois do Batista, mas tem dignidade maior do que ele. Isso é expresso com uma palavra colhida de Marcos: o Batista não é digno de desatar a correia da sandália de Jesus. Esta palavra encontra-se em Mc 1,7 par. e também em At 13,25, como aponta É. Trocmé68. Isso pode ser um indício interessante para a origem histórico-traditiva deste tema em João. O tema do Messias desconhecido é ao mesmo tempo tradicional e joanino: o mundo e os que lhe pertencem não reconhecem Jesus, a luz verdadeira (assim já em Jo 1,10-11). O testemunho direto de João acerca de Jesus (1,29-34) Os versículos seguintes poderiam ser intitulados “o testemunho de João acerca de Jesus”, mas isso não se recomenda, pois, como vimos, também os vv. 19-28 já tratavam de um testemunho de João em favor de Jesus, ainda que de forma indireta. O batista negou ser o Messias ou, de alguma maneira, um “precursor” do Messias. A nova cena começa, no v. 29, com uma indicação do tempo (“na manhã seguinte”) e termina no v. 34, antes da nova indicação da manhã seguinte no v. 35. Nos vv. 29-34, o Batista vê Jesus vindo em sua direção e o aponta com as palavras: “Eis o Cordeiro de Deus”. Na sequência, o Batista dá testemunho de sua própria experiência espiritual, quando viu o espírito descer sobre Jesus e permanecer sobre ele. A cena se encerra com um testemunho sobre Jesus que corresponde perfeitamente ao credo da comunidade joanina. Segundo critérios de linguagem e de conteúdo, a cena de vv. 19-34 pode ser subdividia em duas, como faz a edição do texto de Nestle-Aland. A segunda subdivisão é emoldurada pelo tema do “testemunhar” nos vv. 32 e 34 (martyreîn). O Batista dá testemunho de uma visão e de uma audição que lhe ocorreram no seu primeiro encontro com Jesus. Este primeiro encontro está descrito nos vv. 29-31. No meio e no fim das declarações do João Batista, nos vv. 29-31 e 42-34, aparece uma identificação: houtós estin (v. 30 e v. 34): “Este é de quem eu disse ...”, “Este é o Filho de Deus”. 1,29-31 Os vv. 29-31 podem ser intitulados “O Cordeiro de Deus”. A secção começa, no v. 29, com a indicação temporal “na manhã seguinte”, início de uma nova cena. Pode-se supor que os ouvintes de João não são mais a delegação de Jerusalém. São as multidões populares que vieram até o Jordão para ouvir João e se fazer batizar por ele. “Ele viu ... e disse: Eis...” é uma fórmula bíblica, como mostra R. E. Brown (ad locum, e cf. 1,47). O “vir” de Jesus pode ter um sentido mais profundo (o “vir” daquele que há de vir, cf. 67 Cf. a referência a Jo 9 em D.-A. KOCH, Der Täufer, 1972s. Cf. E. TROCMÉ, Jean et les Synoptiques. Segundo ele, o adjetivo a;xioj no sentido de “digno” só se encontra em Jo 1,27 e At 13,25, contra i``kano,j em Mc 1,7, par. Mt 3,11; Lc 3,16. 68 Beutler B -45 1,9; 4,35s.). Mas qual é o sentido da palavra “Eis o Cordeiro de Deus”? Com R. E. Brown podemos distinguir três significações principais: – um cordeiro apocalíptico, como mencionado em textos apocalípticos contemporâneos (Test.Jos. 19,8; Hen.Aeth. 90,38 etc.): uma figura escatológica e messiânica do tempo final. Tal interpretação é preferida, sobretudo, por autores que procuram salvar a palavra sobre o cordeiro como dito histórico do Batista; – o cordeiro pascal, por causa da importância da Páscoa durante a vida e a paixão de Jesus segundo João (assim C. K. Barrett); – o cordeiro mencionado no quarto cântico do Servo de Deus (Is 53,7), que diante dos tosquiadores não abre a boca e que simboliza o próprio Servo. Esta interpretação se recomenda por causa da importância do Servo de Deus para o quarto evangelista, sobretudo em Jo 12,20-4369. Combina bem com esta interpretação o tema da expiação do pecado, visto que, no quarto cântico, o Servo este toma sobre si a culpa de muitos (referência alegada por R. E. Brown, que acolhe esta interpretação). Quando se assume esta interpretação, fica mais compreensível a lição “este é o eleito de Deus” no v. 34 (cf. adiante). Diferentemente do texto de Isaías, Jesus, o cordeiro verdadeiro, não leva os pecados [plural]*, mas o pecado do mundo. O singular, escolhido pelo evangelista João, corresponde ao de Paulo. O quarto evangelista prefere este modo de falar, porque, no fim das contas, só há um pecado, a incredulidade, que consiste em não acreditar em Jesus e sua missão (cf. Jo 16,9). Este é “o pecado do mundo”70. O v. 30 se liga ao anterior pelo termo “vir”. Segundo o v. 29, João viu Jesus “vindo” e deu seu testemunho sobre sua obra salvadora. Agora se interpreta o “vir” de Jesus no sentido da precedência de Jesus em relação ao Batista. O versículo é semelhante a 1,15. Em 1,15 parece pressuposto o v. 30, mas no v. 30 pressupõe-se a referência a um testemunho anterior do Batista quanto à precedência temporal de Jesus em relação a ele. O enigma pode se resolver pela hipótese de que as tradições sobre João Batista já pertenciam à tradição oral da comunidade joanina71. Quando o Batista, no v. 31, afirma que ele não conheceu Jesus antes de eles se encontrarem, ele retoma o motivo do messias desconhecido do v. 26. A única tarefa de João consiste em tornar Jesus conhecido. Mesmo sua atividade como batizador não teria outra finalidade senão á de tornar Jesus conhecido ao povo de Israel. Compreensão semelhante já se encontrava nos vv. 24-27, nos quais o Batista, interrogado quanto ao sentido de sua atividade batismal, respondeu com uma palavra a respeito de Jesus que devia vir e cuja sandália ele não era digno de desatar. O tema do batizar “com água” fornece um elemento linguístico que une as duas secções. 1,32-34 Os últimos três versículos da secção poderiam ser intitulados “O Filho (ou o Eleito) de Deus”. Deixamos para depois o problema textual-crítico de qual dos dois títulos cristológicos deve ser escolhido. Em comparação com os versículos anteriores, o testemunho do Batista torna-se, aqui, mais concreto. Retoma-se a palavra acerca dos dois batismos, o do Batista, com água, e o que Jesus proporcionará, com Espírito Santo. 69 Cf. J. BEUTLER, Griechen. A conexão com o Servo do Senhor é vista por D. RUSAM, Das “Lamm Gottes”, e D. SCHWIND, “Seht das Lamm Gottes”. Segundo ambos, o Servo do Senhor leva/tira o pecado do mundo enquanto ele envia o Espírito. O termo “Cordeiro de Deus” deve portanto ser lido no contexto joanino de 1,29-34. 71 Cf. E. TROCMÉ, Jean et les Synoptiques. 70 Beutler B -46 A condição para este batismo era a descida deste Espírito sobre Jesus. João participou desse evento e pode, portanto, testemunhar a respeito. A imagem da pomba como símbolo do Espírito Santo é tradicional e mostra novamente a dependência do evangelista de tradições semelhantes. Segundo o v. 33, retomando um motivo do v. 31, João não conhecia Jesus antes de eles se encontrarem. Seu conhecimento a respeito de Jesus foi-lhe dado e revelado por Deus, isto é, por aquele que o encarregara de batizar com água. Agora ele deve anunciar ao povo um batismo novo, administrado por Jesus, um batismo com Espírito Santo. A condição para este batismo era, como ele acentua novamente, que o Espírito descesse sobre Jesus e permanecesse sobre ele. Notável é que, em todo este primeiro capítulo, nunca se diz que João batizou Jesus. A escuta da voz celestial, segundo o Quarto Evangelho, também não é relacionado com a cena do batismo como nos sinópticos. O quarto evangelista restringe o papel do “Batista” a ser testemunha de Jesus, à custa de nunca chamá-lo de “Batista”. Para o quarto evangelista seria mais adequado falar em “João, a testemunha”. Quando o Espirito Santo desce sobre Jesus e permanece sobre ele, segue-se disso que Jesus deve ser o Filho de Deus. Embora originado na tradição, o título tem seu fundo na experiência de fé do Batista: ele “viu”, com os olhos da fé, que Jesus é o Filho de Deus e pode testemunhar disso. No fim do v. 34 há um problema de crítica textual. Nestle-Aland (28ª ed.) lê, com a maioria dos manuscritos antigos e as edições modernas, bem como os tradutores e comentadores, ho hyiòs toû theoû, mas existe uma lição variante ho eklektòs toû theoû ( *אb e ff2 sys.c). Esta variante tem menor atestação, mas merece atenção72. Não há grande diferença quanto ao sentido. Ambos os títulos parecem apontar para o Servo de Deus, pelo menos, se se supõe por trás do texto joaneu a cena do batismo de Jesus segundo os sinópticos (Mc 1,11 par.), onde, de acordo com Is 42,1, se lê sy eî ho hyiós mou ho agapētós, en soì eudókēsa (cf. Is 42,1 LXX; Iakwb o` pai/j mou( avntilh,myomai auvtou/\ Israhl o` evklekto,j mou( prosede,xato auvto.n h` yuch, mou..). Se não for original, o termo eklektós pode ter entrado no texto exatamente por causa da proximidade do texto de Isaías. Objetivamente é importante que, em todo o caso, a confissão cristológica do Batista é influenciada pela figura do Servo de Deus. No decorrer do Evangelho segundo João encontraremos repetidamente esta cristologia73. III A secção introdutória do Evangelho segundo João, depois do Prólogo, está sob o signo do “testemunho”. Para leitoras e leitores de hoje abrem-se, a partir daqui, perspectiva importantes. Em primeiro lugar, lembra-se ao público leitor que sua fé repousa sobre um fundamento firme. Para o quarto evangelista, João Batista é testemunha de Jesus, testemunha de sua origem e missão divinas. Assim o Batista representa outras testemunhas de Jesus, como se mostrará ao longo o evangelho. A corrente se estende desde o Discípulo Amado e autor do Evangelho (Jo 21,24) até o círculo inteiro dos discípulos (Jo 15,26s.). A mensagem do evangelho é fidedigna. 72 Esta lição é preferida novamente por T.-M. QUEK, A Text-Critical Study; cf. L. MORRIS 134. T. FLINK, “Son and Chosen” defende a – igualmente fracamente atestada – lição (P 75* [a] ff2c sa) evklekto.j ui`o,j. 73 Cf. em relação a isso J. BEUTLER, Griechen Beutler B -47 Na medida em que vivem seu discipulado, as leitoras e leitores são integrados nesta fileira de testemunhas. Não basta que tenham condições e disposição para falar de sua fé, eles devem também testemunhá-la, isto é, falar dela de tal modo que eles mesmos estejam por trás. Isso, então, conduz à confissão de fé. Assim como de João se disse: “Ele confessou e não negou, ele confessou ...” (Jo 1,20), também eles devem sentir-se chamados a confessar. E como, no caso de João, isso aconteceu diante de uma delegação crítica, também as leitoras e leitores de hoje devem confessar sua fé diante de um foro que nem sempre se mostra simpático e aberto à fé cristã. Nisso pode consistir a atualidade da secção aqui tratada. Beutler B -48 3. A vocação dos primeiros discípulos (1,35-51) 35 Na manhã seguinte, João estava lá, de novo, com dois dos seus discípulos. Contemplando Jesus que andava em redor, disse: “Eis o Cordeiro de Deus”! 37 Os dois discípulos ouviram esta declaração de João e passaram a seguir Jesus. 38 Jesus voltou-se para trás e, vendo que eles o seguiam, perguntou-lhes: “Que procurais?” Eles responderam: “Rabi (que quer dizer Mestre), onde moras?” 39 Ele respondeu: “Vinde e vereis”! Eles foram e viram onde morava; e permaneceram com ele aquele dia. Era por volta da hora décima. 40 André, irmão de Simão Pedro, era um dos dois que tinham ouvido a declaração de João e seguido Jesus. 41 Ele foi encontrar primeiro o próprio irmão, Simão, e lhe falou: “Encontramos o Messias (que quer dizer Cristo)!”. 42 Então, conduziu-o até Jesus. Olhando para ele, Jesus lhe disse: “Tu és Simão, filho de João. Tu te chamarás Cefas (que quer dizer Pedro)!”. 36 43 Na manhã seguinte, Jesus quis partir para a Galileia, encontrou Filipe e disselhe: “Segue-me”! (44 Filipe era de Betsaida, a cidade de André e de Pedro.) 45 Filipe foi encontrar Natanael e disse-lhe: “Encontramos Jesus, o filho de José, de Nazaré, aquele sobre quem escreveram Moisés, na Lei, e os Profetas”. 46 Natanael perguntou: “De Nazaré pode vir algo de bom?” Filipe respondeu: “Vem e vê”! 47 Jesus viu Natanael vindo a ele e disse a seu respeito: “Eis, verdadeiramente, um israelita em quem não há falsidade!” 48 Natanael disse-lhe: “De onde me conheces?” Jesus respondeu: “Antes que Filipe te chamasse, quando estavas debaixo da figueira, eu te vi”. 49 Natanael exclamou: “Rabi, tu és o Filho de Deus, tu és o Rei de Israel!” 50 Jesus respondeu-lhe: “Estás crendo só porque falei que te vi debaixo da figueira? Coisas maiores que estas verás”. 51 E disse-lhe ainda: “Amém, amém, digo-vos: vereis o céu aberto e os anjos de Deus subindo e descendo sobre o Filho do Homem!” I Depois do testemunho de João Batista acerca de Jesus (Jo 1,19-34) segue outro, em que o próprio Jesus aparece como protagonista. É o relato das primeiras vocações de discípulos (Jo 1,35-51). A figura de João aparece ainda nos três primeiros versículos, mas, depois, se retira para o segundo plano. Depois que João concluiu seu testemunho e levou os primeiros discípulos até Jesus, sua tarefa terminou. Como a secção anterior, também esta é subdividida em duas partes pela indicação temporal “na manhã seguinte” (Jo 1,35.43, cf. 1,29). Assim se distinguem duas subsecções: a vocação dos primeiros três discípulos (1,35-42) e a vocação de mais dois (1,43-51). II A vocação dos primeiros três discípulos (1,35-42) Sob muitos aspectos, a subsecção 1,35-42 pode ser dividida em duas cenas: os vv. 35-39 e 40-42. A primeira cena é emoldurada por duas indicações temporais: “na manhã seguinte” (v. 35) e “por volta da hora décima” (v. 39). Os personagens da ação são João, dois discípulos ainda não identificados e Jesus. A segunda cena começa com a identificação de um dos discípulos que encontraram Jesus: André. Este encontra seu irmão Simão (Pedro), o leva a Jesus e aponta este como Messias. Jesus se dirige a Simão e lhe dá um novo nome. Quanto à sequência das duas secções 1,35-42 e 1,51-53, notam-se diversas semelhanças entre elas: uma pessoa encontra Jesus e apresenta a ele uma ou duas outras. Assim, João Batista indica Jesus, que ele mesmo havia encontrado anteriormente, a dois Beutler B -49 discípulos. André, um dos dois, encontra o próprio irmão e apresenta-lhe Jesus como Messias. Na sequência, aquele que encontrou Jesus leva um ou diversos outros a Jesus. Jesus fita as pessoas que lhe são apresentadas e dirige-se a elas com uma pergunta e um convite ou presságio relativo a tal pessoa (“Tu te chamarás Cefas”). Na subsecção 1,35-42 ocorrem diversos verbos característicos para a sequência inteira até o v. 51: “ver” ou “contemplar” (vv. 36.38.39[bis].42), encontrar (v. 41, cf. 43[bis].45) e “permanecer” (vv. 38-39). A crítica literária antiga distinguia na inteira secção 1,35-51 entre a “fonte dos sēmeîa” e sua reelaboração pela mão do evangelista, que seria responsável pelos versículos 43 e, em parte, 35s. e 51, que são um pouco diferentes quanto à forma da vocação74. Tais tentativas são hoje, em geral, abandonadas. Neste respeito, deve-se observar a possível dependência de João em relação aos evangelhos sinópticos75. Quanto a isso devem ser examinadas as cenas de vocação dos três primeiros evangelhos (Mc 1,16-20 parr.; 3,13-19 parr.; Lc 5,1-11; cf. Mt 16,16-19). A influência dessas cenas no nosso texto é inegável, apesar das diferenças evidentes, entre as quais: a estrutura diferente da vocação (exceto a de Filipe, no v. 43) e o fato de que Pedro, nos sinópticos, só recebe seu novo nome no auge da atividade pública de Jesus. Na exegese recente, examina-se a secção das vocações dos discípulos mais em perspectiva narrativa e teológica. K. Scholtissek76, entre outros, vê na sequência dos títulos cristológicos em Jo 1,35-51 uma introdução mistagógica ao mistério de Jesus, tanto para os catecúmenos como para os já crentes. Há um aprofundamento da fé em Jesus. Começando com o “Cordeiro de Deus” (v. 36), encontramos as designações “Rabi” e “Mestre” (v. 39), “Messias” (v. 41), “aquele sobre quem escreveram Moisés, na Lei, e os Profetas” (v. 45), “o Filho de Deus, o Rei de Israel” (v. 49) e “o Filho do Homem” (v. 51). Junto com os discípulos, as leitoras e leitores são assim introduzidos, passo a passo, no mistério de Jesus. Do ponto de vista narrativo, descobre-se nesta secção mais claramente o convite ao discipulado77. A iniciativa vem de João Batista, o qual, com seu testemunho, apresenta Jesus a dois discípulos com as palavras: “Eis o cordeiro de Deus”. Os discípulos tomam então a inciativa e conduzem outras pessoas a Jesus: André leva até ele seu irmão Simão Pedro; Filipe leva seu amigo Natanael. Há uma exceção: no v. 43, Jesus se dirige imediatamente a Filipe. Contudo, apesar de diferença na forma literária, este versículo não pode ser separada do contexto. A forma diferente pode ser explicada por duas razões: a retomada de uma tradição que se aproxima mais dos sinópticos (com a sequência “viu/encontrou” – “disse: Segue-me”), e/ou a intenção do quarto evangelista de destacar Filipe como apóstolo especialmente estimado na comunidade joanina (cf. 6,5.7; 12,22; 14,8s.). 1,35-37 Até agora João Batista só falou como testemunha de Jesus no sentido geral. Agora é narrado como ele “contempla” Jesus caminhando por aí e dirige para ele a atenção de 74 Assim, continuando o modelo de R. Bultmann, J. BECKER no seu comentário (ad loc.); semelhantemente H.-J. KUHN, Christologie und Wunder. Este distingue em Jo 1,35-51a figura de Jesus como taumaturgo e profeta que tem o dom de conhecer os corações (vv. 47s.) e sua figura como Messias (assim proclamado nos vv. 41 e 49). M. THEOBALD, 50 defende a Semeiaquelle por trás de 1,19-28.35-50. 75 Como percebe também por H.-J. KUHN, loco citato. 76 K. SCHOLTISSEK, Rabbi; semelhantemente A. MEYER, Kommt und seht. 77 Neste sentido G. FISCHER – M. HASITSCHKA, Sulla tua parola. Beutler B -50 dois dos seus discípulos, com as palavras: “Eis o Cordeiro de Deus”. Já explicamos, acima, o significado dessa designação (cf. v. 29). Em vez de procurar um significado histórico (por exemplo, como sendo uma tradução errônea do termo aramaico ambíguo talya, que pode significar “cordeiro” ou “servo”), preferimos ver neste termo uma condensação da soteriologia joanina. O batista apresenta Jesus a seus discípulos não em primeira linha como Messias, mas como Salvador, o qual salvará o mundo por sua missão que o levará morte na cruz. Os dois discípulos “ouvem” esta mensagem e a acatam: “seguem” a Jesus. Observa-se muitas vezes que este verbo é entendido, aqui, num sentido primeiramente literal, como “ir após alguém” – neste caso, para conhecer Jesus. 1,38-39 Esta interpretação se sustenta também a partir do v. 38: Jesus se volta e vê os dois discípulos de João seguindo-o. Então pergunta: “Que procurais?”. O “ver” corresponde aos relatos de vocação nos sinópticos (cf. Mc 1,16.19 parr.; 2,14). Já a pergunta “Que procurais?” não se encontra em tais textos. É possível ver nesta pergunta de Jesus toda uma teologia do chamado à fé: o encontro com Jesus não leva à aceitação de uma mensagem alheia ao ser humano, inculcada nele de fora, mas à saciação da mais própria nostalgia do homem78. Também a resposta dos dois discípulos é bem característica de João: o verbo “permanecer” (ménein) é um termo preferencial de João. Já o encontramos na cena da visão e da audição do Batista junto ao Jordão: ele “vê” o Espírito descer sobre Jesus e “permanecer” sobre ele (Jo 1,32s.). Em 1,38, o termo significa “morar”. Isso faz pensar no Prólogo: “E a Palavra se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14). Jesus respondeu à pergunta dos discípulos não simplesmente com uma informação, mas com um convite: “Vinde e vede”. O narrador retoma estes dois verbos para descrever a reação dos dois discípulos: “Eles foram e viram...”. Logo depois, ele retoma o tema do “permanecer”: eles viram “onde morava [= permanecia]*; e permaneceram com ele aquele dia”. O movimento narrativo se desloca do “morar/permanecer” de Jesus para o “permanecer” dos discípulos. Com os olhos fitos em Jesus, os discípulos participam da experiência da comunidade cristã de João: “habitou entre nós, e nós contemplamos a sua glória, glória como do unigênito do Pai, pleno de graça e de verdade” (Jo 1,14). A indicação do tempo “Era por volta da hora décima” aponta em diversas direções. No Evangelho segundo João, momentos importantes na vida e na paixão de Jesus são registrados hora por hora. Para os discípulos, esta hora décima significou o ponto de virada decisivo na vida deles. 1,40-42 As vocações em Jo 1,35-51 são como uma avalanche amontoando sempre mais neve. Pode-se pensar também numa corrida de estafetas, em que cada atleta passa o bastão ao seguinte. Assim, André, um dos dois primeiros chamados, encontra seu irmão, Simão, e lhe diz: “Encontramos o Cristo! (que quer dizer Messias)”, e o leva até Jesus. Em torno desta cena surgem muitas perguntas. A primeira, muito comentada, diz respeito ao “outro discípulo” chamado por Jesus, segundo Jo 1,40s. Para a tradição eclesiástica, ele foi João, o irmão de Tiago. O argumento principal é a tradição paralela dos sinópticos (Mc 1,16-20 parr.), segundo a qual João [filho de Zebedeu]* estava entre os quatro que Jesus chamou com seus primeiros discípulos, ao lado de seu irmão Tiago (não mencionado em Jo 1) e o par de irmãos, André e Pedro. Como a tradição eclesial 78 Cf. na secção seguinte a referência a J. PAINTER, The Quest. Beutler B -51 identifica o apóstolo João com o Discípulo Amado, parece natural identificar o “outro discípulo” com João; em tempos recentes, porém, tal identificação tem sido questionada. Do ponto de vista metódico, parece que se deve questionar a interpretação do Evangelho segundo João a partir de Marcos. Gramaticalmente, deve-se distinguir entre “um discípulo” e “o discípulo”. Isso vale sobretudo para o discípulo mencionado no relato da Paixão (Jo 18,15), no qual muitos veem o Discípulo Amado. Em Jo 1,40 a identidade do “outro discípulo” não parece ter significação particular79. Outro tema hoje interessante é o fato de que os primeiros chamados de Jesus eram irmãos. Especialmente em João aparece uma conexão evidente ente parentesco, amizade e discipulado80. Os vv. 40-41 mencionam uma dupla identificação: André chama a Jesus “o Messias, o Cristo”, e Jesus chama a Simão “Cefas, Pedro”. A primeira identificação causa admiração neste lugar da narrativa. O público leitor se pergunta como André, depois de seu primeiro encontro de poucas horas, pôde concluir que Jesus é o Messias, ainda antes de seus primeiros “sinais”. O problema se resolve quando se leva em conta a perspectiva pós-pascal de João, que pressupõe e sintetiza uma longa evolução até a confissão de fé formulada por André. Neste respeito, o Quarto Evangelho distingue-se claramente dos três primeiros, segundo os quais Pedro chega a confessar Jesus como Messias somente no fim da atividade pública (Mc 8,27-30). Segundo Mateus é neste momento que Simão recebe seu novo nome (cf. Mt 16,17-19); em Marcos, o apelido “Pedro” aparece somente no relato da vocação dos Doze (Mc 3,16s.). Pode-se aceitar seguramente a influência da tradição sinóptica sobre Jo 1,42. Existe uma diferença notável entre a cena de Jo 1,40-42 e os paralelos sinópticos. Nestes, o novo nome de Simão vem unido a uma nova missão (sobretudo em Mt 16,1719; e em Lc 5,1-11, onde o novo nome é ligado à nova missão de Pedro de ser pescador de homens; cf. tb. Jo 21,1-17). Em Jo 1,40-42, a designação de Simão como “Cefas, Pedro” corresponde à de Jesus como Messias. Nos dois casos, isso se refere à pessoa, não à obra. Ao acolher o anúncio de quem é Jesus, o próprio Pedro recebe sua nova identidade. Esse modo de ver corresponde ao de Jo 1,35-39: estar com Jesus e ver onde ele mora precede qualquer empenho a serviço dele. Um paralelo a este modo de ver se encontra já em Mc 3,14s.: “E ele instituiu doze para que estivessem com ele e para que os enviasse a anunciar e a expulsar demônios com autoridade”. Não se exclui que exista conexão literária entre os dois textos. A vocação de mais dois discípulos (1,43-51) A secção que agora se segue é destacada da anterior pela fórmula introdutória “na manhã seguinte”. Fórmula semelhante encontra-se em 2,1 (“No terceiro dia”). Por isso podemos considerar 1,43-51 como unidade textual autônoma. Esta impressão se corrobora ao olharmos os personagens (discípulos novos, Jesus) e a ação mesma: tratase de novos primeiros encontros de futuros discípulos com Jesus. Com base no conteúdo e na forma (o “encontrar” mais outro discípulo), podem-se distinguir os vv. 43-44 e 45-51. Jesus encontra Filipe e este, Natanael, apresentando-o depois a Jesus. A última palavra de Jesus, no v. 51, rompe o quadro de uma cena de diálogo e abre o horizonte para um círculo de ouvintes mais amplo (em última instância, a comunidade leitora), mediante o uso do plural: “Vereis”. 79 80 Cf. NEIRYNCK, The Anonymous Disciple. Cf. A. DESTRO; M. PESCE, Kinship, Discipleship, and Movement. Beutler B -52 Quanto à forma, o chamamento de Filipe no v. 43 se distingue dos outros encontros de discípulos com Jesus em Jo 1,35-51. Não um discípulo (cf. vv. 41.45), mas Jesus mesmo “encontra” o novo discípulo. Não há outra caracterização de Jesus. Ele fala com plena autoridade e chama Filipe para o seguimento. Não se diz como Filipe reage ao chamado, mas isso pode concluir-se de seu comportamento: ele anuncia a Natanael que ele encontrou aquele sobre o qual escreveram Moisés e os profetas (v. 45). O primeiro encontro de Natanael com Jesus segue o mesmo esquema que se pode observar nos vv. 35-42: um dos dois discípulos “encontra” seu irmão Simão, diz a ele que encontrou o Messias e o leva a Jesus. De modo igual, Filipe, depois de seu chamamento, diz a Natanael que ele “encontrou” aquele de quem escreveram Moisés e os profetas e, depois de ter vencido o ceticismo de Natanael, o leva até Jesus. Para esclarecer a diferença entre ambas as formas de chamamento ou de “primeiro encontro com Jesus”, os estudiosos propõem essencialmente dois modelos. Segundo J. L. Martyn81, João teria retrabalhado o v. 43. Este, em sua forma original, teria possuído a forma de “um discípulo encontra outro”. Em 1,41 se diz que André encontrou “primeiro” seu irmão Simão; esperar-se-ia que, depois, André encontrasse outro. Em vez disso, o evangelista apresentou Jesus encontrando Filipe. Martyn vê sua hipótese confirmada nisto, que se explicaria mais facilmente que André quisesse voltar á Galileia do que Jesus partir para essa parte da terra de Israel. J. Painter82 prefere, com a maioria dos autores, o outro modelo. No v. 43 teríamos um “relato de vocação” na forma que se aproxima da que encontramos nos sinópticos (Mc 1,16-20 parr.; 2,14; 3,13-19 parr.; Lc 5,1-11). Sob a influência da escola de Lovaina, número crescente de pesquisadores conta, hoje, com a influência direta dos evangelhos sinópticos no Quarto Evangelho. João teria reelaborada principalmente Mc 1,16-20 e teria dado a estes relatos de vocação uma forma nova, a de “histórias de busca” (“quest stories”). Tais histórias seguem o seguinte esquema: uma pessoa busca alguém ou algo e o “encontra”, e então segue uma palavra final do protagonista principal. 1,43-44 O breve relato da vocação de Filipe destaca-se em relação ao contexto pelo modo como começa: “NN. encontrou um discípulo nominalmente mencionado e disse-lhe”. Já no v. 41 notamos este esquema. No início do v. 43 está uma indicação temporal que destaca as duas últimas vocações de discípulos das anteriores – talvez em função do esquema de sete dias que vai até Jo 2,1. A intenção de Jesus de partir para a Galileia e a palavra de vocação que ele dirige a Filipe mostram que é ele quem age. Nisso, a soberania de Jesus fica tão salientada que uma descrição da reação de Filipe ao chamado de Jesus pode ser dispensada. Na realidade, qual foi sua reação pode-se deduzir dos versículos seguintes. O narrador informa, num comentário analéptico, que Filipe vem de Betsaida, a cidade de André e de Pedro. A menção à origem de Filipe se encontra repetida em 12,21. Ali se trata da vinda dos gregos a Jesus e do fato de Filipe ser o intermediário. Isto pode ter sido importante para João, já que Betsaida se encontrava no lado oriental da foz do Jordão no lago de Genesaré; a cidadezinha pertencia à área de Herodes Filipe e conhecia forte influência helenista. Isso certamente era significativo para o público 81 J. L. MARTYN, The Gospel of John in Christian History, 29-54, representado de modo extenso em J. PAINTER, Quest, 145-148. 82 J. PAINTER, loco citato. Beutler B -53 leitor de João. Além disso, os nomes de Pedro e André são gregos. André colabora na cena de Jo 12,21-36. Nos sinópticos, Betsaida aparece em Mc 6,45; 8,22; Lc 9,19; 10,14 par. Mt 11,21, sem menção a discípulos chamados por Jesus. 1,45-46 Os versículos finais do capítulo, que contam como Natanael é chamado à fé, podem ser divididos no diálogo de Filipe e Natanael (vv. 45-46) e o de Jesus e Natanael (vv.47-51). Este último diálogo se deixa dividir no caminho de Natanael à fé (vv. 47-49) e a palavra final de Jesus, v. 51, preparada pelo v. 50. Encontra-se, nesta parte, uma série de enunciados cristológicos, de forma cumulativa, preparando o auge que é a palavra sobre o Filho do Homem no v. 51. Jesus é “aquele sobre quem escreveram Moisés, na Lei, e os Profetas” (v. 45), é chamado de “Rabi” e, depois, reconhecido como “Filho de Deus, Rei de Israel” (v. 49). O ápice e ponto final é a autodesignação de Jesus como “Filho do Homem” (v. 51). Inicialmente prepara-se o encontro de Natanael com Jesus. Adota o esquema do v. 41, que foi modificado no v. 43. Filipe “encontra” Natanael e lhe anuncia que ele e seus companheiros “encontraram” aquele de quem escreveram Moisés, na Lei, e os profetas. Está presente aqui a visão joanina de que não apenas esta ou aquela passagem da Escritura aponta para Jesus, mas a inteira Escritura de Israel, quando bem entendida, dá testemunho de Jesus (cf. Jo 5,39)83. Moisés escreveu a respeito dele (Jo 5,46). Se os dois discípulos no sepulcro tivessem compreendido as Escrituras, não teriam procurado o entre os mortos aquele que vive (Jo 20,9). Para Natanael, o escândalo consiste nisto, que o protagonista do tempo final, esperado por Israel, vem de Nazaré, lugar totalmente insignificante em perspectiva bíblica e aparentemente mal afamado, pois Natanael pergunta: “De Nazaré pode sair alguma coisa boa?”. Contra um argumento desses, nada como a experiência do encontro pessoal, que afasta o preconceito: “Vem e vê” – eco do “Vinde e vede” do v. 39. 1,47-49 Os vv. 47-51 consistem num diálogo entre Jesus e Natanael, em que duas vezes uma palavra de Jesus é seguida por uma de Natanael, antes que Jesus encerre o diálogo. Por causa do tema, os vv. 50-51 se deixam distinguir como uma breve subsecção. Filipe disse a Natanael: “Vem e vê” (v. 46). Natanael vem até Jesus, mas, antes de ele “ver” quem é Jesus, este é quem o “vê” chegar. A cena lembra o encontro dos primeiros discípulos com Jesus segundo os vv. 35s., quando João Batista vê Jesus chegando e aponta para ele. Encontramos aqui a mesma injunção: “Vê!” (íde). Jesus tem uma visão definida de Natanael e a expressa. Natanael é um “verdadeiro israelita, em quem não há falsidade”. A expressão de Jesus se insere numa série de textos nos quais aparece, em João, uma valorização positiva de Israel. A estes pertence também a palavra final de Natanael: “Tu és o rei de Israel” (v. 49) – que se repete em 12,13. Textos semelhantes que mencionam o termo “Israel” são 1,31 e 3,10. Ajudam para situar melhor a frequente utilização crítica da expressão “os judeus” em João, pois estes são os membros e lideres do povo judeu que recusam a fé, mas não “Israel”84. 83 Vgl. J. BEUTLER, Der Gebrauch von “Schrift”; M. J. J. Menken, Old Testament Quotations; PÄPSTLICHE BIBELKOMMISSION, Israel und seine Heilige Schrift; M. LABAHN, Jesus und die Autorität der Schrift. 84 Vgl. J. BEUTLER, The Identity. Beutler B -54 Assim como Natanael reage à palavra de Filipe com uma pergunta cética, ele reage de modo cético à palavra elogiosa de Jesus (v. 48). O narrador valoriza positivamente essa atitude crítica, como mostra a palavra elogiosa de Jesus. Natanael não podia entender que Jesus possuía o conhecimento dos corações. Jesus o havia visto debaixo da figueira antes que Filipe o chamasse. Assim, ele exibe poder supra-humano, concedido por Deus. É isso que enseja em Natanael a exclamação: “Rabi, tu és o Filho de Deus, tu és o Rei de Israel!” O tratamento “Rabi” insere Jesus entre os mestres de Israel, mas o título duplo supera de muito esse nível e corresponde ao credo da comunidade joanina. Já no primeiro encontro, Natanael alcança a visão de fé à qual os leitores de João chegarão depois do fim do evangelho (cf. Jo 20,31). Mais claramente do que nos versículos anteriores se mostra, aqui, que o relato das vocações dos discípulos em Jo 1 está escrita numa perspectiva pós-pascal. O título “Filho de Deus” tem raízes antigas na religião greco-romana e também na oriental (cf. acima, a respeito da filiação divina, Jo 1,12). Mas não falta tradição judaica para este tema. Significativa é a remissiva de Jesus à “Lei” em Jo 10,34-36 (no caso, ao Sl 82,6), para legitimar sua pretensão de ser “Filho de Deus” ou até Deus mesmo. De acordo com estudos recentes existia uma tradição judaica segundo a qual no monte Sinai os israelitas receberam o privilégio de serem filhos de Deus e imortais, mas, pelo pecado, perderam esse privilégio. Jesus teria então arrogado novamente para si esse privilégio de Israel85. A confissão de Jesus como “Rei de Israel” permanece reservada ao Evangelho segundo João no Novo Testamento. Segundo o relato da Paixão nos sinópticos (Mc 15,32//Mt 27,42), os sumos sacerdotes, escribas e anciãos citam este título para zombar de Jesus crucificado, desafiando-o a descer da cruz se possui essa autoridade régia. No Quarto Evangelho (Jo 12,13), a multidão aclama Jesus por ocasião de sua entrada em Jerusalém com este título, ausente do modelo sinóptico (Mc 11,9s. par.). A multidão, portanto, apropria-se deste título. E Natanael, no texto aqui considerado, se mostra precursor dessa confissão. Ao mesmo tempo, ele formula a confissão de Jesus como “o Cristo, o Filho de Deus” na comunidade leitora de João (Jo 20,31). No Evangelho segundo João, é preciso distinguir entre o Messias judaico, o dos samaritanos e o cristão. Muitas vezes fala-se no Evangelho segundo João do Messias no sentido da expectativa messiânica de Israel no tempo do Segundo Templo. Neste uso prevalece a imagem de um Messias da casa de Judá como rei e salvador escatológico de Israel. Para esta imagem do Messias compare-se Jo 1,19-21.25 com 1,27, onde o Batista fala de “aquele que há de vir”; e ainda Jo 7,26.31.41-42; 9,22; 10,24; 12,34, nas controvérsias sobre a identidade de Jesus. Distinga-se desse Messias aquele dos samaritanos. Assim, a mulher da Samaria se pergunta se Jesus não seria “aquele que há de vir”, com possível alusão ao Taheb, o Messias dos samaritanos (Jo 4,29). No sentido cristão encontramos a designação de Jesus como “Cristo” em João quase sempre em conexão com o título “Filho de Deus”. Aqui percebemos uma evolução progressiva desde a frase “encontramos o Messias” (Jo 1,41) até a confissão de Natanel “Rabi, tu és o filho de Deus, tu és o Rei de Israel” (1,49). Ambos os títulos aparecem juntos na confissão de Marta (11,27) e também no primeiro final do Evangelho segundo João (20,31). A dignidade régia de Jesus, como já dissemos, é 85 Vgl. J. BEUTLER, “Ich habe gesagt”. Beutler B -55 reconhecida também pelos romeiros em Jerusalém (12,13), e até mesmo por Pilatos (Jo 10,12,15-19: o letreiro da cruz). Para os cristãos, “Jesus Cristo” torna-se o nome próprio de Jesus e a síntese de sua missão (cf. Jo 1,17; 17,3). 1,50-51 Poderíamos pensar que a confissão de Natanael “Rabi, tu és o filho de Deus, tu és o Rei de Israel” fosse o auge das designações cristológicas de Jo 1,35-51. Mas isso não é o caso. Jesus promete a Natanael que ele verá coisas maiores ainda do que a revelação dos segredos de seu coração: “Vereis o céu aberto e os anjos de Deus subindo e descendo sobre o Filho do Homem!”. Quem é este Filho do Homem? Neste lugar alude-se aparentemente a Gn 28,12: a escada do céu, pela qual Jacó vê os anjos de Deus subirem e descerem. Enquanto no hebraico “nela/nele” (bô) se refere à escada, João aplica esse adjunto adverbial a Jesus. R. Schnackenburg86 distingue três categorias de textos que falam do Filho do Homem em João: – o Filho do Homem que vem do céu e para lá volta (Jo 3,13; 6,62); – o Filho do Homem enaltecido (Jo 3,14; 8,28; 12,34c); – o Filho do Homem glorificado (Jo 12,23; 13,31s.). Com os textos do cap. 6 que falam do Filho do Homem como doador do celeste pão da vida, nosso texto de 1,51 insere-se no primeiro grupo, que fala do Filho do Homem que vem de Deus, permanece unido a Deus e a Deus volta. A fonte imediata das representações joaninas do Filho do Homem encontra-se nos evangelhos sinópticos e, ali, sobretudo nos textos que falam do sofrimento e morte iminentes e de sua ressurreição. Além disso, mostra-se, em João, a influência dos textos veterotestamentários que falam do “Servo de Deus” e de seu “enaltecimento” e “glorificação” vindouros (Is 52,13 LXX). Em João, o Servo é identificado com o Filho do Homem87. Permanece aberta a pergunta de quando, segundo Jo 1,51, os discípulos (ou os leitores) verão as coisas maiores e os anjos subirem e descerem sobre o Filho do Homem. Seria natural pensar aqui no relato imediatamente subsequente, as bodas de Caná, que, decerto, deve ser entendido como o início da revelação de Jesus em seus sinais. De fato, neste sinal, os discípulos contemplam a gloria de Jesus, de modo que podem chegar à fé (2,11). Esta visão de sua glória se repetirá (cf. Jo 1,14) e se aprofundará até a percepção de sua glória no enaltecimento junto ao Pai (cf. Jo 13,31s.; 17,24). III No relato das vocações dos discípulos em Jo 1,35-51 reconhecemos dois modelos da origem do discipulado segundo João. Discípulos chegam a Jesus por causa do testemunho de outros discípulos que o encontraram primeiro. Mas há também a soberania de Jesus, que sponte sua se dirige a alguém e o convida a segui-lo. A livre iniciativa de Jesus se mostra na vocação de Filipe em 1,43. Por iniciativa sua, ele “encontra” Filipe e o chama ao seguimento. Manifesta-se aqui um elemento indispensável das vocações à fé e ao seguimento, e este elemento é pressuposto também nos outros relatos. Também onde há mediação humana, Jesus é quem chama. 86 87 R. SCHNACKENBURG I 412. Cf. J. BEUTLER, Greeks; ID., Griechen. Beutler B -56 Nas outras cenas de vocação, em nossa secção, a mediação humana ocupa o primeiro plano. João Batista encaminha os dois primeiros discípulos a Jesus; um deles, André, encaminha seu irmão Cefas/Pedro; Filipe, depois de sua vocação, encaminha Natanael. Os pressupostos humanos ajudam aqui para a transmissão da fé. André, o “outro discípulo”, Pedro e Filipe vêm do mesmo lugar, Betsaida; e André e Pedro são irmãos. Jesus, por seu lado, leva em consideração limites e preconceitos humanos na vocação dos primeiros discípulos. Isso se vê na vocação de Natanael. Este expressa, de imediato, preconceitos contra um homem que vem de Nazaré, e isso se aceita. Jesus contrapõe ao ceticismo de Natanael um julgamento positivo a respeito dele. Também o ceticismo ulterior de Natanael, quando perguntando de onde Jesus o conhece, é superado; e então Natanael pode formular sua confissão de fé. Assim, Natanael é levado a sério, com todos os seus preconceitos, e isso encoraja os leitores do Quarto Evangelho para, passo a passo, se deixar conduzir acima de seus possíveis preconceitos até a confissão de sua fé em Jesus Cristo. Fundamental é, no relato das vocações dos discípulos em Jo 1,35-51, a pergunta de Jesus aos dois futuros discípulos no v. 38: “Que procurais?”. Jesus não pensa em primeiro lugar em realizar algum projeto próprio. Ele deseja atender o desejo mais profundo da pessoa que ele encontra e que ele quer chamar para seu seguimento. Quando os discípulos dizem: “Mestre, onde moras/permaneces?”, ele os convida a vir com ele e a ver seu lugar de permanência. E eles “permanecem” com ele naquele dia. Atendendo a nostalgia de dos seus futuros discípulos Jesus lhes dá uma nova casa, deixando-os participar de sua “permanência”. Também nisso as leitoras e leitores do Evangelho segundo João poderão sentir-se tocados, em todos os tempos. Não se lhes impõe uma existência nova, mas eles são convidados a experimentar, na comunidade e com Jesus, a saciação de suas mais profundas nostalgias. 4. O primeiro sinal de Jesus em Caná (2,1-12) 2 1 E no terceiro dia, houve uma festa de casamento em Caná da Galileia, e a mãe de Jesus estava lá. 2 Também Jesus e seus discípulos foram convidados para a festa de casamento. 3 Quando faltou vinho, a mãe de Jesus lhe disse: “Eles não têm vinho!” 4 Jesus lhe respondeu: “Mulher, que desejas de mim? A minha hora ainda não chegou”. 5 Sua mãe disse aos que estavam servindo: “Fazei tudo o que ele vos disser!” 6 Estavam ali seis talhas de pedra, comportando dois ou três metretas, para os ritos judaicos de purificação. 7 Jesus disse aos que estavam servindo: “Enchei as talhas de água”! E eles as encheram até a borda. 8 Então disse: “Agora, tirai e levai ao encarregado da festa”. E eles levaram. 9 O encarregado da festa provou da água mudada em vinho, sem saber de onde viesse, embora os serventes que tiraram a água o soubessem. Então, chamou o noivo 10 e disse-lhe: “Todo o mundo serve primeiro o vinho bom e, quando os convidados já estão ébrios, serve o inferior. Tu guardaste o vinho bom até agora”. 11 Este início dos sinais, Jesus o realizou em Caná da Galileia; e manifestou sua glória, e os seus discípulos creram nele. 12 Depois disso, Jesus desceu para Cafarnaum, com sua mãe, seus irmãos e seus discípulos, e lá permaneceram por não muitos dias. I A narrativa da mudança de água em vinho nas bodas de Caná encerra a vocação dos primeiros discípulos e, ao mesmo tempo, abre uma nova secção, que se estende, no Beutler B -57 mínimo, até o segundo sinal de Jesus em Caná (a cura do filho do funcionário, Jo 4,4654)88. No final de Jo 1,35-51 ressoou: “Coisas maiores que estas verás ... vereis o céu aberto e os anjos de Deus subindo e descendo sobre o Filho do Homem!” (Jo 1,50s.). Uma primeira realização desse anúncio encontra-se, precisamente, no primeiro sinal de Jesus como manifestação de sua glória diante de seus discípulos (2,11). Por outro lado, este sinal inaugura, no Evangelho segundo João, uma secção inteira, que os autores gostam de chamar “o livro dos sinais” (Jo 1–12), com a ressuscitação de Lázaro (Jo 11,1-44) como seu auge e encerramento. Prescindindo dessa função de dobradiça, nosso texto revela também pontos de contato com algumas secções em Jo 13–21. Michèle Morgen89 aponta os contatos entre a refeição comunitária em 2,1-11 e a última ceia de Jesus com os seus, em Jo 13,1-30, bem como a importância de tais refeições no judaísmo e no cristianismo antigos. Além disso, a presença da mãe de Jesus nas bodas de Caná forma inclusão com a cena ao pé da cruz, onde a mãe está novamente presente e Jesus a trata com o mesmo termo, “Mulher”, que parece distante, mas só em aparência (Jo 19,25-27). Maria, cujo nome não é mencionado, é percebida em seu papel feminino e histórico-salvífico, que transcende a individualidade. O tema da glória de Jesus aponta de antemão para sua consumação como aquele que será glorificado na sua morta na cruz e na ressurreição. A narrativa da mudança de água em vinho nas bodas de Caná se tornou, mais que outros textos em João, objeto de pesquisa e hipótese. Até recentemente discutiram-se problemas literário-críticos, de modo especial quanto ao diálogo, de difícil compreensão, entre Jesus e sua mãe, nos vv. 3-4, cuja aporia se procurou resolver pela distinção de fontes e camadas. Controvertido é também o fundo histórico-religioso da narrativa: deve ser procurado principalmente na Bíblia (o simbolismo das núpcias de Deus com seu povo e a refeição sagrada) ou no ambiente greco-helenista (o paralelo do milagroso fornecimento de vinho do deus Dioniso)? Tais perguntas serão tratadas num excurso adiante. Independentemente de sua pré-história, nosso texto como está aí recebe diversas explicações. Para alguns autores, o relato do milagre do vinho em Caná tem, antes de tudo, um sentido cristológico. Outros propõem um sentido mariano, outros, ao menos ou também, um sentido feminista. O que preferir? Tratando dessas questões, faz sentido partir do exame semântico do próprio texto. Podem-se distinguir quatro campos semânticos que dão corpo ao texto: as núpcias e sua celebração, a refeição, as relações humanas no diálogo e a sequência temporal de “antes” e “depois” (água/vinho, vinho inferior/vinho bom, carência/abundância). Isso será tratado na análise da narrativa. A construção da secção se percebe, sobretudo, na sequência dos diálogos. Os vv. 1-3a constituem a introdução narrativa da história. Nos vv. 3b-4 temos o diálogo entre Jesus e sua mãe, seguido, no v. 5, de uma palavra da mãe aos auxiliares. O v.6 prepara narrativamente o milagre. Este se inicia no v. 7 com uma ordem de Jesus aos auxiliares, seguida da execução. Segue uma segundo ordem de Jesus, com sua execução, no v. 8, em que aparece também o responsável da festa. Este, no v. 9, constata a abundância surpreendente de vinho excelente, manda chamar o esposo e observa que ele guardou o vinho bom até esse momento (v. 10). Então a história se encerra, não com uma palavra 88 R. E. BROWN, I, p. XI, vê em Jo 2-4 uma subsecção própria, “De Caná a Caná”. F. J. MOLONEY, 62S., reconhece nisso uma construção simétrica emoldurada pelos dois sinais de Caná, mostrando Jesus primeiro em diálogo com um judeu em Jerusalém e, depois, com os samaritanos. M. KIERSPEL, Religion, vê antes uma construção quiástica, em cujo centro se encontram o diálogo e os discursos de Jo 3. 89 M. MORGEN, Le festin. Beutler B -58 de Jesus, mas com um comentário teológico do evangelista, que expõe o sentido profundo do acontecido (v. 11). A secção é encerrada por uma notícia sobre a partida de Jesus de Caná a Cafarnaum, no v. 12 90. II 2,1-3a Os versículos iniciais expõem a situação da narrativa, a começar com as indicações de tempo e lugar. O “terceiro dia” pode ser contado a partir do primeiro dia da vocação dos discípulos em 1,35 ou, mais provavelmente, a partir do indício cronológico anterior, em 1,43. Caná da Galileia é mencionada também em 4,46 e se mostra um dos lugares preferenciais da atividade de Jesus91. Surpreende que a mãe de Jesus seja mencionada antes dele; o texto não explica isso, nem histórica, nem teologicamente. Na história inteira não se menciona a noiva; a mãe de Jesus, de certo modo, ocupa esse lugar, o que aponta para o seu o papel histórico-salvífico. A carência do vinho prepara o tema dominante da narrativa. Os discípulos são mencionados aqui como testemunhas do acontecimento, tendo competência de compreender o sentido profundo retrospectivamente; dentro da narrativa, eles não têm nenhuma função. 2,3b-4 A narrativa propriamente inicia-se por um diálogo entre Jesus e sua mãe. Esta toma a palavra por primeira, o que corresponde ao papel de protagonista na narrativa, como já observamos, e chama a atenção de Jesus para fato de que o vinho começa a faltar. A resposta de Jesus, aparentemente dura quando tomada literalmente, tem paralelos veterotestamentários em Jz 11,12; 2Sm 16,10; 19,22; 1Rs 17,18 92. “Ainda não chegou a minha hora” deve ser entendido como afirmação e não como pergunta (“A minha hora acaso ainda não chegou?”)93. De imediato, Jesus parece não atender o pedido de sua mãe para acudir ao jovem casal. Deste modo, o narrador liga a glória de Jesus em última instância à hora de seu enaltecimento na cruz em direção do Pai. Cf. Jo 12,23; 13,31s. 2,5 Maria age como se não tivesse ouvido a resposta de Jesus. Ela dá ordem aos que estão servindo para que encham de água as talhas de pedra e, destarte, prepara o caminho para o milagre. Na configuração atual do texto, sua atitude pode significar também que a revelação de Jesus pode começar a qualquer momento, talvez como antecipação da glória vindoura de Jesus em sua hora. 2,6-8 Os versículos que agora se seguem relatam o diálogo entre Jesus e os que servem à mesa. Jesus toma as providências para o milagre da mudança de água para vinho que vai acontecer. As talhas vazias devem imediatamente ser enchidas com água. A observação acerca dos costumes da purificação dos judeus sugere a seqüência 90 M. GIRARD, Cana, vê uma construção simétrica em Jo 2,1-12. S. BERGLER, Von Kana nach Jerusalem, 30, fundamenta novamente a localização deste lugar em Khirbet Kaná, um lugar atualmente abandonado ao norte de Kafr Kenna, que hoje é mostrado aos peregrinos. 92 Textos alegados por T. STRAMARE, La risposta, 185, o qual dá à resposta de Jesus um sentido positivo: “O que é meu, é teu”. 93 Também com esta interpretação, T. STRAMARE (cf. nota anterior) se encontra bem sozinho. 91 Beutler B -59 “antigo/novo” na ordem da salvação, que é característica da narrativa inteira94. Remetese à abundância da água que é tornada disponível e que prepara a abundância do vinho a ser servido. Jesus ordena aos auxiliares que levem ao responsável da mesa algo da água com que encheram as talhas. O texto dá a impressão de que a água só se transforma em vinho no momento de ser tirada das talhas e levada para a mesa; o enchimento das talhas ainda não produziu o milagre95. 2,9-10 Do diálogo seguinte entre o responsável da mesa e o esposo conclui-se que aconteceu um milagre. Nenhum dos dois parece saber de onde vem este vinho excelente, que foi guardado até o fim, contrariamente aos costumes do país. Quem tem a última palavra não é Jesus, mas o responsável da mesa. Isso provavelmente tem algo da “ironia joanina”. Em outros “apotegmas”, a última palavra está, via de regra, com o protagonista principal – nos evangelhos, normalmente, Jesus. Será que isso significa que o responsável da refeição é Jesus? 2,11 O fim da narrativa é formulado pelo evangelista. Como dissemos, nem o responsável da mesa, nem o esposo sabiam de onde surgiu o vinho bom. Só os discípulos de Jesus parecem ter percebido o que Jesus fez. Neste primeiro “sinal” revelou-se, diante dos olhos deles, a “glória” de Jesus como Cristo e Filho de Deus. Eles viram “coisa maior”, como tinha sido anunciado a Natanael (1,50) – e verão mais ainda: “quando o Filho do Homem subir para onde ele estava primeiro” (Jo 6,62). As leitoras e leitores estão sendo convidados a participar nesta experiência da glória do Filho do Homem. Assim poderão confessar, com o hino de abertura do evangelho: “E a Palavra se fez carne e habitou entre nós, e nós contemplamos a sua glória, glória como do unigênito do Pai, pleno de graça e de verdade” (Jo 1,14). 2,12 Num versículo de transição, o narrador remete ainda uma vez ao início da narrativa (vv. 1-2). Jesus parte, e, a seu lado, mencionam-se sua mãe, seus discípulos e também os seus irmãos, que, pelo que parece, estiveram entre os convidados da festa. Os irmãos ocupam no Quarto Evangelho um papel muito subalterno (cf. ainda Jo 7,3). É só com os discípulos que as leitoras e leitores se podem identificar no seu caminho à fé. Cafarnaum encontra-se no nosso evangelho, fora desta secção, apenas ainda em Jo 6 (vv. 17, 24 e 59), como cenário do discurso de Jesus sobre o pão da vida, e não possui em João um peso comparável ao que tem nos sinópticos. Para João, é uma localidade na Galileia, de onde Jesus parte para suas viagens de peregrinação a Jerusalém. Excurso: A origem da história do milagre do vinho em Caná A história do milagre do vinho em Caná se encontra isolada na tradição evangélica. A leitura atenta revela uma série de mal-entendidos. Durante muito tempo, esses problemas eram examinados com o método literário-crítico; tentava-se esclarecer as tensões pela distinção de fontes e camadas. Discutiam-se, entre outras coisas, o lugar original desse relato no Evangelho segundo João, a pertença da mãe e dos discípulos à forma originária do relato, o caráter original do diálogo de Jesus e sua mãe nos vv. 3-4, 94 Para a interpretação destas categorias temporais no sentido da história da salvação, em Jo 2,1-11, cf. B. OLSSON, Structure and Meaning. O “antes” e “depois” é destacado também por M. GIRARD, Cana, 102. 95 Vgl. dazu B. OGNIBENE, Lʼignoranza. Beutler B -60 a referência ao rito de purificação judaico e a numeração dos sinais no versículo conclusivo. W. Lüthgetmann apresentou de modo cabal essas discussões literáriocríticas, de modo que não precisamos repeti-las aqui96. Parece-nos mais importante a pergunta como se pode esclarecer historicamente o núcleo da narrativa, o milagre do vinho numa festa de casamento. Houve precedentes? Onde? A pesquisa move-se fundamentalmente em duas direções. Uns remetem aos precedentes e paralelos bíblicos. R. E. Brown, entre outros, os alista97. No interior do Novo Testamento remete-se, como paralelo da mudança de água em vinho, antes de tudo à multiplicação milagrosa dos pães. Esta tradição encontra-se não só nos sinópticos (Mc 6,32-34 parr.; Mc 8,1-9 par.), mas no próprio Quarto Evangelho (Jo 6,1-15). Os estudiosos observam, além das concordâncias, também as diferenças. No caso da multiplicação dos pães, Jesus dispõe de uma matéria dada, que ele aumenta, enquanto, nas bodas de Caná, ele proporciona vinho que antes não havia. Aliás, trata-se de vinho, não de pão. Restam diferenças consideráveis. Algumas histórias do ciclo dos grandes profetas Elias e Eliseu segundo os livros dos Reis mostram proximidade com o texto de Jo 2,1-11. Nesse ciclo encontra-se, em 2Rs 4,42-44, um precedente para a multiplicação dos pães: Eliseu faz distribuir a cem pessoas vinte pães de cevada e alguns grãos frescos, e eis que é suficiente e até tem de sobra. Aparentados são também o fornecimento milagroso de farinha e azeite à viúva de Sarepta pelo profeta Elias (1Rs 17,1-6) e de azeite, a outra viúva, por Eliseu (2Rs 4,1-7). Todos esses milagres são da categoria dos “milagres-presente”, à qual também é atribuída a transformação de água em vinho nas bodas de Caná pela maioria dos estudiosos. Mas observam-se diferenças notáveis entre as histórias veterotestamentárias e Jo 2,1-11: em nenhuma delas trata-se de vinho, e em todas elas o presente é dado a partir de uma matéria disponível, que é aumentada. Outros precedentes bíblicos ilustram o tema do banquete escatológico. A imagem das núpcias para representar a relação entre Deus e seu povo já se encontra no tempo pré-exílico. O texto mais antigo é Os 2,1–3,5: depois da infidelidade de Israel, surge uma nova fidelidade, que é dom de Deus. Os mesmos temas ocorrem em Ez 16. Nos períodos exílico e pós-exílico, as núpcias tornam-se símbolo da aliança de amor entre Deus e seu povo no tempo messiânico (Is 54,4-8; 62,4-5)98. O próprio Jesus usa as imagens do banquete e das núpcias para descrever a salvação que está chegando (Mt 8,11; 22,1-14; Lc 22,16-18)99. As núpcias aparecem como imagem da plenitude messiânica no Apocalipse joanino (Ap 19,9). Para o vinho como elemento do banquete escatológico, veja-se Is 25,6. Todos esses elementos devem ser observados ao reconstruir o pano de fundo de Jo 2,1-11. Chamou nossa atenção a ausência da esposa e a presença da mãe de Jesus, que é chamada de “mulher” (Jo 2,4). Assim pode-se atribuir à história um sentido simbólico: no início de sua vida pública, Jesus celebra com seus discípulos a aurora de uma nova era na história da salvação, o início de uma aliança nova e eterna, mediante a imagem do banquete nupcial. A alternativa ou, antes, a complementação da derivação das bodas de Caná de modelos bíblicos, é a referência aos modelos helenistas. Apesar dos argumentos 96 Cf. W. LÜTGEHETMANN, Die Hochzeit von Kana, 41-122. Cf. R. E. BROWN I 101-110. 98 A relevância deste motivo para 2,1-11 é tratada por J. VARGHESE, Imagery, 39-97. 99 Z. GARSKÝ, Wirken Jesu, 125-150, percebe muitas relações entre Mc 2,18-22 par. e Jo 2,1-11. 97 Beutler B -61 contrários alegados por E. Noetzel100, número crescente de autores conta com a influência do culto de Dioniso em nosso texto, assim como já R. Bultmann havia proposto em seu comentário de João. Mais recentemente deve-se mencionar aqui uma contribuição do famoso professor de Novo Testamento de Tubinga, M. Hengel101, e também a dissertação de Frankfurt de Z. Lüthgetmann102. Para simplificar, permitimo-nos apresentar a influência do culto de Dioniso sobre Jo 2,1-11 segundo seu tratamento na RAC103: “Já a tradição da Grécia clássica conhece Dioniso como doador de vinho: de repente, marinheiros nadam nele (Hymn. Hom. Bacch. 35-37 [77 Allen]), assim como os bacchi em êxtase haurem leite e mel de um rio (Platão, Ion 534A). Segundo Eurípides o deus deixa brotar da terra uma fonte de vinho quando uma bacante finca o bastão de Tiro na terra (Bacch. 706s.); leite, vinho e mel fluem onde o deus põe o pé na terra (ibid. 142s., cf. 423s. 651s. 773s.), sim, ele mesmo está presente no vinho (284s.). Segundo Diodoro da Silícia, uma fonte em Teos produz vinho em intervalos regulares, o que os habitantes de Teos valorizam como prova de que Dioniso nasceu na cidade deles (Diod. Sic. 3,66, 3). Dois outros textos pertencem na realidade ao século II, mas contêm tradições que podem ser mais antigas: segundo Luciano, os marinheiros encontraram perto das Colunas de Hércules uma inscrição: ‘Até aqui chegaram Hércules e Dioniso’. Na proximidade jorrava um rio de vinho precioso como o de Quios. Isso valia como sēmeîon de uma presença de Dioniso (Ver. Hist. 1,7). Segundo Pausánias, os sacerdotes colocam na festa de Tiena no templo de Dioniso em Êlis três cântaros vazios e lacram o templo à vista das testemunhas; na manhã seguinte, os cântaros se encontram cheios de vinho precioso (6,26,1s.). Em Andros, cada ano na festa de Dioniso, vinho escorre do seu templo. A mesma tradição é conhecida de C. Plínio, o Antigo, já no século I d. C., para as nonas de janeiro; a festa se chamava Theodosía (Hist. Nat. 2,231). Tenha-se presente, porém, que a própria saga grega da origem de Dioniso tem um pé no Oriente. Dioniso é o filho de Semele, que é a filha do filho régio Cadmos de Tebas, que de Tiro (ou Sídon) veio para a Grécia. Moedas gregas da Siro-Palestina exibem motivos ligados a Dioniso. Isso se verifica em Citópolis (Bet Shean), cidade situada na beirada da Galileia, que se considerava cidade do nascimento e da primeira infância de Dioniso (cf. tb. Plínio, Nat. hist. 5,74). Um texto de Aquiles Tácio desloca para Tiro a legenda ática do dom da videira por Dioniso a um pastor hospitaleiro (Leuc. et Clyth. 2,2,1-6). Por trás desse Dioniso deve-se ver, provavelmente, uma divindade da vegetação do Oriente antigo, que Ovídio atesta para a Frígia (Met. 8, 879-683). Assim pode-se com M. Hengel, que reúne estes dados [...]104, suspeitar uma origem oriental antiga por trás da tradição do milagre de Caná.” Quando, em nossa história, Jesus, à maneira de Dioniso, talvez apareça como dispensador de alegria e abundância, essa visão combina com a que colhemos do Antigo Testamento. Também aqui Jesus proporciona alegria experimentada corporalmente, no banquete nupcial que ele torna possível. 100 E. NOETZEL, Christus und Dionysos. M. HENGEL, The Interpretation of the Wine Miracle (em alemão: Der “dionysische”Jesus). 102 W. LÜTGEHETMANN, Die Hochzeit von Kana. Vgl. seitdem u. a. S. BERGLER, Von Kana in Galiläa nach Jerusalem, 80-140; W. EISELE, Jesus und Dionysos. Este amplia a comparação com o mito de Dioniso aos domínios vinho, bodas, mãe (ama), discípulos. 103 J. BEUTLER, Johannes-Evangelium (u. –Briefe): 652s. Aqui conforme: ID., Johannesevangelium, Johannesbriefe, in: ID., Neue Studien, 30s. 104 Cf. supra, nota 101. 101 Beutler B -62 III No início da vida pública de Jesus está, em João, não um apelo à penitência e à conversão, nem um anúncio verbal do reinado de Deus que se aproxima. Jesus inicia suas obras com um “ato de sinal”, que representa em imagem aquilo que ele veio trazer: alegria escatológica nupcial, pelo dom do vinho em abundância a um casal de noivos. As leitoras e leitores de hoje talvez se deixem tocar mais por isso do que pela reprodução das primeiras palavras da pregação de Jesus. Precisamente na presente cultura da imagem, a mensagem de Jesus talvez toque mais os corações deste modo do que pela mera reprodução de palavras de Jesus. A imagem do milagre do vinho em Caná nos mostra um Jesus que dá alegria em abundância, e isso, na celebração de uma festa que, mais que qualquer outra, alegra o coração: uma festa de casamento. 5. A primeira Páscoa. A purificação do Templo (2,13-25) 13 Estava próxima a Páscoa dos judeus, e Jesus subiu a Jerusalém. 14 No Templo, ele encontrou os que vendiam bois, ovelhas e pombas, e os cambistas em suas bancas. 15 Ele fez um chicote com cordas e a todos expulsou do Templo, junto com os bois e as ovelhas; esparramou o dinheiro dos cambistas e derrubou suas bancas; 16 e aos vendedores de pombas ele disse: “Tirai isso daqui. Não façais da casa de meu Pai um mercado”! 17 Os discípulos se recordaram de que está escrito: “O zelo por tua casa me devorará”. 18 Então os judeus perguntaram a Jesus: “Que sinal nos mostras para fazeres estas coisas?” 19 Jesus respondeu: “Destruí este santuário, e em três dias eu o erguerei”. 20 Os judeus, então, disseram: “Quarenta e seis anos durou a construção deste santuário, e tu o erguerias em três dias?” 21 Ele, porém, falava do santuário que é seu corpo. 22 Depois que Jesus fora reerguido dos mortos, os discípulos se recordaram de que ele tinha dito isso e creram na Escritura e na palavra que Jesus havia dito. 23 Enquanto Jesus estava em Jerusalém, na festa da Páscoa, muitos creram no seu nome, vendo os sinais que realizava. 24 Jesus, no entanto, não lhes dava crédito, porque conhecia a todos 25 e não precisava de testemunho a respeito do ser humano, pois ele bem sabia o que havia dentro do homem. I Depois das bodas de Caná, o relato da “Purificação do Templo” em Jo 2,13-22 chega bastante inesperado. Nos evangelhos sinópticos encontra-se na proximidade imediata da paixão do Senhor e até pode expressar a razão por que Jesus foi preso. Esta conexão não se reconhece em João. Por isso pergunta-se por que ele colocou esta cena no início da trajetória de Jesus. Para a resposta a esta pergunta cabe uma análise cuidadosa. O problema da relação com tradição sinóptica apresenta-se também no interior da perícope. Segundo uma pesquisa de H. Ulrichsen105, devemos distinguir, nesta unidade textual, uma tradição sobre a “purificação do Templo” e outra, sobre uma controvérsia entre as autoridades judaicas e Jesus acerca de sua autoridade. Os paralelos para Jo 2,14-17 encontram-se em Mc 11,15-17 par. Mt 21,12-13 e Lc 19,45-6. Estes textos sinópticos não apenas mostram diferenças notáveis em comparação com o texto joanino, mas também entre si. A diferença consiste, sobretudo, na situação que supõem. Em 105 J. H. ULRICHSEN, Jesus – der neue Tempel? Beutler B -63 Marcos, a cena precede imediatamente o relato da Paixão e dá a impressão de ter provocado, direta ou indiretamente, a prisão de Jesus. Em Mateus, esta conexão parece menos firme, e em Lucas, menos ainda. De toda maneira, a purificação do Templo não é mencionada no processo de Jesus; só é alegada a palavra a ele atribuída, de que destruiria o Templo e em três dias o reconstruiria (Mc 14,58). Como observa E. Bammel106, essa acusação era infundada, como também a acusação semelhante feita a Estêvão (At 6,13-14). O fato de a ação de Jesus aparentemente não desempenhar papel algum no seu processo mostra, segundo Bammel, que sua ligação à paixão de Jesus pode ser secundária. Também a localização da purificação do Templo, em João, necessita ser esclarecida. Como mostraremos, Jesus sobe para visitar o Templo, e nos oito capítulos seguintes o Templo é o lugar preferido do ensinamento e da pregação de Jesus. Um conflito com as autoridades judaicas neste lugar se deixa imaginar melhor no fim da atividade pública de Jesus do que no início. Bammel expressa a suspeita de que o lugar original da história seria no início de Jo 11: o perigo ao qual Jesus se expõe ao ir visitar seu amigo em Betânia e a disposição dos discípulos para ir com ele e morrerem (Jo 11,6) entendem-se melhor em conexão com a ação no Templo do que com o milagre da ressuscitação de Lázaro. A proposta de Bammel merece estudo mais aprofundado, mas convida de toda maneira a procurar o lugar original da purificação do Templo (que geralmente é considerada um fato histórico) antes no fim do que no começo da atividade pública de Jesus. O relato da purificação do Templo exibe diferenças notáveis entre os três sinópticos, e também entre estes e a forma joanina. Em nenhum dos três relatos sinópticos mencionam-se, como em João, ovelhas e bois, nem o açoite. A palavra com a qual Jesus [nos sinópticos]* legitima sua ação é tomada dos profetas Is 56,7 e Jr 7,11; em João, os discípulos lembram-se do Salmo 69,10. Segundo Marcos (11,6), Jesus não permitia que alguém carregasse qualquer coisa através do recinto do Templo; Lucas fica muito geral e não menciona as pombas nem o fato de que Jesus derrubou as mesas dos cambistas e dos vendedores. O acento está totalmente na palavra de Jesus, colhida das Escrituras de Israel. Apesar dessas diferenças, existe consenso bastante geral de que, nos diversos relatos, se trata do mesmo acontecimento, que só no Quarto Evangelho é representado de maneira mais desenvolvida e teologicamente refletida. Quanto à perícope seguinte, o pedido de um sinal, os autores remetem a Mc 11,27-33 par. Mt 21,23-27 e Lc 20,1-8. Nesta ação, Jesus responde à pergunta do sumo sacerdote, dos fariseus e dos escribas, com uma contrapergunta acerca do batismo de João. Acresce outro texto, segundo o qual Jesus é questionado acerca de sua autoridade: a perícope do sinal de Jonas (Mt 12,38-43; 16,1-21a.4; Lc 11,16.29-32). Nesta perícope, Jesus fala, em linguagem figurativa, de sua morte e ressurreição no terceiro dia. Este texto, segundo Bammel107, estaria por trás de Jo 2,18-22, junto com Mc 14,57-59 par. Mt 16,60s. (a comparar com At 6,13), acerca da destruição do Templo e de sua reedificação108. Até que ponto o evangelista no nosso relato repousa imediatamente sobre os sinópticos está ainda em discussão. Tobias Nicklas109 vê sua conexão com os sinópticos 106 E. BAMMEL, Die Tempelreinigung. Cf. supra, nota 106. 108 Nach M. STOWASSER, Tempelaktion, por trás de 2,14-19 estaria antes tradição antigo do que o texto dos sinópticos. F. SCHLERITT, Passionsbericht, 173, vê por trás da perícope o relato pré-joanino da Paixão que ele postula. 109 T. NICKLAS, “Tempelreinigung”. 107 Beutler B -64 no nível dos leitores e opõe-se, assim, a M. Labahn e M. Lang110, que pretendem mostrar tal conexão no nível do próprio texto–e parece que estes estão certos. Como é construída a secção Jo 2,13-25? Em primeiro lugar, deve-se separar a cena da purificação do Templo, com a discussão sobre a autoridade (vv. 13-22), dos versículos finais (vv. 23-25). O primeiro grupo de versículos é articulado em duas metades, que exibem estrutura análoga111: (1) v. 13 Moldura (2) vv. 14-17 Purificação do Templo: vv. 14-15 Ação de Jesus v. 16 Palavra de Jesus v. 17 Recordação dos discípulos (3) vv. 18-22 Questão da autoridade: v. 18 Reação dos judeus v. 19 Palavra enigmática de Jesus v. 20 Mal-entendido dos judeus v. 21 Comentário do evangelista v. 22 Recordação dos discípulos Os versículos finais 23-25 ligam-se ao contexto anterior pelos temas da festa pascal (vv. 13 e 23), dos “sinais” (vv. 12, 18 e 23s.) e da fé/confiança (pisteúein, vv. 11s. e 23s.). II 2,13-17 O relato da purificação do Templo começa com indicações de tempo e lugar. Estando na Galileia, Jesus parte, pela primeira vez, para uma das festas de peregrinação em Jerusalém. Mais tarde fará o mesmo para a festa anônima de 5,1 (provavelmente a festa das Semanas) e para a festa das Tendas, em 7,2, antes da última Páscoa de 11,55; 12,1; 13,1. Suspeitamos que a Páscoa de 6,4 tenha sido acrescentada secundariamente a este ciclo de festas de peregrinação judaicas112. Retirando-a da sequência das festas, a atividade de Jesus segundo João parece inserir-se, com quatro viagens de peregrinação a Jerusalém, no ciclo festivo judaico. Em Jesus, os tempos sagrados de Israel são levados a termo. A seguir, mostraremos como em Jesus também os lugares santos de Israel são levados a termo. Este parece ser o sentido da história da “purificação do Templo” e das palavras sobre o “Templo de seu corpo” que a acompanham. Decerto, não devemos falar precipitadamente numa “teoria da substituição”. Segundo certo número de autores, Jesus aparece em Jo 2,13-22 como o “novo Templo”. J. H. Ulrichsen113 submete essa teoria a uma avaliação crítica, que adotaremos como nossa. Na ação de Jesus descrita nos vv. 14-15 não se trata de uma abolição do culto. Jesus expulsa do Templo pessoas humanas que introduzem o profano no Santuário: os vendedores de gado e os cambistas. João acrescenta às pombas também as ovelhas e o 110 M. LABAHN, M. LANG, Johannes und die Synoptiker. Cf. o artigo de J. H. ULRICHSEN, supra, nota 105, e J. FRÜHWALD-KÖNIG, Tempel und Kult. Seguimos aqui J. H. ULRICHSEN. 112 Cf. supra, Introdução, secção 2. 113 J. H. ULRICHSEN, Jesus – der neue Tempel? 111 Beutler B -65 gado: estes são os animais que servem para os sacrifícios cotidianos no Templo114, enquanto as pombas serviam para os sacrifícios dos pobres (cf. Lc 2,24). A palavra de Jesus aos vendedores de pombas deixa claro que Jesus não quer abolir os sacrifícios, mas só afastar todos os negócios profanos do Templo como lugar santo. Neste sentido pode-se falar acertadamente de uma “purificação” do Templo, não de sua substituição. Enquanto Jesus chama o Templo “a casa de meu Pai”, ele se identifica grandemente com este lugar e esta instituição de Israel. A palavra a que Jesus recorre encontra-se em Zc 14,21, portanto, nos últimos versículos do livro de Zacarias 115. Neste versículo anuncia-se que nenhum “cananeu”–no sentido de comerciante–ainda ficará no Templo. É esta a significação que Jo 2,16 supõe. O versículo conclusivo, v. 17, menciona o “recordar-se” dos discípulos, bem como o v. 22, que lhe corresponde. No v.17, os apóstolos recordam-se de imediato de uma palavra dos salmos: “O zelo por tua casa me devorará” (Sl 69,10; o tempo futuro vem da mão do evangelista). A mensagem para nossas leitoras e leitores consiste nisto: Jesus, como o salmista, há de sofrer por causa de seu empenho pela casa do Senhor. Isso está longe de uma abolição do culto. Jesus se empenha plenamente pela restauração da santidade do lugar central do culto de Israel, mesmo correndo risco de vida. 2,18-22 A segunda cena, Jo 2,18-22, não contém ação, mas apenas um diálogo, que nem é encerrado. À pergunta dos “judeus” acerca de sua autoridade, no v. 18, Jesus responde com uma palavra enigmática (v. 19), que é entendida erroneamente pelos “judeus”, como mostra a pergunta que eles fazem no v. 20. A esta pergunta, Jesus não responde mais, mas o evangelista fornece um comentário que explica o sentido da palavra de Jesus (v. 21). A secção termina com mais um comentário do evangelista a respeito dos discípulos, apontando para sua compreensão da palavra de Jesus depois de sua ressurreição dos mortos e sua fé naquele momento (v. 22). Os “judeus” já foram mencionados no cap. 1 como aqueles que mandaram uma delegação a João Batista para lhe perguntar quem ele era e por que ele batizava (Jo 1,19). No Evangelho segundo João, os “judeus”, muitas vezes, são representados como autoridade central do povo judeu e de sua fé, em Jerusalém, encarregados de cuidar da ortodoxia da fé judaica. Esses “judeus” exigem de Jesus um sinal legitimador. De fato, depois do sinal inicial nas bodas de Caná (2,1-11), mencionam-se tais sinais na atividade de Jesus em Jerusalém (cf. 2,23; 7,31; 11,47; 12,37). Outro pedido de sinal situa-se no diálogo com a multidão em Jo 6,30, estranhamente, depois do sinal narrado pouco antes (cf. 6,26). Em Jo 2,19, Jesus não se nega a indicar um sinal, mas oferece um que os judeus não entendem. Ele os desafia a destruir o Templo, e em três dias ele o reerguerá. Como já mencionamos antes (cf. acima, I), Jesus usa aqui uma palavra que foi citada pelas “falsas testemunhas” no seu processo judaico. Para João, essa palavra tinha um sentido mais profundo, como [para Mateus]* aquela outra que lhe foi atribuída, a respeito do profeta Jonas, que ficou três dias no ventre do peixe e então saiu daí. Os “judeus” não são capazes de entender a palavra de Jesus. O evangelista, como “narrador onisciente”, oferece a explicação ao publico leitor: Jesus falou do Templo que é seu corpo (v. 21). Amiúde conclui-se dessa explicação que, para os leitores, o corpo de Jesus substituiu o Templo de Jerusalém. Ulrichsen objeta contra essa interpretação 114 Segundo S. HÜBENTHAL, Wie kommen Schafe und Rinder, as ovelhas e os bois vêm do Sl 69,31s.; deste salmo provém também a citação em Jo 2,17. 115 Dazu S. HÜBENTHAL, Transformation, 322-367. Beutler B -66 que João nada mais quis senão esclarecer a palavra enigmática de Jesus. Para Jesus, o Templo continua sendo o lugar de referência de sua atividade pública no futuro, a começar com suas viagens de peregrinação. O Templo será também o lugar preferido de seu ensinamento (cf. 18,20). Só depois da destruição do Templo, que ocorreu antes da redação do Quarto Evangelho, o corpo de Jesus, isto é, Jesus mesmo, deveria tornar-se o único lugar da presença de Deus no meio dos homens–mais exatamente: o corpo ressuscitado dentre os mortos116. Desse momento fala o v. 22, no qual a palavra de Jesus é posta ao lado da Escritura (sem ser integrada nesta). Só a partir da Páscoa da ressurreição é que as palavras e ações de Jesus se tornam compreensíveis, sob a guia do Espírito. 2,23-25 Os últimos três versículos não se coadunam com a contagem dos sinais em 2,11 e 4,54 (cf. 21,4, que, segundo J.-P. Heekerens, seria um terceiro sinal, como parte de uma coletânea de sinais da redação joanina117). Os autores que atribuem a contagem dos sinais à hipotética “fonte dos sinais” do Quarto Evangelho veem em 2,23 a mão do evangelista. Pode-se, contudo, imaginar este evangelista como autor dos vv. 23-25, também sem aceitar a “fonte dos sinais”. Desde Jo 2,11 supõe-se uma coerência entre o “ver” os sinais e a fé. Mas esta fé é ainda superficial. Jesus não “dá crédito” (ouk epísteusen heautón – jogo de palavras) às pessoas que creem desse modo. E ele não precisa receber de ninguém um testemunho sobre as pessoas humanas, pois ele as conhece e sabe o que acontece no coração delas (cf. seu conhecimento de Natanael antes de encontrá-lo, Jo 1,47s.; e o passado particular da samaritana, Jo 4,16-18). Se estes três versículos remontam ao evangelista, confirmam certo ceticismo quanto a uma conexão estreita demais entre o ver os sinais de Jesus e o crer nele, como já observamos em 2,1-11. Assim como na história das bodas de Caná a “hora” de Jesus, assim serve de chave hermenêutica, na presente secção, o saber sobre-humano de Jesus, que consegue distinguir entre uma fé superficial, baseada em sinais, e uma forma mais profunda da fé, que tem consciência do mistério de sua pessoa: a saber, o caminho que o Pai lhe designou e que o conduzirá à morte violenta e – só deste modo – à ressurreição. III O deslocamento da história da purificação do Templo para o início do Evangelho segundo João confere a este evangelho uma grande força dramática desde o início. Um conflito acerca de Jesus e sua missão não é algo que cresce passo a passo. Tal conflito determina o relato evangélico desde o início. Ponto de partida é o comércio em lugares santos. A intervenção palpável de Jesus contra isso faz surgir a questão de sua autoridade. Do mesmo modo como já na narrativa das bodas de Caná, mostra-se aqui que a chave verdadeira do mistério de Jesus é seu caminho de vida até o fim. O lugar novo e permanente da presença de Deus entre os homens será ele–seu corpo, que através da porta da morte chegará à ressurreição. Os lugares santos de Israel não são, por isso, abolidos, mas “suprassumidos” no sentido hegeliano: revezados, mas conservados num nível superior. 116 Este esclarecimento deve ser observado na interessante dissertação apresentada em Frankfurt por R. LÓPES ROSAS, La señal del Templo. 117 J.-P. HEEKERENS, Die Zeichen-Quelle der johanneischen Redaktion. Beutler B -67 6. O diálogo com Nicodemos em Jerusalém (3,1-21) 3 1 Havia um homem, membro dos fariseus, chamado Nicodemos, um chefe dos judeus. 2 À noite, ele foi se encontrar com Jesus e lhe disse: “Rabi, sabemos que vieste como mestre da parte de Deus, pois ninguém pode fazer os sinais que tu fazes, se Deus não está com ele”. 3 Jesus respondeu: “Amém, amém, digo-te: se alguém não nascer de novo, não poderá ver o Reino de Deus!” 4 Nicodemos disse: “Como pode alguém nascer, se já é velho? Acaso pode entrar uma segunda vez no ventre de sua mãe para nascer?” 5 Jesus respondeu: “Amém, amém, digo-te: se alguém não nascer da água e do Espírito, não poderá entrar no Reino de Deus. 6 O que nasceu da carne é carne; o que nasceu do Espírito é espírito. 7 Não te admires do que eu te disse: É necessário para vós nascer de novo. 8 O vento sopra onde quer, e tu ouves sua voz, mas não sabes de onde ele vem, nem para onde vai. Assim é todo aquele que nasceu do Espírito”. 9 Nicodemos, então, perguntou: “Como pode isso acontecer?” 10 Jesus respondeu: “Tu és o mestre de Israel e não conheces estas coisas? 11 Amém, amém, digo-te: nós falamos do que conhecemos e damos testemunho do que vimos, mas vós não aceitais o nosso testemunho. 12 Se vos falei das coisas da terra e não acreditais, como ireis crer quando eu vos falar das coisas do céu? 13 Ninguém subiu ao céu, senão aquele que desceu do céu: o Filho do Homem. 14 Como Moisés enalteceu a serpente no deserto, assim também deve ser enaltecido o Filho do Homem, 15 a fim de que todo o que crer tenha, nele, vida eterna”. 16 De fato, Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha vida eterna. 17 Pois Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para julgar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele. 18 Quem crê nele não é julgado, mas quem não crê já está julgado, porque não creu no nome do Filho unigênito de Deus. 19 Ora, o julgamento consiste nisto: a luz veio ao mundo, mas os homens amaram mais as trevas do que a luz, porque suas obras eram más. 20 Pois todo o que pratica o mal odeia a luz e não vai até a luz, para que suas ações não sejam denunciadas. 21 Mas quem faz a verdade vai à luz, para que seja manifesto que suas obras são obradas em Deus. I O diálogo com Nicodemos se destaca claramente do texto anterior. Contudo, às vezes se tem proposto ver o começo em 2,23, porque Nicodemos aparentemente pertence àqueles judeus que acreditam em Jesus por causa de seus sinais118. Mas isso não se encontra explicitamente no texto. Parece, portanto, seguro deixar começar a perícope em 3,1. Depois de sua última resposta, no v. 9, Nicodemos não é mais mencionado e parece sair de cena como parceiro de diálogo de Jesus. O diálogo se transforma, aos poucos, num monólogo, que finalmente parece virar um discurso do evangelista. Por essa razão, muitos autores veem o fim do diálogo no v. 12, onde, pela última vez, Jesus dá uma resposta na segunda pessoa (desta vez, no plural). R. Schnackenburg vai ainda mais longe e percebe em Jo 3,13-21 e 3,31-36 “fragmentos de discurso não situados”119, ligados secundariamente ao diálogo com Nicodemos. Com base na análise literária e teológica, Schnackenburg conclui que, anteriormente, Jo 3,3136 se seguia imediatamente a 3,1-12 e tinha continuação em 3,13-21. Segundo R. 118 Assim agora M. GIRARD, Le paradigme, também por causa de uma estrutura quiástica em Jo 2,23 – 3,2. 119 R. SCHNACKENBURG, Die “situationsgelösten Redestücke” in Joh 3, assumido em seu comentário I 374-377. Beutler B -68 Bultmann120, Jo 3,31-36 era, originalmente, a continuação de 3,1-21. A pesquisa sobre João não acolheu estas propostas, e assim mantemos a ordem tradicional de Jo 3. Com O. Hofius121 podemos ver em Jo 3,13-21 a continuação da resposta de Jesus à última pergunta de Nicodemos no v. 9. Por vezes nega-se a unidade literária e teológica desta perícope. Bultmann atribui à “redação eclesial” por ele postulada a expressão que fala do novo nascimento, não só do Espírito, mas “da água”, em Jo 3,5122. A escola bultmanniana considerou também os vv. 19-21 parcialmente como secundários, visto que neles as obras humanas aparecem como condição para a salvação. Segundo J. Becker123, esses versos demonstram também um dualismo que diverge do evangelista: uma separação horizontal entre pessoas boas e más, em vez da demarcação vertical, característica do evangelista, que distingue entre o mundo “em cima”, o mundo da salvação de Deus, e o mundo “embaixo”, no qual as pessoas, por enquanto, vivem para a salvação. Acrescem outros problemas: a pressuposta escatologia e a relação de cristologia e soteriologia. Mas também aqui mantemos a unidade literária da perícope, pelas razões que mostraremos na exegese contínua. A construção da perícope até o v. 12 pode ser determinada com base na análise narrativa. A introdução, nos vv. 1-2b, fornece a apresentação dos personagens do diálogo e a indicação do tempo (era noite). Os versículos seguintes articulam-se em três turnos de diálogo entre Nicodemos e Jesus: vv. 2c-3, 4-8 e 9-12 (ou 21); a resposta de Jesus é cada vez introduzida pelo “amém, amém” (vv. 3c, 5b e 10c). Onde termina exatamente a terceira resposta de Jesus não se deixa dizer com certeza, porque as palavras de Jesus, neste caso, se transformam progressivamente nas palavras do evangelista, que fala de Jesus na terceira pessoa. Do v. 12 até o v. 17 constata-se um encadeamento por palavras-gancho, semelhante ao que percebemos no início do Prólogo (Jo 1,1-5): 12 “coisas do céu” 13 “céu” 14 “Filho do Homem” 16 “vida eterna” 17 “Filho” 18 “julgar” 13 “céu” 13 “Filho do Homem” 15 “vida eterna” 16 “Filho” 17 “julgar” Nos vv. 18-21 não se percebe tal conexão. Ali, o movimento vai do “julgamento” (vv. 18-19) para as “obras” (vv. 19-21). Como o tema do “julgar” já foi introduzido no v. 17, não é possível atribuir sem problema os vv. 18-21 ou 19-21 a outra camada literária que os vv. 12-17(18). II 3,1-3 No início do capítulo, o evangelista introduz o leitor na situação do diálogo (v. 12b) e relata a primeira interlocução entre Jesus e Nicodemos (v. 2c-3). A maneira como Nicodemos é introduzido lembra a Septuaginta (cf. 1Sm 1,1). Ele pertence ao grupo dos fariseus e é chamado “um chefe dos judeus”. Esta designação não é bem exata, mas faz 120 R. BULTMANN 92s. O. HOFIUS, Das Wunder, 34s. 122 R. BULTMANN 98, com nota 2. 123 J. BECKER I 173s., que aparentemente troca o sentido de “horizontal” e “vertical” (nós corrigimos). 121 Beutler B -69 pensar num membro do sinédrio, como se confirmará no cap. 7 (v. 48 e 50). João nunca apresenta a composição do sinédrio de maneira exata (ao contrário de Mc 11,27), mas fala de modo um tanto anacrônico de “sumos sacerdotes e fariseus” (cf. Jo 7,45). Um membro desse grupo se dirige, de noite, a Jesus para interrogá-lo. Não é provável que tenha escolhido esse horário porque os rabinos recomendaram o estudo noturno da Torá. É mais provável que o tenha escolhido para não ser observado124; o que combina perfeitamente com a imagem que o conjunto do Quarto Evangelho apresenta dele125. Primeiro, Nicodemos vem até Jesus de noite, mas depois, no sinédrio, se posiciona abertamente a favor de Jesus (7,50) e, no fim, mostra a coragem de requerer de Pilatos o corpo de Jesus, condenado por alta traição (10,39). Desde o início do diálogo fica claro que Nicodemos representa o povo judeu e sua religião. Dirige-se a Jesus com a alocução “Rabi”. Sua expressão “(nós) sabemos” mostra que ele pensa poder classificar Jesus direitinho. Considera Jesus um profeta, como aparece através de suas palavras: “Sabemos que vieste como mestre da parte de Deus”. Segundo O. Hofius126, Nicodemos mostra assim, desde as primeiras palavras, que ele não entendeu a missão de Jesus: Jesus não “veio da parte de Deus”, ele se originou de Deus (exḗlthon ek ... apo ... para toû theoû; Jo 8,42; 13,3; 16,27s). Deus não apenas está “com ele”, ele é Deus (cf. 1,18; 10,30). Seu valor se compreende não apenas em virtude dos “sinais” que ele realiza, mas também, e antes de tudo, pela acolhida de sua palavra. Esperar-se-ia, nesta altura, uma pergunta explícita de Nicodemos, mas ela não aparece no relato. Hofius pensa que tal pergunta deveria referir-se à salvação, como aparece pela resposta de Jesus127. Na sua resposta (v. 2c-3), Jesus capta a pergunta não expressa de Nicodemos e declara, depois de uma solene fórmula introdutória, que é preciso nascer de novo para ver o Reino de Deus. A expressão gennēthênai ánōthen é ambígua e pode significar tanto “nascer de novo” como “nascer do alto”. Pensa-se geralmente que João escolheu conscientemente tal expressão. Provavelmente significa o novo nascimento, que o discurso leva à tona imediatamente a seguir. A expressão “ver o Reino de Deus” não é tipicamente joanina, mas tem paralelos nos evangelhos sinópticos (Mc 9,1 par. Lc 9,27). Nestes textos já se apresenta o pensamento da necessidade de se tornar como criança para entrar no Reino de Deus (cf. Mt 18,3; cf. Mc 10,15)128. No Evangelho segundo João, a expressão “Reino de Deus” só aparece no capítulo 3 (vv. 3 e 5) e só em 18,36s. o Jesus joanino fala de “seu” reinado. O conceito determinante para falar da salvação, em João, é “vida”. Se, neste texto, se diz que é preciso nascer de novo, tornar-se homem novo, para ver o Reino de Deus, participar da salvação escatológica, esta visão se distingue da do judaísmo, segundo a qual a participação da salvação depende essencialmente da ação humana. 3,4-8 124 Esta interpretação literal da vinda de Nicodemos “de noite” está bem explicada em T. WIARDA, Scenes, 168-173. 125 Cf. supra, Introdução, secção 3. Outra visão sobre a figura de Nicodemos, em J.-M. SEVRIN, The Nicodemus Enigma, que vê em Nicodemos uma falta de fé explícita e pouco aprecia a coragem dele. Semelhantemente R. HAKOLA, Burden. 126 O. HOFIUS, Das Wunder, 38. 127 IBID., 39s. 128 Segundo M. MORGEN, Jean 3, está por trás de Jo 3,1-12 a secção Mc 10,13-31par. Nos primeiros versículos (Mc 10,13-16) o tema é “tornar-se como crianças/acolher crianças”; no chamamento do homem rico (Mc 10,17-27) se trata das condições para entrar no Reino de Deus, e nos versos finais (Mc 10,28-31) se encontram as promessas para os que seguem Jesus. Todos esses elementos encontram-se em Jo 3,1-12. Beutler B -70 A pergunta de Nicodemos no v. 4 recebeu diversas explicações. Segundo alguns, Nicodemos expressa um grotesco mal-entendido: ele pensa que a pessoa que quer nascer de novo deve voltar para dentro do seio da mãe. Outros acham que a pergunta de Nicodemos apenas demonstra que a palavra de Jesus sobre a necessidade do novo nascimento lhe permanece incompreensível129. Esta interpretação é preferível. Fora da fé, o acesso à mensagem de Jesus a respeito do novo nascimento lhe permanece fechado. A resposta de Jesus recomeça no v. 5 com a fórmula de afirmação “amém, amém, te digo”. Os versículos seguintes são marcados por uma dupla oposição: nascimento x novo nascimento, carne x espírito. Inicialmente, o tema é o novo nascimento. Segundo a palavra de Jesus, só pode entrar no Reino de Deus quem é renascido da água e do Espírito. O elemento água não é retomado a seguir; segundo Bultmann, é um acréscimo da redação eclesial130. Mas o elemento água deixa-se explicar por duas razões. Por um lado, pertence aos elementos ligados à Nova Aliança segundo Ez 36,25-27. Por outro lado, muitos comentadores, e não só da Igreja católica, veem aí uma referência ao batismo. É verdade que, na retomada do tema no v. 8, a água não mais é mencionada. No lugar dele está uma imagem que já se encontra no Eclesiastes (Ecl 1,15): ninguém sabe de onde vem o vento, nem para onde vai. Quando se entende “espírito” literalmente, como sopro, pode-se dizer coisa semelhante de quem nasceu de novo, de quem nasceu do Espírito131. Este espírito é contraposto à carne, que nada vale (cf. Jo 6,63). Ambos estes conceitos marcam mais a antropologia de Paulo que a de João. A “carne” significa, nesta oposição, o ser humano como criatura ainda não salva. 3,9-12 Nicodemos toma a palavra pela terceira vez no v. 9. Por sua pergunta, ele demonstra que não entendeu as palavras de Jesus. Ele continua numa visão meramente humana e, daí, é incapaz de compreender as palavras de Jesus sobre o novo nascimento. Não seria suficiente dar-lhe maior explicação, pois só na fé é que se tem acesso à palavra de revelação de Jesus. Na sua fala do v. 10, Jesus admira que Nicodemos não entende suas palavras. Afinal, ele é “mestre de Israel”, mais, “o mestre de Israel”. Podemos ver aqui uma alusão à designação de Jesus como “mestre” no início do diálogo (v. 2). De toda maneira, para as leitoras e leitores é claro quem é “o mestre” de verdade. Neste sentido, o plural “nós falamos do que conhecemos”, no v. 11, bem pode ser um eco do “sabemos” do v. 2 [em grego, o verbo é o mesmo]*. Mais uma vez, a frase é introduzida pela fórmula de afirmação “amém, amém, digo-te”; quanto ao conteúdo, Jesus se refere a si mesmo pelo verbo no plural132. Pela primeira vez, no Evangelho segundo João, Jesus aparece aqui como testemunha. Não dá um testemunho a respeito de si mesmo, mas de coisas do céu. Isso pode mostrar influencia do pensamento apocalíptico133. Assim como, no Prólogo, a luz não foi acolhida, acontece agora com o testemunho que Jesus dá a respeito das coisas do céu, que ele viu (junto de Deus). Quando ele fala de coisas da terra – provavelmente o discurso sobre a necessidade do novo nascimento – e eles não acreditam nele, muito menos acreditarão quando falar das coisas do céu. Estas, 129 Neste sentido, O. HOFIUS, Das Wunder, 44-48. BULTMANN 98 e nota 2. Mesma visão em J. SCHMIDL, Jesus und Nikodemus, e.o. 131 Segundo K. O. SANDNES, Whence and Whither, a origem misterioso de quem nasceu do Espírito e da água corresponde à origem e destino misteriosos de Jesus. 132 Segundo O. HOFIUS, Das Wunder, 57, apresenta-se aqui a forma estilística da heterose. 133 Cf. J. BEUTLER, Martyria, cap. 7. 130 Beutler B -71 segundo Hofius134, seriam as verdades a respeito de Jesus Cristo e que serão desdobradas nos versículos a seguir. O que está em jogo é, decisivamente, a fé. Quem vai a Jesus sem a fé, não entenderá nem as coisas da terra, nem as do céu. Somente na fé é que se abre o mistério da salvação em Cristo. 3,13-17 Nos cinco versículos seguintes, ocorre um movimento que se desloca das fórmulas querigmáticas da fé em Cristo para a soteriologia. No fim do v. 17 aparece, de fato, a forma verbal sōthênai “ser salvo”. Temos boas razões, segundo Hofius135, para ver nestes versículos a continuação do diálogo de Jesus com Nicodemos sobre a salvação, mesmo se esse diálogo não e mais mencionado e as palavras de Jesus gradativamente se transformam em monólogo. Ao contrário dos vv. 1-12, nos vv. 13-17 mal se reconhece alguma tradição sinóptica subjacente. Só transparecem algumas tradições veterotestamentárias e protocristãs, às quais dedicaremos nossa atenção in loco. No v. 13, Jesus fala pela primeira vez de si mesmo na terceira pessoa. Aplica a si mesmo a expressão “Filho do Homem”. Segundo a tradição apocalíptica do livro de Daniel (Dn 7,14), este Filho do Homem é uma figura do além. Há autores que veem nesta tradição veterotestamentária a base para o Filho do Homem joanino, que sobe ao céu136. Entre o Antigo Testamento e João se entrepõe a tradição sinóptica do Filho do Homem. Os sinópticos conhecem três tipos de sentenças sobre o Filho do Homem: o Filho do Homem que vem para julgar, o Filho do Homem presente sobre a terra e o Filho do Homem que sofrerá, morrerá e ressuscitará. Este último tipo parece ter exercido maior influência em João. É patente que João liga o título Filho do Homem a enunciados que, em Is 42–53, se referem ao Servo de Deus, especialmente em Is 52,13– 53,12, o “quarto cântico do Servo”137. Pense-se, sobretudo, em Is 52,13 LXX, onde lemos que o Filho do Homem “é enaltecido e glorificado”. Também Jo 3,13 parece supor esta visão, mesmo se os versículos seguintes aludem a Nm 21,8s, a narrativa da serpente no deserto. Em Jo 3,13 ainda não se exprime o “enaltecimento” do Filho do Homem, mas somente sua subida. No v. 14, porém, o tema aparece. Para a “subida” de Jesus ao Pai, veja-se Jo 6,62; 20,17. Em Jo 3,13, o tema da subida é introduzido em vista da revelação. É o início do discurso sobre as “coisas do céu”. Só tem acesso a elas aquele que, de junto de Deus, desceu do céu: o Filho do Homem. É provável que por trás disso se esconda uma polêmica em relação a outras grandes figuras da história de Israel, às quais, no tempo da literatura apocalíptica, se atribuíam viagens celestiais para receber revelações divinas: Henoc, Moisés, Elias, Isaías, Baruc, Esdras... No v. 14, o discurso passa da “subida” para o “enaltecimento”. Assim o olhar se desloca da encarnação para a soteriologia. Contudo, o sentido do “enaltecimento” continua discutível. Uns pensam que João, aqui, fala apenas do enaltecimento na cruz, a ser seguido da glorificação138. Outros acham que o enaltecimento tem um sentido mais amplo, que incluiria também o enaltecimento de Jesus junto ao Pai e a sua glorificação139. Esta opinião parece mais de acordo com a visão joanina. Em Jo 3,14 134 O. HOFIUS, Das Wunder, 58s. Cf. ibid., 34s. 136 Assim H. MERKLEIN, Gott und Welt, 269s., e.o. 137 Cf. J. BEUTLER, Greeks; ID., Griechen; D. O. OBIELOSI, Servant of God, 197-214. 138 Assim O. HOFIUS, Das Wunder, 61-63, com W. THÜSING, Die Erhöhung, e E. RUCKSTUHL, citado por H. MERKLEIN, Gott und Welt, 270, nota 37. 139 Assim H. MERKLEIN, v. nota anterior, com R. BULTMANN, R. SCHNACKENBURG e outros. 135 Beutler B -72 trata-se do alteamento da serpente no deserto como apotropaico para os israelitas contra as serpentes venenosas. O ponto de comparação, para João, está no enaltecimento para a salvação do povo. Aqui há um encontro entre as duas tradições veterotestamentarias, a do êxodo e a do Servo de Deus (Is 52,13 LXX). A ideia da salvação se exprime também no deî (“deve”) divino, que aponta para a necessidade segundo o plano salvífico de Deus. A humanidade não encontra a salvação automaticamente, ex opere operato, sem colaboração própria. Esta colaboração, segundo o v. 15, subsiste na fé em Jesus. O en autôi, “nele”, deve ser ligado, aqui, à recepção da vida e não ao “crer em” Jesus: “a fim de que todo o que crer tenha, nele, vida eterna”140. Os vv. 14-15 constituem uma unidade sintática, como mostra o estudo de R. H. Gundry141, e têm seu ponto culminante na oração final do v. 15. O enaltecimento da serpente no deserto prepara o enaltecimento do Filho do Homem, que conduz à vida eterna de todos os que creem nele. A construção do v. 16 é semelhante à dos vv. 14-15; o v. 16cd corresponde ao v. 15. A palavra de Jesus significa uma promessa de vida eterna para todos os que creem no Filho de Deus (aqui encontra-se a expressão pisteúein eis, que faltava no v. 15). Este dom deve-se ao amor de Deus para o mundo. Este pensamento surpreende, porque, em João, “o mundo” geralmente é contraposto a Deus e seu Enviado (cf. Jo 1,10!). De Jo 3,16 pode-se concluir que o amor de Deus à humanidade não conhece limite e que sua vontade salvífica não exclui ninguém142. E em que consiste esse “dom” do Filho? Seria possível pensar na entrega do Filho em sua morte na cruz, mas, neste caso, seria de se esperar o verbo parédōken. Por isso, parece mais indicado interpretar o “dom” do Filho como seu envio à humanidade. E o v. 17 se conecta a isso? Segundo Hofius143, os vv. 13-17 apresentam um quiasmo: no v. 13 observa-se o tema da encarnação, nos vv. 14-16 trata-se do envio do Filho na sua morte salvífica, e o v.17 retoma o tema da encarnação. Mas esta proposta é falha, porque entende o édōken do v. 16 no sentido de parédōken, o que não parece recomendável. Seja como for, existe uma conexão entre o “envio” do Filho segundo o v. 17 e a descida do Filho do Homem no v. 13. O sentido deste envio é claro: trata-se da salvação do mundo enquanto família humana. 3,18-21 Ao contrário do que pensam Bultmann e sua escola, o grupo de versículos subsequente não se separa completamente do anterior. Mostra isso o fato de, já no v. 17, aparecer o tema do “julgar”, como também aparece o acento posto na necessidade da fé, não só no v. 18, mas já nos vv. 15 e 16. Quando se propõe ver em Jo 3,13-21 a continuação e desdobramento do diálogo com Nicodemos, os vv. 13-17 podem intitularse “o novo nascimento em virtude da fé no Filho enviado pelo Pai”, e os vv. 18-21, “o novo nascimento em virtude das obras da verdade”. O v. 18 retoma o versículo anterior e o interpreta, assim como antes o v. 15 completou o v. 14, e o v. 16cd o enunciado de 16ad. O que há de novo é o tema do 140 Lemos com Nestle-Aland28 evn auvtw/|, de acordo com os manuscritos antigos P 75 e B; é lectio difficilior e, por isso, preferível. P 66 L leem evpV auvtw/|, a maioria dos manuscritos tem eivj auvto,n, assimilação à terminologia joanina com pisteu,ein. 141 R. H. GUNDRY, The Sense and Syntax, 373-376. 142 Cf. J. BEUTLER, So sehr hat Gott. Segundo E. E. POPKES, Love of God, o versículo é criação joanina. 143 O. HOFIUS, Das Wunder, 59s. Beutler B -73 julgamento: quem não “crê no nome do Filho unigênito de Deus” já está julgado. Neste lugar encontramos, pela primeira vez, a escatologia joanina como ela foi analisada e apresentada, recentemente, por J. Frey144. É característico, para João, a convicção de que o julgamento final tem lugar já na hora da fé ou da recusa da fé. Esta visão, porém, é completada por outra, segunda a qual haverá um julgamento no fim (compare Jo 5,2527 com 5,28-29). Recomenda-se explicar esta tensão antes a partir de tradições diversas do que a partir de camadas literárias divergentes, como fazem Bultmann e sua escola. O v. 19 pressupõe o anterior (v. 18) e continua a ideia de que o julgamento acontece no momento presente, e não em algum último dia145. Indica o fundamento do pecado do mundo e do julgamento: as pessoas amaram mais as trevas do que a luz, porque suas ações eram más. Estes dois enunciados se interpretam mutuamente. As “más ações” não significam ações condenáveis moralmente, mas a rejeição da luz, que desde o Prólogo é descrita como dada com o Logos divino. O mesmo pensamento volta no v. 20. Todo aquele que faz o mal, odeia a luz e não vai à luz. Caso contrário, suas más ações são denunciadas. Os comentadores discutem se se encontram, aqui na terra, homens maus desde o início, no sentido do evangelista, e homens da luz. De um lado, acentua-se o significado da predestinação para a salvação, do outro, que todos os humanos, como tais, necessitam da graça para o perdão dos pecados e a salvação. Na exegese de Jo 3,18-21 cabe prudência, porque este texto não apresenta visão suficiente para solucionar a relação difícil da predestinação divina com a liberdade humana146. Assim como aquele que comete ações más evita a luz, também os filhos da luz procuram a luz, para que suas boas ações se tornem manifestas como tais. A expressão “fazer a verdade” não é grega, é hebraica. Encontra-se também em 1Jo 1,6, comentada por R. E. Brown147, com alegação de exemplos da literatura hebraica, da Septuaginta e da literatura intertestamentária. A expressão encontra-se nos textos de Qumrã, e.o. (cf. 1Q S 8,1-2). No uso lingüístico hebraico, “verdade” (emet) não significa o acesso à realidade empírica ou teórica, mas antes a realidade como se manifesta a partir da revelação de Deus. Quem “faz a verdade” é aquele que se abre à palavra de Deus. Como filho da luz, chega à luz, e seus atos podem manifestar-se como bons. III O pensamento do novo nascimento tem raízes bíblicas, mas não se deixa deduzir delas completamente. Na parte Jo 1,19-34, o Batista anuncia um batismo vindouro na água e com o Espírito Santo, a ser administrado por Jesus (Jo 1,33). Em Ez 36,25-27 encontramos a purificação escatológica com água e uma renovação pelo Espírito. O novo nascimento é mais afim com textos sincretistas do fim da Antiguidade. É de se considerar sobretudo o Tratado XIII “De regeneratione” do Corpus Hermeticum. Em relação a isso, C. H. Dodd elaborou as correspondências e as diferenças em comparação com o Evangelho segundo João148. Em ambos os escritos o ser humano chega à vida eterna mediante uma forma de conhecimento em virtude de um novo nascimento, que faz a pessoa sair do domínio do corpo ou da carne para o domínio do Nous ou do 144 Cf. J. FREY, Die johanneische Eschatologie, I-III. “Julgar” não significa apenas a “distinção”, mas o veredicto no sentido dos vv. 17-18, como acentua acertadamente M. GOURGES, Hautè de estin. 146 Este livre arbítrio é contestado por O. HOFIUS, Das Wunder, 79s., em solidariedade com M. Lutero. 147 R. E. Brown, The Epistles, 200. 148 C. H. DODD, The Interpretation, 44-53. 145 Beutler B -74 Espírito. Ambos os escritos falam da necessidade da purificação, a qual, porém, não é o último passo. Segundo ambos os escritos, o ser humano chega à filiação divina com a ajuda do Logos. O papel de Hermes como Revelador corresponde, nisso, ao de Cristo, o Filho de Deus encarnado149. Mas importa observar as diferenças. Os leitores cristãos do Quarto Evangelho chegam à salvação não somente por um conhecimento outorgado por Deus, mas pela fé. É exatamente isso que a continuação de Jo 3,1-12 coloca na luz. Na fé, eles não se confessam simplesmente a favor do Logos, mas do Logos encarnado, que deve seguir um caminho de sofrimento. Tudo isso é alheio ao pensamento helenístico: precisa ser pregado, e crido. 7. Jesus na Judeia. Novo testemunho do Batista (3,22-36) 22 Depois disso, Jesus foi com seus discípulos para a terra da Judéia. Ele ficava lá com eles e batizava. 23 Ora, também João estava batizando, em Enon, perto de Salim, porque lá havia muita água, e vinham lá para serem batizadas. 24 João, de fato, ainda não tinha sido lançado na prisão. 25 Surgiu então, da parte dos discípulos de João, com um judeu, uma discussão acerca da purificação. 26 Eles foram até João e disseram-lhe: “Mestre, aquele que estava contigo do outro lado do Jordão e de quem tu deste testemunho, eis que está batizando, e todos vão a ele”. 27 João respondeu: “O homem não pode receber coisa alguma, se não lhe for dada do céu. 28 Vós mesmos sois testemunhas de que eu disse: ‘Eu não sou o Cristo, mas fui enviado à sua frente’. 29 Quem tem a noiva é o noivo, mas o amigo do noivo, que está lá ouvindo-o, enche-se de alegria por causa da voz do noivo. Esta é a minha alegria, e ela ficou completa. 30 É preciso que ele cresça, e eu diminua”. 31 Aquele que vem de cima está acima de todos. Quem é da terra, pertence à terra e fala coisas da terra. Aquele que vem do céu está acima de todos. 32 Ele dá testemunho do que viu e ouviu, mas ninguém recebe o seu testemunho. 33 Quem recebe o seu testemunho marcou com selo que Deus é verdadeiro. 34 De fato, aquele que Deus enviou fala as palavras de Deus, pois ele dá o Espírito não por medida. 35 O Pai ama o Filho e pôs tudo em suas mãos. 36 Aquele que crê no Filho tem a vida eterna. Aquele, porém, que desobedece ao Filho não verá a vida, mas a ira de Deus permanece sobre ele. I Jo 3,22-36 apresenta aos exegetas alguns problemas. O início da perícope é claramente demarcado em relação ao diálogo com Nicodemos, por novos indícios de tempo e lugar. Mais difícil é dizer onde termina a perícope que começa em Jo 3,22. No início se destacam os vv. 22-30 como unidade narrativa em forma de diálogo. Do v. 31 até o v. 36 seguem-se alguns enunciados de caráter geral, que lembram a parte discursiva 3,12-31, com a qual, como dissemos, alguns autores os colocam em conexão. Mais raramente se vê em 3,31-36 a continuação das palavras do Batista dos vv. 27-30. Outros ouvem aqui a voz de Jesus. A maioria dos comentadores, porém, percebe aqui enunciados do evangelista, ao qual remontaria este texto evangélico. De toda maneira, estas palavras mostram continuidade antes com o contexto antecedente do que com o subsequente. Possuem também ligações com o contexto antecedente quanto ao conteúdo. Por isso, faz sentido tratá-las junto com este. 149 Cf. ibid. 49. Beutler B -75 Olhando para os vv. 22-30 surpreende a notícia, no v. 22, de que Jesus chegou à região de Judá, visto que já anteriormente sua presença nessa região tinha sido mencionada. E como se explica que em 3,22 se afirma que Jesus batizou (v. 22), se no v. 4,3 isso é negado? E quem é o “judeu” com o qual os discípulos do Batista, segundo Jo 3,25, se envolvem em discussão? Será que o texto foi corrompido? E qual a conexão entre o tema do batismo e o do esposo e do amigo no v. 29? Até que ponto o texto pode ser considerado unitário e que é que ele apresenta do ponto de vista literário e teológico? Durante muito tempo, a pesquisa tentou resolver as tensões que aparecem precisamente nesta primeira parte, pela diferenciação entre a tradição e a redação do evangelista. Vale a pena ler, neste respeito, o artigo de J. W. Pryor 150, segundo o qual os vv. 22-25 na maior parte remontam à tradição pré-joanina. João teria apenas transformado, no v. 25, um diálogo com Jesus num diálogo com “um judeu”, eliminando assim qualquer concorrência entre o Batista com seus discípulos, por um lado, e Jesus, por outro. Para a tradição pré-joanina, uma atividade batismal de Jesus não constituía problema. No v. 26, então, teríamos a transição para o texto do evangelista. Quanto à imagem do esposo em relação a Jesus, no v. 29, os autores costumam lembrar Mc 2,18-20 par. Mt 9,14s. Além disso, É. Trocmé151 suspeita que já o Batista tenha usado, para seu anúncio do tempo final, a imagem veterotestamentária de esposo e esposa para indicar a relação de Deus e seu povo. Marcos teria dado a isso uma interpretação cristológica. Jogar mais luz sobre esta questão será difícil, mas também não é necessário para a interpretação do texto joanino em pauta. Como é construída esta unidade textual e como ela pode ser explicada na imanência do texto? Ajuda-nos aqui o artigo de T. Nicklas152. Segundo este autor, devese fazer uma distinção entre a crítica literária antiga, que analisava fontes e camadas, e a nova, que interpreta o texto a partir de seus sinais linguísticos. Exatamente isto se impõe como primeiro passo: muitas tensões geralmente tomadas como ponto de partida para hipóteses diacrônicas, revelam-se na leitura mais atenta do texto como plenamente inteligíveis. As tensões podem assim ser concebidas como “vazios” no texto, que o autor conscientemente criou ou guardou, para convidar o público leitor a acompanhar o pensamento. T. Nicklas inclui em sua análise também Jo 4,1-3 e percebe uma construção concêntrica: 3,22-24 e 4,1-3 constituem a “moldura” na qual é incluído o “diálogo” entre o Batista e seus discípulos, 3,25-30.31-36. Parece, contudo, melhor conceber Jo 4,1-3 como unidade textual autônoma, como introdução num novo contexto geográfico, como fundamentaremos mais adiante. No interior da unidade textual Jo 3,22-26 separam-se reciprocamente os vv. 22-30 e 31-36. Ao vv. 22-34 descrevem a atividade batismal de Jesus e do Batista na Judeia e se encerram com o parêntese lembrando que João ainda não tinha sido lançado à prisão (v. 24). Segue-se, nos vv. 25-30, um diálogo entre os discípulos de João e ele mesmo a respeito da atividade batismal de Jesus; mas não é claro até onde esse diálogo vai. A interlocução parece terminar no v. 30. Seguem-se então, nos vv. 31-36, enunciados sobre Jesus como aquele que vem de cima e sobre a fé nele, que se conectam ao 150 J. W. PRYOR, John the Baptist. É. TROCMÉ, Jean 3,29. 152 Cf. T. NICKLAS, Literarkritik, 180s. 151 Beutler B -76 contexto antecedente apenas de maneira tênue. Isso indica grosso modo a divisão do texto que vamos estudar. II 3,22-24 Com um “depois disso” (meta taûta, cf. 5,1; 6,1; 7,1) característico inicia-se uma nova secção narrativa. Como nos relatos joaninos de milagres segue-se, a uma parte narrativa (aqui vv. 22-24), um diálogo (aqui vv. 25-30). No v. 22, depois da indicação do tempo, introduzem-se os personagens: Jesus e seus discípulos. Os verbos “foi” e “batizava”, no singular, referem-se em primeiro lugar a Jesus; os discípulos parecem acrescentados posteriormente, servindo, provavelmente, para constituir um grupo correspondente ao dos discípulos do Batista que aparecem no v. 25. O texto menciona, sem reticências, que Jesus batizava, embora isso contradiga a correção introduzida em Jo 4,2. Com T. Nicklas pode-se ver aqui uma provocação da curiosidade do público leitor. Pode ser também que diversas camadas literárias aqui se chocam. Teologicamente temos aqui, mais uma vez, a oposição entre o batismo com água e o com o Espírito Santo. A informação de que Jesus foi para “a Judeia” suscitou muitas perguntas. De fato, em 2,13 já se mencionou a subida a Jerusalém, capital da Judeia. Leiamos, pois, o texto com atenção. Embora Jerusalém seja a capital, a região como tal não foi mencionada em 2,13–3,21. Parece que o evangelista vê Jesus num movimento que sai de Jerusalém (2,13), passa pela “Judeia” (3,22) e pela “Samaria” (4,4) e desemboca na “Galileia” (4,43). Destarte, sua revelação como Palavra de Deus e Filho de Deus traça círculos sempre maiores, afastando-se sempre mais do centro da fé judaica em direção da periferia. Os habitantes de Sicar veem nele, com toda a razão, o “salvador do mundo” (4,42). Este movimento corresponderia, assim, à missão que Jesus confia a seus apóstolos em At 1,8, para que sejam suas testemunhas “em Jerusalém e em toda a Judeia e em Samaria, e até os confins da terra”. João poria então a “Galileia” no lugar desses “confins da terra”. No v. 22, o evangelista pensa numa estada mais demorada de Jesus na “terra da Judeia”: a escolha do imperfeito indica isso. A atividade batismal de Jesus deve ser pensada com a mesma extensão temporal. No v. 23 fala-se do mesmo modo a respeito da atividade batismal de João. Quanto à indicação do lugar, até hoje não se conseguiu verificá-la; mais importante que o lugar geográfico preciso é a menção à água abundante no lugar onde João batiza, como acentua, linguisticamente, o nome de “Enon” (= “fonte”). Assim o batismo de João é duplamente evocado como batismo com água, de acordo com o que o próprio Batista declarou ser característico dele (cf. Jo 1,26.33). Os leitores do Quarto Evangelho lembrarão que já em 1,33 foi anunciado aquele que batizaria com Espírito Santo. O “vazio” completa-se, assim, pela memória do público leitor. O v. 23 menciona explicitamente que “eles”, certamente em grupos, iam até lá para serem batizado pelo Batista. Isso leva então à subsequente interpelação dos discípulos. Mas, antes de relatar esta, o evangelista introduz, no v. 24, uma informação que antecipa o que acontecerá com o Batista mais tarde. Leitores familiarizados com a tradição sinóptica (cf. Mc 1,14 par.) evidentemente sabem de que se trata; em 5,35, o evangelista dá a prisão do Batista por pressuposta. A antecipação aqui em 3,24 serve, ao que parece, para dar peso ao testemunho do Batista a seguir: é palavra de um homem que garante seu testemunho com sua própria vida. Beutler B -77 3,25-30 O diálogo seguinte, entre o Batista e os seus discípulos, articula-se em duas secções menores. Nos vv. 25-26 temos a interpelação feita pelos discípulos de João, nos vv. 27-30, a resposta deste – tenuamente conectada com os vv. 31-36. Os discípulos de João aparentemente veem no batismo ministrado por Jesus e acolhido com grande sucesso, uma concorrência com o batismo que o mestre deles ministra. Não é claro com quem eles discutem. Segundo o texto, trata-se de “um judeu” – mas que vem fazer um judeu lá onde caberiam discurso e resposta de Jesus? Muitos manuscritos apresentam a lição ioudaíōn (“judeus” no plural) em vez de ioudaíou (“judeu”, no singular), mas as mais importantes dentre as testemunhas textuais antigas não sustentam esta lição. Aceite-se, pois, a lição mais difícil, ioudaíou, no v. 25. Se damos ao vocábulo o sentido geográfico, como no caso da ioudaía gê (lit. “a terra judia”), no v. 22, podemos entender que se trata de uma discussão entre os discípulos do Batista e um habitante da Judeia, que podemos imaginar como sendo seguidor de Jesus153. Surpreende também o objeto da discussão: a purificação. Já em Jo 2,6 falou-se em “purificação (segundo o costume) dos judeus”. O leitor pode-se perguntar se, aqui, em 3,25, o batismo está sendo incluído nessa categoria. Jesus é designado, pelos discípulos do Batista, como aquele “de quem tu deste testemunho”. Esta expressão remete claramente a Jo 1,19-34. Assim também a indicação do lugar, “além do Jordão”. Portanto, parece que está sendo retomado e continuado esse testemunho do Batista a favor de Jesus, no caso, com respeito à relação entre o Batista e Jesus. Esta parece ser vista criticamente pelos discípulos do Batista; o sucesso de Jesus é considerado prejudicial para o sucesso de João. A resposta de João, nos vv. 27-30, reata com o testemunho de 1,19-34. Segundo este testemunho, Jesus é superior a João. Quando o sucesso de Jesus supera o de João, é porque Deus assim o quer (v. 27; cf. 6,44; 19,11). João Batista não é, pessoalmente, o Messias; ele apenas foi enviado à frente dele para lhe preparar o caminho (v. 28; cf. 1,20.23). Ele é apenas o amigo do esposo, que se alegra quando ouve a voz do esposo no quarto nupcial (v. 29). Este deve crescer, ele, porém, diminuir (v. 30). A alternância das imagens convida os leitores a uma colaboração criativa. Eles se lembrarão das imagens bíblicas da relação nupcial entre Deus e seu povo, e também da cena das bodas de Caná, em Jo 2,1-12, com seu mundo de simbolismo. A alegria que o amigo do esposo sente é experimentada agora pela Batista, no seu último testemunho a favor de Jesus. É uma alegria completa, da qual também o leitor deve participar154. 3,31-36 Como anunciado já na explicação introdutória (I), os vv. 31-36 conectam-se com o contexto anterior de modo muito tênue. Porém, em vez de mudá-los de lugar, convém explicá-los no lugar onde se encontram, no quadro do contexto maior. Podem ser lidos como “releitura” de Jo 3,1-30, para usar os termos de Jean Zumstein. Os enunciados de Jo 3,1-21, sobretudo acerca do novo nascimento, recebem continuação. Já em Jo 3,11s., esses enunciados ensejaram declarações a respeito de Jesus como aquele que traz uma mensagem celestial. Outro tema que se retoma em 3,31-36 é o do dom do Espírito (v. 34), bem como o tema do testemunho (v. 32s). A mudança para a terceira pessoa 153 O sentido geográfico de VIoudai/oj é acentuado por M. LOWE, Who Are, e.o. Boa exposição da alegria escatológica do Batista neste texto, por M. KEMPTER, Signification eschatologique. 154 Beutler B -78 gramatical marca a delimitação em relação ao testemunho do Batista em 3,27-30: a partir do v. 31, o orador não fala mais de si na primeira pessoa155. Este grupo de versículos mostra correspondências entre os vv. 31-33 por um lado e 34-36 por outro. 31 Aquele que vem de cima está acima de todos. Quem é da terra, pertence à terra e fala coisas da terra. Aquele que vem do céu está acima de todos. 32 Ele dá testemunho do que viu e ouviu, mas ninguém aceita o seu testemunho. 33 Quem aceita o seu testemunho marcou com selo que Deus é verdadeiro. 34 De fato, aquele que Deus enviou fala as palavras de Deus, pois ele dá o Espírito sem medida. 35 O Pai ama o Filho e pôs tudo em suas mãos. 36 Aquele que crê no Filho tem a vida eterna. Aquele, porém, que se recusa a crer no Filho não verá a vida, mas a ira de Deus permanece sobre ele. No início está um enunciado sobre a mensagem que vem de cima, de Deus, como testemunho ou palavra. A esta palavra ou testemunho segue-se uma resposta, que pode ser de dois modos: de aceitação ou de rejeição. No primeiro caso, o crente, que aceita a mensagem, atesta (lit. afirma com selo) que Deus é verdadeiro e recebe a promessa da vida eterna (v. 36). Mas àquele que se recusa a crer anuncia-se a ira de Deus no julgamento (ibid.). Estrutura semelhante já encontramos no Prólogo do Quarto Evangelho. A frase dizendo que os seus não acolheram a palavra de Deus (Jo 1,5,9.10) é compensada pela promessa de que todos os que creem neste palavra se tornam filho de Deus (1,12s). No início da passagem dos vv. 31-33 aparece a contraposição entre aquele que vem de cima/do céu e aquele que é da terra. Já conhecemos a expressão “de cima” (ánōthen) pelo diálogo entre Jesus e Nicodemos em Jo 3,3.7. Ali o sentido podia ser: nascer “de cima” ou “de novo”. O primeiro sentido poderia ser sustentado pelo texto que ora estamos analisando, mas tal correspondência não deve ser sobrestimada. O “vir” de Jesus já foi mencionado nas palavras do Batista em 1,15.27.30. Este Jesus é aquele que “vem de cima”. Segundo o v. 34, ele foi “enviado por Deus”. A este, que vem de cima, opõe-se aquele que é da terra. Alguns poucos autores veem neste personagem João Batista, o qual, em comparação com Jesus, tinha uma mensagem mais terrena e mais humana (R. E. Brown). Mas é preferível ver naquele que é da terra qualquer um que traz uma mensagem meramente humana. Isso não se pode dizer da mensagem profética de João Batista, o “homem enviado por Deus” (1,6). Aquele que vem de cima está acima de todos. O agir segue o ser. Visto que está acima de todos, pode falar de cima, com pleno poder do Altíssimo156. Tal embaixador celestial não apenas “fala” de coisas celestiais, ele dá testemunho delas. Este enunciado lembra Jo 3,11, onde Jesus diz de si mesmo que ele “dá testemunho daquilo que viu”. Por isso, o que ele diz é fidedigno. A representação de uma testemunha de coisas celestiais ambienta-se nos textos apocalípticos. Deve, porém, ser distinguida da representação, frequente em João, do testemunho a favor de Jesus e de sua missão da 155 M. STARE, “So nämlich liebte Gott die Welt”, vê em Jo 3,31-36 “o testemunho do Batista como eco das palavras de Jesus na parte final do diálogo com Nicodemos” (74), sendo que Jo 3,31-36 retoma das palavras de Jesus de Jo 3,9-21. 156 Convém manter a repetição de evpa,nw pa,ntwn evsti,n no V. 31 com Nestle-Aland, apesar dos colchetes, que são devidos à ausência da repetição em P 75 a* D etc. Beutler B -79 parte do Pai157. O texto não diz de modo unívoco qual seria o conteúdo da mensagem celestial trazida por Jesus. Mas o contexto geral do Quarto Evangelho permite concluir que o conteúdo de seu testemunho é dado com seu envio como revelador da parte do Pai. O que ele deve anunciar e testemunhar é, exatamente, este envio, e só isso. A dupla resposta que se pode dar à mensagem celestial já foi indicada no Prólogo, como acima dissemos. A contradição entre a asserção genérica de que “ninguém aceita o seu testemunho” e um grupo humano particular que, contudo, o aceita, se deixa resolver com a indicação de que, para a acolhida da mensagem divina, é preciso a predestinação de Deus e sua graça (cf. Jo 6,44). Só a partir de si mesmo, o ser humano não pode entender nem aceitar a revelação divina. A quem acolhe a mensagem divina não se apresenta nenhuma promessa, mas dele se diz que “marcou com selo que Deus é verdadeiro”. O contrário seria fazer de Deus um mentiroso, como se diz em 1Jo 1,10 a respeito daqueles que pretendem que não pecam. A expressão “confirmar com selo” (sphragízein) encontra-se ainda uma vez em João, em 6,27, onde é dito que Deus “marcou com selo” o seu Filho que enviou ao mundo: ele o marcou com o selo da fidedignidade. De acordo com isso, os que aceitam o testemunho do Filho confirmam o envio dele como revelador da parte do Pai e, ao mesmo tempo, a fidedignidade do Pai que o enviou. Nos vv. 34-36, inicialmente, o “ser enviado por Deus” corresponde ao “vir de cima”. Também no restante, as palavras do v. 34 correspondem às de 31s., ainda que com algumas modificações. A primeira diferença é que se diz de Jesus, o Enviado de Deus: “ele dá o Espírito sem medida”. Assim, a palavra de revelação do Filho é ligada ao dom do Espírito, e a secção 3,31-36, conectada com o diálogo de Jesus e Nicodemos em 3,1-12. Na medida em que realça a dimensão pneumática da revelação, o autor acentua a dimensão trinitária da salvação e, destarte, encerra o inteiro cap. 3. A outra diferença em comparação com os vv. 31-33 consiste na afirmação de que o Pai ama o Filho e pôs tudo em suas mãos (v. 35). Do amor do Pai para o Filho falam os discursos de despedida (Jo 17,23.26). No início dos discursos é confirmado que Deus pôs tudo nas mãos do Filho (Jo 13,3). Esta dupla correspondência mostra que nosso texto do capítulo 3 se situa na proximidade dos discursos de despedida em sua forma final (Jo 17 provavelmente pertence à última camada desses discursos e do conjunto do Evangelho segundo João). Quanto ao conteúdo, pode-se ver neste motivo a influência da teologia da Aliança do Antigo Testamento: Israel ama a Deus e é amado por ele, na medida em que permanece fiel a seus mandamentos (cf. Dt 7,8s.13). A promessa de vida eterna feita àqueles que creem no Filho é um motivo central do Quarto Evangelho (cf. desde Jo 3,16.18 até o versículo final 20,31). A alternativa, a incredulidade, no v. 36 é designada como “desobediência”. Essa desobediência leva à “ira” de Deus, termo que ocorre em João só aqui e, em outros lugares, é representado pelo termo “julgamento” (cf. Jo 3,17-21). Na tradição sinóptica, ao contrário, o termo “ira” encontra-se na tradição da pregação penitencial do Batista (Lc 3,7). Alguns autores concluem, desse parentesco linguístico, que Jo 3,31-36 faz parte do discurso do Batista que se inicia em 3,27, mas isso nada mais é do que uma possibilidade. 157 Cf. J. BEUTLER, Martyria, 328ff. zu Joh 3,11.32; ID., art. marture,w, in EWNT II 960-962. Os textos de Qumrã falam num “testemunho”, hdw[t, divino. Segundo o Rolo da Guerra (1 QM 11,7s.), os profetas são os “videntes do testemunho” em relação à revelação do calendário da comunidade. Semelhante uso de “testemunho” encontra-se no proêmio de 2 Henoc (eslavo). No Novo Testamento, o Apocalipse conhece esse uso (cf. Ap 1,1s.). Beutler B -80 III Qual é a mensagem permanente de Jo 3,22-36, válida também para nós? O texto convida a se envolver com um movimento. O ponto de partida é “a Judeia”, a “terra judaica”. Apresenta-se João Batista, dando seu testemunho a respeito de Jesus. Característico é, nestes vv. 22-30, o “antes” e o “depois”. João foi enviado antes do Messias que ele anuncia, como já disse anteriormente. Quem vem depois dele é o esposo da noiva que é o povo de Deus. Ele mesmo, João, é apenas o amigo do esposo; ele não entra no quarto nupcial. Jesus deve crescer; ele, João, deve diminuir. Assim, o texto permanece solidamente ancorado dentro do judaísmo de seu tempo com sua expectativa da salvação escatológica, messiânica. Nos vv. 31-36, porém, a perspectiva muda. Percebemos neste texto uma “releitura”, leitura renovada da parte precedente. No lugar de um dualismo temporal entra um dualismo espacial. Jesus não vem cronologicamente depois de seu precursor: espacialmente, em virtude de sua origem, ele está acima de todos os que falam da salvação. Ele apresenta uma mensagem celestial. Ele é enviado da parte do Pai. Nisso, ele não traz somente a palavra e a mensagem de Deus, mas também o Espírito de Deus, sem medida. Este pensamento reata com textos anteriores. Por um lado, o evangelista aqui é marcado por representações apocalípticas, que conhecem o “testemunho” do vidente do mundo celestial. Por outro lado, com a mudança da perspectiva temporal para a perspectiva espacial, abre o texto para leitores helenistas, familiarizados com Platão. O mundo autêntico de “cima” é contrastado com o mundo inautêntico de “baixo”. Deste mundo de “cima” vêm a mensagem salvífica e o mensageiro salvador. A mudança de perspectiva convida a refletir sobre rescritas mais avançadas da mensagem salvadora. Representações espaciais do “mundo celestial” como o mundo verdadeiro e como origem da salvação, frequentemente, causam mal-entendidos. Há muita coisa que sugere que, hoje, é preciso considerar novamente e com mais intensidade a dimensão temporal. O Concílio Vaticano II apropria-se da “alegria e esperança” de toda a família humana. Isso abre novamente a mensagem da salvação em direção ao futuro. E leva de volta para a esperança da salvação de Israel, da “Judeia”. 8. Jesus na Samaria (4,1-42) 4 1 Quando Jesus soube que os fariseus ouviram dizer que ele reunia mais discípulos e batizava do que João 2–se bem que Jesus mesmo não batizasse, mas os seus discípulos –, 3 ele deixou a Judéia e foi novamente embora para a Galileia. 4 Era preciso que ele passasse pela Samaria. 5 Chegou, pois, a uma cidade da Samaria, chamada Sicar, perto da propriedade que Jacó tinha dado a seu filho José. 6 Havia ali a fonte de Jacó. Jesus, fatigado da viagem, sentou-se junto à fonte. Era por volta da hora sexta. 7 Veio uma mulher da Samaria tirar água. Jesus lhe disse: “Dá-me de beber!” Os seus discípulos tinham ido à cidade comprar algo para comer. 9 A samaritana disse a Jesus: “Como é que tu, sendo judeu, pedes de beber a mim, que sou uma mulher samaritana?” De fato, os judeus não se relacionam com os samaritanos. 10 Jesus respondeu: “Se conhecesses o dom de Deus e quem é aquele que te diz: ‘Dá-me de beber’, tu lhe pedirias, e ele te daria água viva”. 11 A mulher disse: “Senhor, não tens sequer um balde, e o poço é fundo; de onde tens essa água viva? 12 Serás maior que nosso pai Jacó, que nos deu este poço, do qual bebeu ele mesmo, como também seus filhos e seus animais?” 13 Jesus respondeu: “Todo o que bebe dessa água, terá sede de 8 Beutler B -81 novo. 14 Aquele, porém, que beber da água que eu darei, nunca mais terá sede, mas a água que eu darei se tornará nele uma fonte de água jorrando para a vida eterna”. 15 A mulher disse então a Jesus: “Senhor, dá-me dessa água, para que eu não tenha mais sede, nem tenha de vir aqui tirar água”. 16 Ele lhe disse: “Vai chamar teu marido e vem aqui!” 17 A mulher respondeu: “Eu não tenho marido”. Jesus lhe disse: “Falaste bem que não tens marido. 18 De fato, cinco maridos tiveste, e o que tens agora não é teu marido. Nisso falaste a verdade”. 19 A mulher lhe disse: “Senhor, vejo que tu és um profeta! 20 Os nossos pais adoraram sobre esta montanha, mas vós dizeis que em Jerusalém está o lugar em que se deve adorar”. 21 Jesus lhe respondeu: “Mulher, acredita-me: vem a hora em que nem nesta montanha, nem em Jerusalém adorareis o Pai. 22 Vós adorais o que não conheceis. Nós adoramos o que conhecemos, pois a salvação vem dos judeus. 23 Mas vem a hora, e é agora, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade. Estes são os adoradores que o Pai procura. 24 Deus é Espírito, e os que o adoram devem adorá-lo em espírito e em verdade”. 25 A mulher disse-lhe: “Eu sei que virá o Messias (isto é, o Cristo); quando ele vier, nos fará conhecer todas as coisas”. 26 Jesus lhe disse: “Sou eu, que estou falando contigo”. 27 Nisto chegaram os discípulos e ficaram admirados ao ver Jesus conversar com uma mulher. Mas ninguém perguntou: “Que procuras?”, nem: “Por que conversas com ela?”. 28 A mulher abandonou a sua bilha e foi à cidade, dizendo às pessoas: 29 “Vinde ver um homem que me disse tudo o que eu fiz. Não será ele o Cristo?” 30 Saíram da cidade ao encontro de Jesus. 31 Enquanto isso, os discípulos insistiam com Jesus: “Rabi, come!” 32 Mas ele lhes disse: “Eu tenho um alimento para comer que vós não conheceis”. 33 Os discípulos comentavam entre si: “Será que alguém lhe trouxe alguma coisa para comer?” 34 Jesus lhes disse: “O meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou e levar a termo sua obra. 35 Não dizeis vós: ‘Ainda quatro meses, e aí vem a colheita!’? Pois eu vos digo: levantai os olhos e vede os campos, como estão brancos para a colheita! 36 Aquele que colhe já recebe o salário; ele ajunta fruto para a vida eterna. Assim, o que semeia se alegra junto com o que colhe. 37 Pois nisto está certo o provérbio ‘Um é o que semeia e outro é o que colhe’: 38 eu vos enviei para colher o que não é fruto de vossa fadiga; outros se fatigaram e vós colheis o fruto da sua fadiga”. 39 Muitos samaritanos daquela cidade acreditaram em Jesus por causa da palavra da mulher que testemunhava: “Ele me disse tudo o que eu fiz”. 40 Os samaritanos foram a ele e pediram que permanecesse com eles; e ele permaneceu lá dois dias. 41 Muitos outros ainda creram por causa de sua palavra. 42 E até disseram à mulher: “Já não é por causa daquilo que contaste que cremos, pois nós mesmos ouvimos e sabemos que este é, verdadeiramente, o Salvador do mundo”. I Com a partida de Jesus da Judeia para a Galileia e sua etapa na Samaria, João inicia, pelo que parece, uma nova secção. Convém delimitá-lo em 4,42, onde termina a presença de Jesus na Samaria. A chegada de Jesus na Galileia, em Jo 4,43-45, representa uma nova secção, antes do segundo sinal de Jesus em Caná da Galileia em Jo 4,46-54. Depois do começo em Jerusalém (2,13) e na Judeia (3,22) vemos agora Jesus a caminho de novas paisagens da Terra Santa e de novas coletividades humanas. A construção da unidade textual acontece segundo pontos de vista narrativos. Os primeiros seis versículos podem ser compreendidos como introdução. Jesus chega à Beutler B -82 Samaria e, cansado pela viagem, assenta-se junto à fonte de Jacó. Com a chegada da samaritana, no v. 7, começa uma nova secção narrativa, colocando em cena o diálogo de Jesus com a mulher da Samaria (Jo 4,7-26). Esta parte pode ser dividida em duas: o diálogo sobre a água que Jesus primeiro pede e depois promete (vv. 7-15); e o diálogo seguinte, sobre o marido da mulher e o verdadeiro lugar do culto, trazendo, no fim, a autorrevelação de Jesus (vv. 16-26). Os vv. 27-30 são caracterizados por um duplo movimento: a volta da mulher para a sua cidade e a saída dos habitantes em direção a Jesus. Os vv. 31-38 descrevem o diálogo de Jesus com os seus discípulos, que haviam saído para comprar pão (v. 8), com o tema do alimento de Jesus e a transição para o tema da obra missionária (vv. 31-38). Com os vv. 39-42, a narrativa alcança seu encerramento: o testemunho da samaritana e o anúncio do próprio Jesus fazem com que muitos passem a crer em Jesus como “salvador do mundo”. O breve esboço do desenvolvimento narrativo mostra uma história bem construída, que, à primeira vista, não revela muito ensejo para hipóteses de fontes e camadas. Contudo, não faltam propostas neste sentido até hoje. Modelos mais antigos de distinção de fontes e camadas foram tratados na dissertação de Andrea Link158. A autora defende pessoalmente um modelo de quatro etapas, distinguindo a fonte dos sēmeîa, o escrito básico, a composição do evangelista a e a redação pós-joanina. Hipóteses semelhantes, sem a etapa do escrito básico, encontram-se em Jürgen Becker159 e Michael Theobald160. Este último, porém, vê somente em 4,9c uma possível redação secundária. Ao contrário destes autores, outros partem de um texto unitário, renunciando a hipóteses referentes ao desenvolvimento genético. Entre eles, Birger Olsson161, Teresa Okura162 e J. E. Botha163. Sempre de novo aponta-se a importância da tradição bíblica para a compreensão do diálogo de Jesus com a samaritana164. No que segue mostrar-se-á, sobretudo, este aspecto. II A chegada de Jesus à fonte de Jacó (4,1-6) Os primeiros seis versículos de Jo 4 introduzem os diálogos que se seguem até o v. 42. Descrevem principalmente um movimento topográfico. Jesus deixa a Judeia e vai à Samaria, onde se assenta junto à fonte de Jacó. Olhando de perto, vemos que esta unidade narrativa se divide em duas partes. Os vv. 1-3 descrevem a partida de Jesus da Judeia rumo à Galileia e a justificam. Nos vv. 4-6, Jesus continua seu caminho até a fonte de Jacó, onde, cansado, se senta. Entretanto, os três primeiros versículos podem também ser entendidos como encerramento de uma unidade narrativa maior, iniciada em 3,22, considerando que a descrição da atividade batismal de João em 3,22-24 e em 4,1-3 emoldura a cena de diálogo e discurso de 3,25-36165. 4,1-3 158 Cf. A. LINK, “Was redest du mir ihr?”, 103-177. J. BECKER I 196-199. 160 M. THEOBALD I 304s.; vgl. ID., Abraham, 163-168. 161 B. OLSSON, Structure. 162 T. OKURE, Mission. 163 J. E. BOTHA, Jesus. 164 Um belo exemplo se encontra em J.-L. SKA, Jésus. Cf. ainda M. THEOBALD, Abraham. 165 Vgl. T. NICKLAS, Literarkritik, que vê em Jo 3,25-36 um novo e último testemunho do Batista. 159 Beutler B -83 Os vv. 1-3 constituem uma construção com três orações subordinadas (hōs ... hóti ... hóti) no v. 1 e a frase principal no v. 3; o v. 2 é um parêntesis. O enunciado central dos três primeiros versículos encontra-se no v. 3: Jesus deixa a Judeia e parte para a Galileia. A razão de sua partida está no v. 1: Jesus166 ficou sabendo que os fariseus souberam que ele batizava mais que João Batista. Ele percebeu isso como um perigo para sua segurança pessoal e a de seus discípulos; por isso, retirou-se da Judeia. Supõese aqui, claramente, que o batismo de Jesus era visto no mesmo nível que o de João: criou-se uma situação de competição. Mas o v. 2 corrige esta impressão: não é Jesus quem batiza, mas seus discípulos. Na óptica da separação de fontes ou camadas literárias, parece que o evangelista corrige um texto subjacente, visto que, para ele, o batismo de Jesus é de outra natureza que o de João. Jesus não batiza com água, mas com o Espírito Santo (Jo 1,33). Seu batismo supera o do Batista. Na óptica da análise narrativa, pode-se ver, na correção do v.2 em relação ao v. 1, um elemento de orientação para o leitor. Por um lado fica claro agora de que natureza era o batismo administrado por Jesus segundo Jo 3,22-24167. Por outro lado, o público leitor percebe o autor como confiável, porque ele é capaz de corrigir ou de precisar os seus enunciados anteriores. Assim cria-se um “vazio” que o leitor pode preencher168. A origem histórica da notícia acerca da volta de Jesus da Judeia à Galileia não se conhece. Em todo o caso, galileus voltando de Jerusalém para seu lugar são coisa costumeira para os judeus. Na ida, seguem preferencialmente a estrada pelo vale do Jordão, para não se contaminarem, a caminho, com o santuário samaritano. As cenas da passagem de Jesus por Jericó (cf. Mc 10,46-52 par.) ilustram isso. Na volta, os romeiros não precisam dessa precaução. 4,4-6 Os versículos seguintes podem ser vistos como introdução, propriamente, para o diálogo de Jesus e da samaritana. A paisagem da Samaria aparece no v. 4 pela primeira vez, e isso, não como término da jornada de Jesus, mas como situação de passagem. Contudo, será o cenário de encontros e diálogos importantes. As indicações topográficas, nestes versículos, vão do geral para o particular. Depois da região da Samaria menciona-se a cidade de Sicar; depois, a fonte de Jacó e, finalmente, a beirada da fonte, onde Jesus se assenta, fatigado da viagem. Só então vem a nota cronológica: por volta da hora sexta, momento do grande calor do meio-dia. Segundo T. Okure169 percebemos aqui imagens da missão. Jesus está “fatigado” (kekopiakṓs) da viagem. O termo escolhido é usado também no resto do Novo Testamento para o “afadigar-se” a serviço do anúncio e do governo da comunidade (cf. Jo 4,38; 1Ts 5,12; 1Cor 16,16). A cena seguinte serve, inteiramente, para descrever Jesus a serviço do anúncio e para mostrar como outros – a mulher mesma, e também os discípulos – participam desse empenho. 166 Com Nestle-Aland28 baseado em P 66* a D Q 086 f 1 e outros manuscritos lemos aqui o` VIhsou/j ¸ contra a variante o` ku,rioj em P 66c.75 A B C K L Ws , e.o., e o texto majoritário. É mais provável o nome Jesus, que ocorre três vezes, ter sido substituído por “o Senhor” do que o contrário. No evangelho de João o título de “Senhor” é utilizado apenas para o Ressuscitado, mas no primeiro cristianismo ele é dominante. 167 Cf. T. NICKLAS, Literarkritik. 168 Cf. J. E. BOTHA, Jesus, 105. Segundo C. G. MÜLLER, Zeuge, o evangelista usa em Jo 4,1-3 o recurso retórico da síncrise, a comparação de duas personalidades como nas Vitae Parallelae de Plutarco, na qual se comparam figuras das antiguidades grega e romana. Ele mostra, nisso, a superioridade de Jesus sobre o Batista, porque ele batiza não com água, mas com o Espírito Santo. 169 Cf. T. OKURE, Mission, 86, 91. Beutler B -84 Sicar tornou-se capital dos samaritanos depois da destruição de Siquém por João Hircano I, em 129 a.C.170 Que Jacó deu a seu filho José um campo nesta região se deixa deduzir de indícios do Gênesis e de Josué: segundo Gn 33,18s., Jacó adquire um campo na região de Siquém, segundo Gn 48,4 ele dá este terreno a seu filho José, e segundo Js 24,32, os restos mortais de José são sepultados no campo que Jacó dera a seu filho. M. Theobald171 observa que o termo édōken, “ele deu”, em Jo 4,5, alude ao mesmo verbo em Gn 24,32 LXX. A fonte de Jacó não se encontra na Bíblia. Segundo J.-L. Ska172, M. Theobald e outros173, o motivo remete a histórias de fontes que na Bíblia se encontram em três lugares: – Gn 24,10-21: o servo de Abraão encontra Rebeca junto a uma fonte na proximidade da casa de seu avô Nacor; – Gn 29,1-13: Jacó encontra Raquel junto à fonte; – Ex 2,16-22: Moisés encontra, junto à fonte, Séfora com suas irmãs e os pastores de Jetro, seu futuro sogro. Os elementos de tais histórias de noivado (betrothal scenes) são descritas, na linha de R. Alter174, neste sentido175: o noivo viaja a uma terra distante e aí encontra uma jovem (ou diversas) junto a uma fonte. Tira-se água do poço. A jovem ou as jovens correm para casa, para dar a notícia do encontro. Prepara-se um noivado, geralmente ligado a uma refeição. M. W. Martin acrescenta mais elementos: a entrega de um presente à noiva e a autoapresentação do candidato176. Outros elementos podem acrescer. Assim, a influência das histórias bíblicas em Jo 4 parece segura177. A partir daí podem ser entendidos os temas dos cinco maridos da samaritana e do verdadeiro lugar de culto, desde que se conheça o valor simbólico do tema das núpcias em Israel. Cf. adiante vv. 16-26. O diálogo com a samaritana sobre a água viva (4,7-15) No v. 7 entra em cena a mulher da Samaria. Inicia-se o diálogo de Jesus com a mulher, que vai até o v. 26. Há sólidas razões para subdividir esta secção em 4,7-15 (com o tema da água viva) e 4,16-27 (com os temas dos maridos da mulher, do verdadeiro culto e da identidade de Jesus). A construção dos vv. 7-15 aparece na analise do fluxo narrativo. Podem-se distinguir três momentos de discurso entre Jesus e a samaritana: vv. 7-9 (o v. 8 é um parêntesis), vv. 10-12 e vv. 13-15. No fim do v. 9 entra um comentário do evangelista. Do ponto de vista semântico, os vv. 7-15 são dominados pelos temas “água” e “beber”. Os vv. 7 e 15 formam uma inclusão mediante os termos “vir... tirar (água)”. Assim, o conjunto destes versículos mostra-se uma unidade textual fechada. 4,7-9 170 Vgl. aqui e para o que segue: M. THEOBALD, Abraham, 168-172. Ibid., 168, nota 46 172 J.-L. SKA, Jésus. 173 M. THEOBALD, Abraham, 170. 174 R. ALTER, Art, 47-62. 175 Cf. M. W. MARTIN, Betrothal Journey Narratives, 597 176 Cf. M. W. MARTIN, Betrothal Journey Narratives, 508s. 177 A. E. ARTERBURY, Breaking the Betrothal Bonds, tenta reduzir estas histórias de fonte a cenas de refeição, mas não convence. 171 Beutler B -85 O pedido de Jesus “Dá-me de beber” corresponde ao gênero literário das histórias de fontes (cf. acima o comentário a vv. 4-6). Em Jo 4, este pedido pode ser visto em conexão com o esforço e a fadiga, a fome e a sede de Jesus durante sua viagem. Sobre o pano de fundo de outros textos do Quarto Evangelho, a sede de Jesus pode ser entendida também como expressão de sua sede pela salvação da humanidade. Recordam-se imediatamente as palavras de Jesus antes de morrer na cruz: “Tenho sede” (Jo 19,28). Também estas palavras não exprimem somente a sede física de Jesus. Essa compreensão do pedido de Jesus se confirma pelo v. 8: “Os seus discípulos tinham ido à cidade comprar algo para comer”. Jesus aparece em nossa narrativa como um ser humano que experimenta fome e sede, mas as carências físicas têm também seu lado espiritual. Isso se esclarece, a seguir, quando Jesus significa que seu alimento é fazer a vontade do Pai que o enviou, portanto, realizar a vontade salvífica do Pai (vv. 31-34). O sentido profundo dessas palavras escapa à mulher da Samaria. Ela nem mesmo atende ao pedido de Jesus, que pede que lhe dê de beber. Como sempre nesta sequência, ela se desvia ou mostra incompreensão. Em vez de corresponder ao pedido de Jesus, começa a discutir como Jesus, sendo judeu, pede um gole de água a ela, que é samaritana. O narrador completa o texto acrescentando que os judeus não se relacionam com os samaritanos178. Do ponto de vista narrativo, o pedido de Jesus não encontra nem compreensão, nem atendimento. Ao mesmo tempo, é introduzido um tema importante para a sequência do diálogo: a relação de judeus e samaritanos. Tornaremos a aprofundar este tema (vv. 19-24). O motivo da água encontra-se em quase todas as religiões. Bultmann vê a origem literária do texto de Jo 4 na suposta fonte gnóstica dos discursos de revelação. Mais próximo, porém, apresenta-se o pano de fundo bíblico do tema da água. Assim, o inicio do Salmo 42-43: “Como a corça almeja as fontes d’água, assim minha alma almeja a ti, ó Deus. Minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo. Quando irei e verei a face de Deus?” Este salmo aparece citado no Evangelho segundo João diversas vezes179. Na travessia do deserto Deus aliviou a sede de seu povo com água (Ex 17,1-7); este acontecimento é retomado no Salmo 105,41. O profeta Ezequiel descreve a visão de uma fonte que brota do Templo e se torna um rio que faz florescer o deserto (Ez 47). No Evangelho segundo João, duas curas de enfermos situam-se na proximidade das águas: a do aleijado em Jo 5 e a do cego de nascença em Jo 9. O motivo da água ocupa um papel central em Jo 7, no contexto da festa das Tendas. No auge dessa festa, Jesus proclama solenemente: “Se alguém tem sede, venha a mim, e beba quem crê em mim – conforme diz a Escritura: Do seu interior correrão rios de água viva” (Jo 7,37s.). E lembramo-nos das palavras de despedida de Jesus na cruz: “Tenho sede” (Jo 19,28). Jesus mesmo experimenta sede, mas ao mesmo tempo tem o poder de estancar a sede de seus irmãos humanos. Ele tem sede da salvação deles. 4,10-12 No segundo diálogo de Jesus e a samaritana apresentam-se dois novos temas: a bebida que Jesus oferece e a sua pessoa. Em vez de insistir no seu pedido por água, Jesus agora oferece à mulher uma bebida que ela ainda não conhece e que só se pode conhecer quando se sabe quem é Jesus. No lugar da água da cisterna-fonte, Jesus 178 A expressão de João pode traduzir-se também assim: “Judeus e samaritanos não usam vasos em comum” (assim D. DAUBE in JBL 69, 1950, 137-147), mas para tal tradução faltam paralelos convincentes (cf. W. BAUER, Wörterbuch, ad vocem). 179 Cf. J. BEUTLER, Psalm 42/43 im Johannesevangelium. Beutler B -86 oferece uma “água viva”, um dom de Deus, cujo sentido por enquanto escapa à mulher (v.10). De novo, a mulher é incapaz de entender as palavras de Jesus. A seus olhos, Jesus está doido: ele não tem balde, e o poço é profundo. Assim, a mulher mostra que entende as palavras de Jesus de modo meramente físico, natural, sem contar com um sentido religioso mais profundo das palavras. Por outro lado, a mulher introduz um novo tema, que será importante para o ulterior desenvolvimento do diálogo: uma comparação entre Jesus e o patriarca Jacó, que fez o poço para seu filho e seu rebanho. Esse desconhecido, que se sentou à beira da fonte de Jacó, acaso será maior que o patriarca Jacó? Os comentadores veem na pergunta da samaritana um exemplo de “ironia joanina”: de fato, para o público leitor ao qual o autor visa, Jesus é de fato maior que o patriarca Jacó, apesar de a mulher que faz a pergunta não ter consciência disso. 4,13-15 A resposta de Jesus não menciona nem o balde, nem sua posição em relação ao patriarca Jacó (que será mencionado mais adiante), mas descreve a natureza própria da água que ele está oferecendo: será de tal natureza que não terá mais sede quem dela beber. Tornar-se-á uma fonte cuja água brota para a vida eterna. Esta promessa antecipa a mensagem do discurso do Pão da Vida em Jo 6,35: “Eu sou o pão da vida. Quem vem a mim não terá mais fome, e quem crê em mim nunca mais terá sede”180. Evidentemente, a mulher se encontra longe ainda desta visão de fé. Por isso, ela responde com um pedido que está totalmente enquadrado neste mundo e nas necessidades cotidianas: “Senhor, dá-me dessa água, para que eu não tenha mais sede, nem tenha de vir aqui tirar água” (v. 15). Até agora, o diálogo não trouxe muito progresso. Jesus só conseguirá romper o mal-entendido da mulher passando para um tema radicalmente novo, que determinará o momento seguinte do diálogo (vv. 16-26). O diálogo de Jesus e a samaritana sobre o verdadeiro culto (4,16-26) “Vai chamar teu marido e vem aqui!”: esta ordem de Jesus surpreende neste lugar e pede esclarecimento. Aliás, não é a única surpresa nesta secção. Qual é a conexão entre o tema dos maridos da mulher e o do lugar de culto que Deus deseja? E como estas perguntas se ligam à identidade de Jesus enquanto profeta e até, possivelmente, Messias? E, finalmente, como compreender a expressão “a salvação vem dos judeus” na perspectiva do Quarto Evangelho e no contexto de Jo 4? A exegese histórico-crítica procurou resolver estas questões distinguindo fontes e camadas literárias. Na Europa Central reinou durante muito tempo a influência de Rudolf Bultmann, que distinguia entre um texto-fonte pré-joanino (a Fonte dos sēmeîa) e o evangelista, ao qual se acrescenta exegéticas ainda um redator eclesial (que seria em parte responsável pelo v. 22). As escolas bultmannianas evangélica181 e católica182 insistiam, e ainda insistem, nesta linha. Em tempos recentes, essa “crítica” foi criticada. Julga-se que, enquanto não se apresentam tensões insuperáveis, o texto deve ser explicado como um conjunto que faz 180 P. LÉTOURNEAU, Durst, 520, aponta paralelos na literatura judaica sapiencial, que veem na água uma imagem da Sabedoria e da Lei. Mas ao lado das semelhanças existem diferenças. Assim, a Sabedoria diz em Eclo 4,21: “Quem me ouve, tem fome ainda, quem me bebe, ainda tem sede”. 181 Cf.. os comentários de J. BECKER, S. SCHULZ e E. HAENCHEN. 182 Cf. G. RICHTER, Studien (edit. J. HAINZ; A. LINK), “Was redest du mir ihr?”; e o comentário de M. THEOBALD. Beutler B -87 sentido. Ora, nossa unidade textual deixa-se explicar muito bem, na forma que temos diante de nós, como um conjunto que faz sentido; mostraram isso representantes recentes da exegese sincrônica183. A seguir tentaremos abordar o texto desse modo. Para isso serão mostradas tradições bíblicas que o influenciaram e que ajudam a perceber a coerência interna dos temas muito diversificados desta secção. A estrutura da secção reflete-se nos turnos do diálogo entre Jesus e a samaritana. Os vv. 16-18 se mostram conectados pelo tema, como geralmente se reconhece. Nestes versículos, o tema é a questão do marido (ou dos maridos) da mulher, numa sequência Jesus-mulher-Jesus. Em seguida, a mulher da Samaria troca o tema e passa, nos vv. 19s., à pergunta do lugar de culto desejado por Deus. Jesus responde a sua pergunta nos vv. 21-24. A isso se segue um último turno de pergunta e resposta entre a mulher e Jesus, nos vv. 25s. Nota-se que, a partir do v. 19, a ordem dos atores nos diálogos se inverte. É a mulher que toma a iniciativa e lança perguntas, às quais Jesus então responde. Nisso se percebe o papel progressivamente mais ativo da mulher samaritana neste diálogo. 4,16-18 A ordem “Vai chamar teu marido e volta aqui!” surpreende os leitores. Explicações não faltam. Gail R. O’Day184 vê uma conexão com o versículo anterior na palavra “aqui”. A mulher acabou de pedir a Jesus que lhe desse água viva para que ela não precisasse mais voltar “aqui”. Jesus não reage a seu pedido, mas, ao contrário, ordena à mulher de voltar “aqui” com seu marido. A autora americana vê neste uso repetido do termo um exemplo da “ironia joanina”: Jesus retoma uma palavra que a parceira do diálogo usou, mas em outra relação semântica e com outra finalidade. J. Eugene Botha185 não concorda com esta proposta e lhe opõe outra: Jesus, no v. 16, troca o tema conscientemente para, assim, poder continuar a conversa com a mulher. Até este ponto, ele não tinha conseguido entrar em diálogo realmente pessoal com a mulher (“to get through to her”, como diz H. Boers186). Pela troca súbita do tema isso se tornaria possível, pensa Botha, recorrendo à teoria do “ato linguístico”. Sem questionar essas considerações linguísticas em torno do texto, convém chamar a atenção para o fundo bíblico desta cena. Lembramos um artigo de J.-L. Ska187, que, com outros autores, remete às histórias de encontro junto à fonte que aparecem no Antigo Testamento (Gn 24; o servo de Abraão encontrando Rebeca; Gn 29,1-13: Jacó que encontra Raquel; Ex 2,16-22: Moisés que encontra Séfora e suas irmãs). Essas histórias são sempre histórias de amor. No início, o homem ou a mulher pede água, depois segue um diálogo, a mulher leva o homem consigo para casa, eles fazem refeição, ele pede sua mão e eles se casam. Pode-se perguntar por que, em nossa história, o final é diferente. Segundo J.-L. Ska, a samaritana em Jo 4 representa o povo dos samaritanos e sua religião. Esta observação é apoiada pela resposta da mulher dizendo que não tem marido. Jesus aproveita esta resposta e esclarece: ela teve cinco maridos e o que ela tem agora não é o seu marido. Ska vê esta resposta de Jesus em conexão com o tema da infidelidade de Israel para com seu Deus. A samaritana aparece no papel da mulher do cap. 2 de Oseias, que se torna infiel ao seu “marido” e só é 183 Cf. G. R. O’DAY, Revelation; F. WESSEL, Die fünf Männer; G. VAN BELLE, Revelation; H. THYEN, Eine ältere Quelle. 184 G. R. O’DAY, Revelation. 185 E. E. BOTHA, Jesus, 139-141. 186 H. BOERS, Neither on This Mountain. 187 J.-L. SKA, Jésus. Beutler B -88 reabilitada quando acontece um novo compromisso matrimonial. Deste modo, não a mulher, mas os samaritanos tornam-se “esposa” de Jesus. E cumpre-se a promessa de nova fecundidade, segundo Os 2. Para os cinco maridos da mulher alegaram-se diversas explicações. Eis as três mais importantes: 1) Os cinco são os cinco maridos reais da mulher da Samaria. Como os rabinos só permitem três casamentos sucessivos, ela é uma mulher de fama questionável. E seu parceiro atual nem sequer é seu marido. 2) Os cinco maridos significam as divindades dos samaritanos que, segundo 2Rs 17,30-32.41, as tribos estrangeiras que migraram para Samaria trouxeram consigo. Verdade é que o texto de 2Rs fala em sete, mas Flávio Josefo (Ant. IX, 288) só fala em cinco. Os samaritanos cultuaram essas divindades, e agora cultuam o Deus verdadeiro numa maneira que não lhe agrada. 3) Os cinco maridos representam os cinco livros do Pentateuco188. A mulher representa a Samaria, que segue a tradição do Pentateuco, mas não foi fiel a esse laço com Deus. A primeira proposta hoje em dia pouco se defende. Assim restam a segunda e a terceira. Não se excluem mutuamente, necessariamente. Na cena do diálogo joanino, o tema metafórico da vida matrimonial da mulher prepara a transição para o próximo objeto da conversa, o lugar de culto que Deus deseja. 4,19-24 A partir de agora muda-se a ordem dos participantes do debate. A mulher toma a iniciativa e dirige-se a Jesus com a questão do lugar de culto que Deus deseja189. Dirige sua pergunta respeitosamente a Jesus, ao qual ela chama de “senhor” e no qual ela reconhece um “profeta”. Segundo a fé dos samaritanos, só aos profetas era confiado revelar as coisas secretas. Assim, o diálogo passa da focalização da mulher para a pessoa de Jesus. Não é preciso pensar que Jesus tenha revelado à mulher os pecados dela em particular. O que ele disse sobre a vida anterior dela pode explicar-se também por seu conhecimento das experiências mais pessoais do parceiro do diálogo; pensemos em seu conhecimento dos fatos pessoais de Natanael (Jo 1,48) ou em seu conhecimento do ser humano em geral (2,23; cf. 13,21). A mulher pergunta agora a respeito do lugar de culto que Deus deseja. Este tema era um ponto principal de discussão entre judeus e samaritanos. Este novo tema se deixaria esclarecer a partir de uma compreensão metafórica da situação matrimonial da mulher. Uma explicação mais simples pode ser o fato de que o monte Garizim se encontra na proximidade imediata da fonte de Jacó190; assim a transição se entende com facilidade. Na resposta de Jesus (vv. 21-24) importa distinguir entre o ponto de partida e a meta. Jesus parte de um culto que, segundo a vontade de Deus, registrada na Escritura, deve acontecer em Jerusalém. Neste sentido, “a salvação vem dos judeus”. Mas o termo final é um culto no qual as diferenças entre os diversos lugares de oração e sacrifício são superadas. E o tempo em que isso acontece é o tempo do fim. João usa para enunciar isso duas expressões: “Vem a hora” (v.21) e “Vem a hora, e é agora” (v. 23). Ambas as maneiras de ver se complementam e não devem ser atribuídas a dois estágios diferentes da redação191. 188 Assim F. WESSEL, Die fünf Männer. A Einheitsübersetzung [e muitas traduções]* usam aqui e a seguir o verbo “adorar”, mas seria melhor traduzir por “venerar” a Deus. 190 Cf. G. R. O’DAY e B. OLSSON, positivamente citados por J. E. BOTHA, Jesus, 143s. 191 Cf. a monografia em três volumes de J. FREY, Die johanneische Eschatologie. 189 Beutler B -89 E o que significa “em espírito e em verdade”? Não se trata de um culto puramente interior, sem assembleia religiosa da comunidade, ritos e ministros; trata-se do culto do tempo final. O Espírito será o “dom” de Deus no tempo por vir, o tempo da “Nova aliança” (cf. Ex 36,26)192. De acordo com isso, “verdade”, neste texto e contexto, não é a “concordância entre o conceito e a realidade” nem a “manifestação do ser enquanto ser”. O conceito de verdade, na literatura joanina, não é moldado em sentido filosófico, mas teológico, como I. de la Potterie, em sua dissertação193, mostrou de modo esclarecedor em oposição a Bultmann. Em João, a representação da verdade tem feições veterotestamentárias e protojudaicas, com correspondências inclusive nos textos de Qumrã. Deriva-se da raiz hebraica emet e descreve antes uma relação entre pessoas (Deus e seu povo) do que entre grandezas abstratas: a saber, a autocomunicação fidedigna de Deus. A palavra de Jesus “A salvação vem dos judeus” não significa que, até a chegada de Jesus Cristo, a salvação viesse dos judeus, e depois, exclusivamente de Jesus e dos cristãos. A salvação vem sempre dos judeus, como atesta, entre outros, K. Wengst194 com J. Calvin. Paulo falaria dos ramos que foram enxertados na oliveira de Israel (cf. R, 11,16-20). O ramo não sustenta a raiz, é a raiz que sustenta os ramos. Como já dissemos, R. Bultmann e sua escola negam que Jo 4,22 venha do evangelista João. A expressão “A salvação vem dos judeus” seria um acréscimo da “redação eclesial” ou “joanina”. Mas é difícil ver por que, no fim do século I, a comunidade, que se tornava cada dia mais gentio-cristã, teria tido interesse em acrescentar uma frase dessas. É melhor abandonar tal hipótese. 4,25-26 O último turno do diálogo entre a samaritana e Jesus aproxima-se ainda mais do mistério de Jesus; o Messias deve vir e instruir o povo a respeito do culto que Deus deseja. Segundo Gail O’Day195 pode-se ver aqui um último exemplo da ironia joanina: a mulher, sem o saber, exprime a convicção de fé da comunidade cristã; com esta diferença, que o Messias não virá, mas já está presente; nem é um desconhecido, mas é Jesus, que está diante dela e conversa com ela. É o que Jesus lhe anuncia: “Sou eu, que estou falando contigo” (v. 26). Jesus é o “Taheb”, o Messias “vindouro” dos samaritanos, mas também o Messias dos judeus; e logo mais ele e se revelará como o “salvador do mundo”, como o proclamarão os samaritanos depois do encontro com ele (v. 42). Os exegetas se perguntam se as palavras de Jesus, “Sou eu”, significam mais que sua identificação com o Messias vindouro de que falou a mulher. Parece natural ver nesta expressão um exemplo do “Eu sou” com o qual Deus se autoapresenta no Antigo Testamento (desde Êxodo até Ezequiel). Se esse sentido se confirmar, as palavras de 4,26 transcendem o messianismo e desembocam na cristologia joanina em sentido pleno: Jesus se revela como Deus presente no meio dos homens. A saída da mulher, a chegada dos discípulos e dos samaritanaos (4,2730) 4,27-30 192 Em sua dissertação romana, Worshipping, B. JOJKO ressalta a dimensão trinitária de Jo 4,20. I. DE LA POTTERIE, Vérité. 194 K. WENGST I 174s.; neste respeito, cf. também G. VAN BELLE, Salvation. 195 G. R. O’DAY, Revelation. 193 Beutler B -90 A breve secção seguinte caracteriza-se pelo “ir/sair” e pelo “vir/chegar”. Distingue-se um movimento triplo: os discípulos chegam a Jesus (êlthan, v. 27), a mulher se vai (apêlthen, v. 28-29) para testemunhar acerca de Jesus; e os habites saem da cidade (exêlthon, v. 30) para encontrar Jesus. Este resumo mostra que Jesus está no centro da secção. Dele sai o movimento e a ele volta, depois de um primeiro, tímido testemunho da mulher a seu respeito. No início está a chegada dos discípulos, que tinham ido à cidade para comprar víveres (cf. v.8). Acertadamente, Bultmann observa que os discípulos, voltando nesse momento, ainda são testemunhas da conversa de Jesus e da samaritana. O tema ainda não é o alimento, mas a admiração dos discípulos que se perguntam por que Jesus fala com uma mulher. Para H. Boers196, o fato de Jesus falar com uma mulher não se encaixa na coerência temática da secção; por isso, exclui o tema da sua análise semântica. Contudo, não se deve limitar o arcabouço dos temas que aqui vêm à fala. Em 1,1-42, Jesus aparece como alguém que, de diversos modos, rompe com os costumes de seu povo. A principal ruptura é em relação ao conflito entre judeus e samaritanos, mas também a relação homem-mulher na sociedade do país vem à pauta. Ambos estes aspectos, em que Jesus trilha caminhos novos, são apontados no v. 9, onde a samaritana exprime sua admiração pelo fato de Jesus, um judeu, falar com ela, mulher da Samaria. Assim, a admiração dos discípulos no v. 27 vem preparada desde longe. O texto do v.27 não diz simplesmente “Por que falas com ela?”, mas menciona o conteúdo da pergunta que os discípulos não chegam a formular: “Que procuras?”. E. Cothenet197 vê nestas palavras uma expressão da “procura” de Jesus pela salvação da samaritana, na qual se exprime a procura de Deus pela salvação da humanidade. Segundo o v. 28, a mulher abandona sua bilha e volta à cidade, para aí anunciar quem ela encontrou. Os exegetas veem nisso, geralmente, um indício da pressa da mulher ao sair do lugar. Contudo, pode-se ver aqui a expressão do processo de aprendizagem que a mulher percorreu desde o início do encontro com Jesus. As leitoras e leitores percebem que a mulher não precisa mais da água física que ela fora buscar depois de ter encontrado Jesus, fonte e doador da água viva, que sacia a sede do ser humano num sentido mais profundo. A mensagem da mulher aos habitantes da cidade tem duas partes. Ela encontrou um homem que lhe disse tudo o que fez. Esta experiência prova, no mínimo, que ele deve ser um profeta (cf. v. 19). Na segunda parte do testemunho, a mulher transcende esse nível e pergunta se ele não seria o Messias. Os exegetas não são concordes quanto ao sentido de sua pergunta. Alguns são céticos198. O termo mḗti, “(acaso) não ?”, faria esperar uma resposta negativa (o mesmo termo ocorre em Jo 8,22; 18,35). Outros199 julgam que a expressão tem sentido aberto, se não faz pensar num resposta positiva200. À luz da análise narrativa (cf. o testemunho do v. 20), parece mais provável que a mulher suspeita que Jesus seja o Messias do que o contrário. Exatamente por isso, os habitantes saem da cidade de Sicar em direção a Jesus (v. 30). 196 H. BOERS, Neither on This Mountain E. COTHENET, Nourriture. 198 Assim E. DANNA, A Note. 199 Cf. W. BAUER, Wörterbuch, sub voce; BLASS-DEBRUNNER, Grammatik, 427,2; SCHNACKENBURG I 478. 200 Assim H. BOERS, Neither on This Mountain. 197 Beutler B -91 O diálogo de Jesus com os discípulos sobre seu alimento e a colheita (4,3138) A volta dos discípulos leva a um diálogo com Jesus sobre o alimento dele. Ao convite dos discípulos para que Jesus coma (v. 31), conecta-se uma resposta de Jesus a respeito de seu alimento; esta resposta vai até do v. 34. Depois, Jesus passa a falar da colheita que está chegando, até o v. 38. Para a exegese pormenorizada convém interpretar os vv. 31-34 e 35-38 separadamente, mostrando, porém, a sua coerência. 4,31-34 Os primeiros quatro versículos da secção se referem ao tema do alimento e do comer. Assim como em ambas as secções anteriores do diálogo com a samaritana (cf. a ordem “Dá-me de beber”, v.7; e “Vai chamar teu marido e vem aqui!”, v. 16), também aqui a secção inicia-se com uma ordem. Desta vez, são os discípulos que ordenam a Jesus: “Rabi, come!” Assim como nos dois exemplos anteriores, quem recebe a ordem não atende. A reação de Jesus traz à memória a conversa sobre a água nos vv. 9-16. Mas, ao contrário dessa conversa (e de 6,35), Jesus não fala aqui de uma bebida ou alimento que ele fornece, mas de algo que ele recebe. Também este alimento deve ser entendido figurativamente: o alimento consiste, para Jesus, no cumprimento da vontade de quem o enviou, a saber, o Pai (v. 34). Os discípulos não são capazes de entender o sentido e se perguntam se, entretanto, alguém teria trazido algo para Jesus comer (v. 33). O que é o alimento verdadeiro de Jesus escapa à compreensão dos discípulos (v. 32). A semelhança com o diálogo com a samaritana é evidente. Por outro lado, o tema do alimento verdadeiro mostra parentesco com o de sua sede, em sentido metafórico. Lembra-se que, no início da narrativa, Jesus se sentou, sedento e fatigado, na beirada da fonte de Jacó e pediu à mulher da Samaria um gole de água (vv. 6ss.). Aprofundando, percebemos que se tratava de sua sede pela salvação da humanidade, sede que o acompanhará até suas últimas palavras na cruz (cf. 19,28). Jesus tem sede de fazer a vontade do Pai. A vontade do Pai é a salvação dos homens, a “vida eterna” no nome de Jesus. Isso nos conduz ao início da oração de despedida de Jesus em Jo 17. Nos primeiros versículos desta oração vem à tona este objetivo da vida e da missão de Jesus. Em Jo 17,4, Jesus fala da “obra” (érgon, no singular) que ele deve “levar a termo” ou que ele “levou a termo” (teleioûn): são as mesmas palavras de Jo 4,34. Assim já nos encontramos no campo lexical da missão, que determina os quatro versículos seguintes. 4,35-38 O conceito da “colheita”, que domina os próximos versículos, não aparece alhures em João, mas aparece, em sentido escatológico ou missionário, em outros lugares do Novo Testamento. Nos evangelhos sinópticos o conceito se encontra nas parábolas de Jesus para descrever figurativamente a colheita escatológica dos frutos da salvação ou do julgamento (Mc 4,29; Mt 13,30.39) ou para descrever a missão (Mt 9,37s./Lc 10,2 = Q). É neste último sentido que o termo é utilizado por João em 4,35ss., no quadro de um provérbio. Este provérbio se refere à distância entre a floração das espigas e seu fruto na hora da colheita. Ora, no mundo que Jesus aponta presente, essa distância desapareceu. Com a floração já se apresenta a maturação: chegou o tempo da colheita–em Jesus. No v. 36, o olhar se volta para a distinção entre o semeador e o que recolhe. Ambos se alegrarão. Nesta altura, cita-se outro provérbio, que toca na distinção entre o semeador e quem recolhe (v.37). Jesus aplica essa distinção à atual situação: outros semearam, e os discípulos recolhem um fruto que eles não semearam. Apenas participam da “fadiga” de quem semeou antes deles (v. 38). A terminologia remete à “fadiga” de Jesus no inicio Beutler B -92 da conversa com a samaritana (4,6: kekopiakṓs). Lembramos que em 1Ts 5,12 esta expressão é usada como termo técnico para o empenho pastoral. Os exegetas têm opiniões diversas a respeito de quem são os que “se fatigaram”. Há quem pense no Pai, outros em João Batista, outros ainda na mulher samaritana. Ao responder a esta questão convém ter presente que o texto pressupõe uma atividade missionária na região dos samaritanos no tempo do evangelista. Neste sentido, poder-seia pensar também nos primeiros missionários da região – segundo At 8,4-8, Filipe, antes da chegada de Pedro e João (At 8,4-8)201. Olhando para trás, retoma-se a pergunta da unidade temática do diálogo de Jesus com os discípulos em Jo 4,31-38. Segundo nossa interpretação, que se liga à de autoras e autores recentes202, Jo 4,1-42 é uma história simbólica. Sobretudo B. Olsson e T. Okure salientaram o papel central da “obra” de Jesus nesta secção. Pode-se mostrar que o aspecto missionário desde o início ocupa um papel na narrativa de Jo 4, desde o momento em que Jesus, fatigado e sedento, se assenta na beirada da fonte e pede à mulher: “Dá-me de beber” (4,7). Na última secção (4,31-38), esse tema é levado a termo. Muitos samaritanos passam a crer em Jesus (4,39-42) 4,39-40 Num primeiro momento, os samaritanos passam a crer em Jesus (como se lê com a maioria dos manuscritos), graças ao testemunho da mulher, que anuncia que Jesus lhe disse tudo o que ela fez. O evangelista não considera esta fé como insatisfatória; todavia, ela permanece aberta a um progresso na compreensão203. Este progresso tornase possível graças à estada de dois dias de Jesus na cidade dos samaritanos, mencionada no início do v.43. Durante essa estada, Jesus pode dirigir sua palavra aos samaritanos e conduzi-los a uma compreensão mais profunda de sua pessoa e missão. 4,41-42 A palavra de Jesus é tomada, na segunda metade da secção, como razão por que uma multidão ainda maior204 passa a crer nele. A palavra de Jesus se substitui ao relato da mulher. Não que a palavra da mulher tenha sido supérflua: isso o texto não diz. Só diz que os samaritanos “já não” acreditam (como antes) com base no relato da mulher, mas (agora) acreditam com base no seu encontro pessoal com Jesus e sua palavra, que os leva à confissão da fé, reconhecendo que “ele é, verdadeiramente, o salvador do mundo”. III Também a história de Jesus e da samaritana é marcada por um movimento. Ponto de partida é o pedido de Jesus por um gole de água. Ele precisará também de pão para continuar seu caminho em direção aos homens. Mas, também para João, o homem não vive só de pão e da água potável de cada dia. A samaritana e, com ela, as leitoras e 201 Assim entende o texto também M. THEOBALD, Die Ernte ist da. Cf. B. OLSSON, Structure; T. OKURE, Mission; H. BOERS, Neither on This Mountain. 203 Não há razão suficiente para atribuir esses dois versículos, que mencionam a fé baseada numa palavra profética, a uma Semeiaquelle, como fazem BULTMANN e sua escola; somente mostram as gradações na confissão de fé dos samaritanos. 204 Que eles acreditavam “mais” em Jesus é uma lição de P 75 e uns poucos manuscritos da Vetus Latina; não é original. 202 Beutler B -93 leitores são, para lá das necessidades cotidianas, conduzidos à bebida verdadeira, Jesus como fonte de água viva; e ao alimento verdadeiro, o cumprimento da vontade salvífica do Pai. Esta vontade salvífica deseja a salvação também para os samaritanos, os “irmãos e irmãs separados” do povo judeu. Não mais serão separados uns dos outros por santuários separados, tradições separadas. Sim, aproxima-se um tempo, e com Jesus ele irrompe, em que os verdadeiros adoradores adorarão Deus onde for que seja. Isso se tornará possível no Espírito e em Jesus, e assim ele é verdadeiramente “o salvador do mundo” (v. 42). Não é insignificante que Jesus, na Samaria, se revela em primeiro lugar a uma mulher. Já na Antiguidade e no protojudaísmo se podem perceber e observar barreiras entre homens e mulheres. Jesus vence essas barreiras, para admiração de seus discípulos. Por todos os tempos, seu procedimento incomoda, no duplo sentido da palavra: primeiro como escândalo, depois como convite para seguir seu exemplo na superação de preconceitos em relação às mulheres. Se a mulher de Sicar é anunciadora da mensagem da salvação para seus compatriotas, então ela permanece exemplo para mulheres a serviço do anuncio até o dia de hoje. 9. Jesus na Galileia (4,43-45) 43 Passados os dois dias, Jesus saiu dali, rumo à Galileia. 44 Jesus mesmo, de fato, tinha testemunhado que um profeta não recebe honra em sua pátria. 45 Quando, então, veio à Galileia, os galileus o receberam bem, porque tinham visto tudo o que fizera em Jerusalém, por ocasião da festa, pois também eles tinham ido à festa. I Como geralmente se observa, em Jo 4,43-45 é retomado e continuado o relato da partida de Jesus para a Galileia, de Jo 4,1-3. Quando, na leitura, se unem os vv. 43 e 45, a lógica é clara: Jesus se vê ameaçado na Judeia, parte para a Galileia, chega efetivamente aí depois do episódio da Samaria. Ele é recebido de braços abertos por causa da fama que ele granjeou pelos sinais realizados em Jerusalém, pois os romeiros que de lá voltaram já tinham feito o relato disso. O v. 44, porém, causa um problema. Para sua viagem, Jesus se vale de um provérbio: um profeta não é reconhecido em sua própria terra. Mas o que faz aí a conjunção gar, “pois/de fato”? A crítica literária clássica tentou resolver o problema distinguindo fontes e camadas. Um representante tardio dessa opinião é J. Becker: segundo ele, o v. 44 seria uma glosa de um copista, posteriormente introduzida no texto. Há poucos que aceitam esta explicação; a maioria dos exegetas lê o trecho como unitário. Mas então, qual é a pátris, “pátria”, de Jesus e qual então o sentido de gar, “pois/de fato”? A explicação mais antiga vê na pátria de Jesus, em Jo 4,44, Jerusalém ou a Judeia. Assim já Orígenes205 e Teodoro de Mopsuéstia206. É a interpretação que aqui tomamos por base, como se pode ver adiante, II. Na pesquisa recente, a referência a Jerusalém é 205 206 Origenes, In Ioann. 13,54-55, SC 222 (ed. C. BLANC), 236-243. CSCO 116 (ed. J.-M. VOSTÉ), 68. Beutler B -94 reconhecida, sobretudo, na exegese anglossaxônica, mas também por alguns exegetas europeus continentais207. Quem vê na “pátria” de Jesus a Galileia (ou sua “cidade paterna”, Nazaré) se apoia, via de regra, nos paralelos sinópticos Mc 6,1-6 par. Mt 13,53-58; Lc 4,16-30. Observe-se, contudo, que os provérbios acerca do profeta que não encontra ouvido em sua terra e do médico que não faz curas entre os seus se encontram também, sem o quadro narrativo, no Evangelho de Tomé (n. 31) e no papiro POxy 1,6; mas o texto deste papiro remonta, provavelmente, aos sinópticos, especialmente a Lucas (onde aparece o tema do médico). Os que defendem que se trata de Nazaré ou da Galileia pertencem geralmente ao âmbito de língua alemã, mas não todos208. A dificuldade dessa interpretação consiste nisto, que o gár (“pois/de fato”) no v. 44 remete para o que antecede, neste caso, a partida da Samaria rumo à Galileia. Se, então, Jesus parte para a Galileia pelo motivo de o profeta não ser aceito em sua própria terra, parece que ele está procurando a rejeição: os galileus o recebem de braços abertos, no v. 45, mas a fé deles é imperfeita, porque baseada no ver dos sinais. Neste caso teríamos, no v. 44, uma “ironia joanina”. As leitoras e leitores bem sabem que a Jesus não importa a honra que vem dos homens, mas sim o cumprimento da vontade do Pai. A partícula gár pode, neste caso, ser traduzido por “decerto, sem dúvida”209. Esporadicamente aparecem outras interpretações em relação à “pátria” de Jesus. João Crisóstomo pensa que se trate de Cafarnaum210; outros pensam na Palestina em geral211; outros, no povo dos judeus (da Judeia e da Galileia), em oposição aos samaritanos, que estariam representando os cristãos212; e outros ainda, no céu213. II 4,43-45 Como já viu, acertadamente, Teodoro de Mopsuéstia, os vv. 43-45 reatam com 4,1-3. Criou-se para Jesus na Judeia uma situação ameaçadora, que lhe inspirou mudarse para a Galileia. A secção que conta seu encontro com a samaritana e os samaritanos, em 4,4-42, é, então, uma espécie de intermezzo214. No fim desse intermezzo (v. 40) 207 Cf., e.o., E. C. HOSKYNS; C. H. DODD, Interpretation, 352; e um pouco diferente, Tradition, 238-241; B. LINDARS; J. MARSH; B. LINDARS; D. M. SMITH; C. K. BARRETT; F. J. MOLONEY; B. REBSTOCK; B. SCHWANK; C. S. KEENER; H. THYEN; J. WILLEMSE, La patrie; W. A. MEEKS, Galilee; B. OLSSON, Structure, 27-29.143-147; R. T. FORTNA, Locale; J. M. BASSLER, Galileans; U. C. VON WAHLDE II 205209, quanto aos dois primeiros estádios da redação do evangelho de João. Para uma documentação bastante completa desta visão e daquela que com ela compete, veja G. VAN BELLE, Faith; vgl. H. THYEN 284S. 208 Cf., e.o., B. WEISS; W. BAUER; R. BULTMANN; R. E. BROWN; R. SCHNACKENBURG; J. BLANK; R. KYSAR; L. MORRIS; G. R. BEASLEY-MURRAY; K. WENGST; U. WILCKENS; L. SCHENKE; U. SCHNELLE; M. THEOBALD; J. MCHUGH; U. C. VON WAHLDE II 205-209 para o terceiroestádio da redação do evangelho de joão; G. VAN BELLE, Faith; A. STIMPFLE, Das “sinnlose ga,r”; C. HEIL, Jesus; Z. GARSKÝ, Das Wirken, 151. Segundo J. CORLEY, Dishonoured Prophet, o lógion se teria referido primeiramente a João batista e sua estada na Pereia, depois, porém teria sido aplicado a Jesus e sua terra de origem, a Galileia. 209 Assim A. STIMPFLE, com autores mais antigos. 210 In Ioann. Homiliae, PG 59, 200; segundo S. BERGLER, Kana, 160, a menção se teria referido, na primeira redação do evangelho joanino, a Cafarnaum. 211 A. LOISY. 212 So AUGUSTINUS, Hom. in Ev. Ioann. 16,3. Semelhantemente agora J. W. PRYOR, John 4:44, com E. HIRSCH. 213 R. H. LIGHTFOOT, 34-36: 35; como possibilidade também em L. MORRIS. 214 CSCO I 16 (ed. J.-M. VOSTÉ), 68. Beutler B -95 falou-se de uma permanência de dois dias de Jesus na cidade dos samaritanos. O v. 43 se refere a esses dois dias. O “ir embora” (à Galileia) do v. 3 torna-se, no v. 43, um “sair” da cidade dos samaritanos. Repete-se a menção à Galileia como termo da viagem de Jesus. O que importa para o evangelista é esta região, mais que os nomes particulares de localidades e a ocorrência do termo Galileia nos versículos seguintes (vv. 45, 47 e 54). A saída de Jesus rumo à Galileia é fundamentada por uma proposição causal com gár. Depois do que falamos, esta fundamentação pode melhor ser referida aos vv. 1-3, que mencionam a indisposição dos fariseus por causa do sucesso da atividade batismal de Jesus. Onde e quando Jesus “testemunhou” o provérbio de que o profeta não granjeia honra em sua própria pátria, não está no texto. De qualquer modo, refere-se à sua saída da Judeia, rumo à Galileia. Por isso é preferível ver na “pátria” de Jesus a Judeia ou Jerusalém. É verdade que Jesus não nasceu naquela cidade, mas é lá que, especialmente no Evangelho segundo João, se encontra o centro de sua atividade. Ali é a pátria dos profetas, e ali sempre de novo se cumpre o destino deles. Orígenes215 menciona aqui o destino dos profetas segundo Hb 11,37 e At 7,52, mas também o desejo dos judeus de verem Jesus crucificado, segundo Jo 19,15, bem como o enfeitar os túmulos dos profetas, sem vontade de conversão, segundo Mt 23,29 e Lc 11,47. Aliás, os sábios e doutos da Grécia não conheceram sorte melhor, segundo Orígenes. Também eles não recebiam honra em sua pátria e não poucas vezes receberam ameaças, se não a morte216. Se o vocabulário da palavra de Jesus em Jo 4,44 em grande parte corresponde ao de Mc 6,4; Mt 13,57; Lc 4,24, não se deve concluir daí que o termo “pátria” signifique a mesma coisa. Já em POxy 1,6 e EvThom 31, o lógion é transmitido de modo isolado. João pode tê-lo utilizado em forma mais livre para fundamentar a rejeição de Jesus no centro da fé e do povo judaicos. Alega-se, muitas vezes, que também para o Quarto Evangelho Jesus vem da Galileia, de Nazaré. Mas é preciso ver a quem se atribuem esses enunciados. Em Jo 1,45s. trata-se de Filipe e Natanael, sendo que este último se escandaliza com a origem nazarena de Jesus. Em Jo 7,41.52, trata-se dos judeus na festa da Tendas ou dos membros do Sinédrio, incapazes de imaginar um Messias que venha da Galileia. Para o evangelista, a verdadeira origem de Jesus permanece desconhecida fora da fé (cf. Jo 7,27-29; 8,14. 19,9-11), pois ele vem do Pai. À saída de Jesus rumo à Galileia segue-se, no v. 45, a sua chegada a esta região. Os galileus lá o acolhem (edéxanto) de bom grado, o que lembra a formulação de Lc 4,24 (déktos estin), mas aqui em proposição positiva. A boa acolhida se explica pelas coisas grandiosas que os peregrinos galileus viram em Jerusalém. Muitas vezes tenta-se desvalorizar esta informação, sob alegação da crítica de Jesus em relação à fé sensacionalista dos judaítas, em Jo 2,23-25. Também segundo Jo 4,48, uma fé baseada unicamente em prodígios e sinais é insuficiente. Mas os sinais podem, de modo geral, conduzir à fé. Isso vale para os discípulos no fim das bodas de Caná em 2,11 e está implicado no final do evangelho, Jo 20,30s, que formula a sua finalidade. O funcionário de Cafarnaum já testemunha sua fé no poder de Jesus (4,47.49) com base em sua palavra (v. 50), antes que finalmente se constatam a sua fé e a de sua casa (v. 54). Assim, pela segunda vez, em Caná da Galileia, firma-se a fé de pessoas da Galileia. Os 215 In Ioann. 13,54-55, SC 222 (ed. C. BLANC), 236-343. Ibid. Exemplos concretos em vol. III a edição de Orígenes de C. BLANC, 241, nota 3. Mas veja também em NEUER WETTSTEIN I/2, 257-260, na altura de Jo 4,44. 216 Beutler B -96 “galileus” do v. 45 devem ser vistos numa luz positiva, ao contrário dos “judeus”, que, de modo crescente, se fecham para Jesus217. III A secção Jo 4,43-45 aproxima-nos do fim da primeira parte maior do Evangelho segundo João, que intitulamos “A Palavra de Deus entra no mundo” (1,14-54). Depois do prelúdio no vale do Jordão, na Judeia, com as primeiras vocações de discípulos, começou um ciclo que se poderia intitular “De Caná a Caná” (Jo 2–4). Depois do relato das bodas de Caná (2,1-12) vemos Jesus numa viagem que o conduz primeiro a Jerusalém (2,13–3,21), depois a toda a Judeia (Jo 3,22-36). A caminho da Galileia, Jesus se dirige aos samaritanos (Jo 4,4-42). Só depois, ele se dirige definitivamente à Galileia. Os habitantes de Jerusalém não passam de uma fé bem imperfeita, e Nicodemos, por sua parte, fica para trás como aquele que pergunta. Quanto mais Jesus se afasta do centro da fé judaica, tanto mais ele encontra acolhida de bom grado. Isso se mostra quando chega à Galileia. O Jesus joanino não rompe, sem mais, com o judaísmo, mas ele põe em xeque sua forma atual e, com isso, afasta-se das autoridades de Jerusalém. Só quem reconhece Jesus compreendeu o sentido da tradição religiosa de Israel e de seu culto. Isso, as pessoas na margem o entendem melhor do que os que estão no centro da fé de Israel. Assim, este texto bem breve constitui um convite para refletir sobre “centro” e “periferia”. Do mesmo modo que Jesus nos evangelhos sinópticos mostra seu amor preferencial para as pessoas que vivem na margem da sociedade, publicanos e prostitutas, assim ele faz no Quarto Evangelho para aqueles que estão na margem em termos religiosos: samaritanos e galileus. Nisto transparece um desafio permanente para todos os que, hoje, propagam a mensagem de Jesus. 217 Cf. J. M. BASSLER, Galileans. “Galileans symbolize those who receive the Word, Judeans symbolize those who reject it.” (253). Cf., além de Jo 4,45, também 7,52 (quando Nicodemos se engaja por Jesus perguntam se ele também é galileu). E os galileus que não aceitam as palavras de Jesus tornam-se judeus” (Jo 6,41.52). Beutler B -97 10. O segundo sinal de Jesus em Caná da Galileia (4,46-54) 46 Jesus veio novamente a Caná da Galileia, onde tinha mudado a água em vinho. Havia um funcionário do rei, cujo filho se encontrava doente em Cafarnaum. 47 Quando ouviu dizer que Jesus tinha vindo da Judéia para a Galileia, foi ao seu encontro e pediu-lhe que descesse até Cafarnaum para curar o seu filho, que estava à morte. 48 Jesus lhe disse: “Se não virdes sinais e prodígios, não passareis a crer”. 49 O funcionário do rei disse: “Senhor, desce, antes que meu filho morra!” 50 Ele respondeu: “Vá, teu filho vive”. O homem acreditou na palavra de Jesus e foi. 51 Enquanto descia para Cafarnaum, os empregados foram-lhe ao encontro para dizer que seu filho vivia. 52 O funcionário do rei perguntou a que horas o menino tinha melhorado. Eles responderam: “Ontem, à hora sétima, a febre passou”. 53 O pai verificou que era naquela hora que Jesus lhe tinha dito: “Teu filho vive”. Ele, então, passou a crer, com toda a sua casa. 54 Este segundo sinal, Jesus o fez novamente depois de voltar da Judéia para a Galileia. I O relato da cura do filho do funcionário régio em Jo 4,46-54 parece tradicional, mas ao mesmo tempo misterioso. Pelo conteúdo, esta história se classifica junto a outros semelhantes relatos de cura de Jesus. Nota-se, sobretudo, o parentesco com a cura do filho do centurião de Cafarnaum em Mt 8,5-13 par. Lc 7,1-10. E aqui começam os problemas. Os exegetas perguntam pela origem do relato joanino e sua relação com o relato semelhante dos sinópticos. Se se pudesse mostrar uma dependência literária do texto joanino em relação aos relatos de Mateus e Lucas, surgiria a pergunta se João depende diretamente dos dois sinópticos ou, antes, da fonte subjacente, a fonte hipotética chamada “Q”. Nesta fonte, a história do centurião de Cafarnaum é o único exemplo de relato de milagre. Um grupo de autores rejeita a dependência de João dos sinópticos e supõe, no lugar disso, outra fonte ou tradição. Nesta linha, sobretudo a hipótese de uma “fonte dos sinais” ganhou certa difusão. Além das questões da história da origem apresentam-se também perguntas a respeito do sentido e da função do texto joanino no contexto global da obra. Com esta história no fim dos quatro primeiros capítulos de seu evangelho, que é que o evangelista quer transmitir a seu público leitor? Qual a função deste texto em vista da transição às grandes controvérsias dos caps. 5–10? A resposta a esta pergunta ajudará para olhar os caps. 1–4 retrospectivamente e refletir sobre sua função na estrutura global do Evangelho segundo João. O ponto de partida para as diversas hipóteses da crítica literária clássica (que distingue fontes e camadas) consiste, por um lado, nos assim chamados textos paralelos acima mencionados, e por outro, na constatação de certa falta de coerência e de sequência lógica no texto de João. A este respeito, mencionam-se facilmente os vv. 48 e 49 do diálogo entre Jesus e o funcionário. De fato, bem observado, o funcionário não pediu a Jesus nenhum sinal como base para sua fé, mas apenas uma ajuda para seu filho gravemente enfermo. Assim, a resposta de Jesus no v. 48 não cabe bem dentro do contexto. E o problema continua nos versículos seguintes: a palavra do funcionário no v. 49 não leva em consideração a resposta de Jesus, mas repete o pedido anteriormente feito de que Jesus cure seu filho antes que seja tarde. Quando Jesus, no v. 50, promete que seu filho viverá, a fé do funcionário é ligada à palavra de Jesus. Portanto, ele mostra aquela fé que, no v. 48, Jesus rechaçou. E não combina com isso a observação final, de Beutler B -98 que o funcionário, depois de se ter convencido da cura realizada, “passou a crer com toda a sua casa” (v. 53). Uma resposta clássica para estes problemas consiste na hipótese de que o evangelista utilizou e uma “fonte dos sinais” (“fonte dos sēmeîa”). Esta fonte, cuja existência foi conjeturada primeiro por A. Fauré218, teve aceitação sobretudo junto a R. Bultmann e sua escola. Esta fonte teria como característica sua cristologia que vê Jesus como um “homem divino” (theîos anḗr), que prova sua origem e autoridade divinas sobretudo por sinais milagrosos, que devem levar à fé nele como homem enviado por Deus (cf. Jo 2,23-25; 4,45, ou a palavra de Nicodemos em Jo 3,2). O evangelista teria ficado cético diante de tal caminho para a fé e diante de tal fé tão imperfeita, e teria expressado sua ressalva por rearranjos redacionais para corrigir a cristologia insuficiente da fonte dos sēmeîa. Bultmann encontrou um exemplo de tal correção no diálogo que já mencionamos e no qual os vv. 48s. teriam sido inseridos. A escola de Bultmann apontou outro exemplo no diálogo entre Jesus e sua mãe em Jo 2,4s., onde se fixa a conexão entre o milagre de Jesus e sua “hora”. A hipótese de uma “fonte dos sēmeîa” não é mais tão amplamente aceita hoje219. É problemático reconstruir tal fonte hipotética com base em critérios principalmente teológicos, sem um testemunho direto. Um avanço seria a aceitação da dependência da composição de Jo 4,46-54 em relação à “fonte Q”, que também é hipotética, mas que pode ser reconstituída a partir da matéria comum de Mateus e Lucas ausente de Marcos220. Por outro lado, existe também a possibilidade de fazer remontar a substância de Jo 4,46-54 diretamente a ambos os relatos do centurião de Cafarnaum em Mateus e Lucas. Esta tese é defendida vigorosamente por F. Neirynck221, e é plausível. Um argumento forte para a dependência direta de Jo 4,46-54 dos sinópticos consiste no fato de que João retoma de modo direto Mt 8,13, um versículo que, sem dúvida, pertence à redação de Mateus (e não à “fonte Q”), com a expressão da cura “naquela hora” (Jo 4,53). Outro motivo sinóptico–muitas vezes considerado como acréscimo joanino–é a recusa de Jesus em conceder “sinais e prodígios”. Para este elemento, Neirynck remete para o evangelho de Marcos, a saber, Mc 7,26-29; 8,11s.; 9,19; 13,22. Esses textos foram retomados recentemente por G. R. Beasley-Murray e U. Schnelle em seus comenários. Como então se deixam explicar as diferenças de João em relação à tradiçao sinóptica em Mateus e Lucas? Para João, o “funcionário régio” não é um pagão (romano), mas aparentemente um judeu (contra a opinião de J. Becker e U. Schnelle). Com base nisso, era natural fazer dele não um oficial da potência ocupadora, mas um funcionário do governante local, o rei Herodes Antipas. Assim, as palavras de Jesus acerca da salvação futura dos gentios se tornaram supérfluas. Na composição joanina entrou, no lugar delas, o diálogo sobre a fé em Jesus por causa de sua palavra. A substituição de Cafarnaum por Caná pode ser explicada pela intenção do autor de aumentar a distância entre o lugar da palavra de Jesus e o de sua realização. De resto, Caná podia servir como referência ao primeiro sinal, interligando os dois primeiros sinais num momento importante do evangelho: o início do relato joanino sobre a atividade pública de Jesus. Assim se lança o arco “de Caná a Caná”, como já o intitulou 218 A. FAURÉ, Die alttestamentlichen Zitate, 107-112, citado por R. BULTMANN 78, nota 4. Recentemente M. THEOBALD, ad locum. 220 Assim B. LINDARS, Capernaum. 221 F. NEIRYNCK, Jean 4,46-54, e.o., contra S. LANDIS, Das Verhältnis. 219 Beutler B -99 H. Van den Bussche, seguido por diversos autores, entre os quais R. E. Brown no seu comentário. II Quando olhamos para o texto que está aí, podemos dividir a narrativa em duas partes que se correspondem222. Primeiro: depois da chegada de Jesus em Caná, a chegada do funcionário régio, seu diálogo com Jesus e sua partida para Cafarnaum (vv. 46-50). A isso conecta-se uma segunda sequência, semelhante: a descida do funcionário até Cafarnaum, a conversa com seus servos e o fim da narrativa com a conversão da inteira casa do funcionário (vv. 51-54). Essa divisão serve de base para a análise a seguir. 4,46-50 Nos vv. 46-47, temos a exposição que introduz a narrativa. Duas vezes mencionase a volta de Jesus para a Galileia. Esta parte da Terra Santa desempenha nas experiências de Jesus, por enquanto, um papel positivo. Na Judeia, ao contrário, ele encontrou resistência (cf. 4,1-3). Na Samaria, ele encontrou fé, mas não podia ficar ali, porque era da Galileia. Na Galileia, foi recebido de braços abertos (4,43-45), ainda que a forma da fé que ele lá encontrou fosse imperfeita. Neste ponto se inicia o nosso relato. Pode ser lido como uma introdução na verdadeira fé223. A ocasião se oferece com a chegada do funcionário régio de Cafarnaum, cidade que Jesus já tinha visitado uma vez (2,12). O funcionário pede a Jesus que o acompanhe para curar seu filho gravemente enfermo. Não pede a Jesus um “sinal”, e talvez nem sequer um milagre, mas ele vê em Jesus alguém que realiza coisas maravilhosas, só isso, nada mais e nada menos. Assim se entende a palavra de Jesus: “Se não virdes sinais e prodígios...”. O homem não entende o sentido das palavras de Jesus, mas fica firme em sua confiança: Jesus pode curar o seu filho, e por isso ele repete seu pedido. Jesus não atende diretamente, mas assegura, ao pai preocupado, que seu filho vive (com as palavras de Elias à viúva de Sarepta, 1Rs 17,23). O pai acredita na palavra de Jesus e volta para Cafarnaum. 4,51-54 À partida do funcionário régio de Cafarnaum para Caná corresponde agora sua partida de Caná para Cafarnaum. Novamente descreve-se um diálogo, agora entre o funcionário e seus servos. Estes lhe comunicam que seu filho “vive”. E quando o funcionário pergunta em que hora entrou a melhora, eles lhe informam que foi na hora sétima. O funcionário reconhece que essa foi a hora em que Jesus lhe havia dito “Teu filho vive”, e com toda a sua casa abraça a fé (em Jesus). Aponta-se ainda que este foi o segundo sinal que Jesus realizou depois de sua chegada à Galileia, vindo da Judeia. Como se vê, a fé autêntica em Jesus continua sendo o tema central. Nos versículos finais mostra-se um outro aspecto desta fé, o comunitário: “Ele, então, abraçou a fé, com toda a sua casa”. A fórmula “ele com a sua casa” encontra-se repetidamente nos Atos dos Apóstolos, em conexão com a piedade, a salvação ou a fé de famílias inteiras (At 10,2; 11,14; 16,15.31.34; 18,8: J. Becker). Decerto ainda não podemos falar, neste lugar, da fundação de uma “comunidade cristã doméstica”. Mas, de toda maneira, já se tinha esboçado, no relato da fé da samaritana e de seus concidadãos, um tempo em que “os campos já estão brancos para a colheita”. Um momento semelhante parece anunciar-se também na Galileia por ocasião do encontro com Jesus. 222 223 Cf. a análise penetrante de A. G. VAN AARDE, Narrative Criticism. Cf. ibid. Beutler B -100 III Com o relato da cura do filho do funcionário régio em Jo 4,46-50 fecham-se diversos círculos concêntricos. De Caná a Caná O segundo “sinal” de Jesus, Jo 4,46-54, remete de diversas maneiras ao primeiro, Jo 2,1-11. Com base neste, os discípulos chegam à fé em Jesus (2,11). O modo desta fé, porém, permanece indefinido, e enquanto se baseia no sinal que viram, continua marcado por um elemento de incompletude. O longo caminho de Jesus, de 2,13 até 4,45, descreve também um caminho das formas da fé. Muitos hierosolimitanos chegam a crer em seu nome, mas baseiam sua fé sobre os sinais operados por Jesus. Por isso, Jesus não se fia a eles (2,23-25). Não são capazes de perceber o sinal que supera todos os outros, sua morte e ressurreição, e mesmo os discípulos não são capazes disso (2,22). Nicodemos aparece como o representante da fé incompleta dos hierosolimitanos (3,1-3) e não ficamos sabendo a que compreensão da fé conduziu o seu diálogo (não encerrado) com Jesus. Um caminho da fé encontra-se também nos samaritanos e na representante do grupo, a mulher da Samaria. Da confissão de que Jesus é profeta, por ter-lhe revelado os segredos de sua vida, a mulher chega a uma fé messiânica inicial, e esta enseja também a fé de seus compatriotas, que reconhecem em Jesus “o salvador do mundo” (4,42). Um desenvolvimento semelhante pode ser visto nos galileus. Também eles chegam primeiro a uma fé inicial com base nos sinais que Jesus tinha realizado em Jerusalém (4,45), porém, são então convidados a aprofundar essa fé. Os galileus percorrem este trecho do caminho na figura do funcionário régio, que, a partir de uma fé baseada nos sinais de Jesus, alcança a fé que se baseia na palavra de Jesus. E assim tornam-se possíveis as primeiras comunidades na Samaria e na Galileia. A escola da fé dos discípulos Numa leitura a partir do fim do cap. 4, também o relato a respeito dos primeiros discípulos recebe um sentido mais profundo. Nos caps. 2–4, os discípulos não ocupam o primeiro plano, mas estão presentes o tempo todo. O papel deles é salientado no primeiro sinal de Caná. Depois deste sinal, são mencionados ocasionalmente (3,22), e mais expressamente no cap. 4 (4,8.27.31-38). No aprofundamento da fé do funcionário régio, eles podem descobrir também uma escola para si mesmos: um caminho que conduz da fé em Jesus baseada nos sinais a uma fé que se fundamenta em sua palavra. O dom da vida A palavra com que o evangelista expressa a cura do filho do funcionário régio e a reversão da ameaça da morte, “Teu filho vive” (4,50.51.53), parece ter sido escolhida conscientemente. Quando se olha para trás, pode-se descobrir, nesta palavra-chave, outro gancho: uma conexão com o Prólogo de João (1,1-18). “O que tem sido feito nela era vida, e a vida era a luz dos homens. E a luz brilha nas trevas, e as trevas não a acataram” (Jo 1,3-5). Esta vida, concedida por Jesus, Logos divino e unigênito Filho de Deus (Jo 1,1.18), permite a todos os que nele acreditam tornar-se filhos de Deus (Jo 1,12s.). Lida a partir daqui, a palavra de Jesus em Jo 4,50, “Teu filho vive”, recebe um sentido mais profundo: no filho Unigênito é proporcionada a Vida, a Luz dos homens, que nos transforma em filhos de Deus. Esta mensagem transcende o tempo e é atual também, e exatamente, quando a humanidade se preocupa com a base de sua vida.