www.rhmjournal.org.uk
A 2010 Reproductive Health Matters.
Todos os direitos reservados.
Reproductive Health Matters 2011; 19 (37): 4–9
0968-8080/11 $ – see front matter
PII: 50968-8080 (10)37565-9
QUESTÕES DE
´
SAUDE
reprodutiva
A privatização da saúde nos países em desenvolvimento:
o que cabe em um nome?
Marge Berer*
* Editora, Reproductive Health Matters, Londres, Inglaterra. E-mail: [email protected]
A
RHM britânica já publicou duas edições
sobre a privatização dos sistemas de saúde. A primeira, em novembro de 2010,
apresentou a questão: “Quem é a responsabilidade pela saúde nos sistemas privatizados?”
Como passei pela primeira rodada de tentativas
do governo inglês para privatizar o Sistema Nacional de Saúde na Inglaterra, contra a vontade
da maioria da população do país, eu agora me
considero pronta para responder a essa pergunta. E a resposta é que quando se retira a responsabilidade pela saúde das mãos dos governos
nacionais, ninguém mais se encarrega da questão. Não há nenhuma outra instituição com a
autoridade e os recursos necessários para assegurar o direito à saúde. E se um governo renega essa responsabilidade, por quaisquer razões
que sejam, quem vai sofrer são as pessoas que
não podem arcar com os custos da assistência
à saúde. Uma das vantagens de ser uma revista
internacional focada em temas específicos é que
podemos revelar a profundidade e a amplitude
dessas questões em diferentes países. Com um
tema complexo e multifacetado como a privatização, mais do que valeu a pena dedicar duas
edições da revista a isso. Mesmo assim, ainda
estamos começando a captar o panorama geral,
uma vez que a América Latina e o Caribe, o
Oriente Médio e o Norte da África foram consideravelmente sub-representados em ambas as
edições sobre este tópico.
Entretanto, no que se refere à Ásia e a alguns
países da África Subsaariana, algumas conclusões sólidas podem ser extraídas dos artigos
publicados em RHM. Dado o rápido deslocamento em direção à privatização ocorrido em
muitos países e a quantidade de dinheiro que
está sendo canalizada por doadores para apoiar
a privatização neste setor (com ou sem fins lucrativos), tem sido chocante descobrir que há
tão poucas evidências sólidas sobre o tipo e a
qualidade desses serviços de saúde, bem como
sobre os padrões de assistência existentes no
setor privado nos países dessas duas regiões.
Pode-se mesmo dizer que o setor privado está
escondido, já que há tão pouca informação sobre o mesmo, pelo menos no que diz respeito
aos serviços de saúde reprodutiva e sexual. Ou
melhor: o que é publicado sobre o assunto é escrito por pessoas que trabalham no setor e que
proclamam o sucesso do processo, mas com um
claro conflito de interesses.
No mundo desenvolvido, o setor privado
é completamente diferente do modo como se
apresenta nos países de baixa-renda na Ásia e
na África. Aí, na verdade, o setor privado parece
consistir quase que inteiramente de pequenas
clínicas e casas de repouso privadas, em geral
de propriedade de uma única pessoa, alguma
das quais vem sendo atraídas para o modelo
de franquias sociais, mas que parecem operar
isoladamente no nível local, sem qualquer tipo
143
M Berer / Questões de saúde reprodutiva 2011;5;1;143-151
de supervisão. Incluem ainda serviços religiosos
e de marketing social dirigidos por ONGs, a
respeito dos quais se acredita que realizam um
bom trabalho, embora isso nem sempre se baseie em evidências sólidas. Em geral, todos esses serviços oferecem assistência à saúde sexual
e reprodutiva ou, pelo menos, assistência pré-natal, planejamento familiar (ao menos alguns
métodos), preservativos e abortos (seguros e
inseguros). Se os artigos publicados por RHM
dão alguma medida do que são esses serviços,
então é preciso que algo seja feito urgentemente
para qualificar as evidências sobre o setor privado nesses países.
Parte importante dos artigos que chegam
até a RHM são rejeitados por serem meras descrições das metas e intenções desses serviços e
das chamadas parcerias público-privadas nas
quais estão envolvidos. Por quê? Por que se trata de puro material promocional. Não apresentam qualquer evidência baseada nos valores da
saúde pública, indicando a qualidade dos serviços ou a melhoria dos resultados na saúde, o
que torna os artigos impublicáveis. A ausência
destes artigos na revista é uma grande perda e
eu espero que os autores possam fazer o que é
necessário para torná-los publicáveis, de modo
que eu possa recebê-los de volta. Entretanto, a
questão sobre quão bem o setor privado serve
a sua “clientela” permanece sem resposta e isto
é um problema sério, que governos, doadores,
pesquisadores independentes e ativistas da área
da saúde precisam confrontar e solucionar.
Não sou a única a defender essa visão. Em
2009, um artigo da Base de Dados de Revisões Sistemáticas Cochrane tomou como meta
examinar evidências para identificar se nos países pobres e em desenvolvimento as franquias
sociais se desenvolveram como uma forma de
aprimorar a oferta de serviços de saúde por meio
do envolvimento do setor não governamental.
Após uma revisão minuciosa da literatura (que
incluiu estudos aleatórios controlados, não
144
aleatórios controlados, controlados antes e depois de intervenções e séries históricas comparando modelos de franquias sociais com outros
modelos de serviços de saúde, outros modelos
de franquias sociais ou ausência de serviços de
saúde), dois revisores independentes não encontraram estudos que fossem elegíveis para a
inclusão em uma revisão. Eles indicaram:
“...a necessidade de se desenvolver estudos rigorosos para avaliar os efeitos das franquias sociais
sobre o acesso e a qualidade dos sistemas de saúde
em países pobres e em desenvolvimento. Esses estudos deveriam ser informados pela literatura mais
ampla, para construir uma base teórica sólida e
realizar pesquisas empíricas voltadas para a identificação do alcance, aceitabilidade, viabilidade,
sustentabilidade e mensurabilidade dos diferentes
modelos de franquias sociais existentes”¹
Do mesmo modo, se a sustentabilidade de
uma organização de marketing social depende
da posição no mercado das suas próprias marcas
de camisinha e de contraceptivos e do aumento
da visibilidade e, consequentemente, das vendas de seus produtos (como Purdy reconhece
em seu artigo4, no qual descreve o uso das redes
sociais para a educação sobre preservativos pela
internet), então qual é a diferença entre isso e
uma companhia privada com fins lucrativos
que faz o mesmo? Só os preços menores? Parece
que, apesar de todos os dados sobre a quantidade de preservativos vendida por organizações de
marketing social, sequer se sabe se isso aumenta as taxas de uso de preservativos, por que na
maioria das vezes não se sabe quem compra o
produto nem tampouco se os preservativos são
usados constantemente, corretamente ou com
que parceiros. Assim, comenta Knerr5 (2011)
em sua análise sobre as organizações de marketing social:
“evidências rigorosas e confiáveis do impacto sobre o uso do preservativo e a prevenção de
M Berer / Questões de saúde reprodutiva 2011;5;1;143-151
doenças são limitadas, assim como as evidências
do impacto sobre a igualdade no acesso a preservativos para a população pobre, mulheres e pessoas
que vivem com HIV” 5
Há, no entanto, outra evidência de que a
igualdade no acesso a preservativos é um sonho
quando se trata dos pobres que vivem nos países mais pobres, incluindo aqueles em que a
epidemia de HIV se apresenta de forma grave.
No norte do Quênia, por exemplo, os homens
residentes na área rural tem que lavar e reutilizar preservativos subsidiados por que eles são
muito escassos e caros para serem jogados fora
após o uso. Um relatório de março de 2011 informa:
“Os canais de televisão local mostraram recentemente imagens de homens em Isiolo, área
rural do norte do Quênia, lavando preservativos
e pendurando-os para secar; os homens disseram
que não podiam arcar com os custos dos preservativos e usá-los uma só vez. Outros homens do
povoado disseram que quando não conseguiam os
preservativos, usavam sacolas de polietileno e até
pedaços de tecido durante as relações sexuais...
Os preservativos são distribuídos gratuitamente
nos centros públicos de saúde, mas na área rural
do Quênia há poucas unidades de saúde, distantes umas das outros e seus suprimentos são pouco
confiáveis. ‘Muitas das áreas rurais no país são
inacessíveis devido à rede de estradas precárias,
o que torna a distribuição de preservativos difícil e desafiadora,’ disse Peter Cherutich, chefe do
programa nacional de prevenção da AIDS e de
controle de infecções sexualmente transmissíveis,
NASCOP. ‘Em sua maioria, os preservativos do
governo estão disponíveis em unidades de saúde
e não há muitas delas em áreas rurais, isso cria
um outro desafio para a distribuição.’... ‘M. caminha 5km até o centro de saúde mais próximo
para conseguir preservativos, mas às vezes os estoques estão esgotados.’”²
Então quem está comprando os preservativos do marketing social? As mesmas pessoas
que teriam comprado em uma farmácia por um
preço mais alto, por que em ambos os casos podem pagar por eles?
O efeito do Objetivo de Desenvolvimento
do Milênio 5 sobre a atenção à saúde
reprodutiva e sexual
A contagem regressiva até 2015 para se alcançar
os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio
(ODMs) já começou2 e os países estão se esforçando para compensar as falhas de décadas nas
tentativas de redução da mortalidade materna.
Por conta disso, RHM tem recebido um número crescente de artigos sobre saúde materna (e infantil), serviços de gineco-obstetrícia e
morbimortalidade materna. Isto é, obviamente,
uma coisa boa por que essa questão esteve ausente das análises por um bom tempo e as altas
taxas de mortalidade materna são uma mancha
na reputação de um número muito grande de
países.
No entanto, ao mesmo tempo em que os
países tentam cumprir o seu papel quanto aos
aspectos materno e infantil do ODM5, limitam
seus esforços e não lidam com todos os parâmetros da saúde sexual e reprodutiva das mulheres
(esqueçam os homens, eles estão inteiramente
fora desse radar, exceto pelo HIV, circuncisão
masculina e preservativos do marketing social).
Três artigos publicados em RHM6,7 e um livro
do Dr. Rani Bang, são um lembrete poderoso
Ironicamente, o Programa de Ação mais abrangente
da Conferência Internacional de População e Desenvolvimento (CIPD) de 1994 também foi projetado para se
tornar realidade em 2015, o que, certamente, não acontecerá, embora não haja praticamente nenhuma pressão
quanto a isso. O indicador que trata do “acesso universal
à saúde reprodutiva” do ODM5 é divulgado no programa
da CIPD, mas raramente é lembrado como a fonte do que
supostamente deveria ser alcançado.
2
145
M Berer / Questões de saúde reprodutiva 2011;5;1;143-151
do fato de que uma ampla gama da morbidade
ginecológica - prolapso, fístula, doenças sexualmente transmissíveis e outras infecções reprodutivas, infecções urinárias, incontinência
urinária, uma longa lista de problemas menstruais, dores na parte inferior do abdômen, desejo sexual reduzido, desconforto e dor durante
a relação sexual, aborto provocado e espontâneo
e complicações por abortos inseguros - não tem
sido tratada adequadamente ou, nem sequer é
tratada nos países pobres, ou isso é feito apenas
pelo assim chamado setor informal e pelas farmácias e vendedores de medicamentos de todos
os tipos, não necessariamente eficazes.
Utilizando dados quantitativos para
avaliar o acesso, a equidade e a
utilização de serviços de saúde
Quatro artigos realmente importantes levaram a RHM para um novo território. O artigo de Carla AbouZahr8 (2011) é sobre como
interpretar duas novas estimativas globais de
mortalidade materna para 2008, que foram publicadas em 2010, com uma diferença de seis
meses entre uma e outra, e que, desde então,
vêm causando controvérsias. Tradicionalmente,
a Organização Mundial de Saúde é responsável
por estas estimativas, que são publicadas a cada
três anos desde 1990. Em 2010, o Instituto de
Estatísticas e Avaliação em Saúde, em Seattle,
nos EUA, decidiu que o setor privado deveria
ter vez e, de forma muito apressada, divulgou
suas próprias estimativas para 2008, sem se comunicar com a OMS, o que foi interpretado por
muitos como uma tentativa de chamar a atenção para si mesmo em uma reunião eminente
do G8, em que a ODM5 era um dos assuntos
prioritários da agenda. O artigo de AbouZahr8
examina a diferença entre os dois conjuntos
de estimativas e discute o valor e as limitações
inerentes aos exercícios de modelagem necessários para se chegar a elas, questionando a relevância da modelagem para as necessidades dos
146
processo de tomada de decisão no nível nacional. As taxas de mortalidade materna existentes
são amplamente baseadas nas estimativas e na
modelagem estatística por causa da ausência de
dados de registro civil sobre mortes e causas de
morte na maior parte dos países pobres. Contudo, como a autora observa:
Em geral, o registro de óbitos entre as mulheres em idade reprodutiva derivado do registro
civil é a primeira etapa para a condução das investigações confidenciais e para a prevenção de
óbitos maternos.
Ela faz um chamado a todos os países para
que comecem a coletar dados para a melhoria
desses resultados. Outros três artigos quantitativos examinam dados de inquéritos domiciliares
nacionais sobre a assistência à saúde reprodutiva e sexual como um meio de medir à equidade
no acesso, utilização e financiamento dos serviços. Vinte e cinco países são cobertos pelo artigo de Limwattananon et al9, baseado nos duas
Pesquisas de Demografia e Saúde (DHS) mais
recentes para cada um desses países, e Nguyen
et al10 trata de seis países, também se baseando
nos dados da DHS e nos Relatórios Nacionais
de Saúde e de Saúde Reprodutiva destes países.
O artigo de Kongsri et al11, também de base
quantitativa, examina em profundidade a situação da Tailândia, a partir dos dois inquéritos
mais recentes sobre saúde reprodutiva. Por ser
uma pessoa adepta dos métodos qualitativos,
minha primeira reação às análises dos dados
de inquéritos dessa natureza foi questionar o
quanto esses dados quantitativos sozinhos conseguem falar sobre esses países. Mas todos os
autores escreveram seus artigos com a intenção de que pessoas estatisticamente analfabetas
como eu pudessem entendê-los e, agora que
estão prontos, posso dizer sem hesitação que
todos são explosivos.
Nguyen et al10, por exemplo, demonstram
que nos seis países estudados, os níveis de
M Berer / Questões de saúde reprodutiva 2011;5;1;143-151
utilização dos serviços de saúde reprodutiva são
tão inadequados que o crescente papel desempenhado pelo setor informal levanta questões
sobre a segurança, eficácia e qualidade da assistência, havendo um claro vínculo entre gastos
e utilização de serviços. Por exemplo, um gasto
nacional mais elevado em saúde reprodutiva é
associado a uma melhor taxa de utilização e,
contrariamente, o subfinanciamento é um limite para se alcançar o acesso universal à saúde
reprodutiva. O artigo também levanta questões
sobre a dimensão do financiamento dos doadores externos na ausência de investimentos
domésticos correspondentes, o que afeta a sustentabilidade do sistema.
Isto não diminui o valor do trabalho qualitativo como um meio de aprofundar e confirmar
os achados quantitativos. Como Collumbien
et al12 relatam em seus artigos sobre os serviços
acolhedores para jovens em dois distritos rurais
na Índia, nem sempre os estudos levantam as
questões corretas:
“As normas sociais influenciam o desenho da
pesquisa e o modo como os resultados são interpretados e informam os projetos de intervenções.
Em nosso estudo, por exemplo, questões sobre a
procura por serviços de aborto foram deixadas
de fora do questionário para jovens solteiras
para não se ofender as comunidades onde as
intervenções são planejadas. Embora seja amplamente reconhecido que os inquéritos de base
comunitária não produzem estimativas confiáveis sobre o aborto, o fato de não se perguntar
sobre o tema de uma maneira aberta e livre de
juízos de valor leva a própria pesquisa a reforçar essas normas. Portanto, nós nos tornamos
cúmplices na perpetuação da negação da realidade por não produzir evidências. As intervenções apropriadas não são identificadas e quem
sofre com isso são as jovens.”
Uma avaliação estratégica do aborto inseguro
em Malawi13 demonstra muito bem como dados
qualitativos - como, por exemplo, entrevistas,
observação de serviços, mensuração da qualidade da assistência, dos custos e do financiamento,
tendências das taxas de utilização, assim como
dados epidemiológicos e sobre a situação de saúde - revelam a extensão da equidade no acesso
para todos aqueles que necessitam de assistência. Artigos como os de Rashid et al7, Honda et
al14, Chelstowska15, Jonkers et al16, Rispel et al17 e
Ngo & Hill18 acrescentam bastante aos dados de
inquéritos, por que trazem à tona a experiência
de usuários e profissionais de saúde e mostram
as consequências das falhas do sistema de saúde
para o paciente individual, que é a razão de ser
dos serviços públicos de saúde.
Uma das questões linguísticas mais interessante nesses artigos, no que se refere aos inquéritos,
é a descrição dos quintis superiores e inferiores
da população no artigo de Limwattananon et al9.
Embora tratem, no artigo, da disparidade entre
ricos e pobres, eles também descrevem esses dois
quintis como “os mais pobres” e “os menos pobres” (e não os mais ricos) no país.
Não esqueçamos que, para a maior parte das
pessoas, ser rico em países pobres ainda significa ser pobre, mas não tão pobre como os menos
favorecidos.
Uma abordagem sobre os sistemas
de saúde para a assistência em saúde
sexual e reprodutiva
A RHM também publicou artigos que tratam
da realidade de um único país: Bangladesh7, Índia6, 19, Madagascar14, Tailândia11 e Vietnam18.
Há artigos que tratam da privatização do aborto na Polônia, em um processo onde o pecado
transforma-se em ouro15, das desvantagens enfrentadas por uma minoria étnica de mulheres
com complicações na gestação e no parto na
Holanda16 e das mulheres de países desenvolvidos que cruzam suas fronteiras em busca de
serviços de reprodução assistida na Ásia, analisando as consequências para os sistemas de
147
M Berer / Questões de saúde reprodutiva 2011;5;1;143-151
saúde ao atender pacientes ricos de países estrangeiros20.
Mesmo quando estes artigos não tratam diretamente da privatização - como o de Desai et
al6, que é sobre o aumento da prevalência de
histerectomia em jovens mulheres trabalhadoras em Gujerat, na Índia, graças à cobertura
parcial oferecida pelos seguros de saúde para
a internação - eles se referem, reconhecem e
consideram o problema. Do ponto de vista da
RHM este é um importante passo adiante, por
que a privatização há muito tempo ameaça os
sistemas de saúde, frequentemente escondida, e
a maioria de nós, da área de saúde reprodutiva
e sexual, falhou em considerar devidamente o
problema, se é que alguma vez o fizemos.
Estes artigos tratam da comercialização dos
serviços, da grave dificuldade de acesso aos serviços em função da cobrança de taxas (não só
para a classe mais pobre, mas também para a
classe média baixa dos países pobres), do déficit
de equidade de acordo com a classe socioeconômica, do baixo padrão de assistência nos pequenos hospitais privados e, acima de tudo, do
status e da acessibilidade aos serviços de saúde
(pública, privada, informal) e dos subgrupos
(quase sempre mulheres) que utilizam cada um
deles (segundo classe socioeconômica, localização geográfica, idade, educação e estado civil).
Aqui está um pouco do que aprendi com
estes artigos:
• Os países não têm investido o suficiente em serviços públicos de saúde ou na
educação e treinamento das novas gerações de profissionais de saúde3.
• As pessoas que tem uma melhor situação
econômica e maior escolaridade, que são
casadas e vivem em áreas urbanas têm
3
Por exemplo, passados 10 anos desde que os chefes
de estado dos países da União Africana se encontraram
em Abuja na Nigéria e se comprometeram a alocar “pelo
menos 15%” dos seus orçamentos anuais para melhorar o
setor de saúde, apenas Ruanda e África do Sul alcançaram
esse objetivo, de acordo com a OMS.³
148
•
•
•
•
•
um acesso muito maior aos serviços formais de saúde reprodutiva e sexual, no
setor público e privado, do que aquelas
que são mais pobres, menos escolarizadas, solteiras e que vivem em áreas rurais
- a não ser que haja acesso universal à
assistência à saúde, uma pretensão que
muito poucos países são capazes de tornar realidade.
Aparentemente, o setor privado não
compensa o que o setor público não
consegue prover e arcar. Isso por que,
antes de mais nada, ninguém se encarrega da supervisão deste setor.
No setor privado, os serviços são mais
caros, o que limita o acesso aos mesmos.
Entretanto, os pobres utilizam esses serviços de forma cada vez mais freqüente
por que se sabe ou se acredita que o setor
público oferece menos assistência e de
menor qualidade, com menos medicamentos, tratamentos e menor oferta de
tecnologia moderna.
Embora o setor privado custe mais do
que o setor público, o setor público também se tornou muito caro para a população, especialmente quando a assistência
depende do pagamento de taxas extras,
de “presentes” para os profissionais ou de
percorrer longas distâncias até chegar aos
serviços.
Os problemas de saúde são a principal causa de endividamento entres os
pobres. O setor privado não alivia este
problema já bem conhecido, mas, pelo
contrário, é provável que esteja contribuindo para o seu agravamento.
Não há nenhuma regulamentação ou
monitoramento efetivo por parte dos
governos sobre os serviços privados de
saúde. A função de administrar, proposta pelos neoliberais, não está funcionando, pelos mesmos motivos pelos quais
M Berer / Questões de saúde reprodutiva 2011;5;1;143-151
o setor público de saúde também não
funciona - falta de capacidade e conhecimento sobre gestão, ausência de regulamentação e de poder para reforçá-las e
insuficiência de recursos.
• Nos lugares onde os serviços são escassos,
taxas mais elevadas podem ser cobradas,
admite-se a propina e a corrupção pode
se tornar uma base para o acesso à assistência e ao tratamento.
• Pessoas de países desenvolvidos viajam
cada vez mais para países em desenvolvimento em busca de certos serviços, especialmente tratamentos de infertilidade,
por causa do seu alto custo no setor privado e das restrições legais em seus países
de origem.
• Mais importante, o setor informal nos
países em desenvolvimento está oferecendo o maior volume de “assistência à
saúde” para os pobres, para aqueles que
vivem em áreas rurais e para jovens solteiros, grupos que tem sido negligenciados tanto pelo setor público quanto pelo
privado.
Quem é o setor privado nos países
pobres e em desenvolvimento?
De acordo com os artigos da RHM, nesses países o setor privado, em sua maior parte, não
consiste de novas e grandes áreas corporativas,
compostas por profissionais altamente capacitados. Na maioria dos casos, trata-se de pequenos hospitais e casas de repouso, com um
único proprietário, em geral com menos de 30
leitos e com instalações e equipes de qualidade
extremamente variável, o que acaba por produzir resultados de saúde bastante duvidosos.
Se o que foi descrito por Bhate-Deosthali et al
(RC) para Maharashtra pode ser tomado como
típico, pode-se dizer que este setor se constitui
de unidades de saúde limitadas, com poucos
profissionais qualificados, baixos padrões de
assistência e um sistema de registro ainda pior.
Dos 261 pequenos hospitais que as autoras estudaram em Maharashtra, 146 ofereciam “serviços de maternidade” e muitos dos donos eram
gineco-obstetras, mas ainda assim 137 deles
não tinham sequer uma parteira qualificada e
embora muitos afirmassem que ofereciam assistência emergencial, incluindo cesarianas, apenas três tinham banco de sangue e oito tinham
ambulância. E estes são os tipos de unidade que
brevemente serão implantadas no modelo de
parceria público-privada. O governo vai realmente conseguir reduzir a mortalidade materna
sem investir na melhoria e na profissionalização
adequada das equipes, do mesmo modo que fariam as unidades do setor público?
Entretanto, para mim, a descoberta mais
importante que emergiu destes artigos é o fato
de que aquilo que é denominado de setor privado pelos acadêmicos e pesquisadores de ONGs
inclui o que é eufemisticamente rotulado como
“setor privado informal”, ou seja, aquele que
reúne as auxiliares de trabalhos de parto que,
sozinhas, não são capazes de reduzir a mortalidade materna, os vários tipos de curandeiros,
vendedores de medicamentos que não receberam treinamento farmacêuticos e médicos
das aldeias, que também não receberam treinamento médico. Se os dados sobre este setor
desqualificado, e muitas vezes não escolarizado,
forem subsumidos naqueles sobre o setor privado, esta será a forma mais sofisticada de se
esconder tudo de todos. Por exemplo, mulheres que fizeram parto domiciliar foram muitas
vezes contabilizadas como se tivessem parido
em uma unidade do setor privado informal.
Se isso é interpretado como uma afirmação de
que o setor privado nos países pobres e em desenvolvimento é viável e funciona, mesmo nas
áreas rurais e para as populações mais pobres,
então há algo de muito errado aqui. Quando
os dados são desagregados, é evidente que não
há algo como “setor privado” fora das áreas
149
M Berer / Questões de saúde reprodutiva 2011;5;1;143-151
urbanas nesses países, mas, sim, que, entre as
mulheres pobres residentes em áreas rurais, a
maioria dos partos e vários outros procedimentos de assistência à saúde reprodutiva e sexual
- incluindo métodos contraceptivos para jovens
solteiros, medicamentos e outros tratamentos
para doenças sexualmente transmissíveis e outras infecções do sistema reprodutivo, assim
como aborto inseguro e tratamento para todo
um conjunto de enfermidades ginecológicas
crônicas - ainda vêm sendo realizados por provedores inexperientes e não qualificados. Como
Limwattananon et al9 concluem em seu artigo
sobre as desigualdades relativas ao local do parto em 25 países de baixa renda entre 1996 e
2006:
“Um sistema frágil de saúde que resulta do
investimento público desigual em sua infraestrutura nas áreas rurais e a falta de profissionais
bem qualificados e treinados, está entre os fatores
impeditivos mais importantes para que se reduza
a mortalidade materna. Honrar os compromissos
firmados pelos governos e seus parceiros internacionais é uma importante porta de entrada para o
fortalecimento dos sistemas de saúde. Fortalecer o
setor privado lucrativo não representa uma escolha
política pelas comunidades pobres rurais.” 9
Eu fui criticada por colocar o meu viés antiprivatizante nos dois artigos em que apresentai
este tema na RHM britânica. Mas eu não encontrei nada nos artigos aceitos para publicação, nem naqueles que não foram aceitos ou
nos que foram resumidos para outras sessões da
revista que me fizesse mudar de opinião sobre
este assunto.
Além disso, como Kongsri e outros11 mostram para a Tailândia, onde o acesso universal é
uma política nacional antes mesmo dos ODMs
serem pensadas:
“...Uma alta cobertura e baixa desigualdade
no acesso a serviços são o resultado de amplos investimentos no sistema de saúde por governos sucessivos, particularmente na assistência básica nos
níveis municipais e distritais.”
Concluo, então, que só o acesso universal a
serviços de saúde de qualidade e a atenção aos
determinantes sociais da saúde irá possibilitar
a saúde para todos em todos os seus aspectos
e que os governos politicamente comprometidos são os únicos que tem a capacidade de fazer
isto.
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A privatização da saúde nos países em desenvolvimento: o que