Anais do V SENALIC – TEXTOS COMPLETOS
ISSN – 2175-4128
Organizadores: Gomes, Carlos; Ramalho, Christina; Ana Leal Cardoso
São Cristóvão: GELIC, Volume 05, 2014
AS MARCAS REGIONALISTAS DA OBRA HISTÓRIA DA MINHA INFÂNCIA, DE
GILBERTO AMADO1
Fernanda Bispo Correia2 (UFS)
Neste trabalho apresentamos especificidades e características do romance
História da Minha Infância ([1954] 1999), do autor sergipano Gilberto Amado3, que nos
permitem enquadrá-lo na vertente regionalista. Inicialmente, fazemos um panorama
sucinto do que é considerado regionalismo na literatura brasileira, em seguida,
sumarizamos o enredo da obra História da Minha Infância, e, a partir de uma análise
qualitativa, apontamos as marcas regionalistas, bem como a correlação dos papéis
sociais dos personagens aos usos linguísticos a eles atribuídos. Além disso,
apresentaremos dados do contexto sócio-histórico da sociedade sergipana da época
retratada na obra.
Chiappini (1995) defende que “historicamente, a tendência a que se denominou
regionalista vincula-se a obras que expressam regiões rurais e nelas situam suas
ações e personagens, procurando expressar suas particularidades linguísticas.”
(CHIAPPINI, 1995, p. 155). Enquanto forma de expressão literária, o regionalismo
pode ser observado por duas óticas distintas. A primeira aponta que o estilo estaria
ultrapassado, uma vez que seu auge foi justamente o romance de Trinta e, portanto,
limitar-se-ia a um período datado. No entanto, outra ótica se apoia na defesa do
regionalismo como um tema presente e que ainda suscita estudos bem como obras
dos mais variados gêneros. O resultado dessa segregação é que o termo regionalismo
foi, por vezes, usado como forma de instituir preconceitos ou estereótipos.
Chiapinni também afirma, ao abordar o intento a ser atingido pelo escritor que
se pretendia regionalista, que seria necessário “criar uma linguagem que suprisse com
verossimilhança a assimetria radical entre o escritor e o leitor citadino em relação ao
personagem e ao tema rural e regional, humanizando o leitor em vez de aliená-lo em
Este artigo é um recorte da dissertação de mestrado “A literatura como fonte de dados: um olhar sociolinguístico
sobre a obra História da minha infância, de Gilberto Amado”, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Letras da Universidade Federal de Sergipe, em fevereiro de 2014.
2 Mestra em Letras pela Universidade Federal de Sergipe.
3 Segundo Senna (1969), Gilberto de Lima Azevedo Souza Ferreira Amado de Faria nasceu na rua do Rosário, na
cidade de Estância – SE (à época vila), em 7 de maio de 1887. Senna (1969) argumenta que a vida e obra de Gilberto
Amado se acham intimamente ligadas pois “a obra de Gilberto Amado é a expressão de sua vida.” (SENNA, 1969, p.
XXI). O jovem estanciano ocuparia, mais tarde, cargos como o de deputado federal, senador, professor de direito,
chefe de missões diplomáticas e membro da Comissão de Direito internacional da ONU.
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relação ao homem rural representado.” (CHIAPPINI, 1995, p. 154). Isso deveria
ocorrer devido à necessidade de não distanciar, de forma preconceituosa, o leitor
citadino do homem do campo retratado pela ficção regionalista.
Candido (2007) nos mostra que há três fases distintas do regionalismo na
literatura brasileira. Assim, num primeiro momento, essa tendência estaria circunscrita
ao romantismo e à sua valorização da cor local e da natureza, num contexto no qual
os românticos estavam imbuídos da missão de construir a cultura brasileira. Clássicos
dessa vertente são Bernardo Guimarães, José de Alencar, Visconde de Taunay e
Franklin Távora. Nesse regionalismo, também chamado de “sertanismo”, o interior do
Brasil era tomado como o autêntico Brasil.
Segundo Candido (2006) defende que o romantismo foi fundamental para que
pudesse ser construída uma ideologia valorizadora dos temas que contribuíssem para
uma concepção baseada principalmente no nacionalismo e as subsequentes
valorizações do clima, da paisagem, da cultura, da língua. Observa-se que a exaltação
de particularidades nacionais tem como pressuposto a busca pela identidade nacional
e a construção da cultura brasileira.
Em relação à segunda fase, Candido (2007, p. 528) afirma que se trata
verdadeiramente de alienação do homem dentro da literatura, dando “lugar à pior
subliteratura de que há notícia em nossa história”. Essa segunda fase teria se dado na
virada do século XIX para o século XX, valorizando-se o pitoresco em detrimento da
ação humana, assim o homem era mais uma peça da paisagem exótica.
Candido (2006) mostra que, com a geração de trinta, há uma mudança de
postura com referência à tendência regionalista. Ele mostra que essa geração de
escritores estava, com o chamado romance social, reconhecendo e principalmente
revelando as desigualdades e as particularidades históricas e sociais do Brasil que
passaram a ser revisitadas naquele período. Assim, Candido assegura que o romance
social brasileiro fora inaugurado por essa geração, buscando sanar a contradição
resultante da oposição estruturas civilizadas do litoral versus camadas humanas que
povoavam o interior. Para Candido, esses escritores não buscavam uma mera
descrição da região que retratavam, eles buscavam dar valor a áreas remotas, cujos
grupos sociais e suas condições de vida eram marcados pelo subdesenvolvimento.
Além disso, como características centrais, tal etapa revela uma valorização estética
apurada, passando o elemento humano a ter significativa importância dentro da
narrativa. Entre nomes representativos de autores regionalistas pode-se citar Visconde
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de Taunay, que em sua obra mais famosa – Inocência (1972) – adota uma linguagem
que visa a se aproximar ao máximo daquilo que vislumbrou como característico dos
diálogos percebidos na linguagem regional e natural dos camponeses que retratou.
Segundo Galvão (2000), os historiadores e críticos consideram A bagaceira (1928), de
José Américo de Almeida, como marco inicial do regionalismo de 30. Nessa obra notase a exposição do drama humano local, a presença dos coronéis, retirantes, seca, da
caatinga, e a ênfase nas relações sociais. Além desse autor, Galvão lista como nomes
representativos dessa vertente Rachel de Queiroz, José Lins do Rego, Graciliano
Ramos, Jorge Amado. A seguir focaremos no enredo para mostrar mais detalhes que
comprovam as marcas regionalistas dessa obra.
O romance História da Minha Infância ([1954]1999) é considerado o mais
representativo de toda a obra amadiana. Características que nos levam a perceber
História da Minha Infância como marcadamente regionalista são as passagens nas
quais se descrevem e exaltam os costumes e as paisagens de cidades sergipanas. Tal
obra aborda hábitos e tradições das vilas sergipanas de Estância e Itaporanga, e o
narrador se ocupa em discriminar detalhadamente, por exemplo, a comida que era
servida à janta, a vida nitidamente importada daquelas vilas (roupas e calçados à
moda inglesa, produtos alimentícios importados da França), relata ainda a sacudida
que se deu quando da instalação da primeira fábrica de tecidos na pequena Estância,
registrando com isso a mudança de hábitos advinda da industrialização. Além disso,
Amado detalha a mudança da família de Estância para Itaporanga e descreve as
brincadeiras que animavam a infância do menino (manja, pícula, cabra-cega e capuco
famanão).
O capítulo “A escola de Sá Limpa” mostra bem como se dava a instrução na
pequena vila de Itaporanga em fins do século XIX, mostrando inadequações
pedagógicas, especialmente os castigos a que eram submetidos os meninos – não
havia meninas na escola –, muito atraso e pobreza. Também é abordado o modo de
vida dos engenhos nordestinos no final do século XIX. Além disso, vemos nessa obra
os ritos das festas religiosas e também das festas populares que ocorriam na região.
Outro detalhe do enredo é o fato de a loja do pai de Gilberto Amado ser uma espécie
de centro comercial da vila e também o local onde se processava a vida política do
lugar, mostrando que a primeira década republicana foi marcada por lutas políticas
terríveis em Sergipe.
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Um outro capítulo marcante do texto de Amado é “O Colégio”; nele o narrador
conhece os primeiros dissabores da vida. Depois dessa passagem no colégio de
Aracaju, Gilberto retorna a Itaporanga devido à crise financeira por que estava
passando a sua família, e dois anos mais tarde vai para a Bahia se matricular e
estudar no curso de Farmácia. No capítulo “Adolescência”, Gilberto tece reflexões a
respeito da dualidade que caracterizou aquela fase de sua vida: as vontades do
menino de quatorze anos versus a responsabilidade que era esperada do recémformado farmacêutico.
Apesar de ser um relato autobiográfico, o texto se configura como uma
expressão das particularidades especialmente das pequenas Estância e Itaporanga,
inclusive por tentar revelar algumas de suas especificidades linguísticas. A obra se
divide em dezessete capítulos, sendo dispostos em duas partes – Estância e
Itaporanga – e cada recorte memorialístico nos mostra as situações mais enfáticas e
marcantes na vida do personagem-narrador. Senna (1969, p. XXII) argumenta,
apoiado em Ivo (1953)4, que “sua obra é também falada, e vai-se perdendo,
generosamente, em conversas, durante as quais surgem e desaparecem, sem serem
fixadas, finas observações sobre homens e países, livros e coisas.”
Em virtude de este texto se tratar de um artigo, transcrevemos, a seguir,
algumas passagens ilustrativas da tentativa de regionalização das falas desses
personagens:
(1)
‘Fessor, óie[olhe]!’ (p. 166) [Conradão, aluno no Colégio de
Aracaju ao apontar algum colega que o perseguia – os colchetes
foram inseridos pelo narrador.]
(2) ‘Tem aguia?’ [...] ‘E o... da mãe? Tem fio da p...?’ (p. 62) [colega
da escola não identificado]
(3) Pé espaiado...
Quem foi que te espaiou...?
Foi uma bala...
Que Floriano mandou... (p. 37) [Preto não nomeado, exsoldado, cantando cantiga popular]
(4) ‘Pavião’, como dizia.(p. 80) [Elias - vendedor de cachaça, dono de
um pavilhão armado nas festas de natal – a forma em aspas simples
é atribuída a esse personagem]
4
IVO, Ledo. Desfazendo Lendas in Gilberto Amado. Sabor do Brasil, Edições “O Cruzeiro”, Rio, 1953, p. 94.
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Nas falas acima (todas extraídas de AMADO (1999)), nota-se o fenômeno de
vocalização5, o qual evidencia variação regional e social. Em Amado (1999), temos os
exemplos espaiado/ espaiou [formas do verbo espalhar], fio [filho], aguia [agulha], óie
[olhe], todos atribuídos a pessoas de classe social desprestigiada em relação ao
narrador (preto trôpego, vendedor de barracão, jovens garotos em início de
escolarização). Note-se que todas essas realizações são grafadas em itálico,
denotando uma ênfase para os fenômenos ali embutidos, na tentativa de retratar como
era a linguagem de personagens populares. Outros fenômenos linguísticos variáveis
foram encontrados no decorrer da pesquisa, a qual tem um foco sociolinguístico, mas
em virtude da especificidade do artigo, destacamos apenas as destacadas acima.
O diálogo não aparece com grande frequência no decorrer do texto, mas
podemos observar, nos poucos momentos em que é dada voz a esses personagens,
que a estruturação oferecida é rica em detalhes importantes, os quais funcionam como
índices de suas características sociais, como o status que possuíam na sociedade
retratada – os exemplos citados acima implicam um uso avaliado socialmente como
desprestigioso e são atribuídos a personagens de classes sociais desfavorecidas. No
entanto, há outras falas que não denotam desprestígio, como é o caso das atribuídas
ao próprio narrador, bem como ao pai e à mãe daquele personagem.
Vemos emergir das páginas de História da Minha Infância uma relação
dialética, pois nelas o autor consegue, ao relatar experiências reais, transfigurar a
realidade e revelar a relação que travou com as cidades nas quais cresceu, revelando
seus aspectos socioeconômicos, culturais e até as feições linguísticas das localidades
retratadas. A obra pode ser analisada como adepta do modelo real-naturalista, o qual
se interessava em descrever o meio para explicar o homem que o povoava. Assim
Gilberto Amado, com Histórias da Minha Infância, na mesma linha de outros textos
ícones do regionalismo, não deixou de se utilizar de peculiaridades linguísticas a fim
de explicar a região a cuja descrição/explicação se dedicou.
Há, na obra amadiana, personagens que justificam o enquadramento do texto
como regionalista, visando a explicar o homem por meio da caracterização do meio: os
integrantes da paisagem do “Engenho São Carlos” em capítulo que leva o mesmo
nome – Alexandre Freire (“aristocrata sem o querer”, dono do engenho), Maria dos
A vocalização, ou despalatalização, é um metaplasmo em que ocorre a mudança de um fonema consonantal
palatal /λ/ para um fonema vocálico /i/”. Aragão (1999) defende que no processo em que se perde o traço palatal
do fonema denota-se “uma variedade regional, social, estilística ou individual” (p.15). De acordo com a
pesquisadora, esse fenômeno “é um caso muito frequente na linguagem popular” (p.15).
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Passos
(negra
companheira
de
Alexandre),
João
Ramos (encarregado
do
carregamento no embarque de açúcar), Zebelô (jovem negro de 15 anos, empregado
do engenho, filho da “mandingueira”), Januário (o velho Janjão).
O capítulo “A cavalo e de trem”, no qual são descritas as viagens entre
Itaporanga e a Bahia, também é emblemático da vertente regionalista, pois oferece
uma enaltecedora descrição paisagística, bem como apresenta personagens como “Zé
Correia” e “Rosa Amélia”, moradores da região rural e amigos que hospedavam o pai
e o próprio Gilberto Amado durante o descanso da viagem. Nota-se ainda, nessa obra,
a idealização de um passado em detrimento do presente, denotando a nostalgia e o
nítido patriotismo que exalam da obra de Gilberto Amado e são característicos do
regionalismo.
Martins (1991) faz um destaque a respeito da importância do livro Histórias da
Minha Infância enquanto uma fonte para a pesquisa dos costumes das localidades
retratadas:
O historiador de costumes, por sua vez, encontrará nestas páginas
uma fonte subsidiária que pode ser do maior interesse. Velhos
hábitos brasileiros do interior, na região em que Gilberto Amado
passou a infância, as rudes condições de vida reservadas aos seus
habitantes, os testemunhos a respeito dos homens e das coisas,
poderão servir ao estudante curioso das peculiaridades que
distinguem a vida cotidiana dessas pequenas vilas do “agreste”.
(MARTINS,1991, p. 212).
Com seu patriotismo extremado, Gilberto nos faz vislumbrar em seus escritos o
sabor do Brasil e por que não dizer o sabor das pequenas Estância e Itaporanga
(especificamente no texto de História da minha infância)? Creio que a resposta a esta
indagação seja afirmativa. Por meio desse panorama sobre a obra foi possível
perceber a sua relevância. Vamos nos deter, a partir de agora, em dados do contexto
histórico sergipano que confluem com os registros amadianos em História da Minha
Infância.
Após a proclamação da República6 (15 de novembro de 1889), segundo
Dantas (2004), a população sergipana era majoritariamente empregada no campo, em
É importante ressaltar a síntese que o personagem-narrador faz da situação política no vilarejo: “Dois partidos
disputavam o mando na vila, o Peba e o Cabaú, do nome do tatu e do mel bruto do engenho. Do Peba, liberal e
florianista ao mesmo tempo, era chefe no Estado o Coronel Valadão, Manuel Presciliano, ex-secretário de Floriano
durante a ditadura, e no município, João Simões, mulatão sorridente [...]. Do partido Cabaú, prudentista, civilista,
era chefe o padre Olímpio de Campos, cujo representante local, Felisberto Freire, senhor do Engenho Belém.[...] A
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atividades de subsistência ou na economia agroexportadora, sendo o açúcar o produto
em torno do qual girava a economia. Segundo Dantas (2004), poder-se-ia afirmar que
a sociedade sergipana dividia-se “entre senhores proprietários, habituados a amplo
mando, e trabalhadores despossuídos. É certo que havia uma camada intermediária
heterogênea e em crescimento, mas carente de unidade, de autonomia e de ações
conjugadas.” (DANTAS, 2004, p. 16)
Dantas (2004) destaca, ainda, que no âmbito econômico-social o momento era
um tanto desfavorável e complexo. Com a abolição da escravatura (13/05/1888), uma
massa de ex-escravos fora lançado ao mercado de trabalho, sem condições mínimas
de adequação a esse mercado, tendo que ultrapassar, especialmente, o racismo.
Assim, um dos grandes problemas advindos da Lei Áurea foi a forte queda nas
produções agrícolas, e isso se fez sentir em Sergipe principalmente pelo fato de o
estado ser dependente sobretudo das exportações da produção rural. Com isso, “o
patronato em grande parte endividou-se ou faliu, os comerciantes entraram em
dificuldades, a arrecadação diminuiu e governo passou a atrasar o pagamento dos
funcionários públicos.” (DANTAS, 2004, p. 16).
Dantas nos revela ainda que além de todos os problemas conjunturais, a
estrutura social era perversa, com condições de trabalho muito penosas – decorrentes
principalmente da carência de legislação trabalhista. No início dos anos de 1890,
administrativamente, Sergipe era composto de 33 sedes de municípios, dentre as
quais apenas 09 (nove) tinham o estatuto de cidade7.
Entre essas cidades se
encontra a cidade natal do escritor Gilberto Amado: Estância.
Além desses 09 (nove) municípios Sergipe dispunha de 24 (vinte e quatro)
vilas. Dantas destaca ainda a precariedade dos meios de transporte: nos municípios
costeiros a opção era os barcos e para aquelas localidades onde não havia mar nem
rios navegáveis a população se valia de carros de bois ou de cavalos e burros. Dantas
ressalta que nos estados de Bahia e Alagoas, à essa época, já havia estrada de ferro.
Outra observação em relação à Sergipe é o fato de algumas cidades já disporem de
primeira década da república em Sergipe caracterizou-se por lutas políticas terríveis.” (AMADO, 1999, p. 105)”.
Amado mostra que a violência era frequente e que os oficiais de polícia eram “executores de ordens sanguinárias”,
registrando um histórico de casas invadidas, colchões revirados, espancamentos, entre outros. Acrescentam-se
ainda os destaques em relação a nomes importantes da época: Deodoro da Fonseca, Floriano Peixoto, Prudente de
Morais, Wandelkolk, Rui Barbosa, Zé do Patrocínio, Quintino Bocaiúva, Joaquim Nabuco. Reforça-se com esse
trecho, o valor sociológico implicado na obra de Amado.
7 De acordo com Dantas (2004), no ano de 1890, as nove cidades eram: Aracaju,Lagarto, Laranjeiras, São Cristóvão
(antiga capital da província), Maruim , Capela, Propriá, Itabaiana e Estância.
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ensino de segundo grau, no entanto registrava-se frequência bastante reduzida. E
acrescenta: “Embora houvesse uma elite letrada, formada sobretudo pelos bacharéis
diplomados fora do Estado, o Censo de 1890 registrou que 89% da população não
sabia ler e escrever.” (DANTAS, 2004, p. 23-24)
Faz-se pertinente destacar que os fatores elencados pelos historiadores foram
praticamente todos registrados por Amado: a economia monocultura da cana de
açúcar, a agitação política do estado após o advento da república, a problemática do
sistema educacional, a precariedade dos meios de transporte e a construção da
estrada de ferro – é registrado inclusive o envolvimento direto do pai de Gilberto na
obra –, a falência da atividade comercial de Melchisedech Amado resultante da crise
econômica em que o estado estava imerso, a insignificante atividade cultural de
Itaporanga, as subocupações a que foram submetidos os negros recém-alforriados (os
personagens negros aparecem como vendedores de cocadas e de cachaças,
cuidadoras de criança), entre outros.
Dessa forma, podemos concluir que, após termos tomado conhecimento da
visão de historiadores de Sergipe sobre o percurso histórico desse estado, Amado
conseguiu transpor várias problemáticas sociais dos vilarejos retratados (educação,
política, economia, vida cultural entre outros) em sua obra, tornando-a, por isso, uma
relevante fonte capaz de subsidiar pesquisas futuras de cunho histórico.
Vemos, nesse texto, um exemplar das obras que se podem enquadrar como
regionalistas, já que seu ambiente, temas e tipos são prototípicos justamente de uma
certa região rural, que é revelada em oposição aos costumes, valores e gostos dos
citadinos dos grandes centros urbanos. Além disso, como destaca Chiappini (1995), a
tendência que foi denominada regionalista historicamente é vinculada a obras que
expressam regiões rurais e nelas situam suas ações e personagens, procurando
expressar suas particularidades linguísticas; com História da Minha Infância é
exatamente tal fenômeno que se verifica.
Em que pese o seu valor sociológico, o texto amadiano representa uma
importante fonte de estudo não apenas no que toca aos costumes e tradições das
cidades que nele aparecem, mas também com relação à linguagem atribuída às
personagens, buscando dar voz e caracterizar regionalmente figuras emblemáticas
daquela sociedade.
REFERÊNCIAS
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Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/se/v26n2/v26n2a07.pdf>, Acesso em: 02 fev. 2013).
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