As referências freudianas sobre o corpo
Serge Cottet
É útil lembrar nesta ocasião que Freud não encontra outro suporte para a imagem do eu além do corpo. Freud não fala do
corpo senão em relação ao eu, a título de ser sua base material; é um corpo representado, um corpo imaginário. Ele é
definido como a projeção de uma superfície, portanto como uma abstração que o reduz a duas dimensões, não um dentro,
um interior mas, sobretudo, um fora (« O eu e o isso », capítulo II, in ESB XIX, RJ, Imago, 1976); a imagem narcísica da
bela unidade mascara um despedaçamento que a pulsão faz o corpo sofrer; a pulsão despedaça o gozo do corpo no aspecto
de que a fonte pulsional está na superfície, ou seja, nos buracos do corpo. A noção de borda pulsional retomada por Lacan
implica, com efeito, uma topologia da superfície. Esta superfície anatomicamente furada localiza as pulsões orais, anais,
escópicas, genitais. Ocorre a Freud,então, reduzir o eu ao corpo próprio, (ichkörper) ao ponto em que o sujeito dividido
pelo inconsciente sinta seus efeitos em um despedaçamento corporal tal como na histeria. O fato de que Lacan
diga«despedaçamento funcional» (in Escritos, p.220-21) a respeito disso, designa o impacto do significante sobre o corpo.
O problema é saber como se articula a linguagem sobre essa superfície, quer ela seja furada ou unificada pela imagem.
Para além do corpo histérico
Numerosas referências à anatomia são assinaladas por Lacan em relação à imagem fálica que lhe dá forma e unidade,
especialmente a falicização do corpo na forma grácil da feminilidade. Permanecemos aí no nível da imagem narcísica do
corpo que faz tampão a seu despedaçamento pela pulsão.
A questão das relações do corpo com o inconsciente pode ser descrita de duas maneiras, em relação com dois períodos do
ensino lacaniano. Primeiramente, os efeitos do significante sobre o corpo: o modelo da histeria; supõe-se então um
inconsciente homogêneo à pulsão, isto é, uma comunidade de estrutura entre o inconsciente simbólico e o funcionamento
da pulsão. É o conceito de « borda » que permite esse encontro.
Uma referência mais considerável à anatomia impõe-se, então,em se tratando das zonas erógenas; sua delimitação« é obra
de um corte que se beneficia do traço anatômico de uma margem ou uma borda: lábios, « cerca dos dentes », borda do
ânus, sulco peniano, vagina… » (Escritos p.832). O próprio objeto se descreve a partir de um corte anatômico: mamilos,
falos etc.
A comunidade de estrutura entre o inconsciente e o funcionamento da pulsão não fica explícita senão a partir do Seminário
XI de Lacan, quando este descreve a pulsação temporal do inconsciente como« algo que se abre e se fecha » (Seminário11,
p.188).Jacques-Alain Miller descreveu esse momento da elaboração de Lacan em seus « Os seis paradigmas do gozo »
(Disponível em OL Online: www.oplacaniana.com.br/pdf/numero_7/Os_seis_paradigmas_do_gozo.pdf).Nessa
perspectiva, tem-se de um lado, um corpo mortificado pelo significante, e de outro, uma recuperação de gozo sob a figura
do objeto a. No entanto, não se trata absolutamente de uma substância gozante, deixando foraessa recuperação pelo objeto.
Em segundo lugar, háumaconcepção inteiramente distinta da relação do gozo corporal com o inconsciente, que se poderia
chamar de pós-joyceana: o corpo não é mais definido pela pulsão, mas pelo acontecimento de corpo. Os buracos corporais
responsáveis pelo despedaçamento não são mais levados em conta. Não se está longe do corpo sem órgãos de Deleuze, ao
qual é feita alusão no Seminário 23 (p.140). O corpo é descrito não como uma falta (manque), mas como um a mais. Podese deduzir disso que o corpo existe como saco de pele, vazio, de fora e ao lado de seus órgãos. Daí o mistério do corpo
falante, se consideramos que a consistência desse corpo é a de um conjunto vazio. Como sublinhaJacques-Alain Miller,
haveria ainda muitas coisas para dizer sobre essa página densa.
É oportuno inscrever nesse corpus a questão do sintoma psicossomático. Ele justifica um novo binário que não é aquele da
alma e do corpo, mas do corpo e do organismo. Deixando de lado o sintoma do membro fantasma, é oportuno dar uma
extensão maior à noção de corpo do que àde organismo. Pode-se reportar sobre esse tema à obra O fenômeno
psicossomático(Miller, J.-A. “Algumas reflexões sobre o Fenômeno Psicossomático.” In: Psicossomática e Psicanálise, Rio
de Janeiro: Zahar, 1990, p. 91.),especialmente à conferência de Jacques-Alain Miller sobre essa distinção. Precisamos, com
efeito, de uma noção de corpo compatível com uma superfície de inscrição. Para definir o FPS como uma escrita, Lacan
toma o modelo do cartuxo na escrita hieroglífica; por analogia, o corpo se deixa levar a escrever alguma coisa (cf. Lacan,
Conferência de Genebra sobre o sintoma, 1975). Finalmente, o corpo escrevente é do domínio da observação e não deriva
do dizer, mas da escrita. Outra coisa, então, deve ser construída semobservação direta: o corpo falante.
Enfim, consideraremos o fato de que figuras topológicas tais como o toro, têm uma referência explícita ao corpo próprio,
especialmente no corpo humano, tal como o tubo digestivo que impede o sujeito de se confundir com uma esfera.
As referências à filosofia
Lembramos que o binário do corpo e do inconsciente não deixa de evocar um dualismo célebre, aquele da alma e do corpo,
cruz dos filósofos do século XVII. Encontramos aressonância do mistério do corpo falante evocado por Lacan na
problemática cartesiana, à qual Jacques-Alain Miller se refere em sua conferência. Descartes também faz da união da alma
e do corpo um mistério. Uma citação célebre poderia ser comentada em um congresso: « Eu não estou dentro do meu corpo
tal como um capitão dentro de seu navio ». Como é possível que duas substâncias tão realmente distintas como o
pensamento e o corpo possam agir uma sobre a outra em uma causalidade recíproca? A coisa é conceitualmente
impensável, uma vez que é vivida de maneira evidente por todo sujeito afetado por seus sentidos e por suas paixões. É
preciso se referir ao livro canônico de MartialGueroultao qual JAM faz alusão: Descartes segundo a ordem das
razõesVolume 2, Paris, Aubier ,1953: o comentário da sexta meditação. Lacan não vai se estender no dualismo cartesiano;
entretanto encontramos no Seminário mais...aindaum vocabulário cartesiano assimcomo o sintagma da «substância
gozante»
Outra pista: Lacan será sensível à elaboração filosófica de Merleau-Ponty que buscará definir « o entrelaçamento, cap. 4 »
que formam o corpo e o mundo, a extensão de meu corpo no mundo, unidade indissolúvel que ele chama de « a carne »
emO visível e o invisível, e que discute os limites anatômicos do corpo. Um prolongamento dessa entidade corporal pode
ser encontrado no pintor Bacon, ao pintar cabeças como uma « carne assustadora », assim como a análise que Deleuze fez
delas em Pintura e sensação, quer dizer o real do corpo privado da imagem narcísica.
O próprio olhar envolve as coisas, « veste-as com sua carne (…) o olhar é ele próprio incorporação do vidente ao visível (…)
busca dele mesmo no visível (…) meu corpo modelo das coisas e as coisas modelo de meu corpo. (Merleau-Ponty, O visível e
o invisível, p.173). A partir disso, « onde colocar o limite do corpo e do mundo, já que o mundo é carne? » (Ibid., p.182). É o
campo do visível que define meu corpo como coisa do mundo (cf. O visível e o invisível,Paris, Gallimard, 1964, p.25). Nesta
obra, várias páginas são dedicadas aos sentimentos corporais, independentemente de qualquer função orgânica. Lacan
sublinha, enfim, em seu artigo sobre Merleau-Ponty « o corpo como expressão da fala » (Outros Escritos, 2003, p.189 ; et
cf. capítulo VI da primeira parte de A fenomenologia da percepção, Paris, Gallimard, 1945, p.203).
Resta saber como conceber o inconsciente e sua relação com um corpo que não é mais redutível a cortes. É toda a
problemática do falasser em suas relações com a substância gozante.
O corpo pornográfico
A referência ao erotismo barroco caracterizado pelo véu e pela máscara sobre a sexualidade não exclusiva dos signos de
gozo é,certamente, a sublimação artística mais oposta à pornografia.
Na perspectiva heideggeriana, descobrimos aí o império da técnica sobre a sexualidade, a máquina a serviço da pulsão de
ver a mais sem vergonha. Constatamos aí aparentemente uma atividade sexual sem tabu, sem interdição, mas também sem
semblante. Umasuperabundância de gozo a excluir toda falta (manque); nem véu, nem castração; um falo sempre em
atividade. Também nenhuma transgressão, já que não há nem leis nem regras. E, sobretudo, um tabu da fala. Restam
alguns insultos misóginos, erotismo e sentimentos são igualmente excluídos, e sem direito a cidadania.
É o cúmulo da antinomia entre o gozo e a fala. Dizer que efetivamente não há relação sexual, é dizer que todo corpo pode
substituir outro, sem singularidade própria, sem identidade.
Esse limite que é o espetáculo do gozo pornográfico, indica algo do apelo a um gozo separado do inconsciente, e à ficção de
um controle do ser tal como é sugerido na conferência de Jacques-Alain Miller. Aqui também se obtém a negação do
inconsciente através da qual o falasser « imagina-se o senhor de seu ser, isto é, não ser linguagem » (Ornicar, n°29,
Compte-rendu d’enseignement, p.14).Esta citação de Jacques Lacan se aplica aqui ao sentido em queo « eu penso »,assim
como a fala, parecem inúteis e supérfluos para um gozo do corpo suposto bastar a si mesmo. Signo dos tempos, que
desconhece a função da perversão, a instrumentalização de um gozo que não é o do perverso, mas o de um Outro suposto.
Tradução: Cristina Drummond
Revisão: Teresinha N.M. Prado
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