Um índio, as cobras e o pânico
Ozair da Costa Pereira
Já se vão mais de 14 anos, mas as imagens continuam vivas e bem vivas
em minha memória.
Devo esclarecer que não se trata de uma história de pescador e que
toda semelhança, será mera coincidência, pois se trata de uma vivência que
aconteceu comigo, minha mulher e naquela época, meu filho Dênis.
Morávamos
em
nossa
chácara
aqui
no
Distrito
Federal,
nas
proximidades da cidade satélite do Gama, na região denominada Núcleo Rural
Casagrande, desde 1995; mas foi no ano seguinte que se deu esse fato
inusitado.
Eram aproximadamente 04h30 da madrugada. O dia não me lembro
exatamente qual era; mas era abril. E também não era o dia primeiro.
Dormíamos tranquilamente, e o Dênis que dormia em um quarto contíguo ao
nosso, choramingou por alguns instantes, mas nada que pudesse nos
preocupar. Continuamos o nosso merecido sono após a faina do dia anterior.
Como sói acontecer com pessoas como eu que sempre se levanta
durante a noite, nesse dia não foi diferente, nesse particular, mas foi
extremamente diferente no que concerne aos acontecimentos ocorridos no
decorrer daquela noite.
Ao despertar, ainda estava sonolento, quase dormindo. Quando
dormimos um sono profundo e por algum motivo biológico havemos de acordar,
o nosso biorritmo custa entrar em sintonia com a vida. Assim, ao sentar-me
na cama, dei uns bons bocejos e antes de me levantar, olhei para minha
esquerda, onde normalmente fica um copo com água sobre o criado-mudo. Ali
vislumbrei um vulto que se estendia da cabeceira da cama até o dito criadomudo. A minha visão naquele instante, se devia ao fato de que no quarto do
nosso filho, ficava sempre um abajur, em penumbra, mas que apesar da baixa
claridade, me permitia visualizar algo em nosso quarto, podendo, assim, me
locomover, livremente, pela casa.
Antes de levantar, e desta feita já bem desperto, comecei a imaginar
o que poderia ser aquele vulto que parecia um cinturão. Ou seria minha
pochete? Não, eu não costumava deixá-la ali naquele lugar. Os meus
pensamentos evoluíam e cheguei a pensar que fosse uma gravata listrada de
preto e vermelho. Mas foi nesse instante que a “ficha caiu”. Havia assumido
a minha lucidez total, e vi que se tratava de uma cobra! A minha mulher
ressonava do outro lado da cama. Pensei... Se eu acordá-la, posso correr o
risco de ela ficar apavorada e estragar o primeiro plano que me veio à
cabeça: ir ao banheiro, pegar o rodo e quebrar aquele animal peçonhento ao
meio.
Acreditem,
não
foi
fácil
empreender
essa
arriscada
operação.
Implicava em sangue frio, coragem e determinação, mas também medo,
porque envolvia outra pessoa que ainda não conhecia direito, pois só
estávamos casados há dois aninhos. Tínhamos um único filho, que só começava
a engatinhar. Analisando, contudo, a situação, vi que tinha de tomar uma
decisão, fossem quais fossem as conseqüências que poderiam advir desse fato.
E em fração de segundos, decidi colocar em ação o plano que primeiro viera à
tona. Peguei o rodo e me dirigi ao local da inusitada cena. Em lá chegando,
aquele animal, se encontrava na mesma posição em que o havia deixado
instantes atrás.
Agora era tudo ou nada . Não contei duas vezes. Desci o rodo
calculadamente, bem ao meio daquele réptil que a nosso ver, não estava em
seu habitat. Imaginem só qual foi a reação da minha parceira. Pânico! Pânico
total. Enquanto, eu acabava de liquidar com a vida daquele pobre animal, ela
esbravejava e dizia que queria ir embora dali e que aquele colchão (um J
2000) era um verdadeiro ninho de cobras. Joguei-o pela janela.
Como ainda era cedo, voltamos para a cama, não sei se para dormir como se isso fosse possível -, ou simplesmente para esperar o tempo passar e
o dia amanhecer. Colocamos o menino entre nós e puxamos o edredom por
cima, deixando apenas a cabeça para fora. Ato contínuo, quando tudo parecia
haver terminado e os ânimos serenados, eis que a aproximadamente vinte
centímetros e sobre a minha cabeça, uma nova serpente se estendia sobre o
nosso cobertor. Aí não havia mais tempo para planejar nada, e a minha
decisão foi imediata. Sempre que conto essa façanha para algum amigo, digo
que dei um “tapa” na cobra, e isso é o que mais se aproxima da realidade,
literalmente.
Ao fazer isso, a cobra caiu no chão e eu numa atitude instintiva, puxei
o meu filho para o pé da cama (só fiquei sabendo disso depois que a minha
mulher falou); enquanto a cobra serpenteava
pelo piso liso de vermelhão
queimado e encerado, eu pegava novamente o meu instrumento de guerra, o
rodo, e abatia a segunda cobra da noite, que era logo alçada pela janela. E o
monte de cobras ia aumentando lá fora. Nesse ínterim, imaginem a nova
sessão de pânico. Ai já era por volta das cinco da manhã. Perdemos
totalmente o ânimo para qualquer outra coisa.
Levantamos e quase refeitos dos sustos iniciais, acendemos
todas as
luzes da casa, inclusive as do pátio e fomos para a sala assistir TV. O Dênis
começou a engatinhar e ficamos ali por alguns instantes conversando não me
lembro sobre que assunto. Ai minha mulher falou: “Como já está quase
amanhecendo, vou a cozinha fazer a mamadeira do Dênis”, levantando-se em
seguida.
Ao adentrar no cômodo que dava acesso à cozinha, qual não foi o meu
susto. Uma terceira cobra saia debaixo de um freezer, em direção à cozinha.
Essa mulher começou a gritar e de um só salto atingiu novamente a sala,
atirando-se sobre uma estante próxima, e só dias depois descobriu que havia
se machucado, por causa da roxidão e da dor.
Uma nova sessão de pânico se abateu entre nós, e desta vez o barulho
foi tão grande que chegou a despertar o nosso caseiro e sua mulher que
moravam a uns 100 metros de nossa casa. Eles também ficaram assustados
com a gritaria, pensando que estávamos sendo assaltados. Na verdade, não
deixava de ser um assalto, pois em pouco mais de duas horas, eu fora
obrigado a ceifar a vida de três seres viventes, em defesa da nossa própria
sobrevivência. Porém, desta vez, a cobra não foi alçada pela janela para
reforçar o monte, mas conduzida pelo nosso José Marçal, que as reuniu todas
em um só local pendurando-as numa cerca de arame. Eram três cobras coral
e alguns filhotes na barriga da mãe.
Agora um parágrafo para justificar o título da história. O porquê do
índio aparecer no título e não aparecer na história. É que instante em que
aconteciam as horripilantes cenas das cobras em nosso lar, sucedia uma cena,
em alguma parte do Distrito Federal, mais horripilante ainda, por se tratar
de uma vida humana. Era covardemente assassinado, por desocupados e
“filhos de papais”, o índio Galdino, que após ter seu corpo embebido em
combustível, premeditadamente, lhe atearam fogo, em pleno centro da
Capital do nosso país.
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