IDIOMA 23
GRAMATOLOGIA E DIFFÉRANCE: A PROPÓSITO DOS PRIMEIROS ESCRITOS DE JACQUES DERRIDA
Mário Bruno (UERJ)
Pela manhã ouve-se golpes na porta. Parecem
vir do fora (...) esse outro teatro, esses golpes
do fora.
Jacques Derrida
Introdução
Apresentar algumas questões “presentes” nos primeiros escritos de Derrida é o intuito deste trabalho. Seria desnecessário dizer que não nos propusemos a uma análise
exaustiva, para o que nos faltaria fôlego específico. Limitamo-nos à compilação de alguns pontos que vêm sendo levantados pelos seus comentaristas, empenhados em salientar a surpreendente importância dos escritos derridianos.
A escrita metafísica
Em 1965, o filósofo Jacques Derrida, ex-aluno de Michel Foucault na rue d’Ulm, publicou na revista Critique um artigo muito polêmico que deu origem ao livro De la Grammatologie (Gramatologia). Esse termo, tomado de empréstimo a Littré, designa o tratado
das letras do alfabeto, da leitura, da silabação e da escrita. Seu objetivo principal era libertar
o projeto da semiologia do modelo de uma lingüística cujos alicerces eram fonológicos.
De la Grammatologie apresentava-se, também, como um “guia” para a crítica da
metafísica. Segundo Derrida, a escrita fonética era co-extensiva ao pensamento metafísico e, portanto, remontava à mesma origem que ele. Derrida – pelo menos na fase inicial de sua obra - , visava a autosuperação da metafísica, recorrendo aos tempos anteriores à escrita fonética (a gramatologia procurava pensar a singularidade da linguagem
antes de capturada pela linearidade da voz).
Com certeza não é justo tomar a Gramatologia como uma versão lingüística do
pensamento do “ser”, como se tratasse de praticar heideggerianismo; não obstante a
influência de Heidegger é aí explicita, serve, sobretudo, para denunciar, nos conceitoschave da lingüística (o modelo usado pelo estruturalismo), certos aspectos metafísicos.
Como afirmamos, o ponto de partida derridiano foi o conceito de escrita, comandado na história do Ocidente, pelo etnocentrismo logocêntrico: a escrita, foi sempre considerada secundária em relação a uma phoné originária. E, à luz de uma interpretação heideggeriana, Derrida afirma que a escrita, entendida como imagem de uma phoné, só pode
manifestar uma verdade pré-determinada, secundária, metafísica, distante do “ser” enquanto tal. Sendo assim, o primado do logos reveste a teoria da escrita. A idéia fonocêntrica de uma escrita secundária em relação a uma phoné remete a uma teoria da presença,
a uma teoria do esquecimento da diferença a partir da determinação entitativa:
É no sistema da língua associado à escritura fonético-alfabética que se
produziu a metafísica logocêntrica determinando o sentido do ser como presença. Este logocentrismo, esta época da plena fala sempre colocou entre parênteses, suspendeu, reprimiu, por razões essenciais,
toda reflexão livre sobre a origem e o estatuto da escritura que não
fosse tecnologia e história de uma técnica apoiadas numa mitologia e
numa metafórica da escritura natural. (Derrida: 1973, 53)
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Com isso, Gramatologia revisita a crítica heideggeriana à essência da técnica e à
glorificação positivista do ente-dado.
A forma objetiva e a pura reflexão
Segundo Derrida, no mundo ocidental, a história do ser como presença tem duas
fases bem definidas: o primeiro momento é o da identidade da presença oferecida à dominação da repetição sob a forma objetiva da idealidade do eidos ou da substancialidade
da ousia; o segundo, o da objetividade sob a representação na qual a idealidade e a substancialidade relacionam-se consigo mesmas no elemento da res cogitans, num movimento de pura afecção, sobrepujando a provocação do Gênio Maligno e provando a
existência de Deus (de Descartes a Hegel, o entendimento infinito de Deus é o nome do
logos como presença a si).
Mas Derrida avisa que os nomes dos filósofos, nessa história da metafísica, não são
nomes de autores, têm somente um valor indicativo, são nomes de problemas do pensamento. Todavia, esses problemas não podem ser vistos à luz de estruturas. Aqui, fica nítido que
Derrida, no início de seu percurso, já não poupava críticas ao estruturalismo:
Para além destas justificações maciças e preliminares, seria preciso
invocar outras urgências. No campo do pensamento ocidental, e notadamente na França, o discurso dominante – denominemo-lo “estruturalismo” – permanece preso hoje, por toda uma camada de sua estratificação, e às vezes pela mais fecunda, na metafísica – o logocentrismo
– que ao mesmo tempo, se pretende, ter, como se diz tão depressa “ultrapassado”. (Derrida: 1973, 124)
Acreditamos que De la Grammatologie foi a primeira grande contestação filosófica do estruturalismo francês, que pretendia ampliar, para o campo de todas as “Ciências
Humanas”, o emprego da lingüística. E mais do que isso, Derrida, numa nota, opõe-se
ao primado do significante.Isto já comportava uma crítica implícita à leitura lacaniana
de Freud, a qual tomava o significante como telos da fala plena.
De certo modo, o estruturalismo pertenceria a única metafísica que conhecemos
no Ocidente, a “metafísica da presença”, desdobrada, como já sabemos, nas duas modalidades principais: a forma objetiva e a pura reflexão.
A metafísica da presença atravessa, de modo variado, essas grandes formas, mas
atravessa outros modos de pensar que atribuímos ao senso comum. Sem grandes dificuldades poderíamos estabelecer uma lista de conceitos que se apoiam no valor da presença: o imediatismo da sensação, a presença de verdade à consciência (humana ou divina), as noções de origem e de finalidade, a síntese dialética, a presença na fala de estruturas lógicas, o “eu” presente a si (resistindo à dúvida hiperbólica), o significado presente à consciência de quem fala, etc. Enfim, sabemos que esta lista poderia ser maior.
Mas cabe retomar que, principalmente nos seus primeiros escritos, Derrida delimitou o
campo de sua atuação relacionando a metafísica da presença ao privilégio da voz e ao
querer-dizer:
A voz viria em primeiro lugar: nele se põe, em um ponto que, por razões que não posso explicar aqui, parece juridicamente decisivo, a
questão do privilégio da voz e da escrita fonética em suas relações
com toda a história do Ocidente, tal qual ela se deixa representar na
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história da metafísica, e em suas forma mais moderna, mais crítica,
mais atenta: a fenomenologia transcendental de Husserl. O que é o
“querer-dizer”, quais são suas relações históricas com aquilo que se
pensa identificar sob o nome de “voz” e como valor da presença do
sentido à consciência, presença a si na palavra dita “viva” e na consciência de si? (Derrida: 2001, 11)
Sobrevindo do fora, a errância da différance
Em 1968, Derrida pronuncia na Sociedade Francesa de Filosofia uma conferência
denominada La Différance (A Diferença) e publica um belíssimo artigo chamado La
Pharmacie de Platon (A Farmácia de Platão). O ano de 1968 foi marcado na França
por um turbilhão de acontecimentos e as produções de Derrida pertenciam, de algum
modo, a essa efervescência.
Na conferência La Différence, tendo como “pretexto” um neografismo, expresso
por um pequeno desregramento gráfico (a troca do e pelo a), Jacques Derrida fala da
différance como algo inaudível, propondo um “retorno” à discussão, desenvolvida por
Martin Heidegger sobre o esquecimeto da diferença entre o ser e o ente. Contudo, Derrida via, na procura heideggeriana do sentido do ser, uma certa permanência do pensamento da “presença”. La Différance revisita também Nietzsche e Freud, enquanto pensadores de uma diaforística energética ou economia de forças. Em ambos, a diaforística
se contrapõe ao primeiro da “presença” como consciência.
Já em La Pharmacie de Platon, Derrida percebe que, no centro bem calculado do
Fedro, Platão indaga sobre o que significa a logografia. O Fedro, neste ponto, recorda
que os homens mais livres sentiam vergonha de escrever discursos e deixar atrás deles
textos escritos. Nos diz Derrida que a mesma desconfiança envolvia a escritura e a eficácia dada ao empirismo. A escrita acumulava um saber morto, encerrado nos bibliá,
algo tão estranho à episteme quanto ao mito.
Segundo Derrida, a escrita sob o ponto de vista de Platão, era como um pharmakon: um suplemento sensível da fala, uma exterioridade artificial não controlável para o
dentro indivisível da alma, um fora radical.
No Fedro de Platão, o pharmakon significava tanto remédio quanto veneno. A escrita, enquanto dádiva de Cadmos ao homem, para servir-lhe de remédio, é vista por
Sócrates como um veneno perigoso. A própria vida de Sócrates expressa ironicamente
essa ambiguidade: Sócrates ingeriu veneno (pharmakón) como remédio para seu destino
de “bruxo” (pharmakeus). Mas o pharmakos significava também “bode expiatório”,
cuja expulsão purificava a polis.
De acordo com Derrida, o discurso de Sócrates, no Fedro, objetivava expulsar a
escrita venenosa, secundária em relação à fala e, com isso, manter o pensamento na sua
relação direta com os significados ideais.
Por outro lado, embora Derrida tenha demonstrado, nos seus primeiros trabalhos, um
vivo interesse pela fenomenologia, a exemplo do livro La Voix et le Phènomenè (A Voz e o
Fenômeno, publicado em 1967), Edmund Husserl defendia com rigor a noção de consciência pura contra o domínio intermédio da comunicação lingüística, a fim de expurgar a posse
do significado através dos vestígios empíricos da expressão verbal. Husserl atribuiu o significado à esfera da essencialidade ideal. Para Derrida, a noção de significado é muito diferente da concepção de Hussrel. É possível afirmar que os escritos da Derrida têm como um
dos pontos de confronto o que ele denominou transcendental. Para o autor da Gramatologia, os significados transcendentais têm recebido os mais diversos nomes: Deus, a Idéia,
Substância, o Eu e assim por diante. Segundo Derrida, esses significados são candidatos a
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fundamentar todo o sistema de pensamento ocidental.
Conclusão
Podemos dizer que a síntese das idéias filosóficas de um pensador tão singular,
quanto Derrida, é impossível. No entanto, indiquemos quatro aspectos que nos parecem
que foram fundamentais para a produção filosófica dos primeiros escritos derridianos:
1º aspecto - “Ultrapassar” através de uma “nova semiologia” (gramatologia) a antecipação do sentido quanto à letra, pressupondo a existência de um devir diferencial da
“linguagem” anterior à fala e à escrita.
2º aspecto - “Desconstruir”, através de um “retorno” às obras de F. Nietzsche e M.
Heidegger, uma epistemologia que postulava a unidade do sujeito e a exterioridade do
objeto. Portanto, repensar, na filosofia, a determinação objetiva da “presença” e a determinação subjetiva da consciência como “presença”.
3º aspecto - Conduzir a noção de diferença, enquanto decisão filosófica, ao deslocamento aporético, capaz de evidenciar os sintomas logocêntricos do pensamento grecoocidental.
4º aspecto - Compreender a estranha mise-en-scène da história filosófica da escrita, que se confunde com a história da filosofia, aprisionada a um quadro familiar, no
qual o Pai é o único e verdadeiro Bem; depois vem seu filho, o Logos, um “homem”
livre, identico a si e capaz de proferir a palavra do Pai. Por conseguinte, à margem, estão os personagens bastardos que engendram o jogo perigoso do pharmakon, o jogo
incontrolável do fora.
Referências Bibliográficas:
DERRIDA, J. Gramatologia. Trad. Miriam Schnaiderman e Renato Janini Ribeiro. São
Paulo: Perspectiva, 1973.
------. La diseminación. Trad. José Martín Arancibia. Madrid: Editorial Fundamentos,
1975.
------. Posições. Trad. Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.
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