UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA
DRAGÃO CONFABULANDO:
ETNICIDADE, IDEOLOGIA E HERANÇA CULTURAL
ATRAVÉS DA MÚSICA PARA KOTO NO BRASIL
TESE SUBMETIDA AO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
EM MÚSICA DA UNVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA COMO
REQUISITO PARCIAL À OBTENÇÃO DO GRAU DE
DOUTOR EM MÚSICA
ETNOMUSICOLOGIA
ALICE LUMI SATOMI
SALVADOR
FEVEREIRO DE 2004
© 2004 Alice Lumi Satomi
Aqui, a expressividade do canto é diferente, pois já
tem o jeito de viver do brasileiro... Meu objetivo em ensinar música clássica japonesa é despertar o interesse, principalmente,
das nisei e sansei, mas sem tornar rígido... Por isso, ensino minyō também. Ensinando para essas crianças, pode ser que elas
não entendam nada, hoje, mas alguma coisa eu acho que fica,
quando elas se tornarem adultas.
Tamie Kitahara
O primeiro desejo do imigrante é reconstruir em torno de si o meio em que vivia, a cultura de que se apartou. [...] O
estrangeiro, mesmo quando admitido à condição de cidadão brasileiro, e apesar de toda a lealdade com a nova pátria, continua a
cultivar num canto do coração o jardim secreto do país abandonado.
Roger Bastide, Brasil Terra de Contrastes
In memoriam
Genjiro Satomi
Ivone Arata Endo
Nobuo Agena
Seikichi Yonamine
e de todos os imigrantes e descendentes
que labutaram em terras brasileiras para garantir
um futuro melhor para as gerações vindouras e para o país receptor.
Para
Okāchan
Jorge
Fernando
Kayami e
Mayara
AGRADECIMENTOS
Agradeço a colaboração direta ou indireta para a realização deste trabalho:
Aos co-autores deste trabalho pela boa receptividade e confiança.
Ao colegiado do curso de Educação Artística do Departamento de Artes da UFPB
pela liberação concedida para dedicação exclusiva do curso de doutorado, em especial aos colegas da área de Habilitação em Música.
Aos dirigentes da CAPES e PICD pela concessão da bolsa de estudos.
Aos professores do curso de pós-graduação da UFBA:
Luiz César Magalhães pela paciente orientação; Kilza Setti, pelos caminhos apontados; Manuel Veiga, Angela Lühning, Alda e Jamary Oliveira, Joel Barbosa e Elizabeth Lucas
pelas válidas sugestões.
Aos secretários do Programa de Pós Graduação, Maísa e Pedro.
Ao colega Maurílio Rafael.
Aos bibliotecários Peter Krometsek, da UFPB e Hiroko Yanagi, da ACBJ.
A L. C. Vinholes e Bonnie Wade por me confiarem publicações preciosas para a
pesquisa.
Ao maestro Kenichi Yamakawa pelos artigos e manuscritos doados.
A Minako Waseda, Shanna Lorenz, Eurides Santos e Eunice Moura, por me enviarem gentilmente útil material bibliográfico.
A Kitty Pereira e Mário Manga por me confiarem gravações inéditas.
A Genichi Tsuge, Shūhei Hosokawa e Margaret Kartomi pela atenção dispensada.
A Harue Tanaka pelas tomadas de fotos em Recife e Sérgio Agripino pela primei-
v
vi
ra fita de música para koto em áudio.
Aos principais informantes, sem os quais seria impossível concretizar este trabalho:
Miriam Sumie e Shigeo Saito, professores do Miwa-kai e Shinzan-Kai; Yūko Ogura e Reiko Nagase, professoras do Miyagi-Kai; Tamie Kitahara, professora do GSBK – Grupo
Seiha Brasil de Koto; e Tomoko Inoki, professora da Tomoi-Kai; Tsuna Iwami, presidente da
ABMCJ – Associação Brasileira de Música Clássica Japonesa; Shōjiro Saeki, Danilo Tomic e
Márcio Valério da ABMCJ; Olavo Tomohisa Ito, Nobuko Sugio, Fumi Naiki, Mary Celeste
Bueno e Yumiko Hayashi, do Miyagi-Kai; Chieko Chibana, presidente da Ryūkyū Sōkyoku Hozonkai do Brasil; Ryoko Kuniyoshi, presidente da Ryūkyū Sōkyoku Koyōkai do Brasil; Shinkun
Chibana, presidente da Preservação Nomura do Brasil; Yukihide Kanashiro, do site Okinawa;
Marcelo Tinen e Cida Genka, do jornal Utiná News.
Aos seguintes colaboradores, pela valiosa ajuda técnica:
Meiri Yoshie Nakamura pela confecção dos mapas e tomadas de fotos; Kayami Farias pelas edições das transcrições, Kazuko Adachi, Flávio Barros pela revisão das traduções e
Analice Ferreira pela revisão do texto em português.
Às profas. Satiko Fukuda e Sonia Yamakawa pelos primeiros passos na música.
Ao prof. Koellreutter pelo rumo à estética da música japonesa.
Ao mestre Liu Pai Lin pelos ensinamentos do Tao.
A Josilene da Silva por suprir as ausências no lar.
A todos os meus familiares, os primeiros no afeto, compreensão e estímulo:
Fernando Farias, paciente companheiro de todos os momentos e ausências; Fumiko
Satomi e Mayara Farias por participarem “ativamente” na pesquisa de campo; Jorge Satomi pela força de sempre; Bernadete Farias pela acomodação em Salvador; Yoko e Alexandre Satomi
pela acomodação em São Paulo; Tsutomu, Tiyoko e Clarice Oba pelos registros em vídeo; Vitor, Emerson, Napoleão e Eduardo Satomi por facilitarem minha locomoção em São Paulo.
ÍNDICE
AGRADECIMENTOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
v
ÍNDICE. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
vii
LISTA DE ILUSTRAÇÕES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
xi
LISTA DE TABELAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
xii
LISTA DE ABREVIAÇÕES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
xiii
GLOSSÁRIO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
xv
MÉTODO EDITORIAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . xxiii
RESUMO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
xxvi
ABSTRACT . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . xxviii
Capítulos
ABERTURA
1. O ESTUDO EM SUA NATUREZA ETNOMUSICOLÓGICA
1.1. Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1
âmbito e construção do objeto de pesquisa
1.1.2. universo de referência e a pergunta de partida
1.1.1.
1.2. Justificativa da delimitação temática. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6
literatura brasileira incipiente
1.2.2. diminuição dos issei e aparente esmorecimento da música para koto
1.2.1.
1.3. Revisão de literatura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 10
música japonesa “transterritorializada”
1.3.2. estudos culturais correlatos
1.3.1.
1.4. Objetivos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13
1.5. Procedimentos metodológicos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15
PARTE I. DADOS MUSICAIS IMIGRADOS
2. DRAGÃO DEITADO NA AREIA CONFABULA COM AS ONDAS
2.1. Questões de categorização do instrumento e gênero musical. . . . . . . . . . . . . . . 21
koto derivado do ch’in ou chêng?
2.1.2. sōkyoku: música instrumental ou vocal?
2.2. Constituição, simbologia, forma de execução e afinações do koto. . . . . . . . . . . 25
2.1.1.
2.3. Diacronia das escolas Sōkyoku. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
escolas antigas: Tsukushi-goto e Yatsuhashi-ryū
2.3.2. correntes seculares vigentes: Ikuta-ryū e Yamada-ryū
2.3.1.
vii
30
viii
2.4. ‘escolas novas’ shinsō: ocidentalização. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
37
restauração Meiji
2.4.2. Michio Miyagi
2.4.3. compositores do pós-guerra
2.4.1.
2.5. Música para kutū em Okinawa. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
42
3. NOTAÇÃO MUSICAL E RECURSOS SONOROS DO KOTO
3.1. Sistema de tablatura e mnemônicos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 50
3.2. Duração: modernidade e tradição. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53
3.3. Altura: representações e possibilidades. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
55
com o auxílio da mão esquerda
3.3.2. técnicas da mão direita
3.3.1.
3.4. Efeitos timbrísticos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61
com os plectros
3.4.2. ocidentalizados
3.4.1.
3.5. Intensidade. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
63
4. A CONTIGÜIDADE DE “ROKUDAN”: UMA INTRODUÇÃO À ANÁLISE DE REPERTÓRIO
PARA KOTO
4.1. Critério de escolha e transcrição da peça. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
67
4.2. Estrutura básica: andamento, afinação e modo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71
4.3. Micro à macro estrutura. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
74
ornamentos
4.3.2. motivos e frases
4.3.3. forma geral e subterritórios
4.3.1.
PARTE II. SURGIMENTO E CONTINUIDADE DE ATITUDES PRÉ-GUERRA
5. MÚSICA E RESISTÊNCIA DAS FILIAIS BRASILEIRAS DE RYŪKYŪ
5.1. Conduta cultural da minoria okinawana. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 82
etnicidade e música
5.1.2. coesão e bairrismos
5.2. Antecedentes e causas da formalização dos grêmios de música “clássica” . . . . . 90
5.1.1.
5.3. Ideologia e manutenção até a década de 90 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 94
conceitos “preservação” e “difusão” como reconstrução da tradição
5.3.2. objetivos, estágios, performances, protagonistas e âmbito físico
5.3.1.
5.4. Preservação do Kutū no Brasil (PKB): cenário e protagonistas . . . . . . . . . . . . . . 97
situação atual da PNB
5.4.2. professoras principais
5.4.3. preparação e performances
5.4.1.
ix
5.5. Difusão do Kutū no Brasil (DKB). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 103
principais agentes e âmbito da ANB
5.5.2. as protagonistas
5.5.3. treinamento e apresentações
5.5.1.
5.5. Sentido da atitude musical. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 110
6. A HERANÇA FAMILIAR DO GRUPO MIWA: MÚSICA E SOLIDARIEDADE
6.1. Prólogo: o legado e antecedentes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 114
heráldica transterritorializada do dragão e fênix
6.1.2. primeiros registros da música “clássica” japonesa no Brasil
6.2. A implantação do Grupo de Estudos da Música e Dança Japonesa . . . . . . . . . . 118
6.1.1.
circunstâncias na chegada do casal Miyoshi
6.2.2. “Noite da música japonesa” e a fundação
6.2.3. estabelecimento do formato das performances
6.3. Manutenção do GEMDJ: do pós-guerra até 1990 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 124
6.2.1.
preparação da segunda geração e aliança católica até 1958
6.3.2. GEMJ, a última fase de Miwa Miyoshi
6.4. Continuidade com a professora Saito. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 130
6.3.1.
audições do Miwa-kai
6.4.2. apresentações irrestritas à comunidade
6.4.1.
6.5. Ensino e aprendizagem. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 138
6.5.1.
locais, atores sociais e motivação
6.5.2.
estratégias: memória aural, mnemônicos e proezas
6.6. A sucessão musical e cultural: koto e filantropia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 145
PARTE III. ABMCJ: IMPLANTAÇÃO DA MENTALIDADE PÓS-GUERRA
7. ESCOLAS DE SHAKUHACHI E YAMADA-RYŪ: A RECUPERAÇÃO DO “SENSO ARTÍSTICO”
7.1. Algumas peculiaridades contextuais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 150
7.1.1.
novo tipo de imigrante
7.1.2.
hierarquias musicais: iemoto e purismo
7.2. Ala masculina: escolas de shakuhachi. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 153
formação e atuação de Iwami e Baikyoku V
7.2.2. discípulos da Kinko-ryū
7.2.3. Academia de Shakuhachi Tozan-ryū
7.2.1.
7.3. As performances da ABMCJ. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 159
7.4. As remanescentes da corrente Yamada. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 160
formação e atuação artística de Tomoi Inoki
7.4.2. breve período de ensino da Tomoi-Kai
7.4.3. Yumiko Hayashi
7.4.1.
x
8. ESCOLAS IKUTA: MANUTENÇÃO E ADAPTAÇÃO
8.1. Miyagi-Kai do Brasil. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 170
trajetória da pioneira Yūko Ogura
8.1.2. formalização, professoras e alunado
8.1.1.
8.2. Grupo Seiha Brasil de Koto. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 181
8.2.1.
Gakkyo Yūmoto, a semeadora
8.2.2.
Tamie Kitahara: sucessão desde 1984 e o corpo discente
8.2.3.
dados de manutenção: transmissão musical e núcleo familiar
8.2.4.
estudantes modelo e a interação com a maioria
ENCERRAMENTO
9. SENTIDO SÓCIO-CULTURAL DA RESISTÊNCIA MUSICAL
9.1. Retomando as questões iniciais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 198
9.2. Atitudes culturais predominantes. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 200
9.2.1.
etnicidade
9.2.2.
ideologia por herança cultural
9.3. Função formativa e terapêutica por geração. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 207
9.3.1.
para os imigrantes
9.3.2.
para os descendentes e não descendentes da comunidade
9.4. A reconstrução “pura” do elo perdido. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 211
APÊNDICE
1. Fotos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 213
2. Transcrições. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 227
3. Lista do Repertório. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 259
4. Documentos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 268
5. Bibliografia Comentada. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 277
6. Listas das Escolas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 293
7. Entrevistas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 300
8. Sinopse da Pesquisa de Campo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 324
9. Tradução dos Textos Literários do Repertório Sōkyoku. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 331
LISTA DE REFERÊNCIAS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 339
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
1.
Densidade populacional nikkei no Brasil por estado. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
2
2.
Universo de referência e objeto da pesquisa. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
6
3.
Atividade musical nikkei em São Paulo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
8
4.
“Estrutura do koto” (Kishibe 1982, 65). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26
5.
Principais afinações do koto. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29
6.
Predominância de repertório sōkyoku por compositor. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35
7.
Tablaturas das escolas Yamada e Ikuta. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51
8.
Mnemônicos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51
9.
Representação das cordas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55
10. Técnicas da mão esquerda. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
57
11. Técnicas da mão direita. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
60
12. Transcrição de “Rokudan no Shirabe”. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 70
13. Bases do sistema modal japonês. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 72
14. Motivos rítmico-melódicos de Rokudan. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
77
15. Proporção entre paulistanos, nikkei e okinawanos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 84
16. Mapa de procedência dos associados de música clássica de Ryūkyū. . . . . . . . . . . . . . . 87
17. Possibilidades associativas dos okinawanos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
88
18. Distribuição dos associados da PNB e PKB na Grande São Paulo. . . . . . . . . . . . . . . . 99
19. Associados da ANB e DKB em 2002. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 106
20. Bairros mencionados do município de São Paulo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 112
21. Cidades mencionadas do Brasil e do estado de São Paulo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 113
22. Participantes do GSBK. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 186
xi
LISTA DE TABELAS E QUADROS
1.
Quadro da seqüência silábica japonesa e okinawana. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . xxv
2.
Ocorrências de repertório dos grupos de sōkyoku de São Paulo. . . . . . . . . . . . . . . . .
36
3.
Quadro de instrumentos tradicionais mencionados. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
46
4.
Âmbito da sōkyoku (música para koto). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
47
5.
Notação de duração. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
64
6.
Notação de altura. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
65
7.
Notação de timbre. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
66
8.
Ocorrência de ornamentos em “Rokudan”. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
75
9.
Estrutura geral e interna das secções de “Rokudan”. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
79
10. Estimativa da população nikkei em São Paulo e no Brasil. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
84
11. Procedência dos associados dos grêmios Nomura e Sōkyoku. . . . . . . . . . . . . . . . . . .
86
12. Professoras e alunas da PKB em 2003. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 100
13. Professoras e alunos da DKB em 2002. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 107
14. Quadro de programas do grupo Miwa-Kai. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 123
15. Quadro de participantes orientados por Miwa Miyoshi. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 129
16. Repertório predominante da Escola Miwa. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 133
17. Quadro atual do Miwa-Kai. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 139
18. Participantes de shakuhachi da ABMCJ. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 155
19. Participantes das apresentações Tomoi-Kai. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 165
20. Alunos principais Miyagi-kai desde 1980. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 176
21. Quadro atual do Miyagi-Kai. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 195
22. Quadro de professoras e alunas do GSBK. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 196
23. Significado da música. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 203
24. Preferências musicais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 206
xii
LISTA DE ABREVIAÇÕES
ABET
Associação Brasileira de Etnomusicologia
ABMCJ
Associação Brasileira de Música Clássica Japonesa
ACBJ
Aliança Cultural Brasil-Japão
ANB
Associação Nomura do Brasil
AOCV
Associação Okinawa de Casa Verde
AOKB
Associação Okinawa Kenjin do Brasil
AOVC
Associação Okinawa de Vila Carrão
Asebex
Associação Brasileira de Ex- Bolsistas do Japão
BNB
Beneficência Nipo-Brasileira
CEJ
Centro de Estudos Japoneses
CENB
Centro de Estudos Nipo-Brasileiros
DKB
Difusão do Kutū do Brasil
GEMDJ
Grupo de Estudos da Música e Dança Japonesa
GSBK
Grupo Seiha Brasil de Koto
IBGE
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
ICTM
International Council of Traditional Music
JICA
Japan International Corporation Agency
MASP
Museu de Arte de São Paulo
NHK
Nippon Hōsō Kokusai [Companhia Nacional Japonesa
de Teledifusão]
OMB
Ordem dos Músicos do Brasil
PNB
Preservação Nomura do Brasil
PKB
Preservação do Kutū do Brasil
SBCJ
Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa
SESC
Serviço Social do Comércio
xiii
xiv
SFSP
Sociedade Filarmônica de São Paulo
UFBA
Universidade Federal da Bahia
UFPB
Universidade Federal da Paraíba
Unicamp
Universidade Estadual de Campinas
USP
Universidade de São Paulo
ABCD
Grande São Paulo
Mw
Miwa-kai
app.
apêndice
nr
nota de rodapé
cp.
compasso
PR
estado do Paraná
DM
danmono
qt.
questionário
FA
fita áudio
sg
sangen
fig.
figura
sha
shamisen
ft.
foto
shk
shakuhachi
FV
fita vídeo
SK
sankyoku
kk
kokyu
SP
estado de São Paulo
Kr
Kinko-ryū
tab.
tabela
kt
koto
TM
tegotomono
ktb
koto baixo
top.
tópico
MD
mini disc
tr.
transcrição
Mk
Miyagi-kai
Tz
Tozan-ryū
MM
Michio Miyagi
Yr
Yamada-ryū
MS
estado do Mato Grosso do Sul
v.
ver
GLOSSÁRIO
ai-no-te – interlúdio instrumental das “canções ciclo” até fins do séc. XVII. V. kumiuta e tegotomono.
Bettō –V. Kengyō e todō shoku-yashiki.
biwa – cordofone do tipo alaúde em forma de pêra, similar ao p’ip’a com três cordas, tocadas
por um plectro. Instrumento medieval que acompanhava os músicos itinerantes.
chadō – ‘caminho do chá’, arte da cerimônia de servir chá, que reúne os preceitos budistas, de
cultuar a simplicidade através da harmonia do homem com a natureza.
chêng – cítara longa chinesa, provável antecessora do koto.
ch’in ou ku-ch’in – cítara longa chinesa com sete cordas e sem cavaletes móveis. Em épocas
remotas era o instrumento preferido por poetas e filósofos, como Confúcio.
chūtōka – v. shōtōka.
chūden – v. daishihan.
Colônia Geinōsai – Festival de Música e Dança Tradicional da comunidade nikkei, que ocorre
na SBCJ, no último final de semana do mês de junho, quando se comemora o aniversário da imigração japonesa no Brasil.
daishihan – grau máximo do ensino das artes tradicionais. Nas escolas Miyagi e Tozan, para
se alcançar o título de daishihan há seis níveis: shōden, chūden, okuden, kaiden, jōkyō e
shihan.
dangaeshi – v. kaete-shiki.
danmono – ‘peça em secções’ ou “peça cíclica”; forma de música puramente instrumental para koto; ‘peça’ ou mono composta em dan ‘degraus’. Danmono mais conhecidas são:
“Rokudan”, em ‘Seis Secções’, e “Midare”, com dez secções. V. shirabemono.
dan tranh – variante vietnamita do chêng.
dekasegi – trabalhador temporário fora do país de origem. Atualmente há cerca de 200 mil
dekasegi brasileiros no Japão.
engeitaikai – show amador de variedades, tais como, poesias, concursos de fantasias, música,
xv
xvi
dança, teatro, artes marciais, que se tornou uma tradição entre os imigrantes, desde a viagem de navio, na festa de travessia do Equador.
enka – gênero de canção urbana bastante cultivada nos concursos amadores entre os nikkei
brasileiros.
fue – sentido geral de flauta, mas em Okinawa trata-se de uma flauta transversal de bambu.
fujinkai – associação feminina das associações de províncias ou sociedades beneficentes.
gagaku – ‘música elegante’, gênero da corte importada da dinastia T’ang. Entre os séculos IX
e XV o koto figurava apenas neste gênero musical.
gakujōshi – ‘sistema prazeroso’, afinação empregada em arranjos de canções infantis ou populares na gama pentatônica maior.
gakusō – koto ou wagon utilizado na música gagaku.
gateball – jogo com taco e bola, cujo objetivo é alcançar pequenas traves no campo de terra.
Geinōsai – Festival de Música e Dança. V. Colônia Geinōsai
gosei – v. nikkei.
hensōkyoku – ‘música modificada’; variações.
heikyoku – poesia épica da coletânea de contos “Heike Monogatari”, acompanhada de biwa.
hichiriki – aerofone de bambu com palheta dupla.
hikizome – ‘primeiro toque’, primeira reunião musical do ano.
hiragana – escrita silábica empregada em artigos, preposições, conjunções e sufixos de verbos para flexioná-los.
hirajōshi – ‘sistema paz’ afinação do koto implantada por Kengyō Yatsuhashi, resultando na
gama pentatônica D E F A Bb.
hōgaku – música tradicional ou ‘clássica’ japonesa.
honte – ‘ mão principal’, parte original do koto em peças polifônicas. V. kaete-shiki.
iemoto – ‘principal da casa’, hierarquia máxima no sistema de ensino tradicional.
ikebana ou kadō – arte do arranjo floral que representa a harmonia céu-terra-homem.
Ikuta-ryū – Escola de koto fundada por Kengyō Ikuta, 1656-1715, na região de Kyōto.
issei – ‘primeira geração’ de imigrantes japoneses. V. nikkei.
xvii
jatag – variante do chêng na Mongólia.
ji – cavaletes móveis do koto que regulam a altura da corda conforme a afinação desejada.
jiuta – ‘canções regionais’ líricas acompanhadas de sangen, do repertório sōkyoku, cultivadas
na região de Kyōto e Ōsaka durante os séculos XVII e XVIII.
jōkyō – v. daishihan.
jōruri – música narrativa acompanhada de shamisen que foi muito popular durante o período
Edo e retomada pela Yamada-ryū.
jōtōka – v. shōtōka.
judō – arte marcial japonesa.
jun nisei – nascido no Japão, mas criado no exterior.
junshihan – v. shōtōka.
jūshichigen –koto grave ou baixo com ‘dezessete cordas’, que comportam a afinação heptatônica, criado por Michio Miyagi. Possui tarraxas iguais à do piano para suportarem a
tensão de suas cordas espessas.
kabuki – um dos maiores gêneros teatrais da tradição japonesa com repertório e instrumental
musical próprio. V. nagauta
kachigumi – ‘vitoristas’, ou irredentistas, do movimento Shindo Renmei.
kadō – v. ikebana.
kaete – parte ornamental do koto, complemento do original honte em peças polifônicas.
kaete-shiki – exemplo polifônico de quodlibet, ou seja, sobreposição de composições integral
uchiawase ou parcial dangaeshi. V. kyōmono.
kaiden – v. daishihan.
kaikan – sede social.
kaku – cavaletes fixos das cordas do koto.
kanji –tipo de escrita ideogramática originária da China, introduzida no Japão por volta do
séc. VI.
karaoke – recurso de cantar ao vivo acompanhado do aparato de playback musical gravado.
katakana – alfabeto silábico empregado para designar palavras estrangeiras ou onomatopéias.
xviii
katarimono – estilo musical equivalente ao recitativo em contraste ao utaimono.
kayakeum – variante coreana do chêng, com doze cordas e cavaletes móveis.
kayōkyoku – gênero de canção urbana moderna.
kendō – arte marcial com bastões.
Kengyō – ‘mestre’ ou patamar máximo na hierarquia do sistema todō shoku-yashiki. Os compositores mais conhecidos recebem este título acoplado ao nome. Os degraus para alcançar o título de Kengyō são: Zatō, Kōtō e Bettō.
kenjinkai – ‘associação de província’; o Japão é composto por 47 ken, unidade política traduzida como província ou prefeitura. Em São Paulo, as 47 kenjinkai são centralizadas
pela Federação das Associações de Províncias Japonesas no Brasil.
kimono – ‘peça de vestir’, traje feminino tradicional para ocasiões especiais.
kokyū – alaúde tricórdio, de formato similar ao shamisen, tocado com arco. V. sankyoku.
koten –‘antigo’, normalmente traduzido como “clássico”; termo que se aplica à literatura e às
artes. Na música trata-se de coleções antológicas com sistemas de notação próprios.
koto – cordofone da família das cítaras longas, tocado com três dedais tsume que envolvem a
ponta do polegar, indicador e médio da mão direita. Usualmente possui treze cordas, estendidas sobre uma caixa de ressonância medindo 1,80 x 0,25 x 0,08 m, afinadas através
de cavaletes móveis. O koto é classificado em 4 tipos de acordo com o repertório: gakusō no Gagaku; tsukushisō no Tsukushi-goto, zokusō na Yatsuhashi-ryū, Ikuta-ryū e Yamada-ryū; e shinsō, gênero moderno ou ocidentalizado.
Kōtō – V. Kengyō.
kumiuta – repertório sōkyoku de “canções cíclicas” reunidas pelas corrente Tsukushi-goto e
Yatsuhashi-ryū.
Kunkunshi – coleção antológica do repertório uta-sanshin, cancioneiro vernacular de Ryūkyū,
iniciada pelo músico da corte Yakabi Chōki. V. Nomura-ryū.
kumoijōshi – ‘nuvem profunda’, afinação do koto equivalente a hirajōshi A-Bb-D-E-F.
kutū – pronúncia de Okinawa para o termo que designa o instrumento koto.
kyōmono – ‘peças de Kyōto’, sinônimo de kaete-shiki do repertório sankyoku.
kyōshi – grau de habilitação para o ensino de artes tradicionais, abaixo de shihan. V. daishi-
xix
han, shōtōka e shinjin.
makegumi – v. Shindo Renmei.
Manyōshū – antologia que reuniu 4.500 poemas em meados do séc. VIII.
minyō – canções regionais ou “folclóricas”.
Miwa-kai – associação sucessora do Grupo de Estudos da Música Japonesa, fundada por Miwa Miyoshi, em 1939, pioneira da Ikuta-ryū no Brasil.
Miyagi-kai – derivação da Ikuta-ryū liderada pelo compositor Michio Miyagi, que viveu na
primeira metade do século XX. Entre as inovações de Miyagi, consta o koto baixo jūshichigen e o koto menor tansō.
nagauta – ‘canção longa’, ou “canção de amor”; gênero de música vocal acompanhado de
shamisen utilizado no teatro kabuki.
Naichi – região que engloba as três ilhas principais do Japão: Honshū central, Kyūshū ao sul e
Hokkaido ao norte. Termo utilizado em Ryūkyū.
nakazora-chōshi – ‘meio do céu’, afinação do koto.
natori – aprovação de estágio para receber o pseudônimo artístico.
nenmatsu – ‘final de ano’; última reunião do ano.
nikkei – comunidade japonesa que inclui os imigrantes issei e seus descendentes nisei (filhos),
sansei (netos), yonsei (bisnetos) e gosei (tataranetos).
nisei – ‘segunda geração’, ou seja, filhos dos imigrantes issei.
nogi-chōshi – ‘certa árvore’ afinação do koto similar ao modo utilizado em Okinawa e na
Tsukushi-goto.
Nō – gênero teatral clássico onde o conjunto musical rege a cena.
Nomura-ryū – Corrente de música clássica da região de Ryūkyū, fundada por Nomura Anshoku no séc. XIX, que aprimorou a notação criada por Yakabi Choki. A filial brasileira foi
oficializada em 1964, com o empenho de Kaisaku Nakamoto.
okuden – v. daishihan.
okuralo – flauta vertical de metal com embocadura de shakuhachi.
origami – arte da dobradura de papel.
xx
ōshiki-cho – afinação D-E-F#-A-B utilizada pela Tsukushi-goto e pelas sōkyoku de Ryūkyū.
p'ip’a – v. biwa.
ryū – sufixo utilizado junto ao sobrenome do fundador de determinada ryū – ‘corrente’ “escola” ou “estilo”. V. Ikuta-ryū, Yamada-ryū e Yatsuhashi-ryū.
Ryūkyū – arquipélago no extremo sul do Japão que engloba a prefeitura de Okinawa, e outras
ilhas ao sul da prefeitura de Kagoshima.
saikō-shō – v. shinjin-shō.
samurai – classe guerreira preparada para a defesa do seu clã no Japão feudal.
sangen – similar ao shamisen com o braço um pouco mais curto, utilizado para acompanhar
principalmente o jiuta e kumiuta do repertório sōkyoku.
sankyoku – conjunto dos ‘três instrumentos’ koto, shakuhachi e shamisen para acompanhar o
repertório sōkyoku chamado jiuta. Até o final da era Edo, o kokyū era utilizado no lugar
do shakuhachi.
sansei – ‘terceira geração’, netos dos issei.
sanshin – cordofone do tipo alaúde de braço longo com três cordas, tocadas com dedal no indicador, e a caixa de ressonância em pele de serpente pitão. Símbolo da cultura ryūkyūana. Provável sucessor do sanxiàn chinês e antecessor do shamisen.
sanxiàn – v. sanshin.
Seiha – ramificação da Ikuta-ryū, fundada por Utashito Nakashima, em Nagano, em 1913.
sensei – ‘aquele que nasceu antes’, professor.
shakuhachi – ‘oito polegares’, medidas pelo artelho grosso; flauta vertical de bambu com quatro orifícios anteriores e um posterior. Variante do hsiao chinês, possui a extremidade
inferior levemente arqueada e uma embocadura bisoteada em forma de U na ponta superior aberta.
shamisen – alaúde tricórdio de braço longo e fundo chato similar ao sanshin, mas a caixa de
ressonância é revestida com pele de gato e toca-se com um plectro maior.
shihan – ‘modelo’, professor ou “mestre” de artes e ofícios. V. daishihan, shōden, shōtōka e
shinjin.
Shindo Renmei – ‘aliança ao imperador’; grupo de imigrantes japoneses dos ‘vitoristas’, ka-
xxi
chigumi, que não acreditavam na derrota do Japão, na II Guerra, e perseguiam os “esclarecidos” ou ‘derrotistas’, makegumi.
shinjin-shō – categoria ‘estreante’ dos concursos de koten e minyō da AOKB, sucedida das categorias ‘excelência’,yūshū-shō, e categoria ‘máxima’, saikō-shō. Para a habilitação de
ensino a música vernacular de Ryūkyū adota os patamares kyōshi e shihan.
shinnenkai – primeiro encontro ou reunião do ano.
shinsō – ‘novos koto’ a partir da era Meiji. O jûshichigen e tansō constituem o resultado das
inovações da escola shin-sōkyoku. V. Miyagi-kai.
shin-sōkyoku – ‘escola nova de koto’ a partir da era Meiji, em 1868. Os compositores exploram novas maneiras de tocar o koto e os recursos da mão esquerda com nítida influência
ocidental. V. Miyagi-kai e Seiha.
shirabemono – ‘peça erudita’, sinônima ou complemento de danmono. Por exemplo “Rokudan no Shirabe”.
shō – aerofone de tubos do tipo órgão de boca.
shōden – primeiro nível das artes tradicionais, adotado pelo Miyagi-kai e Tozan-ryū. É sucedido pelos graus: chūden, okuden, kaiden, jōkyō, kyōshi, shihan e daishihan.
shogunato - sistema feudal, onde cada clã era comandado por um shogun.
shōtōka – primeiro nível da escola Seiha, sucedido por chūtōka, jōtoka, kyōshi, jun-shihan e
shihan
sōkyoku – ‘música para koto’ ou escolas de koto; as principais escolas da atualidade são: Ikuta-ryū e Yamada-ryū. Estas sōkyoku de âmbito nacional incluem o repertório kumiuta,
jiuta e danmono. Foi desenvolvida principalmente pelos kengyō, das todō shoku-yashiki
no período Edo. Em Okinawa o repertório inclui alguns danmono arcaicos.
sonjinkai – associação de provenientes do mesmo distrito, povoado ou aldeia.
taiko – membranofone com pele dupla e formato de barril.
tanka – v. waka
tansō – koto mais agudo, por sua extensão menor, criado por Michio Miyagi.
tegotomono – ‘peça interlúdica’ alargamento do ai-no-te atingindo o formato definitivo no repertório jiuta da Ikuta-ryū.
xxii
Tenrikyō – seita neo-xintoísta fundada por Miki Nakayama, na cidade de Nara, em 1838, que
utiliza a música gagaku nas suas celebrações. No Brasil, foi trazida em 1929 e institucionalizada em 1951.
todō shoku-yashiki – sistema corporativo de treinamento profissional para deficientes visuais
em habilidades tais como música, teatro, acupuntura e massagem. Todos os compositores Kengyō foram habilitados nesse sistema.
tsume – ‘unha’, plectro que se utiliza na ponta dos dedos polegar, indicador e médio da mão
direita para se tocar koto. Possui formatos diferentes de acordo com o estilo ou gênero.
Tsukushi-goto – escola mais antiga de koto fundada pelo monge budista Kenjun Morota,
1547-1636, em Tsukushi, cidade ao norte de Kyūshū.
tsukushisō – ‘koto da escola Tsukushi-goto’; repertório do séc. XII ao XVI.
uchiawase – v. kaete-shiki.
uchinanchū – proveniente de Uchina, ou seja Okinawa.
utaimono – estilo equivalente à ária contrastante com o katarimono.
waka – tipo de poema que alterna versos de cinco e sete sílabas, sendo que a última necessariamente de sete sílabas completando 31 sílabas.
warabeuta – canções infantis.
Yamada-ryū – Fundada por Kengyō Yamada, que viveu entre 1757 e 1817, na região de Kyōto e Ōsaka. No Brasil, foi implementada por Tomii Iwami, que imigrou em 1956.
Yatsuhashi-ryū – escola sōkyoku fundada por Kengyō Yatsuhashi, 1614-85, responsável por
organizar o repertório kumiuta e introduzir a afinação hira e os primeiros danmono.
yōkyoku – música utilizada no teatro Nō.
yonsei – ‘quarta geração’, bisnetos dos issei.
yūshū-shō – v. shinjin-shō.
Zatō –V. Kengyō.
zokkyoku – repertório da região de Kyūshū.
zokusō – ‘música vulgar’; música para koto desenvolvida pelas escolas seculares Yatsuhashiryū, Ikuta-ryū e Yamada-ryū incluindo o repertório a partir de meados do séc. XVII.
xxiii
MÉTODO EDITORIAL
O formato interno e externo das diferentes partes que compõem o presente trabalho procura seguir as normas do Programa de Pós-Graduação e o estilo do manual de Chicago, particularmente o de Kate Turabian (2000).
Os termos que constam no glossário ou que não são reconhecidas pela língua portuguesa estarão em itálico na primeira menção em cada página. Os termos entre aspas simples
são traduções literais. As traduções pessoais de título de peças ou obras estão entre colchetes.
Os textos traduzidos constam de numeração romana remetendo para as notas de
fim de cada capítulo.
Como inexiste o plural em japonês não será utilizada a letra s nos termos próprios
do idioma como por exemplo: os issei, os nikkei.
Por este estudo abordar a cultura nacional e local dos imigrantes japoneses, adotase os termos Naichi e Ryūkyū empregados pelos imigrantes de Okinawa. A designação Naichi
engloba as demais regiões: Hokkaido, Honshū ou Kyūshū.
Os nomes próprios seguem a norma ocidental de nome precedido do sobrenome.
A transliteração da escrita japonesa procura seguir o critério oficial Hebonshiki ou sistema
Hepburn. Faz-se exceção aos nomes próprios dos descendentes, para os quais será respeitada
a grafia como eles próprios assinam.
Em seguida, alguns esclarecimentos sobre o critério de romanização da escrita japonesa aqui adotados:
◊ A letra k é utilizada obedecendo à unidade de articulação do fonema velar surdo inexistindo as letras c e q nesse critério de romanização.
◊ A utilização de letras ausentes no nosso alfabeto como w e y servem para assinalar a diferença dos ditongos wa (uá) e ya (iá), yu (iú) e yo (iô) com os prolongamentos das vogais
xxiii
xxiv
bastante comuns no idioma japonês. O agrupamento de ya, yu e yo com outras sílabas é
muito freqüente na língua japonesa como se pode observar no quadro abaixo.
◊ A vogal com um traço acima translitera a sua duplicação implicando num prolongamento
das mesmas. Por exemplo okāsan soaria okaasan.
◊ O acento circunflexo, ou travessão acima, translitera o prolongamento com o acréscimo da
vogal u. Tōkyō e Ryūkyū, por exemplo soariam Toukyou e Ryuukyuu.
◊ A duplicação de consoante (ex: nikkei e issei) é a transliteração de
minúsculo, indica-
dor de um pequeno corte precedido de um acento para o fonema posterior. Salvo na duplicação de n que tem função de anasalamento, como por exemplo, onna.
◊ Para os ditongos nasais sempre será utilizado o n substituindo a letra
.
◊ O fonema sh, que é fricativo palatal surdo, é utilizado para diferenciar do ch fricativo sonoro. Sh equivale ao ch em português e ch ao ch em castelhano, italiano ou inglês.
◊ No mesmo grupo fricativo palatal surdo se inserem sa, su e so. Isto é, em português soariam como se fossem dois s ou ç quando empregado no meio de uma palavra.
◊ O grupo do fonema h tem um som aspirado.
◊ O fonema r é vibrante alveolar como se fosse o nosso r intervocálico.
◊ O grupo oclusivo velar sonoro g, quando acrescido das vogais e e i, soa como gue e gui.
(Quando houver a transliteração gue e gui, as vogais não soam como ditongos e sim gu-e e
gu-i) Este último para distinguir do fonema ji, que por sua vez soaria próximo de dji.
O quadro seguinte – elaborado a partir da tabela apresentada por Seibin Shimabukuro (1983, 11) – apresenta o alfabeto silábico japonês com a transliteração seguida da pronúncia aproximada entre parênteses. As sílabas em itálico são ausentes no vocabulário japonês e presentes no vocabulário okinawano.
xxv
Tab. 1 Quadro da seqüência silábica japonesa e okinawana
i
a (á)
ka (cá)
sa (çá)
ki (qui)
kya kyu kyo
shi (xi)
sha shu she sho
ta (tá)
chi (tchi)
cha chu cho
na (ná)
ni
nya nyu nyo
ha (há)
hi
hya hyu hyo
u
ku (cu)
kwa kwi kwe
e (ê)
ke (quê)
o (ô)
ko (cô)
su (çu)
si (ci)
se (cê)
so (çô)
tsu
tsa tsi tse tso
te (tê)
ti
to (tô)
tu
nu
hu
fa fi fe fo
ne (nê)
no
he (hê)
ho (hô)
ma (má)
mi
mya myu myo
mu
me
(mê)
mo
(mô)
ya (iá)
yi
yu (iu)
ye (iê)
yo (yô)
ra (rá)
ri
rya ryu ryo
ru
wa (uá)
re (rê)
ro (rô)
wo (uô)
wi wu we
n (n, m)
xxv
ga (gá)
gi (gui)
gya gyu gyo
za (zá)
ji (dji)
jya jyu jyo
gu
gwa gwi gwe
zu (dzu)
zi
da (dá)
ge (guê)
go (gô)
ze (zê)
zo (zô)
de (dê)
di
do (dô)
du
ba (bá)
bi
bya byu byo
bu
be (bê)
bo (bô)
pa (pá)
pi
pya pyu pyo
pu
pe (pê)
po (pô)
xxvi
RESUMO
O presente estudo de caso examina a dinâmica da continuidade da ‘música para
koto’, sōkyoku, no Brasil, a partir de grupos inicialmente observados por Dale Olsen (1983a),
em 1981. A temática “música transterritorializada” ou “repertório dos imigrantes”, sob perspectiva etnomusicológica, busca contribuir para os estudos de antropologia urbana em discussões sobre “minorias étnicas”, especificamente, sobre “comunidade nikkei”, ou “nipobrasileiros”.
O primeiro capítulo esclarece sobre a natureza do estudo situando o tema, as bases
teórico-metodológicas, as intenções, as descobertas e questões iniciais da pesquisa.
“Dados Musicais Imigrados”, parte I, aproxima-se da abordagem “pré-partida”
(Schramm 1990) e fornece as bases organológicas apreendidas da literatura musicológica e
com os co-autores dos grupos observados. O capítulo 2, “Dragão Deitado na Areia Confabula
com as Ondas”, situa o instrumento e a diacronia das escolas sōkyoku. O capítulo 3 esboça
um tutorial sobre a “Notação Musical e os Recursos Sonoros” do koto, para iniciados em notação ocidental. O capítulo 4 agrega uma “Introdução à Análise do Repertório para Koto”, focalizando “Rokudan no Shirabe”, peça representativa das escolas.
As partes II e III seguem a linha de abordagem “surgimento, manutenção e adaptação” (Satomi 1998), uma aproximação de “construção histórica, manutenção social e criação
individual da música” (Rice 1987). As duas partes indicam as circunstâncias históricas e sócio-culturais, os principais agentes dos grupos e as atitudes e conceitos em torno do ensino,
aprendizagem e performance. A pesquisa de campo, iniciada em 1996, envolve três entidades
sociais sediadas na cidade de São Paulo: a AOKB – Associação Okinawa Kenjin do Brasil, o
grupo Miwa-Kai e a ABMCJ – Associação Brasileira de Música Clássica Japonesa. Estes três
casos dividem-se de acordo com o comportamento observado durante a pesquisa. Nas duas
xxvi
xxvii
filiais das sōkyoku de Ryūkyū, da AOKB, e no grupo Miwa-Kai, simpatizante do estilo Ikutaryū, prevalecem atitudes coletivistas peculiares ao imigrante pré-guerra. A análise desses dois
grupos consta nos capítulos 5 e 6, que compõem a parte II intitulada “Surgimento e Continuidade de Atitudes Pré-Guerra.” A parte III, “Implantação da Mentalidade Pós-Guerra”, composta pelos capítulos 7 e 8, discorre sobre a ABMCJ. Esta entidade congrega uma exprofessora do estilo Yamada-ryū, e os grupos Miyagi-kai e Seiha Brasil de Koto, adeptos de
ramificações da Ikuta-ryū. No interior desses grupos convivem a conduta rural pré-guerra e a
mentalidade urbana “moderna” ou “ocidentalizada” do pós-guerra.
A “Conclusão” justifica que as atitudes culturais de etnicidade, herança ou ideologia podem ser consideradas tanto como manutenção de valores da terra emigrada, quanto como adaptação aos valores da terra de acolhimento. Especulando as razões dessa resistência
cultural, detectou-se que praticar a música clássica de minoria étnica em uma megalópole como São Paulo pode ser um eficaz “mecanismo de defesa” ou de “elaboração do conflito” (Hashimoto 1995). Os imigrantes reconstroem a terra perdida, no espaço ou no tempo, e os descendentes, internos e externos à comunidade, um mundo “idealizado” livre de contaminações.
Palavras-chave: Manutenção e adaptação cultural de minorias étnicas. Comunidade nikkei. Repertório para koto transterritorializado.
xxviii
ABSTRACT
The present case study looks into the continuity dynamics of sōkyoku – koto music – in Brazil, as originated from the groups studied by Dale Olsen (1983a). The subject
“transplanted music” or “immigrants repertoire”, under ethnomusicological point of view,
contributes to the urban anthropology discussions about “ethnic minorities”, “Nikkei community”, and specifically on Brazilian Nikkei.
The first chapter informs the nature of the study introducing the theme, the theoretical-methodological, the aims, and the research initial findings and issues.
Part I is in tune with Adelaide Schramm (1990) “pre-departure data”, and provides
the organological basis learned from the musicology literature and the co-authors’ fieldwork.
Chapter 2, “The Lying Dragon Talks to the Waves”, situates the instrument and the sōkyoku
diachronic school. Chapter 3, entitled “Koto Musical Notation and Sound Resources”, presents a tutorial for beginners dealing with western music notation. Chapter 4 includes an
analysis essay about koto repertoire, starting with Rokudan no Shirabe, which is the most performed piece in São Paulo.
Parts II and III follows the approach “emergence, maintenance and adaptation”
(Satomi 1998), an attempt towards “historical construction, social maintenance and individual
creation” (Rice 1987). A description is given of the social-cultural historical circumstance, the
main group agents, and the attitudes and concepts concerning teaching, learning and performance. The fieldwork, initiated in 1996, encompasses three social organizations based in São
Paulo: the AOKB – The Okinawa Kenjin Brazilian Association – the Miwa-kai group, and the
ABMCJ – The Brazilian Japanese Classical Music Association. All three cases are distributed
according to their behavior as observed. Pre-war collectivist attitudes are prevalent in both
Ryūkyū’s sōkyoku (chapter 5) and in the Miwa group (chapter 6), an Ikuta-ryū sympathizer.
xxviii
xxix
Under this perspective, these groups are confined to Part II entitled “The Emergence and Continuity of Pre-War Attitudes.” Part III, “Post-War Mentality Implantation” describes the
ABMCJ. This association includes three shakuhachi groups, a former koto teacher of the Yamada-ryū style (chapter 7), and followers of the Ikuta-ryū branches, Miyagi-kai group and
GSBK – Seiha Brasil Koto Group (chapter 8). Within such groups there co-exist a rural prewar conduct and an urban, modern or westernized post-war mentality.
Resulting conclusions demonstrate that cultural ethnic attitudes, inherence and
ideology can be seen both as value maintenance of the homeland and as value adaptation of
the host land. By speculating on the reasons of such cultural resistance, on could see that to
practice ethnic minority classic music in a megalopolis, such as São Paulo, may be understood
as a defense mechanism that leads to the “elaboration of this conflict” (Hashimoto 1995). The
immigrants will re-construct the missing land, in either space or time, and the descendents,
both external and internal to the community, will build up an ideal world free from contamination.
Keywords: Cultural maintenance and adaptation of ethnic minorities. Nikkei
community. Transplanted koto repertoire.
1
1. O ESTUDO EM SUA DIMENSÃO ETNOMUSICOLÓGICA
1.1. Apresentação
1.1.1. âmbito e construção do objeto de pesquisa
O tema do presente estudo é a música para koto, cítara tradicional japonesa (ft.
1
12), “transterritorializada” para o Brasil. Considerando que a população “nipo-brasileira” re-
presenta mais de 1% do total do país e a imigração japonesa começou há 95 anos, trata-se de
uma fatia considerável. A pesquisa foi realizada em São Paulo, onde se concentra um quarto
da comunidade nikkei (v. fig. 1) e, conseqüentemente, suas forças culturais, além das políticas
e econômicas. Devido à própria natureza etnomusicológica, o trabalho examina a ação musical das escolas de koto e suas implicações sócio-culturais.
O gênero musical chamado sōkyoku, ‘música para koto’, é praticado predominantemente pelo segmento feminino das seguintes agremiações: grupo Miwa, ABMCJ – Associação Brasileira de Música Clássica Japonesa – e filiais brasileiras dos clubes de Música Clássica de Ryūkyū2, região extremo sul do Japão. Os grupos Miwa e ABMCJ tocam, principalmente, o repertório do estilo Ikuta-ryū e as de Ryūkyū lidam com a sōkyoku própria de Okinawa.
Em suma, a pesquisa abrange dois tipos de repertórios e três grupos sociais.
O estudo é uma atualização de um recorte do artigo de Dale Olsen (1983a) sobre
música japonesa no Brasil e da minha dissertação (Satomi 1998), sobre música de Okinawa
em São Paulo. Como continuidade destes trabalhos, o enfoque temporal procura se ater às últimas duas décadas das escolas Ikuta e aos últimos cinco anos das escolas de Ryūkyū.
1
Doravante denominada nikkei, preferencialmente, pois o termo hifenizado remete ao período 1933-45, “quando
eclodiu a retórica antijaponesa” (Lesser 2000, 251). Hoje, a comunidade está estimada em dois milhões, incluindo os
10% de dekasegi, ou trabalhadores temporários no Japão.
2
Ryūkyū já foi reino independente que, hoje, equivale à prefeitura de Okinawa e às ilhas ao sul de Kagoshima.
1
2
Fig. 1. Densidade populacional nikkei no Brasil por estado3
distribuição por áreas de concentração
4%
3% 2%
12%
27%
7%
14%
31%
3
cidade SP
grande SP
SP
Sudeste
Sul
Centro-Oeste
Norte
Nordeste
O mapa e o gráfico têm como base os dados nos estados de maior concentração, divulgados por Silva (1996, 24). E
a estimativa nos demais estados, a partir dos dados de um mapa apresentado no suplemento especial sobre os 70
anos da imigração do jornal O Estado de São Paulo, em 18 de junho de 1978.
3
Em termos de repertório, a música para koto das escolas Ikuta e Yamada, de caráter “nacional”, não costuma ser abordada em conjunto com a sōkyoku de Ryūkyū. No entanto,
dado o grau quantitativo e coesivo dos okinawanos de São Paulo, somado à necessidade de
um continuum com a última pesquisa, resolvi trabalhar com ambos os repertórios. Em compensação, tanto reservo o repertório sankyoku – ‘trio musical’ (ft. 32) shakuhachi4, koto, e
sangen5 – para um aprofundamento posterior, quanto evito a redundância do repertório kunkunshi6 abordado na dissertação anterior.
Na tradição japonesa, o koto figura na música da corte gagaku e se afirma com
maior propriedade nas sōkyoku, sobretudo as escolas que surgiram nos distritos de Kansai e
Kanto7. No século XX, compositores de formação erudita ocidental começam a utilizar o koto
em suas peças. No Brasil, Olsen (1983a, 126) anotou a presença do koto na orquestra gagaku
dos rituais da igreja Tenrikyō8, nas sōkyoku de Okinawa, Ikuta, Yamada e nas composições
do maestro Ken-ichi Yamakawa “Música para koto” (v. app. 4) e “Música para violino e koto”, ambas escritas na década de 70.
Quando procedia a minha primeira sondagem de campo, em 1996, pude testemunhar a continuidade do koto na igreja Tenrikyō, nas sōkyoku de Ryūkyū e nas escolas Ikuta da
ABMCJ. Quanto às composições tomei conhecimento apenas de “Issunboshi [Chapeuzinho]”,
de Mário Lima Brasil (1995), uma terceira gravação do pequeno acervo particular contendo
“Kátems”9 (Satomi 1992) e “Yûgen [Profundidade]”, de Hans J. Koellreutter (1983).
Em 2000, durante a construção do objeto de pesquisa, resolvi delimitar o campo
para a sōkyoku eliminando o repertório Tenrikyō, pois o koto tem uma participação modesta
se lembrarmos do imponente instrumental gagaku. Na ocasião havia me interessado por utili4
Flauta vertical de bambu cuja extremidade superior aberta recebe um leve talhe oblíquo para se obter a embocadura (v. ft. 24, 27, 29).
5
Similar ao shamisen, alaúde tricórdio de braço longo tocado com plectro grande.
6
Coletânea de música da corte de Ryūkyū, onde o alaúde sanshin é o instrumento característico.
7
V. cap. 2.3, tópico Diacronia das sōkyoku.
8
Seita fundada por Miki Nakayama em 1838, na cidade de Nara, institucionalizada no Brasil em 1951.
9
Título em tributo a Walter Smeták, violoncelista suíço, inventor de instrumentos que se radicou no Brasil desde
1937 e integrou o “Grupo de Compositores da Bahia”. Era defensor da fusão ocidente/oriente.
4
zações modernas do koto por grupos de música pop em São Paulo, observando a presença
parcimoniosa do instrumento nas performances dos grupos O-koto, de rock, e Mawaca, de
“música étnica”.
Em julho de 2001, retomei o contato com a PKB10 – Preservação do Kutū11 no
Brasil, quando se confirmou a manutenção da DKB – Difusão do Kutū no Brasil. Na mesma
época, tomei conhecimento do grupo Miwa e conferi novamente a permanência das escolas
Ikuta da ABMCJ: grupo Miyagi e GSBK – Grupo Seiha Brasil de Koto. Ainda que tenha reparado a interrupção da atividade de ensino da escola Yamada, notei a sua continuidade nas
apresentações da ABMCJ.
Portanto, neste trabalho o âmbito musical estará restrito às escolas Ikuta, sōkyoku
de Ryūkyū, às performances da Yamada-ryū e das aplicações modernizadas do koto. Essa seqüência obedece ao grau decrescente de ocorrência no campo, ou seja, a maioria do repertório
encontrado foi o da escola Ikuta e raríssimas foram as utilizações do koto em roupagem modernizada.
1.1.2. universo de referência e a pergunta de partida
Costuma-se chamar “universo de referência”12 o assunto mais amplo presente no
objeto de uma pesquisa. Pelo exposto acima, podemos relacionar o tema central desta pesquisa com os estudos sociais que examinam questões sobre interculturalidade, contato cultural,
imigração, diáspora ou “transplante cultural”.
Margaret Kartomi (1981, 229-30) expõe, em seu artigo, os problemas de terminologia e conceitos empregados em estudos interculturais e questiona, por exemplo, a adoção da
“metáfora biológica ‘música transplantada’”:
10
As siglas PKB, DKB, ANB e PNB foram empregadas na pesquisa anterior (Satomi 1998), não sendo reconhecidas pela comunidade. A tradução de Ryūkyū Sōkyoku Hozonkai Burajiru Shibu seria Filial Brasileira da Preservação da Música para Koto de Ryūkyū (PKB).
11
Trata-se do mesmo koto de treze cordas das ilhas principais, só que em Okinawa a pronúncia é kutū.
12
V. Becker (1999) e Triviños (1987).
5
O processo de mover uma música para um novo ambiente cultural assemelha-se à operação delicada e, algumas vezes, arriscada do
transplante de uma planta, ou órgão como na moderna medicina. [...]
transplante pode implicar na sobrevivência negativa de um organismo
em um novo ambientei.
Acrescento ainda que o termo remete à idéia brusca de um repertório desprendido
de um local para outro. Similar à “desterritorialização”, o termo “transplante” seria mais aplicável quando uma população se move em condições forjadas ou quando um repertório inteiro
se desloca para um novo ambiente. No caso dos japoneses, cujo movimento emigratório foi
“voluntário” – embora não sejam ignorados os problemas de superpopulação, desemprego, altas tributações, guerras e outras vicissitudes da natureza que acabam forjando o movimento
migratório – e parcial, considero mais apropriado empregar o termo “transterritorialização”.
Ao invés de adotar as dicotomias em voga nas discussões sobre cultura urbana –
de um lado a cultura dominante e do outro a cultura marginal, do oprimido, dos excluídos, etc.
– Ariano Suassuna (1995), defensor eloqüente da cultura popular nordestina, enfatiza a “cultura oficial x cultura real”. Emprestando parte desta idéia, prefiro empregar a dicotomia cultura
oficial x cultura alternativa. Sugiro que o processo de “transplante” possa ser substituído
também pelo termo “alternativização”, ou seja, um repertório “oficial” no país natal que passa
a ser “alternativa” no país adotivo. Conforme o nível de resistência, tal processo propiciaria
uma sobrevivência mais vigorosa, desde que a manutenção da música estivesse associada à
idéia de defesa de valores.
Conforme a figura 2, temos o objeto etnomusicológico partindo do genérico ao
específico. Dessa forma o presente trabalho se aproxima dos estudos sócio-culturais mais recentes sobre antropologia urbana, envolvidos pela temática das minorias étnicas ou repertório
dos imigrantes, comunidade nikkei ou música japonesa transterritorializada, música clássica
japonesa no Brasil e música para koto ou sōkyoku alternativizada em São Paulo.
6
Fig. 2. Universo de referência e objeto da pesquisa
Antropologia Urbana
minorias étnicas
repertório imigrantes
japoneses ou
japonesa
transterritorial
comunidade nikkeii
no Brasil
música
em São Paulo
clássica
koto
sōkyoku
Para não permanecer no processo meramente descritivo dos estilos, escolas e repertórios e sim, perceber as formas de pensar, sentir e fazer musical do entorno social ao koto,
a abordagem será conduzida na direção da pergunta de partida do projeto de pesquisa: qual o
sentido sócio-cultural de tocar koto no Brasil?
1.2. Justificativa da delimitação temática
1.2.1. literatura brasileira incipiente
ƒ
sobre minorias urbanas e música dos (i)migrantes
A etnomusicologia brasileira tem privilegiado as minorias geralmente residentes
em locais distantes das metrópoles, mas alguns estudos mais recentes têm se dedicado às áreas
urbanas.
Este fato pode ser claramente percebido durante o 36° encontro do ICTM – Conselho Internacional de Música Tradicional, realizado no Rio de Janeiro, em 2001, onde quase
um terço das comunicações apresentadas pelos brasileiros versava sobre música urbana. No
entanto, viu-se que embora um dos cinco temas proposto pelo Congresso fosse “Música e
Dança dos Imigrantes”, apenas três trabalhos brasileiros foram apresentados: um sobre os ju-
7
deus no Rio de Janeiro (Spitalnik 2001) e os demais sobre os japoneses em São Paulo (Tsuzuki 2001 e Satomi 2001).
Diante do mosaico étnico que caracteriza a cidade de São Paulo – portugueses,
espanhóis, italianos, japoneses, turcos, árabes, sírios, alemães, romenos, iugoslavos, lituanos,
poloneses, austríacos, nordestinos brasileiros, judeus, armênios, coreanos, chineses, ucranianos e suíços13 –, constata-se um número ainda reduzido de estudos sobre grupos minoritários
urbanos, o que aponta para a necessidade de mais pesquisas antropológicas na área. Especificamente, na etnomusicologia, os temas relacionados à “música dos (i)migrantes” em contexto
urbano abrem um terreno fértil para análise de resultados. Conforme o grau de conservação ou
de transculturação do repertório podem ser reveladas atitudes de afirmação da tradição, resistência, miscigenação, adaptação ou integração no contexto do país receptor.
Reafirmando a presença dos instrumentos koto e kokyû (ft. 25) entre os japoneses;
alaúde, durbak, daff e sanajaf, entre os árabes; e violinos, violas e pandeiro, entre os ciganos,
Kilza Setti (1989, 21) observou, com certa inquietação, que:
As colônias italiana e portuguesa (ambas originárias, como a
japonesa, de programas de emigração entre governos) [...] embora ainda conservem festas e músicas, encontram-se diluídas e miscigenadas com a sociedade brasileira. [...] A imigração de suíços veio substituir a mão escrava, no final de 1800, [...], mas parece que esses imigrantes absorveram a cultura brasileira no final do século.
Entre os imigrantes provenientes do Médio e Extremo Oriente, percebe-se a conservação da música tradicional, enquanto os das culturas mais próximas tendem à mudança
parcial ou total de valores musicais. De qualquer modo, é preciso lembrar que todos os tipos
de condutas são passíveis de serem analisadas, enquanto causa e efeito.
ƒ
sobre música nikkei no Brasil
Embora apresente algumas lacunas, o guia geral de cultura japonesa nas principais
capitais brasileiras, organizado por Célia Oi (1996), fornece pistas e uma idéia geral para os
13
Ordem decrescente aproximada, embasada em tabela do diário O Estado de São Paulo, 1978 (v. nr. 3).
8
interessados em qualquer das atividades musicais seculares desenvolvidas pelos nikkei. A parte sobre São Paulo apresenta endereços de nove associações e professores de música clássica
japonesa; três associações de música “folclórica” minyō; setenta músicos, professores ou grupos profissionais que se dedicam à música popular urbana ocidental e predominantemente à
erudita; e noventa clubes e professores de karaoke. Vemos, então, que apenas uma ínfima parte se dedica à música tradicional japonesa.
Fig. 3. Atividade musical nikkei em São Paulo
música tradicional japonesa
12
música erudita ocidental
61
música popular ocidental
9
90
karaoke
música
tradicional
japonesa
7%
karaokê
53%
música
erudita
ocidental
35%
música
popular
ocidental
5%
Mesmo diante deste leque de possibilidades de pesquisas, apenas dois estudiosos14
vieram documentar essa área: Dale Olsen (1983a) e Shuhei Hosokawa (1993a). Como estas
primeiras pesquisas desbravaram um vasto campo virgem, acredita-se que num segundo momento seria importante explorar áreas menores, e com insights de estudiosos brasileiros, o que
possibilitaria aprofundar nossa compreensão do fenômeno.
Em 1996, resolvi explorar uma das trilhas abertas por Olsen sobre a música dos
okinawanos (Satomi 1998). Sem imaginar que pudesse me deparar com uma atividade musical
diversificada, intensa e numerosa, meu trabalho acabou resultando em uma pesquisa também
panorâmica. Desta vez, a necessidade de redução de quadro de pesquisados e de complementação na recolha de dados do segmento koto das escolas de “música clássica” foi determinante
para o presente estudo.
14
V. tópico Revisão de Literatura, pp. 10-11, e Bibliografia Comentada, no apêndice do trabalho.
9
1.2.2. diminuição dos issei e o aparente esmorecimento da música para koto
Além da necessidade de continuidade do universo de referência e a inclinação
pessoal pelo instrumento, creio que a motivação mais importante, pelo tema, seja a premência
das circunstâncias atuais. Na pesquisa sobre a Associação Okinawa, constatei a prática exclusivamente feminina do koto em grupos de música “clássica” koten, e apenas entre mulheres da
primeira geração, ou issei. Inicialmente, pensava até que se tratasse de um estudo de gênero,
embora continue sendo uma prática majoritariamente feminina.
Como o fim da imigração japonesa no Brasil15 é um fenômeno ainda recente, há
quase trinta anos, podemos observar a peculiaridade da convivência de cinco gerações. Entretanto, a média etária dos imigrante está avançada, em torno dos 65 anos. Tomando como referência a realidade de outros países, onde a imigração terminou há mais tempo, a população issei, que lidera a maioria das escolas de música tradicional, tende a desaparecer nas próximas
décadas, ameaçando a continuidade das escolas.
Ao notar a crescente diminuição no quadro de professores de música “clássica” de
Ryūkyū e a interrupção das atividades de ensino da Yamada-ryū, verifiquei que há indícios de
declínio das atividades da música clássica japonesa no Brasil, especialmente das escolas de
koto.
Levando-se em conta as considerações anteriores, motivações e deduções individuais, o trabalho se justifica por: (1) literatura brasileira incipiente sobre minorias urbanas, os
imigrantes e sua música – especificamente sobre os nikkei, a trilha da música koten estaria aberta, mas não suficientemente explorada; (2) necessidade de continuidade e amadurecimento
no contato e interpretação das relações sociais e culturais da música japonesa “transterritorializada”; (3) diminuição e envelhecimento da população imigrante; (4) aparente esmorecimento das escolas da “música clássica” japonesa no Brasil.
15
Embora não tenha sido de maneira impositiva, considera-se o final da era da imigração, quando começa a diminuir a entrada de japoneses para um número menor que cem pessoas, em meados da década de setenta.
10
1.3. Revisão de literatura
Devido ao curto período de cinco anos, que separa a elaboração desta tese e o
término da dissertação de mestrado, grande parte da bibliografia levantada foi retomada, uma
vez que se trata do mesmo objeto e universo de referência “música japonesa transterritorializada para o Brasil”. Para evitar reiterações apenas menciono o suporte literário, já comentado
na revisão da pesquisa anterior, deixando os detalhes para a bibliografia comentada no apêndice 5. Passo, portanto, a revisar os trabalhos mais recentes ou relevantes para desenvolver a
temática, sem que tenham sido necessariamente citados nesta ocasião, mas cuja leitura pode
ter influenciado na forma ou conteúdo da abordagem.
1.3.1. música japonesa “transterritorializada”
A pesquisa da música nikkei no Brasil teve início com estudiosos estrangeiros que
aqui estiveram, desde 1981. Aos 73 anos da imigração japonesa, Dale Olsen, especialista em
América Latina, veio da Califórnia e realizou um registro etnográfico, quase uma taxonomia
das atividades musicais da comunidade japonesa no Brasil, enfatizando os usos dos instrumentos tradicionais. Ele desvelou e mapeou todas as associações tradicionais de koten e minyō em “Música japonesa no Brasil” (Olsen 1983a). Diante da ampla variedade e do inegável
valor da documentação etnográfica, não coube a abordagem sobre o papel da música propriamente dita. Porém a lacuna foi preenchida em “Determinantes sociais na vida musical no Peru
e no Brasil” (Olsen 1983b), no qual o pesquisador utilizou a música como medida de identidade e assimilação cultural conforme as variáveis de geração.
Passados mais dez anos, Shuhei Hosokawa veio de Tókio, interessado pelo fenômeno de massa, investigou a tradição da música vocal desde a viagem dos primeiros imigrantes até o advento do karaoke, esgotando o assunto sobre a diáspora do gênero popular urbano.
Nos seus dois artigos publicados no Brasil – “A história da música entre os nikkei no Brasil” e
11
“O feitiço do karaokê” (Hosokawa 1993a e 1993b) – a ênfase da abordagem é histórica e sociológica.
Nas abordagens pioneiras, entendo que seja necessário cobrir um espectro mais
amplo e geral. Nesse primeiro momento, o contexto histórico-social e a conduta cultural tornam-se mais relevantes e atraentes do que a conduta musical em si.
Em “Música de Ryūkyū em São Paulo” (Satomi 1998) tentei trabalhar com um
tema mais específico e bem delimitado, mas terminou resultando em uma pesquisa do tipo
survey, pois lidou com escolas de koten, minyō e do membranofone taiko que envolviam mais
de 600 adeptos no total. E, embora visasse seguir o postulado de Merriam (1964), estudando a
“música no seu contexto cultural”, a abordagem se deteve mais no contexto do que na música.
Além desses estudos de Olsen e Hosokawa, há um importante relato do executante
de shakuhachi Hōzan16 Miyashita (1973), o primeiro presidente da ABMCJ. Como insider, ele
registrou as primeiras formações da música clássica japonesa em São Paulo, fornecendo parte
dos dados da construção histórica do presente trabalho. Os artigos da década de 50 do compositor L. C. Vinholes17 (1956a, 1956b e 1957) – que cooperava com uma coluna musical em
um jornal diário do estado de SP – anunciam o trágico falecimento, no Japão, de Michio Miyagi, fundador da escola Miyagi, e registra alguns recitais e vinda de especialistas de música
japonesa, em São Paulo (v. app. 4).
É curioso notar que mais recentemente, há uma tendência de estudos da música
nikkei no Brasil, realizados por mulheres. Uma delas, Elza Tsuzuki (2001), é oriunda da própria comunidade. Nisei pós-graduada em musicologia na Universidade de Tóquio, ela aponta
a continuidade ameaçada do Teatro Nō, em São Paulo. Shanna Lorenz (2003), doutoranda em
etnomusicologia na Universidade Pittsburgh, desenvolve o projeto “Música, globalização e
16
Quando o nome próprio estiver em itálico e não constar no glossário, trata-se de pseudônimo artístico.
Abreviaturas dos prenomes solicitadas pelo próprio autor. Vinholes foi o primeiro bolsista brasileiro em música
tradicional japonesa na Universidade de Artes, em Tóquio, onde foi aluno do musicólogo Hisao Tanabe, chegando
a estudar instrumentos tradicionais como o shō, hichiriki, biwa, com músicos da corte, e koto, com uma discípula
do célebre kotoista Michio Miyagi.
17
12
identidade entre os nikkei brasileiros em São Paulo”. Através de três grupos musicais modernos, Lorenz pretende averiguar como o fenômeno dekasegi atinge a re-configuração da identidade nikkei brasileira.
No tópico “Música japonesa além-mar”, da bibliografia levantada por Genichi
Tsuge (1986b, 107-42) constam todos os trabalhos seminais no assunto, desde 1933. Entre esses trabalhos consegui obter, além dos artigos de Olsen, o artigo “Música okinawana alémmar: o caso havaiano”, de Anderson Sutton (1983), outro importante referencial para o estudo
da música nikkei de Ryūkyū.
Deve-se acrescentar também aos estudos sobre música nikkei – de Jo Ane Combs
(1985) e Susan Asai (1995) – a dissertação com enfoque histórico-social sobre a cultura musical dos nikkei americanos no sul da Califórnia, de Minako Waseda (1998). Podemos situar a
maioria desses trabalhos na linha das “variáveis”, de Olsen (1983b), que identifica padrões de
comportamento musical por geração, vinculando-os ao contexto histórico e social.
1.3.2. estudos culturais correlatos
No que se refere a outras expressões artísticas ou culturais da comunidade japonesa no Brasil, ressalto o estudo sociológico sobre o grupo de poetas de tanka, de Mário Kikuchi
(1995), e a crônica insider sobre as artes, sob o ponto de vista “ético”, de Tomoo Handa
(1985). Em busca de esclarecimentos pormenorizados sobre comportamento, valores e gênero,
destaco a tese de Francisco Hashimoto (1995), na área de Psicologia, e a publicação de Tânia
Nomura (1989) intitulada “A mulher nikkei no Brasil”.
Aos enfoques sociológicos, históricos e antropológicos de Hiroshi Saito (1980),
Tetsuo Nakasumi e José Yamashiro (1992) e Ruth Cardoso (1995), acrescentam-se publicações de Arlinda Nogueira (1983), o capítulo sobre okinawanos da tese de doutorado em História Oral, de Sônia M. de Freitas (2001), e o relato sobre a Shindo Renmei18, de Fernando Mo-
18
Grupo que perseguia os compatriotas esclarecidos sobre a derrota do Japão na Segunda Guerra.
13
rais (2000). Essas obras diagnosticam a situação de integração, ascensão econômica, mobilidade e os problemas de adaptação, resistência e interação interna e externa ao grupo social em
questão. A obra do historiador brasilianista Jeffrey Lesser (2000) aborda a negociação da identidade nacional dos imigrantes asiáticos, árabes e judeus com especial enfoque na questão
nipo-brasileira.
Para os debates sociológicos sobre etnicidade, identidade e ideologia cultural podem ser reveladoras as obras de Phillipe Poutignat e Streiff-Fenart (1998), de Manuel Castells
(2000) e de Benedict Anderson (1991). E para o estudo de construção da identidade através da
música, a publicação de Martin Stokes (1994).
1.4. Objetivos
De uma maneira geral, poderia resumidamente descrever os objetivos principais
deste trabalho como sendo: (1) Descrever, através de perspectivas etnomusicológicas, o estabelecimento, manutenção e adaptação das escolas de koto, vinculadas à Associação Brasileira
de Música Clássica Japonesa, Associação Miwa e Associação Okinawa do Brasil. (2) Identificar o sentido sócio-cultural da prática da música clássica japonesa em contexto transterritorializado, por gênero e faixa etária ou geração – imigrante, descendente e não descendente.
No entanto, busquei também atingir alguns objetivos específicos descritos a seguir: (1) Situar preliminarmente o koto no contexto da terra de origem e da terra de acolhimento, enfatizando o estabelecimento das sōkyoku de Ryūkyū, escolas Yamada e Ikuta. (2)
Anotar a organização estrutural das instituições: suas normas de funcionamento, principais
agentes e hierarquia. (3) Observar as atitudes e conceitos em torno do ensino e aprendizagem
musical do koto, incluindo os eventos de performance, especialmente das subescolas Ikuta:
Miwa, Miyagi e Seiha. (4) Documentar peças representativas de cada grupo, bem como peças
que ilustram as adaptações – na escolha, execução, ensino e aprendizado do repertório – peculiares à realidade transterritorializada.
14
ƒ
problematização e inferências iniciais
Os estudos interculturais caracterizam-se pela preocupação em encontrar e explicar as causas e efeitos do contato entre duas ou mais culturas. Como no estudo anterior eu me
detive principalmente no aspecto causal, prefiro enfatizar neste trabalho, atitudes reveladoras
de resistência ou integração presentes na conduta musical. Tendo em mente a pergunta inicial
e após confirmar a integração japonesa na maioria brasileira (Nogueira 1983 e Cardoso 1995)
– a média de casamentos interétnicos elevou-se para quase 50% e apenas 20% participa das
associações ou clubes da comunidade (Silva, 25-6) – surgiu a problematização inicial: se os
japoneses estão tão integrados na cultura brasileira, por que a música continua tão resistente?
Como o presente trabalho busca compreender a ação cultural das escolas de koto
em uma realidade “alternativizada”, percebi ser imprescindível, além de um estudo musicológico, observar o inter-relacionamento entre música e comportamento humano. Um comportamento espelhado pelas circunstâncias históricas vividas pela comunidade nikkei em São
Paulo. Pelo fato das escolas de koto serem decorrência da situação de diáspora, a abordagem
analítica enfatizará mais o aspecto social do fazer musical do que o repertório das escolas.
Sendo assim, após algumas inferências suscitadas durante a primeira ausculta do contexto sócio-cultural, surgiu outra questão: tocar koto implica etnicidade, ideologia ou herança cultural? Caberia, pois, explicar os conceitos e as terminologias empregados na premissa acima.
Partindo do pressuposto de que tocar koto exibe certo status quo – pois os principais atores sociais atuam nas esferas da elite da comunidade, o emprego do termo “ideologia”
considera a definição seguinte de Nelson Piletti (1994, 11):
A maioria das pessoas vai formando seu conjunto de idéias
sem muita reflexão. Esse conjunto de idéias recebe o nome de ideologia. Todos nós temos nossa ideologia, mas de maneira geral não temos
consciência disso. Julgamos que nossas idéias refletem sempre a realidade. Não nos damos conta de que muitas dessas idéias foram colocadas em nossa cabeça pela educação familiar, pela escola, televisão,
jornais, moda, cinema, etc.
15
Embora as ciências sociais tenham avançado na polêmica do conceito de “etnicidade”, retomo as acepções destacadas por Giralda Seyferth (1987, 436-7): “condição de pertença a um grupo étnico (Glazer 1975: 1), [...] uma forma de interação de grupos culturais que
operam num contexto social comum (Cohen 1974: xi)”; “é chamado ‘grupo étnico’, quando
grupos de imigrantes interagem numa terra estrangeira (Cohen id.: x)”. Sem ignorar a realidade de que tocar música clássica japonesa no Brasil não se restringe apenas ao grupo étnico em
questão, o fenômeno em foco é, claramente, uma conseqüência da presença de imigrantes japoneses no país. Considerando que o ensino de koto esteja na segunda geração de professoras,
não se restringindo apenas à atividade de imigrantes, a terminologia “herança cultural” reforçaria esse tipo de dinâmica de continuidade.
1.5. Procedimentos metodológicos
ƒ
pesquisa teórica
O presente estudo não segue uma única orientação teórica ou mesmo um único
modelo específico, mas, certamente, o suporte de literatura pode ter influenciado no processo
de seleção bibliográfica, na recolha e na interpretação dos dados. Como a etnomusicologia estuda a música no seu contexto cultural, as bases metodológicas estão também fundamentadas
nas ciências sociais, particularmente na antropologia cultural. Nesta, a temática de “minorias
étnicas” torna-se bastante propícia para a discussão das teorias sobre permanência e mudança.
No terreno da música dos imigrantes, ressaltam-se as discussões terminológicas de
Bruno Nettl (1992) e Margaret Kartomi (1981). As reflexões sobre ética e metodologia – que
tinham como base os etnomusicólogos Bruno Nettl (1983), Max Baumann (1989) e Ângela
Lühning (1991), ampliam-se no campo científico das ciências sociais e educação, com as publicações de Howard Becker (1999) e Augusto Triviños (1987).
No procedimento interpretativo, o capítulo “A abordagem metodológica” da tese
de Francisco Hashimoto (1995), na área de psicologia, contribuiu para discernir parte do
16
comportamento da manutenção da tradição musical. Outros debates das ciências sociais podem ter influenciado na análise do comportamento social. Sobre a cultura japonesa gostaria de
destacar dois trabalhos que, embora distantes no tempo, possuem assertivas bem fundamentadas na antropologia: o clássico da Escola Cultura-Personalidade de Ruth Benedict (1946) e o
recente trabalho de Renato Ortiz (2000), que utiliza o Japão como paradigma da “mundialização”. Sobre a construção da identidade cultural e ideológica do brasileiro, as publicações de
Darcy Ribeiro (1995), Roberto da Matta (2001) e Renato Ortiz (1992) trouxeram insights conclusivos para o presente trabalho.
Especificamente sobre a organologia do koto, os estudos de Willem Adriaansz
(1973), Gen-ichi Tsuge (1983), Bonnie Wade (1994), William Malm (1978) e Roger Kamien
(1976) esclareceram sobre o instrumento, modos de tocar, notação, história das escolas e seus
repertórios, fornecendo os fundamentos teóricos da prática de koto apreendida em campo.
Na observação do ensino e aprendizado, a presente pesquisa procura seguir algumas das indagações propostas por Keith Swanwick (1983, 203):
Em relação aos estudantes: como eles são motivados? Quais
são suas atitudes com a música? [...] O que é considerado proeza musical? Em relação ao fazer musical. Quais tipos de experiência constituem a experiência musical? [...] Em relação ao contexto institucional
ou social. [...] Como diferentes grupos culturais e étnicos podem se
relacionar com diferentes tipos de música?ii
De acordo ao primeiro objetivo do trabalho, a estrutura do trabalho obedece à linha de abordagem “surgimento, manutenção e adaptação” (Satomi 1998), que funde as proposta de Adelaide Schramm (1990) e Timothy Rice (1987). Schramm fornece, especificamente
na temática da “música refugiada”, o modelo: pré-partida, partida e estabelecimento. Rice, em
sua proposta de remodelagem da etnomusicologia, concilia os modelos tríplices de Alan Merriam (1964) – música, conceito, comportamento – ao de Clifford Geertz (1986) – construção
histórica, manutenção social e aplicação individual –, resultando em construção histórica, manutenção social e criação individual da música.
17
Os dados de pré-partida encontram-se na I Parte, que parte das correntes ou escolas trazidas ao Brasil pelos imigrantes japoneses, realçando o surgimento e manutenção das
tradições musicais na terra emigrada. As II e III Partes procuram descrever cada caso de acordo ao comportamento predominante observado, localizando o estabelecimento, manutenção
social e adaptação dos grupos.
ƒ
pesquisa participante de “papel ativo”
Na experiência de campo realizada durante os anos de 1996 a 1998, notei certa resistência por parte de algumas das executantes da música clássica para com a presença da
pesquisadora. Em se tratando de um grupo composto na sua maioria por mulheres que, naturalmente, são mais reservadas e até mais desconfiadas, desta vez optei por uma observação
participante de “papel ativo”. No capítulo “As pesquisas interacionistas em educação”, Alain
Coulon (1995, 75) explica:
O ‘papel ativo’ é aquele onde o pesquisador abandona a posição um tanto marginal do observador participante ‘periférico’ para desempenhar um papel mais central no quadro estudado. Participa ativamente das atividades do grupo, assume responsabilidades, comporta-se como um colega em relação aos membros do grupo.
Até julho de 2002, não conhecia a professora Miriam Saito, do grupo Miwa, que
se mostrou muito receptiva logo no primeiro encontro. Quando percebi que se tratava da filha
de uma das pioneiras do koto no Brasil, Miwa Miyoshi – apontada por Hōzan Miyashita
(1973, 140) como “uma das fundadoras do Grupo de Estudos da Música Japonesa no Brasil em
1939” – candidatei-me, prontamente, a aprendiz do instrumento em sua classe.
Com vistas a acelerar o aprendizado do koto e obter informações adicionais sobre
o processo formativo, a manutenção e a adaptação de cada grupo, resolvi freqüentar também
as aulas do grupo Miyagi com a professora Yūko Ogura, filha de Kikue Hayashida, considerada “a única executante pré-guerra da Yamada-ryū” (Olsen 1983a, 121).
18
A observação realizou-se principalmente nos locais de ensino, geralmente nas residências das próprias professoras. As aulas do grupo Miwa acontecem na casa da professora
Saito na zona sul, bairro do Jabaquara (v. fig. 18), e as do grupo Miyagi, na residência da professora Ogura, na zona oeste, em Pinheiros.
A oportunidade de observar outros alunos se deu com essas duas professoras e
com a professora Tamie Kitahara, do grupo Seiha, que reside no Butantã e dá aulas em Rio
Pequeno, ambos subúrbios da zona oeste. A observação do ensino infanto-juvenil sucedeu
principalmente com as professoras Saito e Kitahara. Eventualmente, revisitei as escolas de
kutū de Ryūkyū, devido à localização desses grupos. Os treinos da DKB acontecem na Casa
Verde, no extremo norte, e da PKB, em Santa Clara e Vila Carrão, bairros periféricos da zona
leste da cidade.
Além das aulas, foram observadas as apresentações regulares de cada escola ou
associação, algumas performances externas ao grupo e à comunidade, bem como suas preparações e algumas reuniões específicas como as confraternizações de Ano Novo. Os registros
incluem diário de pesquisa, fotografias, gravações em fitas cassetes áudio, vídeo, MDs, programas, partituras, matérias jornalísticas e questionários semi-abertos.
Conforme o relatório de pesquisa, no apêndice 8, foram empreendidas dez viagens
para São Paulo e duas para Recife, entre julho de 2000 e agosto de 2003. Foram observadas
67 aulas, sendo 60 como aluna; 38 apresentações, das quais 18 de forma ativa; e 30 ensaios,
sendo 28 de forma participativa. Quanto às entrevistas, 60 dos 169 professores e alunos se
dispuseram a responder os questionários.
ƒ
pesquisa de laboratório
A primeira etapa da pesquisa de laboratório envolveu a catalogação do material,
conforme ia sendo recolhido. Para isto, adotei parcialmente o manual de José Maceda (1980)
mesclado às sugestões de Kilza Setti e Max Bauman (1989). Ademais do diário de campo e os
19
sessenta questionários, o material coletado compreende mais de 266 fotos, 79 programas, 20
fitas de áudio, 19 MDs e 12 fitas de vídeo.
A segunda etapa reuniu a leitura e seleção dos questionários, das entrevistas anotadas no diário de campo, dos depoimentos em vídeo, ou declarações publicadas em jornais
ou revistas da comunidade. Nessa etapa elaborou-se a lista de repertório, apêndice 3, a partir
das peças apresentadas em eventos externos e internos a cada escola, registradas em programas impressos ou nas gravações de campo. Diante da lista imensa com trezentos títulos de
peças, foi preciso selecionar uma amostra do repertório, listada na tabela 2 (top. 2.3.2), de acordo com o critério de maior índice de ocorrência nas performances.
A terceira etapa do laboratório constou da transcrição do repertório e das entrevistas gravadas, seguidas da tradução de algumas dessas entrevistas, dos programas e textos literários das canções, seguindo a amostra da tabela 2. Para a transcrição musical selecionei duas
peças instrumentais do repertório de Okinawa, três peças mais executadas, acrescidas de duas
peças da lista de preferências e um arranjo de exemplo gagaku. A transcrição tenta aproximarse da notação prescritiva, quanto aos detalhes de interpretação, e procura ressaltar os elementos incomuns à nossa cultura musical. Deste ponto de vista ético, acredito estar implícita a
análise musical nesse trabalho de transcrição. A análise musical, cujo resultado encontra-se no
capítulo 4, conteve-se na peça número 1 da lista de ocorrências, intitulada “Rokudan [Seis Ciclos]”, pois se trata de um protótipo do repertório “clássico” mais antigo denominado danmono, ‘peça em ciclos’.
i
The process of moving a music into a new cultural environment does resemble the delicate and sometimes risky
operation of transplanting a plant, or organ as in modern medicine. [...] transplantation can imply negative survival prospects for an organism in a new environment.
ii
The first is to do with people, our students. How do they ‘tick’ musically speaking? What are their attitudes to
music? […] What counts as achievement in music? The second area is to do with music. What kind of experiences constitutes musical experience? […] The third area is to do with the social or institutional contexts […].
How can different ethnic and cultural groups relate together to different kinds of music?
PARTE I
Dados Musicais Imigrados
21
2 “DRAGÃO DEITADO NA AREIA CONFABULA COM AS ONDAS”
Para uma melhor compreensão das discussões presentes nos capítulos subseqüentes, é fundamental introduzir aqui uma análise organológica do koto e sua utilização na música tradicional japonesa. A organologia é a ciência dos instrumentos musicais, que não se restringe apenas à classificação e à descrição física, mas importa-se também com o seu entorno
humano, espacial e histórico.
Neste capítulo veremos, então, além de sua descrição física, algumas questões de
categorização musical, acompanhada sempre que possível das atribuições simbólicas e do
contexto histórico e social do koto. A busca dos referenciais da literatura musicológica partiu
da realidade encontrada no Brasil em termos de instrumento, afinações, escolas e repertório.
2.1 Questões de categorização do instrumento e gênero musical
2.1.1 koto derivado do ch’in ou chêng?
A indagação surgiu da observação pelo emprego intrigante de dois ideogramas diferentes para designar o mesmo instrumento. A cultura japonesa adota o ideograma ch’in – cítara longa chinesa com sete cordas – para designar o termo simples koto. Já para o termo
composto sōkyoku (sō = ‘koto’, kyoku = ‘música’) emprega o ideograma chêng – cítara de treze cordas afinadas por cavaletes móveis.
A adoção do ideograma ch’in
, composto pelos caracteres ‘reis’
e ‘agora’
, acrescida da imagem poética do koto lembrada por Tranchefort (1980, 180), “dragão deitado na areia conversa com as ondasiii”, sugerem que esta cítara da realeza chinesa seja a antecessora direta da cítara japonesa. O formato alongado do instrumento indicaria a idéia da sua
21
22
amplitude mítica e seu poder contemplativo, meditativo, além de uma conexão com a natureza. De acordo com essa perspectiva anímica do dragão como heráldica, poderíamos identificar
o koto com o ch’in, pois conforme Tsun-yuen Lui (1982, 180):
Em tempos remotos o instrumento era considerado uma incorporação do dragão sagrado (espírito das águas e das tormentas) e da
fênix (pássaro de fogo), fontes místicas de vitalidade e fertilidade, que
provavelmente figuravam na cerimônia religiosa.iv
Quanto à fênix – que tem o poder de renascer das próprias cinzas – consta na versão sobre a gênese do ch’in, também denominado ku-ch’in, contada por Sun Yu-Ch’in (Walker 1998, 2):
[…] supõe-se que tenha sido inventado pelo filósofo e imperador Fu Hsi, o ‘grande iluminado’ (ca. 2800 a.C.), que ao observar um
casal de fênix pousado nos galhos da árvore tung, construiu o primeiro
ku-ch’in feito dessa madeira.v
A tônica desta e muitas outras invenções19, repassadas oralmente, consiste em realçar que no momento da concepção, os criadores alcançavam um estado de iluminação através da contemplação da natureza.
Lui revela ainda que “o ch’in era caracterizado como ya
, significando pleno
ou elegante”. Enquanto chêng era mais popular, o ch’in era mais refinado e elevado. Instrumento executado por sábios e poetas, Sun yu-Ch’in acrescenta que “Confúcio tocava ch’in e
até mesmo compôs ‘Orquídea Elegante’”. Atualmente, tocar koto ainda é sinônimo de elegância e refinamento pessoal, o que reforçaria a sua conexão com o ch’in.
Porém, na estrutura física, o koto aponta maior parentesco com o chêng, pois ambos apresentam cavaletes móveis e, conseqüentemente, recursos sonoros e técnicos semelhantes. Segundo Tran Van Khê (1985, 79), a existência de variantes do chêng – kayakeum coreano, koto japonês, jatag mongol e dan tranh vietnamita – em países do extremo oriente, demonstra as relações culturais, a partir da China.
19
Por exemplo, “observando a chuva Akainko criou o sanshin” (Satomi 1998, 32) e “observando a luta entre a serpente e o grou, o sábio Sanshan Fan criou o t’ai-chi chuan” (mestre Liu Pai Lin em aula dessa prática).
23
Chêng
, composto pelos caracteres ‘bambus’
e ‘disputa’
, descende da
cítara de 25 cordas chamada sē. Willem Adriaansz (1973, 23) transcreve a gênese popular do
ideograma e do instrumento chêng:
Duas irmãs disputavam pela possessão de um sē [cítara] feito
de bambu. Como solução [...] elas partiram o instrumento em dois e
assim obtiveram dois cheng, um com doze e o outro com treze cordas.
A presença do instrumento, com doze cordas, na Coréia (o kayakeum), é explicada pela informação adicional de que uma das duas
irmãs emigrou para a Coréia, enquanto a outra permaneceu na China.vi
Ou “a outra irmã, que ficou com o de treze cordas, foi para o Japão”, conforme a
versão contada por uma das professoras, em São Paulo. Quando se encaixa o koto na família
do chêng – uma satisfação para as buscas difusionistas (sic) – a adoção do ideograma ch’in
aparenta uma distorção na categorização organológica. Contudo seria válido atribuir um parentesco mais distante: ch’in como uma espécie de tio-avô do koto, na genealogia maior das
cítaras longas. Desse modo, preservamos as atribuições tanto “éticas” quanto “êmicas”, pois
creio que a abordagem científica não deva desconsiderar os insights subjetivos da cultura estudada. Emicamente, a adoção do ideograma ch’in, na grafia do termo koto, indicaria uma afinidade japonesa, pela representação simbólica e pelo caráter social do instrumento chinês.
2.1.2 sōkyoku: música instrumental ou vocal?
Segundo Kishibe (1983, 504), a música japonesa se divide em: música religiosa,
gênero da corte, gêneros teatrais, música instrumental e música folk. Komiyama (1978, 39)
propõe a divisão: instrumental, vocal lírico e narrativo. Para ambos há um consenso de que a
‘música para koto’ ou sōkyoku se insere na categoria “música instrumental”. Contudo, não se
trata de uma música exclusivamente instrumental como nos moldes ocidentais.
Os rótulos existentes – “música para biwa”, “música para shamisen”, “música para koto” e “música para shakuhachi” (cf. Kishibe 1983 e Malm 1978) – referem-se à especificidade do instrumento característico, indispensável, preponderante ou tido como “mais difí-
24
cil” no acompanhamento vocal. Tentando uma analogia hipotética com elementos mais próximos de nossa realidade musical, é como se rotulássemos o xaxado, forró ou baião como
“música para sanfona”20; a capoeira como “música para berimbau”; o samba como “música
para cavaquinho”; o chorinho como “música para bandolim”, e assim por diante. Por meio
dos rótulos haveria uma intenção implícita de afirmar um estilo próprio através de um instrumento adotado de outra cultura. Todos os cordofones japoneses mencionados são provenientes, diretamente da China, ou via Coréia: biwa, do alaúde piriforme p’ip’a; shamisen, do alaúde de braço longo sanxiàn; e koto, da cítara pranchiforme chêng.
No caso do koto, grande parte do repertório é vocal, mas inclui algumas peças exclusivamente instrumentais. Sōkyoku floresceu no século XVI, em plena fase de afirmação do
sabor nacional, tentando se libertar da influência chinesa, nítida no gênero gagaku. A ‘música
para koto’ constitui-se do repertório vocal chamado kumiuta21, “canções ciclo”, jiuta, ‘canções regionais’, e do repertório puramente instrumental denominado danmono22, “peça cíclica”, ou shirabemono, ‘peça erudita’, e tegotomono, “peça interlúdica”.
Sōkyoku pode ter sido categorizada como “música instrumental”, porque a partir
das escolas de koto o instrumento passou a se afirmar como solista. Além da independência
textual dos danmono, até nas peças vocais a execução alcança momentos de autonomia, através de sua elaboração e destaque, principalmente nos interlúdios tegoto. Interlúdios estes suficientemente longos para serem destacáveis, ou seja, revertidos em uma nova peça instrumental, isolada dos trechos vocais originais.
Após apresentar alguns aspectos paradoxais nas questões de categorização, suscitadas no início da pesquisa bibliográfica, passo aos aspectos organológicos do koto, começando com a sua constituição, forma de execução e afinações.
20
Neste caso, o acordeão seria o instrumento com maiores possibilidades melódicas e harmônicas, sem desmerecer
a habilidade requerida para a execução dos outros instrumentos.
21
Para maiores esclarecimentos sobre kumiuta, v. Tsuge (1986a) e Adriaansz (1973).
22
Literalmente dan significa ‘grau’ e mono ‘coisa’. Considero a tradução “peça cíclica” ou “peça em secções” mais
condizente com a forma musical.
25
2.2
Constituição, simbologia, forma de tocar e afinações do koto
ƒ estrutura física e representações
O koto pertence ao grupo dos cordofones e à família das cítaras longas, tocadas
com plectros. O tipo mais usual é o koto de treze cordas de nylon – originalmente eram de seda – com espessuras e comprimentos iguais que se estendem paralelamente ao corpo. Este
possui o formato de uma prancha retangular oca de madeira kiri, Paulownia imperialis, medindo em torno de 1,80 m de comprimento, 25 cm de largura e 8 cm de altura. O tampo superior é levemente convexo ao fundo chato da caixa de ressonância. Este mesmo formato do
ch’in tem a seguinte representação, conforme Sun Yu-ch’in (Walker 1998, 3).
Mesmo sua forma é simbólica. O tampo superior abaulado representa o céu, o fundo plano, a terra. As relações das sete23 cordas
ilustram todas as relações humanas entre os membros da sociedade.
Os treze pontos representam os meses do calendário lunar, e as outras
partes são nomeadas seguindo as do dragão e fênix, representando as
qualidades yang e yinvii.
Num único instrumento, podemos conferir a síntese dos fundamentos budistas, taoístas e confucionistas. A harmonia céu-terra-homem está presente nos princípios budistas e
taoístas. A concepção binária taoísta yin-yang e as relações humanas seguem os preceitos
confucionistas.
O koto fica suspenso – 12 cm no lado direito e 2,5 cm no esquerdo, através de pés
fixos – para que o som se projete por meio de suas duas rosáceas, localizadas na parte inferior.
Essas aberturas correspondem, novamente, aos princípios construtivos do ch’in, explicados
por Lui (1982, 183):
Na parte central traseira há uma cavidade sonora [...] tradicionalmente chamada de poço do dragão; a cinco polegadas da ponta estreita do lado esquerdo do executante [...] há outra cavidade sonora
tradicionalmente chamada de tanque da fênix.viii
23
Como o ch’in original possuía cinco cordas, as “relações entre os membros da sociedade” podem ser as “cinco afinidades” referidas por Confúcio: governador e ministro, marido e esposa, pai e filho, irmão mais velho e irmão
mais novo e entre amigos.
26
No koto, o reservatório ou “poço do dragão” situa-se próximo à extremidade direita do fundo da caixa de ressonância, conforme a ilustração (fig. 4). Não obstante, a diferença
da localização, das medidas e do formato, o importante é que as duas entidades estejam preservadas, sobretudo as qualidades sonoras: da cavidade yang ouve-se mais o ataque da corda e
o som fundamental; e da cavidade yin, sobressai-se os harmônicos e o prolongamento do som.
Fig. 4 “Estrutura do koto” (Kishibe 1982, 55)
A “língua do dragão” pode ser delineada em marfim e a “cabeça do dragão” decorada com entalhes na própria madeira24, que, por sua vez, ainda pode ser protegido com um
chapéu feito de tecido brocado. Perto das extremidades situam-se as duas ‘cristas’ kaku, suportes fixos das cordas com menos de 2 cm de altura. Para obter a afinação desejada, utilizam-se sob as cordas cavaletes móveis entre 5 e 6 cm de altura, chamados ji, em marfim, madeira ou plástico, cuja forma corresponde a um Y invertido.
24
Ou revestido de tecido brocado, bem colorido, como os koto, de São Paulo, confeccionados pelo sr. Maeda, oriundo de Okinawa.
27
ƒ formas de execução
Devido à sua forma de extração sonora alguns autores classificam o koto como alaúde, pois toca-se com os dedos da mão direita: polegar, no sentido para baixo; indicador e
médio, para cima. Trata-se de uma visão outsider, se considerarmos que o alaúde japonês (biwa ou shamisen) é tocado com um único plectro grande. O koto necessita de três plectros pequenos que envolvem a primeira falange dos três primeiros dedos. Por isso recebem o nome
de tsume, ‘unhas’, embora cada tsume se posicione do lado oposto à unha. Estes plectros –
feitos em marfim, osso ou bambu – são fixados em uma base de couro, em forma de anel.
A diferença mais evidente entre as escolas, e que afeta ligeiramente o timbre, reside no formato desses dedais utilizados pelos executantes: ponta reta na Ikuta, pontiaguda na
Yamada e arredondada em Ryūkyū (v. tab. 4). O tsume incide na região próxima à extremidade direita das cordas. Exige-se mais do polegar e, por ser o dedo mais usual, não necessita de
indicação de dedilhado na tablatura, ao contrário dos dedos indicador e médio (v. top. 3.3).
Tradicionalmente, o executante toca ajoelhado (ft. 4, 6, 7, 20 e 43), pois o koto
permanece no solo. Assim mesmo é preciso um cavalete baixo de uns 15 cm de altura, no lado
direito, para que o instrumento fique ligeiramente acima dos joelhos. Atualmente, o executante se acomoda em uma cadeira, necessitando de cavalete(s) para suspender o koto na altura
equivalente à maneira tradicional. Em dias de aulas ou ensaios, utiliza-se um par de cavaletes
simples (ft. 42) e, na ocasião de palco, preferencialmente, um suporte mais sofisticado que ajuda a projetar o som para a platéia (v. ft. 12-15 e 21).
Os formatos dos plectros das escolas Ikuta e Yamada influem também na postura
do pulso, dos joelhos, afetando a técnica de execução. A postura da mão direita, na Ikuta-ryū
aproximar-se-ia da técnica do alaúde (árabe) e na Yamada-ryū, da técnica do piano. Levando
em conta o formato do tsume da escola Ikuta e a técnica de dedilhar do alaúde – ou seja, dedo
polegar para baixo e outros dois para cima –, emprega-se a ponta superior do plectro do pole-
28
gar e as pontas inferiores dos demais plectros. Como a palma está voltada para baixo, para
acomodar os pulsos e cotovelos, há necessidade de volver o corpo e os joelhos ligeiramente
para a esquerda. Já o formato do plectro das escolas Yamada e Ryūkyū, permite manter os
joelhos na posição perpendicular ao instrumento, necessitando elevar e dobrar o pulso – como
no piano – para poder incidir a ponta única do tsume.
Os cavaletes móveis ji delimitam o lado direito das cordas para a mão direita e o
lado esquerdo, para a mão esquerda. Com a ocidentalização, a partir da era Meiji, a mão esquerda avança o território da direita para realizar pizzicatos e auxilia nos efeitos de staccattos,
harmônicos, acordes e glissandos (v. cap. 3). Ocasionalmente, alguns pizzicatos podem ser
obtidos também com os dedos anular e mínimo da mão direita.
ƒ afinações
As principais afinações (fig. 5) encontradas na pesquisa de campo foram: ōshikichō, hirajōshi, kumoi-chōshi e nakazora-chōshi, no repertório antológico; e nogi-chōshi e gakujōshi, no repertório alusivo às cantigas populares. Chōshi ou jōshi significa ‘sistema’; hira,
‘paz’, kumoi, ‘nuvem profunda’; nakazora, ‘meio do céu’; nogi, ‘certa árvore’; e gaku, ‘prazer’.
Ōshiki-chō, o primeiro exemplo da figura 5, é a afinação da extinta Tsukushi-goto,
mas permanece no repertório puramente instrumental chamado danmono, ‘peça em secções’,
de Okinawa (v. tópico “Sōkyoku em Ryūkyū”).
Hirajōshi (ex. 2) é a afinação mais comum no repertório danmono25, de Naichi26.
O ‘sistema da paz’ gravita em torno da primeira e segunda corda (lá e ré) na música para koto
até a era Meiji, mas, com a introdução da harmonia ocidental, parece que a afinação se restringiu ao modo menor com a polarização da nota ré.
25
Entre sete peças do danmono, Adriaansz (1973, 38) observou que seis exemplos estão em hirajōshi enquanto apenas um está em kumoijōshi.
26
Termo próprio de Ryūkyū, para designar o outro, ou seja, todo o Japão com exceção do arquipélago ao sul.
29
30
Kumoijōshi (ex. 3) é uma afinação complementar ao sistema hira, que aumenta a
sua extensão para o grave, empregado no segundo koto. Outra derivação de hirajōshi é a afinação chamada nakazora (ex. 4), que amplia a extensão um tom mais grave do que kumoijōshi. A afinação hira e suas derivações começaram a ser utilizadas no repertório antológico,
mas anotei mais três afinações empregadas no repertório moderno.
Gakujōshi (ex. 5) é bastante empregada nas adaptações de canções infantis e populares, cujo conjunto é chamado kongōseki. Nogi-chōshi (ex. 6) é também uma ampliação do
sistema gaku. Lembrando do eixo polarizador da segunda corda (sol em gaku e ré em nogi), a
afinação ‘prazerosa’ soa, coincidentemente, com o modo maior ocidental.
“Haru no Umi [Mar da Primavera]” (tr. 5), a terceira peça mais executada, conforme a tabela 2 (p. 36), parece utilizar uma variação de nakazora, que consta como hannakazora-chōshi (ex. 7) na publicação de Adriaansz (1973, 37).
O exemplo 8 é uma afinação para o koto baixo jushichigen, de ‘dezessete cordas’,
quando acompanha o koto principal afinado em hirajōshi.
2.3
Diacronia das escolas Sōkyoku
2.3.1
escolas antigas: Tsukushi-goto e Yatsuhashi-ryū
Willem Adriaansz (1984, 467) expõe uma tipologia cronológica do koto ou sō: gakusō para o gênero gagaku, cujos registros mais antigos remontam ao séc VIII; tsukushisō para a escola Tsukushi-goto, da região de Kyūshū, que reuniu no séc XVI o repertório elaborado
desde o séc XII; zokusō para as correntes Yatsuhashi, Ikuta e Yamada a partir de meados do
séc. XVII; e shinsō a partir da era Meiji, em 1868 (v. tab. 4). Segundo Kishibe (1983, 505),
atualmente sobrevivem os repertórios gakusō da Alta Idade Média, entre o séc. XI e XV, e do
gênero sōkyoku, o zokusō e shinsō.
31
Enquanto a ‘música elegante’ gagaku servia à corte, a escola Tsukushi – considerada a criadora da primeira forma variação – atendia à elite budista e aristocrática. Ambas inclinadas à música cerimonial por excelência atendiam às necessidades de uma sociedade feudal, com classes bem diferenciadas.
Somente a partir da Yatsuhashi-ryū, o acesso ao fazer musical se amplia, todavia
“sem perder seu caráter aristocrático”, sublinha Adriaansz (1983, 529). O estudioso se preocupa com o exagero do termo zokusō, ‘koto vulgar’, “justificável enquanto mudança funcional:
do meio espiritual e cerimonial para um entretenimento mais secular e mundano”. Nesta perspectiva, é preferível traduzir zokusō como “koto secular” do que “koto popular”.
Parece que a prática amadora do instrumento ainda era restrita a uma classe emergente da sociedade feudal, dominada pelo shogunato. No ítem “segundo período de música
nacional”, que abrange as eras Momoyama, 1573-1603, e Edo, 1603-1868, Kishibe (1983,
506) esclarece:
As mulheres tanto da classe samurai quanto da classe dos
comerciantes, por exemplo, se divertiam interpretando canções acompanhadas do koto de treze cordas, um estilo que inicialmente havia sido estabelecido pelos músicos cegos.ix
No séc. XVII, a Yatsuhashi-ryū representaria, portanto, uma espécie de insurgência não apenas de stratum social, mas também de sub strata, já que na anterior escola Tsukushi “mulheres e deficientes visuais eram banidos da instrução” (Adriaansz 1984, 467). Havia
na época um sistema corporativo de treinamento profissional para os deficientes visuais em
habilidades tais como música, teatro, acupuntura e massagem (Kamien 1976, 537). Tal sistema, denominado tōdō shoku-yashiki, passou a habilitar professores e performers de koto. Os
mais virtuosos recebiam o título de kengyō, “mestre de koto”.
Kengyō Yatsuhashi, que viveu entre 1614 e 1685, é considerado fundador da corrente secular zokusō, em Kyōto. A escola Yatsuhashi foi responsável pela formação de um
pequeno repertório de treze “canções ciclo”, acrescentando três – dois criados pelo “mestre”
32
Yatsuhashi e um pelo seu discípulo kengyō Kitajima – às dez canções reunidas pela Tsukushigoto. Esses kumiuta foram arranjados pela escola secular na nova afinação hirajōshi. A implantação desta afinação imprime definitivamente a marca nacionalista, desvinculando-se do
sabor chinês, da anterior afinação ōshiki-chō. Atribui-se também ao “mestre” Yatsuhashi a
criação de dois protótipos de danmono ou shirabemono, ‘peça estudo’, denominadas “Rinzetsu [Contigüidade]” e “Kudan [Nove Secções]”, as quais tornar-se-iam, posteriormente, as
duas peças famosas para koto: “Rokudan [Seis Secções]” (v. cap. 4) e “Midare [Caos]”.
Tsukushi-goto e Yatsuhashi-ryū, enquanto escolas, estão praticamente extintas,
mas o repertório da última segue sendo tocado pelas escolas posteriores. Segundo o índice de
ocorrências apresentado adiante, na tabela 2, “Rokudan” (tr. 3) e “Midare” (tr. 8) são as “peças em secções”, ou danmono, mais tocadas no Brasil.
2.3.2
ƒ
correntes seculares vigentes: Ikuta-ryū e Yamada-ryū
Ikuta-ryū
A segunda escola secular de koto, foi fundada em 1695 por kengyō Ikuta (16561715), na região chamada Kansai, atendendo, num primeiro momento à aristocracia, e depois
à burguesia em Kyōto e Ōsaka. O fundador foi aluno de kengyō Kitajima, que, por sua vez,
foi discípulo do mestre Yatsuhashi. Mestre Ikuta acrescentou ao repertório sōkyoku a música
lírica para shamisen de Kyōto, chamada jiuta, ‘canções regionais’. No final da era Edo, meados do séc. XIX, jiuta passa a ser executada pelo ‘trio musical’ sankyoku, integrado por shamisen, koto e kokyû, cordofone com arco. Somente depois da restauração Meiji, o kokyû foi
sendo substituído pela flauta vertical shakuhachi.
Conforme aumentava o interesse da escola pela técnica instrumental, a popularidade do kumiuta, “canção ciclo”, começou a declinar. Por outro lado, o interlúdio ai-no-te se
alargou de tal modo que passou a ser denominado tegoto, chegando a constituir uma forma
chamada tegotomono. As ‘canções regionais’ jiuta atingiram o formato definitivo, de trio mu-
33
sical, em Ōsaka com as peças de kōtō27 Minezaki (1785-1807): “Azumajishi [Leão do leste]”,
“Zangetsu [Lua matutina]” e “Echigojishi [Dança do leão de Echigo]” (v. app. 3).
Inicialmente, o koto apenas duplicava a parte do shamisen, mas com o tempo foi
adquirindo independência devido à sua capacidade de ornamentação. “Esse desenvolvimento
começou principalmente em Ōsaka durante o período Bunka (1804-17) nas composições de
kengyō Ichiura” (Adriaansz 1973, 16). Quando se deu essa autonomia, a parte ornamental foi
chamada de kaete e a original de honte.
Outro exemplo polifônico é a sobreposição de composições que pode ser de dois
tipos: integral, uchiawase28, ou parcial, dangaeshi29. Esses tipos de quodlibet são denominados kaete-shiki sōkyoku, porém há um outro rótulo territorial kyōmono ‘peças de Kyōto’. Um
dos seus expoentes foi kengyō Yaezaki, falecido em 1848, que acoplou peças jiuta de diversos mestres: “Sue no chigiri [Promessas de fidelidade eterna]”, 1790, de kengyō Matsuura;
“Isochidori [Passarinho da praia]”; “Cha no yû ondo [Cerimônia de chá]”; “Sasa no tsuyu
[Orvalho na folha de bambu]”; “Yūgao [O semblante do crepúsculo]”; e “Kaji makura [Embalo ao leme]”, de kengyō Kikuoka (1792-1847); e “Yaegoromo [Oito trajes]”, 1820, de kōtō
Ishikawa.
Outro ilustre representante em Kyōto foi ‘mestre’ Mitsuzaki, 1821-1859, compositor das antológicas “Godan ginuta [Kinuta30 em cinco secções]” e “Akikaze no kyoku
[Brisa de outono]”. A primeira é um exemplo de composição para dois koto na forma tegotomono e, quanto à segunda, Adriaansz (1973, 16-7) externa a sua predileção:
27
Na hierarquia do sistema tōdō shoku-yashiki, kōtō situa-se abaixo de bettō e acima de zatō (Tsuge 1983, 187).
Por exemplo “Yachiyojishi [Oito mil anos]”, de kengyō Fujinaga, sobreposta à “Banseijishi”.
29
Secções de “Hagi no tsuyu [Orvalho sobre o trevo]”, de kengyō Ikuyama, sobreposta às secções de “Isochidori
[Passarinho da Praia]”.
30
Aparato de madeira para amaciar e dar brilho à seda, de cujo ritmo deriva o padrão chamado kinuta (Tsuge 1983,
137).
28
34
Em uma de suas últimas composições Akikaze no Kyoku, Mitsuzaki reviveu a simplicidade do antigo, puro sōkyoku, cujo exemplo
mais claro tinha sido o kumiuta. Akikaze combina a forma danmono,
na longa introdução para koto solo, com o kumiuta pelas seis canções
seguintes. A introdução, consistindo de seis dan, é sempre tocada simultaneamente com Rokudan.x
Em Nagoya, surge kengyō Yoshizawa, 1800-72, compositor da peça interlúdica
“Chidori no kyoku [Música dos maçaricos do mar]” (v. tr. 4), a segunda peça mais tocada conforme a tabela de índice de ocorrências. Compositor também de outros quatro tegotomono que
correspondem às quatro estações: “Haru no kyoku”, “Natsu no kyoku”, “Aki no kyoku” e “Fuyu no kyoku”. Segundo Gen-ichi Tsuge (1983, 162), Kokingumi, o conjunto dessas cinco peças,
extrai versos da coleção Kokin waka-shū, do séc. X, e Kinyō-shū do séc. XII. Yoshizawa retoma a afinação banshiki-chō do gakusō rebatizando-a de kokinjōshi.
Sintetizando, além de inovar a técnica do koto, através dos dedais tsume, com a
ponta reta, a corrente Ikuta é responsável pela implantação dos termos tegotomono, kaeteshiki e sankyoku, favorecendo o desenvolvimento de uma linguagem polifônica cada vez mais
independente do texto literário.
ƒ
Yamada-ryū.
Embora difundida em todo o país, especialmente em Tōkyō, a corrente Yamada é
considerada um fenômeno do distrito Kantō. Kengyō Yamada, 1757-1817, retomou a valorização da linha vocal, incorporando o estilo narrativo katarimono da música para shamisen, da
região de Edo. Contudo, nos novos arranjos identificados como jôruri, o koto também desempenha um papel importante. Enquanto na escola Ikuta o líder toca sangen, na Yamada o
líder vocal toca koto.
Adriaansz (1973, 18) enfatiza o caráter narrativo da escola Yamada:
Yamada foi além da música para shamisen em sua busca pela
inspiração e utilizou-se do yōkyoku, a música do teatro Nō, e heikyoku,
poema épico com acompanhamento de biwa, que são mais narrativos
do que puramente musicais.xi
35
A Escola Yamada reteve a forma interlúdica da Ikuta-ryū adaptando-a para um
registro mais agudo, ao adotar a afinação kumoi no lugar da hirajōshi. Entre os poucos tegotomono criados pela escola, o mais conhecido “Miyako no haru” [Primavera na capital] foi
composto por Shōin Yamase, 1845-1908. Preservou-se também a forma instrumental do
danmono. Na peça em secções “Rokudan”, há o acréscimo de um terceiro koto em um arranjo
mais recente da corrente Yamada.
Outra exclusividade da escola Yamada é a “canção ciclo” “Hatsune no kyoku”
[Música do primeiro som] composta pelo seu fundador. Seria o 28° kumiuta da coleção Yamada-ryū, que havia selecionado 27 canções da corrente Ikuta.
Fig. 6. Predominância de repertório sōkyoku por compositor
escolas
seculares
zokusô
,Escolas
seculares
zōkyoku
Kikuoka
13%
escolas modernas shinkyoku
Minesaki
8%
Mitsuzaki
7%
Fujinaga
2%
Yamada
Matsuura
2%
1%
Yoshizawa
31%
Tamaoka
1%
Miyagi
Nomura
Hisamoto
Yuize
Hirai
Matsumoto
Nagasawa
Morioka
Eto
Sawai
Tomiyama
Y. Nakashima
Yoshizaki
Yatsuhashi
35%
Tateyama
Nakamura
U Nakashima
O gráfico foi elaborado partindo dos programas impressos das escolas de koto em
São Paulo para fornecer uma idéia da ocorrência de compositores. Entre uma lista de trinta
compositores mais freqüentes, 24% pertence à zokusō e 76% ao shinsō. Do lado esquerdo temos os mestres kengyō, predominando Yatsuhashi, o autor de “Rokudan” e “Midare´, e Yoshizawa, de “Chidori no kyoku”. Do lado direito temos, por ordem de ocorrência, Michio Miyagi, autor de “Haru no umi” e mais 66 peças tocadas no Brasil. E os demais compositores
36
pertencem ao grupo Seiha. Para completar, a tabela seguinte situa as 35 peças mais executadas pelas escolas de koto de São Paulo, conforme a lista de repertório do apêndice 3.
Tab. 2. Ocorrências de repertório dos grupos de sōkyoku de São Paulo
1.
2.
3.
4.
5.
6.
7.
8.
9.
10.
11.
12.
13.
14.
15.
16.
17.
18.
19.
20.
21.
autor
Yatsuhashi
Rokudan no shirabe
Yoshizawa
Chidori no kyoku
Miyagi
Haru no umi
Yoshizawa
Haru no kyoku
Yatsuhashi
Midare
Hisamoto
Sandan no shirabe
arr. Hirai
Kōjō no tsuki
Hirai
Sakura
Miyagi
Sakura hensōkyoku
Miyagi
Aki no shirabe
Kikuoka
Cha no yū ondo
Hisamoto
Hiyaku
Mitsuzaki
Godan ginuta
Tateyama
Kongoseki
Miyagi
Kotori no uta
Morioka
Mizu-Umi no uta
Kikuoka
Yûgao
Nomura
Hanakage hensōkyoku
Miyagi
Haru no otozure
Miyagi
Hokkai minyo-cho
Yutaka
Ryūkyū minyo ni yoru kumik-
22.
23.
24.
25.
26.
27.
28.
29.
30.
31.
32.
33.
34.
35.
yoku
Seoto
Mama no gawa
Kurokami
Warabe uta
Kotori no uta
Nichiren
Itsuki no komori uta
Shun-ōten
Koto no tame ni
Sarashifu tegoto
Miyako odori
Hototoguisu
Maritsuki
Yachiyo jishi
ABMCJ Miyagi Seiha Miwa Yamada
forma
danmono
13
8
10
7
1
39
sankyoku
8
5
9
5
1
28
duo moderno
13
5
5
1
1
25
sankyoku
6
4
2
3
1
16
danmono
1
6
1
3
0
11
dan moderno
0
7
3
1
0
11
arranjo
2
3
3
2
1
11
arranjo
1
3
4
1
1
10
variação
3
4
0
3
0
10
sankyoku
2
5
0
2
0
9
jiuta
3
1
0
4
0
8
moderno
1
2
2
3
0
8
danmono
5
1
0
0
1
7
duo moderno
jiuta
duo moderno
conj. moderno
Miyagi
duo moderno
Matsuno &
jiuta
anônimo
jiuta
Nomura
infantil
Miyagi
duo moderno
Miyagi
orquestral
Nomura
infantil
Tomiyama
Yamakawa
orquestral
Miyagi
Miyagi
Yamada
Miyagi
Fujinaga
jiuta
0
0
3
0
0
1
0
2
0
5
0
3
5
4
5
3
4
0
3
3
1
0
0
1
3
2
1
1
0
1
1
0
0
0
0
0
0
0
0
0
7
7
7
7
6
6
6
6
3
0
0
0
0
3
0
1
3
1
0
0
0
0
3
2
0
0
5
1
2
0
0
3
5
1
5
2
0
0
0
3
0
0
2
4
0
0
0
0
0
1
0
4
6
3
1
1
0
0
0
1
0
3
0
2
0
0
0
0
0
0
1
0
2
0
0
1
0
0
6
6
6
6
6
5
5
5
5
5
5
5
5
5
Por essa tabela nota-se que dentre as escolas zokusō, há pouca variedade de compositores e peças. No grupo Miyagi, ainda predomina o próprio fundador pela diversidade de
mais de duas centenas de composições que constam na lista dessa subescola Ikuta.
37
2.4 ‘Escolas novas’ shinsō: ocidentalização da era Meiji ao pós-guerra
2.4.1 Restauração Meiji
Para recuperar quase três séculos de isolamento, a abertura da era Meiji [186831
1912] provocou uma avidez pela “ocidentalização” ou “modernização”
do Japão. A escola
pública instituiu a música ocidental na grade curricular, excluindo a música tradicional, medida mantida até pouco anos atrás. Segundo Kikkawa (1983, 552), música e dança européia eram
promovidas por iniciativas governamentais e até “os músicos da corte [...] foram instruídos
em música clássica ocidental”32, acrescenta Adriaansz (1973, 20).
Naquela nova orientação, o processo de popularização da música tradicional seria
enfraquecido, mas Wade (1994, 233) observa que:
A publicação da música anotada e a disponibilidade de gravações de diversos tipos de música teve um profundo efeito tanto para a
música ocidental quanto para a tradicional, que seriam transmitidas
para uma audiência muito mais ampla.xii
No caso específico das escolas de koto, surgiu um agravante. O sistema tōdō shoku-yashiki foi dissolvido, ameaçando a continuidade dos profissionais cegos das escolas de
koto. Para não cair no ostracismo, a saída para a música tradicional também seria a da ocidentalização. Com seu timbre similar à harpa, suas possibilidades de afinação e extensão, o koto
seria um instrumento propenso ao sincretismo, porém Adriaansz (1973, 20) sublinha que o
processo foi cauteloso:
Embora o koto provou ser um instrumento favorito para a experimentação, ao combinar música tradicional japonesa com a ocidental, essas mudanças foram introduzidas de maneira bem gradativa.xiii
31
Bonnie Wade (1994, 233) ressalta que há uma linha tênue entre ‘ocidentalização’ e ‘modernização’ no Japão.
Em Hiroshima, na programação do ICTM 1999, pudemos presenciar o resultado dessa dupla instrução. Na primeira parte do programa os músicos, devidamente paramentados, tocaram música da corte. Na segunda parte, das
brumas de gelo seco, surgia o líder, vestido de smoking, solando e improvisando hichiriki (aerofone provido de palheta) à maneira de um saxofone acompanhado de piano. O problema não reside no uso ocidental do hichiriki, mas
a segunda parte parece ter sido a atração principal do programa, relegando para segundo plano, o repertório que os
músicos realmente dominam.
32
38
As primeiras experimentações assimilando os acordes ocidentais surgiram em Ōsaka, com os compositores kengyō Kikuzaka, 1846-1910, de “Shōchikubai [Árvores da felicidade33]”; kengyō Kikuyoshi, e Tateyama Noboru, de “Hototoguisu no kyoku [Música do Rouxinol]” e “Kongōseki [Diamante]”.
Assim como a globalização pode surtir um efeito contrário, fortalecendo a cultura
local, surgiram algumas iniciativas no começo do século XX. Foram criados o Instituto de
Pesquisas da Música Japonesa e a Escola de Música Japonesa – esta, sendo a antecessora da
escola atual na Universidade de Artes de Tōkyō – paralelamente aos esforços de ocidentalização (v. Kikkawa 1983, 552).
O efeito viria também contribuir para a diminuição do sectarismo e regionalismo
entre as escolas de koto. Vimos anteriormente que as escolas eram fenômenos de determinadas áreas, mas a partir do começo do século XX vários subgrupos surgiram, instalando a matriz em Tōkyō com o intuito de proliferar filiais por todo o país. Entre os adeptos das derivações da Ikuta-ryū constam, no Brasil, o grupo Seiha e o grupo Miyagi-kai.
2.4.2
Michio Miyagi [1894-56]
Nascido em Kobe, Miyagi foi um dos que tentaram ampliar o repertório de koto
para um sabor internacional, não somente introduzindo elementos ocidentais nas suas composições, como também modernizando o instrumento. No ano de seu falecimento, Vinholes
(1956a) escreveu em sua coluna musical (v. nr 11 e app. 4):
Tendo perdido a vista ainda criança, com apenas sete anos de
idade, seus pais proporcionaram-lhe o estudo da música, pois por ela
sempre demonstrava invulgar interesse. Foram seus mestres, entre outros, Nakajima e Hase Kengyō, ambos pertencentes a [...] Ikuta-ryū.
A ele foram atribuídas as invenções do koto grave jû-shichigen, de ‘17 cordas’, ou
“koto baixo”, e do koto agudo tansō, ambos com tarraxas para afinar as cordas, além dos ca-
33
Shōchikubai é composto pelos ideogramas pinheiro, bambu e ameixeira que simbolizam ‘felicidade’ e ‘boa fortuna’.
39
valetes móveis. Os novos instrumentos inovaram o timbre, ampliaram a extensão, mas passaram a desempenhar apenas a função de complementação camerística, conforme Bonnie Wade
(1993, 234) explicita:: “Assim como o violino e a viola são complementados pelo violoncelo e
contrabaixo, o koto de treze cordas pode ser complementado pelo koto baixo.”xiv
Quanto à composição, Michio Miyagi utiliza escalas e formas européias. Adriaansz (1973, 21) divide a sua obra em três fases:
Na primeira fase ele compôs música de câmera para instrumentos japoneses. Obras orquestrais para instrumentos japoneses pertencem à segunda fase e, na terceira fase ele combinou instrumentos
ocidentais aos japoneses.xv
Na primeira fase, Miyagi compôs peças como “Haru no umi” (v. p. 30), para koto
e shakuhachi, “Sakura hensōkyoku [Variações flor de cerejeira]” (tr. 6), para trio de koto,
“Seoto [Murmúrio das águas]”, para duo koto e jûshichigen, entre outras. Na fase orquestral,
elaborou arranjos do repertório gagaku, tais como “Nichiren”, da segunda fase, e “Ettenraku
[Supremo deleite]”, da terceira fase, combinando instrumentos japoneses e ocidentais. Ainda
nesta última fase, consta o “Concerto para koto e orquestra”.
Michio Miyagi, como líder do movimento ‘Música Japonesa Nova’, Shin Nihon
Ongaku, é considerado o pai da música moderna e benfeitor da música tradicional japonesa,
em termos de conseguir modernizar “sem perder a essência verdadeira do espírito japonês”,
segundo vários entrevistados da pesquisa de campo. Não obstante ele tenha logrado revigorar
os rumos da sōkyoku, sua atitude é criticada principalmente por estudiosos ocidentais. Adriaansz (1973, 21) avalia: “Embora, historicamente, a importância de Miyagi seja inegável, como
compositor ele não era mais do que medíocre”. Justificando a perda das qualidades microtonais do koto em conjuntos maiores, o estudioso complementa a sua assertiva: “O experimento
orquestral de Miyagi, portanto, deve ser considerado um equívoco, mais do que um avanço”.
Considerando o processo de ocidentalização da época, a postura de Adriaansz estaria descontextualizada. Acredito que a atitude do movimento da música moderna coaduna-
40
se com o conceito de “domesticação”, de Tobin (Ortiz 2000, 140), uma capacidade de reorientar as influências vindas de fora, ou produtos de fora sendo domesticados pela cultura nativa.
Ortiz prossegue, apontando o conceito de domesticação como uma das formas de resolução da
antinomia Japão/Ocidente:
[...] a idéia de centralidade da cultura japonesa permanece ilesa, metamorfoseando os produtos vindos de fora, miscigenando-os à
sua tradição. A identidade nipônica, longe de se esvanecer, se afirmaria, reforçando desta maneira os laços sociais preexistentes.
2.4.3 compositores do pós-guerra
Utashito Nakashima, 1896-1979, é o fundador de uma ramificação da corrente Ikuta, que tem habilitado alguns integrantes do Grupo Seiha Brasil de Koto. Segundo informações do programa do concerto de centenário do fundador, a Associação surgiu na cidade de
Nagano, em 1913, e foi legalizada como Fundação pelo Ministério da Educação e Cultura, em
1956.
Influenciado, talvez, pelo projeto orquestral de Michio Miyagi, a Fundação tem se
empenhado em aumentar o número de associados. Conforme consta no programa de 1996:
A Associação [...] possui no Japão, incluindo os Estados Unidos, onze filiais com onze mil associados registrados. Realiza anualmente cinco a seis exames para a categoria de pró-mestre com o objetivo de ampliar o quadro do pessoal da liderança. Foi criada também a
banda musical da Seiha, sob a orientação da grã-mestre Yasuko Nakashima. Desde cedo, ela se esforçou estudando a formação de uma orquestra de grande porte. Assim é que, hoje, a Fundação já possui bandas musicais em várias localidades do território japonês, além da de
Tōkyō.
O grupo Seiha brasileiro tem divulgado os seguintes compositores: Seiho Nomura, Genchi Hisamoto, Shinichi Yuize, Akira Morioka, Kimio Eto, Tado Sawai, Seikin Tomiyama, Yasuko Nakashima, Soyo Nakamura e do próprio Utashito Nakashima (fig. 6).
Nos anos 50, o governo começou a voltar a atenção para a música tradicional, incluindo uma seleção delas na apreciação musical da escola regular e criou o Tesouro Humano
41
Nacional. Porém a música ouvida no rádio e nas áreas comerciais era principalmente européia
ou assinada por compositores japoneses, em estilo ocidental, assinala Kikkawa (1983, 552).
Alguns compositores de formação européia experimentam fusões com culturas
mais próximas como a Índia, no caso de Kinichi Nakanoshima34, membro da Sociedade de
Pesquisa Musical Asiática. Outros utilizam os instrumentos tradicionais, como Makino Yutaka, em “Ryūkyū ni yoru kumikyoku [Potpourri de melodias de Ryūkyū]”, e Minoru Miki.
Kikkawa prossegue:
Esses compositores têm tentado, comumente, integrar tais elementos tradicionais, como ritmo livre e a produção de ruído intencional, em um estilo com novos sentimentos, mais do que simplesmente imitar a música européia e negligenciar a estética da música tradicional japonesa.xvi
Em 1964, formou-se o Ensemble Niponnia35, cuja proposta é interpretar a música
tradicional, bem como a música contemporânea escrita para instrumentos tradicionais. Entre
os seus integrantes, encontra-se Keiko Nosaka, responsável pela criação do koto de 20 cordas.
Similar ao koto de 80 cordas, inventado por Miyagi, o instrumento não atraiu a atenção de intérpretes e compositores, talvez pelo seu propósito de instrumento solista e a falta de interesse
pela cultura de massa, conforme observa Wade (1994, 233):
A música para koto – assim como outros elementos da cultura
tradicional japonesa – tem sido adotada através dos tempos por grupos
de músicos [...] que considero um fenômeno análogo à “cultura local”.
Há duas correntes principais de koto – Ikuta e Yamada, mas estas abarcam um número de subgrupos, cada um dos quais é altamente organizado e tem um distinto senso de identificação de grupo em termos
musicais e sociais. Por outro lado, a esfera de atuação do koto de 20
cordas não se reserva, por associação, a alguma “cultura local”; ela atende mais a alguém interessado na modernização da tradição musical
japonesa, i. e., em nível de cultura de massa.xvii
Embora tenha passado mais de um século do processo de modernização na cultura
japonesa, parece que há muita resistência quanto à música para koto, pois Wade (1993, 233)
34
35
Autor de “Akebono”, “Sekiheki no Fu” e “Higurashi”.
Grupo que interpretou “Yūgen” na gravação do disco de H. Koellreutter (1985), mencionada na p. 3.
42
aponta o koto de vinte cordas como a única invenção da música instrumental, nos últimos anos:
Mais exemplos recentes de modernização nas esferas culturais
da vida japonesa são a adoção dos dispositivos tecnológicos sofisticados para palco, no teatro kabuki, a entrada de pianos elétricos Yamaha
na corrente principal da vida musical, o surgimento de patrocínios nos
bares karaokê e a criação do koto de vinte cordas.xviii
Pelo pouco que tenho observado o fenômeno da ocidentalização ou modernização
da música japonesa, os compositores formados na orientação européia tendem a negligenciar
os aspectos tradicionais. E alguns compositores de formação tradicional pertencente à “escola
nova” aparentam falta de amadurecimento no background ocidental, economizando os recursos harmônicos (v. tr. 7)36.
2.5 Música para kutū em Okinawa
O repertório predominante, apresentado pelas sōkyoku de Ryūkyū no Brasil, tem
sido o da coletânea kunkunshi, onde o instrumento principal é o sanshin – o kutū toma parte
do conjunto da música da corte desde o início do século XIX (v. Hughes 1984). Contudo, a
abordagem será direcionada para o repertório específico do kutū, que consiste de apenas sete
peças puramente instrumentais, classificadas por Adriaansz (1973 e 1984) como “protótipos de
danmono” do séc. XVII.
Embora o kutū de Okinawa seja o mesmo koto do resto do Japão, e no pequeno
repertório duas peças coincidam com os danmono das “escolas seculares” zokusō, reservo a
abordagem da sōkyoku de Ryūkyū à parte da construção histórica geral por dois motivos.
Primeiramente, enquanto se estabeleciam as sōkyoku Tsukushi e as seculares vigentes, Ryūkyū atravessava um período monárquico semi-independente e de dupla subordinação. Repassando a história, Ryūkyū foi um reino totalmente independente até o séc. XIV, quando passou
36
Considerando que o processo de ocidentalização tem pouco mais de um século, talvez necessite de mais um século de amadurecimento ou, quem sabe, compositores estrangeiros com formação tradicional possam assumir o sincretismo musical com menor resistência.
43
a ser subordinado economicamente à China. Invadido pelo Japão, no séc. XVI, viu-se obrigado a manter a relação anterior, ficando duplamente subordinado. Apenas na era Meiji passa a
ser incorporado como Okinawa-ken na “nação” japonesa. Entre 1945-75 foi anexado como
território norte-americano. Deste modo, antes de ser uma identificação meramente geográfica,
Ryūkyū guarda essa carga histórica. O fato das escolas de koto adotarem o nome Ryūkyū, ao
invés de Okinawa, pode indicar o apego ao seu passado de soberania cultural, proclamando
sua independência através da música. Em segundo lugar, devido à falta de registros históricos37, a conexão do repertório das sōkyoku de caráter “nacional” com o “local” permanece ainda imprecisa, de acordo com as fontes consultadas. David Hughes (1984, 259), por exemplo,
afirma que:
As afinações e certos elementos musicais parecem ligar a tradição do kutū okinawano com o Tsukushi-goto da música para koto
japonesa, mas a história do instrumento e seu repertório permanecem
obscuros.xix
O trabalho exemplar de William Malm (1978, 169), já observava que:
Há algumas opiniões de que, pelo menos a primeira composição “Rokudan”, pode ter sido de origem chinesa remota. Esta teoria
está embasada parcialmente no fato de que a mesma peça existe na
música para koto das ilhas Ryūkyū – também chamada Yatsuhashi –
mas nenhuma conexão histórica foi estabelecida ainda entre essa escola e o grupo japonês com o mesmo nome – embora seja na afinação
chinesa. Há também “Ichidan” e “Nidan”. Ichi significa um, ni significa dois e roku, seis. Portanto, pode ter havido uma série de peças dan
antes da criação do “Rokudan” sobrevivente.xx
Hisao Tanabe (1959, 171) tenta resolver a questão da conexão apontando para as
peças coincidentes “Rokudan” e “Shichidan” como derivações do repertório zokkyoku, canções populares das regiões de Kyūshū. Willem Adriaansz (1973, 5), especialista em danmono,
esclarece que:
37
Além da fragilidade de Okinawa ao ser sujeita freqüentemente aos tufões e tempestades, parte da sua história, que
era mantida no acervo do Castelo de Shuri, foi totalmente devastada durante a II Guerra.
44
Zokkyoku foi exportada para as ilhas Ryūkyū, onde parte dela
sobrevive, no que hoje é chamada algumas vezes de Yatsuhashi-ryū
okinawana. A ocorrência em Okinawa de um grupo de composições
denominadas Yatsuhashi-ryū é intrigante, pois essa música não parece
ter nenhuma conexão direta com o compositor japonês Yatsuhashi
kengyō. A fonte impressa mais antiga de sōkyoku, o Shichiku Shoshinshū (1664), contém diversos exemplos de zokkyoku, entre as
quais duas composições para koto solo. Uma dessas duas composições
instrumentais, Rinzetsu, mostra uma semelhança impressionante com
Rinzetsu, da Tsukushi-goto, e Takiotoshi Sugagaki, também chamada
Ichidan, do repertório para koto okinawano, enquanto o outro, Sugagaki, é mostrado como um protótipo dos repertórios danmono japonês
e okinawano.xxi
Adriaansz esclarece, pois, a impossibilidade do repertório kutū ser advindo da
Yatsuhashi-ryū. Acredito que atribuir o nome do fundador da escola secular ao conjunto de
sete peças instrumentais, pode ter sido um artifício para demonstrar sujeição ao domínio do
clã de Satsuma, impiedoso invasor e opressor das ilhas Ryūkyū no séc. XVII.
De qualquer forma, é interessante ressaltar a maneira como os estudiosos sinalizam o repertório kutū, que pode ser anterior ao de Yatsuhashi. Conforme Malm e Hughes apontam acima, a primeira pista é a afinação do kutū no modo ōshiki-cho. O exemplo 1 da figura 5 está transcrito uma quinta acima, para facilitar a co-relação entre as outras afinações.
Desta maneira, o kutū pode apresentar uma ligeira diferença timbrística, já que as cordas são
mais afrouxadas.
Outra sutil diferença de timbre é proporcionada pelo formato dos dedais. O plectro de Okinawa é mais largo e menos pontiagudo que o da Yamada-ryū. Hughes (1984, 489)
fornece uma idéia melhor do formato: “um compromisso entre as escolas Ikuta e Yamada” (v.
tab. 4). Mas se considerarmos a conexão de Adriaansz, o formato da unha situar-se-ia, cronologicamente, como uma ampliação do tsume utilizado no gakusō e tsukushisō.
O modo de tocar kutū preserva qualidades mais tradicionais, pois não notei técnicas modernas como acordes e pizzicattos. O recurso mais ocidentalizado que observei foi o
45
emprego freqüente do recurso de vibrato, subdividindo em ternário todas as notas longas, pois
as cordas são mais afrouxadas.
Esmiuçando o repertório instrumental do kutū, temos pela seqüência do número
de secções: “Ichidan” ou “Tachi utūshi sigagachi [Sob a cachoeira]” (tr. 1) – sigagachi significando aproximadamente “tombamento”; “Nidan” ou “Jii sigagachi [Terra Natal]”; “Sandan” ou “Wedū sigagachi [Edo]”; “Yondan” ou “Hyōshi sigagachi [Acalanto]”; “Godan” ou
“San’ya sigagachi [Salvador]”; “Rokudan sigagachi” (tr. 2); e “Shichidan sigagachi”. Adriaansz (1973, 64) subdivide o repertório em duas partes e atesta a antiguidade das cinco peças:
Os primeiros cinco, que têm outros títulos também e não são
danmono, apresentam semelhanças fortes, formalmente, com as composições simples para shamisen; por outro lado, Rokudan Sugagaki e
Shichidan Sugagaki são estreitamente relacionadas com o Rokudan e
Shichidan japoneses. A complexidade dessas duas composições colocam-nas à parte do resto do repertório okinawano. [...]
Dois fatores tendem a consolidar sua antiguidade: a afinação
usada é uma afinação pentatônica anhemitônica, utilizada também na
Tsukushi-goto e zokkyoku; sua forma é algo menos polida e menos
estrita – por exemplo, o número de batidas por dan corresponde, só
aproximadamente, àquelas das versões japonesas. xxii
Em uma publicação posterior, Adriaansz (1984, 469) afirma que, embora sejam
peças em uma secção, as cinco peças apresentam material e estrutura musical do danmono.
Na pesquisa anterior (v. Satomi 1998, 121) registrei “Tachi utūshi” (tr. 1) como a
única peça instrumental. Na transcrição, anotei o conjunto de fue (flauta), kutū e taiko extraída da gravação de uma aula coletiva do professor Urasaki, onde as crianças acompanhavam,
com o membranofone taiko, o playback do trio instrumental.
Através das investigações consultadas, o que considero mais relevante é que em
Naichi as cinco peças não sobreviveram. Conseqüentemente, a permanência dessas formas arcaicas em Okinawa seria uma maneira de sublinhar mais um traço idiossincrático, fortalecendo o ícone musical da resistência cultural.
46
Notas de tradução
iii
un dragon couché sur une plage et conversant avec des vagues
In early times the instrument was considered an embodiment of the sacred dragon (spirit of the waters and
storm) and phoenix (firebird), mystical sources of vitality and fertility, which probably figured in religious ceremony.
v
[...] it is supposed to have been invented by the philosopher and Emperor Fu Hsi, the ‘Great Illuminator’ (c.
2800 B.C.E.), who is said to have observed a phoenix pair alight in the branches of a tung tree and to have made
the first ku-ch’in from this wood.
vi
Two sisters quarreled for possession of a se made of bamboo. In a solution […] they split the instrument in
two, thus obtaining two cheng, one with twelve and the other with thirteen strings. The presence of the twelvestringed instrument in Korea (the kayakeum) is explained by adding that one of the two sisters emigrated to Korea, while the other remained in China.
vii
Even its form is symbolic. The curved upper board represents Heaven; the flat lower board is Earth. The relationships of the seven strings illustrate all the proper human relationships between members of society. The thirteen studs (hui) represent the months of the lunar year, and other parts are named after the dragon and phoenix,
representing yang and yin qualities.
viii
In the middle of the back is a sound hole [...] traditionally called the dragon pond; five inches from the narrow
end to the player’s left is a sound hole […] traditionally called the fênix pool.
ix
Woman from both the samurai and merchant classes, for example, enjoyed performing songs accompanied by
the 13-string koto, a style which had been first established by blind musicians.
x
In a later composition Akikaze no Kyoku, Mitsuzaki revived the simplicity of the old, pure sōkyoku, the clearest
example of which had been kumiuta. Akikaze combines the danmono form in the long introduction for solo koto
with that of kumiuta for the following six songs. The introduction, consisting of six dan, is often played simultaneously with Rokudan.
xi
Yamada went beyond shamisen music in his search for inspiration and made use of yōkyoku, the music for the
Nō theatre, and heikyoku, epic poetry with biwa accompaniment, both genres more narrative than purely musical.
xii
The publication of notated music and the availability of recordings of diverse types of music had a profound
effect, for Western as well as traditional music could be transmitted to a much wider audience.
xiii
Although the koto proved to be a favorite instrument for experimentation in combining traditional Japanese
and Western music, changes were introduced very gradually.
iv
xiv
As the violin and viola are complemented by the cello and bass, so the 13-stringed koto would be complemented by the “bass-koto.”
xv
In the first he composed chamber music for Japanese instruments. To the second belong orchestral works for
Japanese instruments, while in the third he combined Japanese and Western instruments.
xvi
These composers have commonly attempted to integrate such traditional elements as free rhythm and intentional noise production into a style with new feelings, rather than simply imitating European music and neglecting aesthetics of traditional Japanese Music.
xvii
Koto music like other elements of traditional Japanese culture, has been fostered through time by groups of
musicians […], which I consider analogous to ‘local culture’. There are two major koto ryū – Ikuta and Yamada, but these encompass a number of sub-groups, each of which is highly organized and has a distinct sense of
group identification in musical and social terms. The sphere of the 20-stringed koto, on the other hand, is not intended to be one constrained by association with any such ‘local culture’; rather, it is intended for anyone interested in the modernization of Japanese musical tradition, i. e., for culture at the mass level.
xviii
More recent examples of modernization in the cultural spheres of Japanese life are the adoption of sophisticated technological stage devices for the kabuki theater, the entry of Yamaha electric pianos into mainstream
musical life, the surge of patrons to karaoke bars, and the creation of the 20-stringed koto.
xix
The tunings and certain musical elements seem to link Okinawan kutū tradition with the Tsukushi-goto of
Japanese koto music, but the history of the instrument and its repertoire remain unclear.
xx
There are some opinions that at least the first composition ‘Rokudan’ may have been of ancient Chinese origin. This theory is based partially on the fact that the same piece exists in the koto music of the Ryūkyū Islands –
also called Yatsuhashi, but as yet, no historical connection has been established between this school and the
Japanese group by the same name – but in a Chinese tuning. There are also ‘Ichidan’ and ‘Nidan.’ Ichi means
47
one, ni means two, and roku, six. Therefore, there may have been a series of dan pieces before the creation of
the surviving ‘Rokudan.’
xxi
Zokkyoku was exported to the Ryūkyū islands where part of it survives in what today sometimes is called the
Okinawan Yatsuhashi-ryū. The occurrence on Okinawa of a body of compositions called Yatsuhashi-ryū is intriguing, for this music does not seem to have any direct connection with the Japanese composer Yatsuhashi
Kengyō. The oldest printed source of sōkyoku, the Shichiku Shoshinshū (1664), contains several examples of
zokkyoku, among which two compositions for koto solo. One of these two instrumental compositions, Rinzetsu,
shows a striking similarity to both Rinzetsu of Tsukushi-goto and Takiotoshi Sugagaki also called Ichidan of the
Okinawan koto repertoire, while the other, Sugagaki, has been shown to be prototype of the Japanese and Okinawan danmono repertoires.
xxii
The first five, which have other titles as well and are not danmono at all, formally strongly resemble simple
shamisem compositions; Rokudan Sugagaki and Shichidan Sugagaki, on the other hand, are closely related to the
Japanese Rokudan and Shichidan. The complexity of these two compositions sets them apart from the rest of the
Okinawan repertoire. […]
Two factors tend to substantiate their antiquity: the tuning used is an anhemitonic pentatonic tuning, used also in
Tsukushi-goto and zokkyoku; their form is somewhat less polished and less strict – for example, the number of
beats per dan correspond only roughly to those of the Japanese versions.
48
tipo
estrutura
Tab. 3. Quadro de instrumentos tradicionais mencionados
caixa de ressonância
n° de cordas afinadores agente sonoro
tampo
fundo
7
C
prancha
O
-
25
unha
ch'in
palheta
sê
12
R
D
simples
cítaras semi-tubular abaulado fechado chato com cavidades
O
longa
F
instrumento
kayakeum
13
cava
13
letes
17
móveis
três plectros
chêng kutū e koto
tansō
dedais
jūshichigen
20
O
nijūgen
caixa com
N
E
braço
pontas
S compostos alaúdes
longo
arredondadas
estrutura
pera
abaulado
flauta
com palhetas clarinete
tubos
compostos
cravelhas
semi-esférico
tubo simples
AEROFONES
3
lua
tipo
sem palhetas
chato
órgão de
boca
plectro
sangen e shamisen
dedal
sanshin
arco
kokyū
kuchō
4
plectro
embocadura
ponta inicial
ponta final digitadores
livre sem bisel
aberta
arqueada
bocal sem bisel
fechada
retilínea
palheta
palheta
bocal
reservatório de ar
retilínea
superior
biwa
posição
instrumento
4+1
vertical
shakuhachi
5+1
transversal
fuyē
4
vertical
hichiriki
1 por tubo
shō
48
Tab. 4. Âmbito38 da sōkyoku (música para koto)
gêneros
escolas
região
vigência
gakusō
desde sécVIII
fundador
tsukushigoto
Kyūshu
séc. XVI
Kenjun Morota
(1547-1636)
zokusō
shinsō
Ikuta-ryū Yamada-ryū Miyagi-kai
Seiha
Yatsuhashi-ryū
Kyōto
Kansai
Kantō
desde 1695 desde séc XIX desde 1925 desde 1956
séc. XVII
Kengyō Yatsuhashi Kengyō Ikuta Kengyō
Michio
Utashito
(1614-85)
(1656-1715)
Yamada
Miyagi
Nakashima
(1757-1817) (1894-1956) (1896-1979)
plectros
c
o
n
t
r
afinação
canções
i
b
u
i
ç
õ
e
s
sobrevivências
ou peças
conhecidas
38
música
instrumental
principais
compositores
hirajōshi
3 kumiuta
1°s danmono
“Rinzetsu” e
“Kudan”
nakazora
jiuta
tegotomono
sankyoku
kaete-shiki
música de câmera e
fusão com instrumentos
europeus
“Rokudan”
“Midare”
Chidori
Cha Ondo
Godan
Haru no Umi Hanakage
Yotsumono
Sakura
Sandan
Miyako
Aki
Mizuumi
Yatsuhashi
Kitajima
Kikuoka
Minezaki
Yoshizawa
rituais da
Tenrikyo
“Etenraku”
“Nichiren”
“Rokudan” e “Ichidan” de
Ryūkyū
instrumentos
kumoijōshi
jōrurimono
gakujōshi, nogichōshi
ōshiki-cho
kumiuta (10)
saku-uta
Yamada
Yamase
Miyagi
Nomura
Hisamoto
Morioka
jûshichigen
tanso
Utilizações do koto com base no repertório transterritorializado para a realidade brasileira.
49
50
3.
NOTAÇÃO MUSICAL E RECURSOS SONOROS DO KOTO
3.1. Sistema de tablatura e mnemônicos
Segundo a observação de campo, o ensino de koto adota três tipos de tablaturas
modernas, editadas pelas escolas Miyagi, Seiha – subescolas da corrente Ikuta – e Yamada,
ordem de predominância e não de exclusividade das escolas no Brasil.
Com exceção da tablatura da subescola Seiha, as demais edições para koto conservam a notação mnemônica específica do instrumento. Na figura 7a temos a transcrição das
dezesseis primeiras pulsações da peça “Rokudan no Shirabe”, onde abaixo do discurso musical consta a notação mnemônica, ao invés do texto literário, das escolas Ikuta e Yamada, apresentando poucas variantes entre as duas. No exemplo b, temos a edição original da escola
Yamada, do mesmo trecho a. Trata-se da única notação que se lê da esquerda para direita,
pois está no sentido horizontal. Na edição Miyagi, exemplo c, anotam-se os mnemônicos na
última coluna à esquerda e, na Yamada-ryû, acima dos ideogramas.
O sistema de notação em tablatura funciona bem na cultura japonesa, reforçada
pela posse de vários tipos de escrita, que envolve, além do ideograma kanji, dois tipos de alfabeto silábico. O hiragana – utilizado em preposições, artigos, conjunções e sufixos nas flexões dos verbos – é empregado na tablatura para indicar o texto literário, quando for o caso de
canções. E o katakana – usado para designar palavras estrangeiras e onomatopéias – é adequadamente aproveitado para os ornamentos e recursos da mão esquerda, geralmente influências estrangeiras, e também para os mnemônicos que metaforizam o som.
O povo japonês é naturalmente propenso às onomatopéias. Quando se está com
fome, a ‘barriga ronca’ fazendo peko-peko. Quando se está feliz o ‘coração salta’ fazendo uki
50
51
Fig. 7. Tablaturas das escolas Yamada e Ikuta
a) transcrição
b) edição da corrente Yamada
c)
edição Miyagi (corrente Ikuta): leitura vertical, da esquerda para a direita
52
uki. A estrela quando brilha faz pika-pika e o sol hira-hira. Nestes casos, as onomatopéias
imitam um som pulsante, mas há também sons imaginários para designar texturas: tsurutsuru, para superfície lisa, e gasa-gasa, para a áspera.
No caso da música, o recurso mnemotécnico é uma sobrevivência do ensino oral e
David Hughes (1999) advoga sua eficiência como estratégia de ensino:
No Japão, Coréia e China, o ensino da música instrumental
mantém os sistemas tradicionais através dos mnemônicos orais específicos para cada instrumento. Assim, no caso do aprendizado da flauta
Nō, a escolha da vogal numa sílaba mnemônica está relacionada com
os fatores intrínsecos de altura, duração e intensidade enquanto as
consoantes refletem aspectos de ataque ou diminuição. Embora possam aparentar certo grau de inconsistência, pode-se argumentar que,
em geral, esses sistemas funcionam bem e são, realmente, ferramentas
de ensino bem melhores do que muitos outros tipos de notação escrita.xxiii
Dessa maneira, todos os elementos constitutivos da música – melodia, ritmo, intensidade e timbre – são representáveis pelos mnemônicos. Às vezes, alguns elementos são
mais evidenciáveis que outros. Na figura 8, por exemplo, temos dois padrões característicos
da música para koto. O primeiro sha-sha-ten, sha-sha-chin e sha sha-tsun releva o intervalo
harmônico sha. Entre as demais vogais i é mais agudo que e e u. O segundo tsuru tsun destaca
a forma de tocar a mesma altura ou corda, tsu, polegar para baixo, e ru, polegar para cima, resultando em diferença de ataque e timbre. Seguindo o raciocínio de Hughes, o ataque das cordas no koto, na unidade de tempo, seria representado pela família das consoantes t, que inclui
ch, ts, (v. tab. 1) e na subdivisão pela consoante r.
Os mnemônicos encerram em si a idéia de todos os parâmetros do som conforme
veremos a seguir. Desse modo, o presente capítulo está dividido conforme esses parâmetros,
como uma espécie de ensaio de tutorial, pretendendo apresentar o sistema de notação musical
e fornecer o espectro das possibilidades sonoras do instrumento aos que conhecem a notação
ocidental, mas não têm familiaridade com o assunto.
53
3.2. Duração: modernidade e tradição
ƒ
edições Yamada e Seiha
Embora o koto apresente características predominantemente melódicas, começarei
com o parâmetro duração. Basicamente há dois tipos de notação de duração: o sistema de grades, da corrente Ikuta tradicional, e o sistema modernizado, das escolas Yamada e Seiha.
Começarei por estas últimas por conter alguns aspectos familiares, ou mais ocidentalizados.
Na edição da Yamada-ryû, após o título, autor e indicação da afinação, a primeira
informação antes do início da tablatura é a do andamento da peça ou secção, como nos moldes
ocidentais. Adota-se também a quantificação de unidade de tempo, geralmente, equivalente à
semínima por minuto. Em uma edição anterior consta, ainda, a duração total da peça em minutos, pois o andamento varia no decorrer da peça. Um acelerando constante – através de indicações de unidades cada vez mais rápidas, nos finais das secções – até as últimas 16 pulsações que ralentam, gradativamente, para retomar o tempo inicial lento, na conclusão da peça.
Na modernização do sistema de notação das escolas Yamada e Ikuta, adotaram-se
os mesmos signos europeus de barras de compasso, final de secção, repetições e indicações de
final da obra. Mas a ocidentalização menos convincente é a da fórmula de compasso (fig. 7b),
pois é uma concepção inexistente na música anterior à era Meiji. No ocidente, o quarto tempo
do compasso quaternário é, normalmente, ársico. Na transcrição da fig. 7, o quarto tempo do
primeiro compasso é um ponto de chegada, valorizado com o reforço da primeira corda, soando mais tético do que ársico.
Para os valores – ideogramas, das cordas, para os valores positivos e círculos, para
as pausas – os signos sem nenhum traço ou ponto (v. terceira à quinta pulsação da fig. 7b), representam a semínima; os sublinhados com um traço representam a colcheia; com dois traços,
a semicolcheia; e com ponto, a nota pontuada. Para os valores, positivos e negativos, maiores
que a semínima adiciona-se um travessão ao lado direito (v. segundo tempo do primeiro com-
54
passo) como sinal de prolongamento. Tornou-se algo similar ao “método modal cifrado” (v.
Gainza 1964, 192-3), criado por Jean J. Rousseau. A subescola Seiha conserva o sentido vertical do sistema de notação tradicional da escola Ikuta, mas incorpora, da escola Yamada, todos
os símbolos de subdivisão e prolongamento rítmico, à direita da coluna dos ideogramas.
ƒ
sistema tradicional de grade da Ikuta-ryū
As edições do Miyagi-kai utilizam o sistema de grade tradicional da escola Ikuta
(fig. 7b). Sua leitura musical procede do mesmo modo que a literária, ou seja, no sentido vertical descendente e da direita para a esquerda. Cada unidade ou box da grade representa a unidade de tempo. Os valores positivos e as pausas são dispostos nesses boxes em um arranjo lógico, que dispensa signos abstratos adicionais. Um traço horizontal incompleto divide o box,
tornando clara a noção da subdivisão. Portanto, cada box pode conter: um signo de altura,
que equivaleria à semínima; dois signos, equivalentes às colcheias; e quatro signos, equivalendo às semicolcheias. Para os valores maiores como a mínima, usa-se o signo em um box,
seguido de um círculo com ponto no próximo box, a semibreve seguida por três círculos e assim por diante. No valor pontuado, a segunda nota que se segue é menor e um pouco deslocada para a direita (v. segunda coluna da fig. 7b). Neste caso, a precisão fica ao encargo do
recurso mnemotécnico kōrori, padrão essencialmente rítmico (fig. 7, cp 2 e 4).
Nos exemplos da figura 8, temos em comum dois valores curtos seguidos de um
longo. Se isolarmos as semínimas do ex. 1 e as colcheias do ex. 2, temos a presença do fonema n – assim como nos três primeiros mnemônicos da figura 7 – que, naturalmente, prolonga
o som da sílaba anterior. Isso quer dizer que o valor longo é representado pelo acréscimo do
fonema nasal.
O círculo vazio representa a unidade de pausa e o triângulo unidades menores.
Quando o círculo ou triângulo contiver outro círculo menor, cheio, no centro, indica que a no-
55
ta anterior deve ser prolongada. A pausa ou prolongamento de um tempo é representado pelo
mnemônico i-ya ou so-re (fig. 7, cp 2).
3.3. Altura: representações e possibilidades
O sistema de notação para koto foi introduzido no Japão entre os séculos XVII e
XVIII (v. Bent 1983, 336), adotando o sistema de números combinado com o de letras. Para as
cordas utilizam-se números de 1 até 10 – ichi, ni, san, shi, go, roku, shichi, hachi, kyū e jyū –
até a décima corda, e letras – to, i, kin – para as demais. Na corrente Yamada, as três primeiras cordas também são grafadas com ideogramas referentes às letras, mas com a mesma pronúncia dos números correspondentes. Após a décima corda, o koto de dezessete cordas utiliza
algarismos arábicos de 1 a 7, imprimindo a marca de sua modernização.
Fig. 9. Representação das cordas
13 cordas
17
cordas
Yamada Ikuta
===========================================================
===========================================================
===========================================================
===========================================================
===========================================================
===========================================================
===========================================================
===========================================================
===========================================================
===========================================================
===========================================================
===========================================================
===========================================================
======================================================================
======================================================================
======================================================================
======================================================================
1
2
3
4
5
6
7
Os mnemônicos para as regiões de altura são as vogais: o, para a grave; e, da média para a grave; u, da média para a aguda; e i, para a aguda.
Entre a segunda e décima terceira corda a extensão cobre duas oitavas e, geralmente, uma segunda menor – por sua vez, pode ser ampliada ao máximo até um tom acima –
56
com o auxílio da pressão da mão esquerda. A primeira corda é afinada uma quarta abaixo ou
quinta acima da segunda corda. Altura e extensão variam de acordo com a afinação adotada.
3.3.1.
ƒ
com o auxílio da mão esquerda
corda pressionada
O recurso mais empregado com o auxílio da mão esquerda é o de cordas pressionadas. Apesar de afetar ligeiramente o timbre, o recurso possibilita uma ampliação da gama
pentatônica, das cordas soltas, pré-estabelecida pela afinação dos cavaletes ji. Conforme a
pressão, exercida pelo braço esquerdo, sobre a corda e o ponto de proximidade dos dedos ao
ji, é possível elevar a altura da corda em até um tom e meio de diferença.
A escola Ikuta emprega novamente o silabário katakana, desta vez, como abreviatura do nome do recurso. A letra é posicionada ao lado esquerdo do kanji e no mesmo tamanho. A Escola Yamada emprega o triângulo, uma estilização do acento da partitura européia,
empregando-o(s) acima do kanji, e o grupo Seiha o sustenido # ocidental. No primeiro grupo,
o executante deve empurrar primeiro a corda para depois tocá-la.
ƒ
Oshide ‘pressionar’ – grafado com o katakana
‘o’ na escola Ikuta, com dois triângu-
los ou dois triângulos ^^ na escola Yamada e com dois traços verticais atravessados por
um na diagonal
na Seiha. Este recurso se chama ‘apertar dois semitons’ nijūoshi. Para
se elevar um tom, a corda é pressionada para baixo, quase se encostando à madeira, em
um ponto distante, equivalente a um palmo do cavalete (v. fig 10.1). Em uma análise de
“Rokudan” (v. cap. 4), de Yatsuhashi, notei que o recurso de um tom é empregado, sobretudo, na corda 9, nota fá, para se obter o sol do movimento ascendente da escala in.
ƒ
Ichijū oshi ‘pressionar um semitom’ – representado pela sílaba
wo, na Ikuta-ryū, por
triângulo ou ^, na Yamada-ryū e por um traço vertical atravessado por um diagonal, na
subescola Seiha. Para se elevar meio tom emprega-se, logicamente, metade da pressão exigida para se elevar um tom.
57
ƒ
Sanjû oshi ‘pressionar três semitons’ – grafa-se com três triângulos ou ^^^ na Escola Yamada e com um # na Escola Seiha. Trata-se de um recurso menos freqüente e poucos executantes conseguem atingir o intervalo com precisão, pois é preciso empregar bastante
força para pressionar a corda num ponto mais próximo ao cavalete ji (fig 10.3).
Fig. 10. Técnicas da mão esquerda
ƒ
portamentos e outros ornamentos melódicos
Como decorrência do recurso de cordas pressionadas, temos um segundo grupo de
ornamentos melódicos. Portamentos ascendentes e descendentes são característicos na música
para koto, onde se tem a forte marca dos microtons, pressionando ou soltando a corda, com a
58
mão esquerda, após tocá-la com a mão direita. Os mesmos símbolos, para elevar a altura do
grupo anterior, são aproveitados com uma pequena nuance. Na Escola Ikuta, o katakana é escrito menor, abaixo e deslocado ligeiramente para a esquerda do ideograma da corda. Na Escola Yamada, adiciona-se um traço à esquerda do triângulo ou acento.
ƒ
Ato-oshi ‘pressionar depois’
– portamento ascendente de um tom, trata-se de um re-
curso bastante freqüente.
ƒ
Hiki-iro ‘empurrar para o grave’ – portamento descendente de meio tom, recurso usado
comedidamente, abreviado com a letra katakana hi
em todas as escolas. Segura-se a
corda com os dedos polegar e indicador da mão esquerda, do lado esquerdo próximo ao
cavalete, e afrouxa a corda para a direita, depois de tocá-la (v. fig 10.2).
ƒ
Hanasu ‘soltar’ – portamento descendente de um tom grafado com a letra ha
na Ikuta-
ryû. Trata-se de um ornamento dependente do oshide, pois é preciso ‘soltar’ a corda após
tocá-la. É menos sutil e mais preciso do que o ornamento anterior.
ƒ
Tsuki-iro
ou chitsu– ato-oshi seguido de hanasu, i. e., toca, pressiona e solta, resultan-
do numa espécie de mordente superior.
ƒ
Kasaneoshi – acrescenta um ato-oshi ao recurso anterior tsuki-iro. Pressiona e solta duas
vezes, rapidamente, após tocar a corda, resultando num ornamento próximo ao vibrato.
Recurso muito utilizado na sōkyoku de Ryūkyū.
ƒ
Yuri-iro
ou yōgin – mordente duplo inferior que se obtém empurrando e soltando le-
vemente a corda do lado esquerdo do cavalete, com os dedos indicador, médio e anular da
mão esquerda.
3.3.2.
técnicas da mão direita
Embora algumas das técnicas básicas de execução da mão direita já foram antecipadas no tópico 2.2, em “formas de execução”, faltam esclarecimentos sobre o dedilhado. Na
59
escola Miyagi, o dedilhado é anotado em algarismos arábicos menores, como no piano: dedo ¹
para o polegar, ² para o indicador e ³ para o médio. Como o dedo usual é o ¹, não há necessidade de ser anotado. As Escolas Seiha e Yamada parecem adotar o dedilhado da mão esquerda dos instrumentos de cordas como, por exemplo, um traço ´, acima do ideograma representa
o dedo indicador e, dois traços ¨, o dedo médio.
Além da possibilidade homofônica, há, basicamente, mais dois subgrupos de recursos ou efeitos ornamentais com a mão direita: os glissandos e intervalos harmônicos.
Às vezes consideram o koto como harpa, pois é um instrumento propenso a glissandos, sendo executados, geralmente, com a mão direita.
ƒ
Sārarin, uraren ou ren – proporciona um efeito de trêmulo sā
seguido de um glissan-
do descendente rarin. Grafa-se, então, com a abreviatura desse mnemônico, seguido de
uma linha semelhante à notação arpejada do ocidente. Normalmente, começa na corda
mais aguda 13, em direção ao grave. Na corrente Ikuta (v. fig. 11.1), inicia-se o trêmulo
com o plectro do dedo indicador, que prossegue o glissando até ser substituído pelo polegar, que conclui nas duas últimas cordas grafadas. Na Yamada-ryû, o trêmulo é realizado
como se fosse um trinado de segundo e terceiro dedo, só que com a palma voltada para
cima (tangendo a corda por baixo) para logo desvirá-la, prosseguindo o glissando com o
tsume do polegar.
ƒ
Kārarin, nagashizume ou ryū (v. fig. 11.2) – grafado com a letra ka
é um glissando as-
cendente, cujos pontos de partida e de chegada, evidenciados na grafia também, são mais
pronunciados.
ƒ
Hikiren ou shan ren – glissando ascendente que utiliza as mesmas intensidades do kārarin.
ƒ
Han hikiren ‘meio hikiren’ – redução do glissando ascendente hikiren, pois começa na região média do instrumento.
60
ƒ
Hikisute – variante de han hikiren que começa na corda grave e termina na região média
do koto.
Fig. 11. Técnicas da mão direita
ƒ
intervalos harmônicos
Com a mão direita, há também a possibilidade de executar intervalos harmônicos
através do mnemônico sha (v. fig. 11.3 e quarto tempo da fig. 7). Na escola Ikuta, as duas no-
61
tas são posicionadas na coluna principal, a nota mais grave ao lado esquerdo da mais aguda.
Na Yamada-ryû, a nota mais grave recebe o sinal de arpejado ocidental.
ƒ
Kakite – duas cordas vizinhas tocadas com o plectro ², do indicador, e, na repetição, com o
plectro ³, do dedo médio. As possibilidades resultantes na afinação hira, por exemplo, são
os seguintes intervalos, por ordem de preferência: quinta justa, com as cordas 1-2; segundas menores, com as cordas 3-4 e 5-6; segundas maiores, com as cordas 2-3 ou 7-8; e terças maiores, com as cordas 6-7. Uma variante melódica desse recurso é chamada warizume.
ƒ
Awasezume – awase = ajuste e zume sufixo tsume – é o recurso utilizado para tocar o intervalo harmônico de oitava com os plectros 1 e 3. Trata-se de outra influência ocidental
que pode ter afetado o resultado da afinação, quando conferida pelas oitavas.
ƒ
Oshiawase – recurso de uníssono empregado em cordas vizinhas de um tom. Se, por exemplo, na hirajōshi, pressionarmos a corda 12 (ré), um tom acima, e tocarmos, simultaneamente, a corda 13 (mi), o resultado será o intervalo uníssono em mi.
Acorde ou arpejo, fruto da ocidentalização, é o último recurso do parâmetro altu-
ra, quando o domínio da mão direita passa a ceder o território, à direita dos cavaletes móveis,
para a mão esquerda. A mão esquerda pode tocar simultaneamente de uma a três cordas e grafa-se, sem negrito, na mesma coluna da mão direita, ao lado esquerdo, uma letra ao lado da
outra na Ikuta ou, acima, na Yamada. Com a utilização das duas mãos, há ainda possibilidades
de acordes com seis notas simultâneas ou mais, se forem arpejadas.
3.4. Efeitos timbrísticos
Podemos agrupar os efeitos de timbre em dois tipos: os idiossincráticos e os ocidentalizados. Alguns efeitos, próprios da cultura, extraem o máximo proveito do uso dos dedais tsume, podendo ser categorizados em dois subgrupos: os de altura determinada e os de altura indeterminada. No primeiro subgrupo temos:
62
ƒ
Sukuizume ou ren – recurso válido só para o plectro ¹, do polegar (v. fig. 11.6), usado
para repetir a nota anterior (v. mnemônico tsuru da fig. 8). Após a nota, o katakana su
indica que deve-se repetir a nota anterior, tocando a corda para cima. Por isso adotei o
símbolo V, de arco para cima, na transcrição – ciente de que nos instrumentos de cordas
friccionadas a mudança de direção do arco não afeta o timbre, como no caso do koto.
ƒ Suzu ou tote (v. fig. 11.7) – mnemônico que define o uso rápido e alternado do dedilhado ² e ³, em cordas vizinhas. O resultado rítmico é semelhante ao mnemônico tsuru, e o
timbre mais ligado e suave faz a diferença.
E no segundo subgrupo de altura indeterminada temos:
ƒ Chirashizume, chirashi, ou shū – indicado por uma flecha em direção à esquerda. Obtém-se o efeito através de um movimento semicircular (v. fig. 11.5), raspando a corda na
direção da flecha com o dedo médio na região grave.
ƒ Waren – causa um efeito sonoro semelhante ao anterior shū, com a sutil diferença da
forma do movimento. No waren, o movimento parece mais anguloso.
ƒ Surizume – indicado com uma flecha para a esquerda e outra para a direita. Trata-se de
um shū com a palma voltada para a esquerda, seguido de um outro shū com a palma no
sentido inverso. Empregam-se os segundo e terceiro plectros, enquanto o polegar segura
os dedos anular e mínimo, entre as cordas 6 e 7.
ƒ Uchizume – segurando os dedos anular e mínimo, com o polegar, golpeia-se a corda
com o dedo médio. Efeito utilizado somente pela escola Yamada.
Quanto aos efeitos ocidentalizados anotei três efeitos principais:
ƒ Keshizume – staccatto que necessita do auxílio da mão esquerda para abafar imediatamente a nota tocada com o plectro da direita. Grafa-se com um ponto ao lado esquerdo da
nota, na corrente Ikuta, ou acima da nota, na escola Yamada.
63
ƒ Harmônico – grafado com o número arábico 8, na Ikuta-ryû, e com o mesmo signo ocidental °, na Yamada-ryû. Para se obter o harmônico de oitava, a mão esquerda toca levemente o meio da corda, considerando o lado direito do cavalete ji.
ƒ Pizzicatos – realizados principalmente pela mão esquerda, mas às vezes a mão direita
pode realizá-los com os dedos anular e mínimo, grafados com os algarismos arábicos 4 e
5.
3.5. Intensidade
Intensidade é um parâmetro contido em todos os anteriores. Progressões melódicas ou ascendentes aceleram o ritmo e a intensidade e os descendentes, o reverso, i. e., diminuem o ritmo e a intensidade. Os ornamentos em si contêm elementos fortes e fracos, sobretudo nos portamentos, glissandos e figuras padronizadas como tsuru, sha-ten e tsuru-ten.
Ramos recentes das escolas Ikuta e Yamada adotam o sistema ocidental utilizando
signos de crescendo e diminuendo < >, e as abreviaturas de piano, mezzo e forte. Quando há
repetição de frase ou compasso, também pode ser empregado um contraste na intensidade.
O dedilhado pode influir na intensidade e timbre, pois o plectro ¹, que corresponde
ao dedo polegar direito, tem mais vigor do que os tsume ² e ³.
O capítulo 3 abordou três variantes da notação musical para o repertório para koto.
Quando se apreende uma delas, rapidamente se consegue a compreensão de outra. Considero
que o ideal para a iniciação do koto seja o sistema de grades pelo arranjo lógico do ritmo e todas as categorias bem compartimentadas: números representados por ideogramas para as alturas; signos gráficos para os silêncios; e alfabeto silábico para os ornamentos e os mnemônicos, facilitando a memorização dos recursos rítmicos, melódicos, timbrísticos e de dinâmica,
64
próprios da linguagem do instrumento. Para a notação vocal, emprega-se ainda o alfabeto silábico hiragana, em outra coluna à direita, para designar o texto das canções.
Para finalizar, apresento uma síntese, recapitulando a notação musical para koto.
Nota de tradução
xxiii
In Japan, Korea and China, instrumental music is often taught by traditional systems of oral mnemonics specific to each instrument. […] Thus, for the Noh flute learning, the choice of vowel in a mnemonic syllable is affected by factors such as intrinsic pitch, duration and intensity; consonant choice often reflects aspects of attack
or decay. Although these systems work with degrees of consistency, in general, one can argue that they function
well and indeed are better teaching tools than many types of written notation.
65
65
66
4. A CONTIGÜIDADE DE “ROKUDAN”: UMA INTRODUÇÃO À ANÁLISE DE
REPERTÓRIO PARA KOTO
4.1.
Critério de escolha e transcrição da peça
Segundo Adriaansz (1973, 63), sobrevivem no Japão sete danmono, a partir do
“Godan”, com ‘cinco´ secções, e as mais tocadas são “Rokudan”, com ‘seis’ secções, “Hachidan”, com ‘oito’, e Jūdan, com ‘dez [ou doze] secções’, conhecida como “Midare [Confusão]”. No Brasil, somente a minha pesquisa detectou que “Rokudan no Shirabe [Estudo
em seis ciclos]” foi executada 39 vezes, “Midare”, 11 vezes, e “Godan Ginuta”, 7 vezes,
de acordo com os programas consultados e presenciados (v. tab. 2).
Para iniciar a análise do repertório sōkyoku e apreender os aspectos essencialmente musicais, resolvi me deter no danmono instrumental, compartilhando a preferência
das escolas de koto em São Paulo, do seu entorno social e até da sociedade majoritária.
Desde restaurantes japoneses até reportagens televisivas sobre o Japão, ou sobre os nikkei,
os sons do koto aparecem como pano de fundo, freqüentemente na gravação de “Rokudan”. O domínio técnico dessa peça é indispensável para ultrapassar o primeiro estágio do
aprendizado. Diante da representatividade de “Rokudan”, creio ser relevante analisá-la,
mesmo que alguma análise integral39 tenha sido feita.
Por ocasião do 94° aniversário da imigração japonesa no Brasil, em junho de
2002, “Rokudan” fez a abertura do Festival anual de música e dança, com o grupo da Associação Brasileira de Música Clássica Japonesa. A versão apresentada continha shakuha-
39 Willem Adriaansz (1973) realizou uma análise parcial comparando trechos de Rokudan semelhantes ou diferentes de outros danmono.
67
68
chi duplicando, através das ornamentações próprias, a melodia do koto principal, e este sobreposto de outra melodia, um quodlibet, no segundo koto. Outra possibilidade de execução de “Rokudan” é agregar o shamisen no lugar do shakuhachi, ou mesmo o trio sankyoku
completo.
Num primeiro momento estive tentando transcrever a versão para dois koto da
corrente Yamada. Porém, quando percebi que se tratava de um quodlibet, preferi transcrever somente a tablatura do primeiro koto da Escola Ikuta, para conhecer a concepção mais
próxima do original, reservando a análise das modernizações e diferenças entre as escolas
para estudos posteriores.
Para iniciar a análise, bastaria a transcrição descritiva já realizada pelo musicólogo Hisao Tanabe (1959, 69), que ilustrou a música para koto com a transcrição de “Rokudan”. Contudo, resolvi iniciar o processo de análise a partir da re-transcrição, tentando uma
aproximação do caráter prescritivo da tablatura original. Como se sabe, a notação prescritiva expõe todas as minúcias de interpretação e, no caso do koto, pode-se destacar os recursos microtonais e os efeitos timbrísticos (descritos no capítulo 3), e que, por sua vez, podem iluminar a análise.
As cordas soltas estão anotadas no pentagrama em tamanho normal e os efeitos
em notas menores. Dobrados sustenidos e dobrados bemóis, também foram utilizados para
elucidar a diferença timbrística, já que nas cordas pressionadas há perda dos harmônicos.
Dedilhado, para o qual foi adotado o critério da escola Miyagi (top. 3.3.2), e sentido da
corda – empregando o signo ocidental de arco para cima – também afetam o timbre. Acredito que essas minúcias, próprias da linguagem do koto, podem auxiliar no processo analítico, com o intuito de absorver os princípios básicos dessa música “contígua” · ou histórica,
apesar das minhas lentes ocidentais.
69
Fig. 12 Transcrição de “Rokudan no Shirabe”
70
71
4.2.
Estrutura básica
ƒ andamento
Observando a transcrição (fig. 12), nota-se a divisão eqüitativa das secções.
Exceto a primeira secção com 108 pulsações, todos os cinco dan subseqüentes possuem
100 batidas. Contrabalançando a estabilidade do número de batidas, a duração de cada dan
torna-se cada vez mais curta, devido à aceleração de andamento. Robert Garfias (1983, 529)
esclarece sobre o conceito jō-ha-kyū da música Gagaku, i. e., um acelerando há, precedido
do tempo lento jō e um rápido kyū. No caso da zokusō – escolas seculares de koto – o andamento pode ser uma derivação do conceito gakusō, com uma noção cíclica, recebendo o
acréscimo de um ritardando no final. Ou, se considerarmos o acréscimo como retomada do
tempo inicial, podemos manter o conceito ternário lento-acelerando-ralentando. De qualquer modo, a constância desse padrão de andamento em outras peças para koto justificaria
a tradução “peça cíclica” para o termo danmono.
A primeira secção inicia com a unidade de semínima igual a 60 até atingir gradualmente a unidade de 170, na secção V. No entanto, auditivamente, não resulta num
tempo rápido, pois as figuras rítmicas estão alargadas nas secções IV e V (cp. 92-127). O
auge do andamento rápido pode ser observado claramente entre os compassos 128 e 148,
quando há um súbito retardamento progressivo para retomar o tempo lento nos últimos
quatro compassos.
ƒ afinação e modo
Em “Rokudan” o koto é afinado em hirajōshi (v. fig. 5). O ideograma ‘hira’
significa ‘plenitude’ e ‘paz’. Esta afinação foi criada pelo fundador da zokusō e amplamente adotada nas composições danmono. Conforme Kamien (1976, 535-6), “Yatsuhashi modificou a antiga afinação ōshiki, abaixando um semitom nas cordas 4, 6, 9 e 11.”
72
Ao confrontar as afinações ōshiki-chō e hirajōshi, nossa cultura ocidental tende
a considerar o lá da primeira corda um bordão de quinta, o ré como primeiro grau. E, ao
observar as diferenças na quarta e sexta cordas – terça e sextas maiores se tornando menores, tendemos a interpretar que o modo pentatônico jônico foi modificado para um modo
eólio. Contudo, Kamien (1976, 536) explicita que hirajōshi é uma escala pentatônica hemitônica enquanto a oshiki-chō é anhemitônica. A ênfase reside na segunda menor da sexta
corda e não na pretendida terça da quarta corda. Embora a música para koto pós-Meiji explore a possibilidade tonal da afinação hira, na anterior zokusō seria um equívoco traduzir
chōshi como “tonalidade”. Antes de prosseguir, seria válido levar em conta algumas considerações teóricas.
Fumio Koizumi (Komiyama 1978, 40-1) esclarece que o sistema modal japonês
contém dois graus centrais, ou nucleares, e um intermediário (nota cheia na fig. 13.1), estabelecendo uma tipologia de quatro “tetracordes básicos” para todos os gêneros da música
tradicional: 1) Minyō, utilizado nas canções rurais e infantis; 2) Miyakobushi, nas melodias
urbanas; 3) Ritsu, em rituais da corte ou budistas; 4) Ryūkyū, em Okinawa.
Fig. 13 Bases do sistema modal japonês
73
No exemplo40 1 da fig. 13, percebe-se que o “grau intermediário”, ou a nota
cheia, é que define a configuração do tetracorde. A tipologia de Koizumi indica que a afinação hirajōshi se enquadra no segundo tipo, Miyakobushi, onde a nota intermediária forma um intervalo melódico de segunda menor com o primeiro grau nuclear. Mais adiante,
Koizumi reforça que “melodias urbanas” referem-se à “música clássica para shamisen, koto, shakuhachi e biwa.” A partir dessa afirmação, temos finalmente a constatação de que a
gama pentatônica começa pela quinta corda da afinação hira. A primeira corda, então, reforça o primeiro “tom nuclear” e a gama pentatônica completa localiza-se nas cordas centrais 5~10, possibilitando uma extensão de quinta justa descendente até o ré, da corda 2, e
uma quinta ascendente, o mi da corda 13 – embora casualmente possa ser semitonalizado
para fá. Considerando a gama pentatônica hira, lá-sib-ré-mi-fá, de que forma se justifica a
presença, aparentemente estranha ao modo, da nota sol41 em “Rokudan”?
Segundo Tanabe (1959, 4-5), o yō e o in (fig. 13 ex. 2 e 3)42 constituem os dois
tipos de modos das escalas japonesas “equivalentes ao yang e yin chineses” (cf. Kishibe
1969, 12). Dos exemplos de Tanabe, vemos que a escala yō está relacionada com o modo
ōshiki-cho, correspondente ao tetracorde ritsu, assim como a escala in está para o modo hirajôshi. Se ouvirmos uma peça gagaku, afinada em ōshiki-cho, e, em seguida, uma peça
danmono, podemos sentir que, enquanto a primeira possui um caráter yang, dinâmico, ativo e firme, a segunda possui uma carga yin, reflexiva, acolhedora e flexível. Neste aspecto,
encontrar-se-ia a razão do nome ‘sistema apaziguador’ no modo empregado.
40
Os exemplos extraídos das obras citadas foram transpostos na mesma fundamental da fig. 5 para facilitar a
compreensão dos paralelos.
41
Altura obtida pela pressão de um tom, motivo pelo qual consta sempre como fá dobrado sustenido. No decorrer da transcrição, há outras notas estranhas ao modo como si, dó e mib, mas estas ocorrem com menor freqüência e, como se verá mais adiante, são adornos ou passagem, elementos de valorização de outros graus.
42
Nos exemplos, preferi utilizar o enharmônico da nota sol, desde que não consta na afinação hirajôshi. Para obter a nota sol, é preciso pressionar firme com a mão esquerda a corda fá, cordas 4 e 9, do lado esquerdo do cavalete, ocasionando um som meio surdo, i. e., com perda de harmônicos.
74
A explanação de Tanabe esclarece a presença da nota sol em “Rokudan”. Similar à escala menor melódica, é preciso considerar ambos os movimentos, ascendente e descendente, do modo. A gama, portanto, torna-se hexatônica, sem abalar a estrutura pentatônica. É similar ao modo menor melódico mas, na concepção ocidental, a tônica só pode ser
alcançada pela sensível, a nota vizinha, uma segunda menor abaixo. Em “Rokudan”, o lá
pode ser alcançado pela nota sol de qualquer oitava (v. cp. 8-9, 14, 34-35, 40 e 47), ocasionando um salto descendente de sétima menor. Já o movimento melódico descendente lá-fá,
não tem essa liberdade de acomodação de oitavas, uma sexta menor ao invés de terça maior, no decorrer da peça.
4.3.
Micro à macro estrutura
4.3.1.
ornamentos
Como a observação outsider procura revelar dados incomuns à sua própria cultura, começarei a análise a partir da estrutura interna pelas nuances timbrísticas, que parecem tratar-se da “ornamentação” referida por Kamien (1976, 539):
Ornamentação melódica também é um traço importante.
Sempre se julga a formação de um performer pela sua habilidade
em utilizar ornamentos e outras sutilezas melódicas e nuances rítmicas.xxiv
Em “Rokudan”, há os seguintes ornamentos: portamentos descendentes de tom;
portamento ascendente de tom; intervalos harmônicos; corda(s) raspada(s) com a lateral
dos plectros no sentido longitudinal direito para esquerda; corda tocada de frente para trás;
trêmulo seguido de glissando.
Conforme a tabela 8, podemos notar que certos ornamentos são utilizados fartamente – portamento ascendente, intervalos harmônicos e o portamento descendente de
tom hiki-iro – enquanto outros o são comedidamente – portamento descendente hanasu e
75
os dois últimos efeitos. Examinemos as regularidades desses efeitos, começando com os de
menor freqüência.
Tab. 8. Ocorrência dos ornamentos em “Rokudan”
ornamentos
portamento descendente de tom
hanasu
trêmulo seguido de glissando
corda(s) raspada(s) shū
corda tocada para cima sukui
portamento descendente de um
tom hiki iro
intervalos harmônicos
portamento ascendente de tom
localização pelo número do compasso
quarto tempo do cp. 12
54 e 157
36.101 e 143
46,51 e 60
1, 4, 7, 15, 18, 22, 23; 33, 41, 48, 54, 59, 63, 67, 77; 81, 90,
101;110, 111, 127; 133, 134 e 138.
1, 2, 3, 4, 5, 8, 9, 11, 14, 22, 27; 31, 32, 35, 37, 40, 53, 55, 56,
57, 58, 79; 80, 81, 82, 83, 85, 87; 107, 109, 110, 111, 112,
113, 114, 115, 117, 119, 120, 128 e 131.
2, 3, 4, 7, 11, 15, 23, 28, 28, 30, 30, 33, 42, 43, 46, 48, 49, 52;
59, 62, 63, 66, 70; 84, 85, 89, 100, 100, 103; 111, 119, 127,
131; 132, 140, 141-2, 145, 146, 150, 151, 152 e 155.
Sārarin, trêmulo seguido de glissando, aparece na abertura da secção III e no
encerramento da peça. O trêmulo sā sobre a nota mi agudo visa atingir a primeira corda lá.
A corda tocada no sentido contrário é pouco explorada e acredito não ser significativo, pois é apenas a repetição da nota anterior e parece ser um ornamento da edição
Miyagi, pois não consta na edição Yamada.
O efeito exótico shū, de corda raspada, chama a atenção, pois embora não soe
uma altura determinada, a corda é determinada na tablatura. Os dois primeiros shū, nos
compassos 36 e 101, acontecem na corda 10 e o terceiro (cp. 143) entre as cordas 7 e 8.
Ouvindo tem-se a impressão de ser uma quebra, um efeito rítmico, mas nos dois primeiros
shū a nota lá está implícita e, no terceiro, a nota mi. Isso se torna mais claro no compasso
36, cujo efeito é precedido pela nota sol. Assim, antes de ser um efeito rítmico ou timbrístico, o shū é parte da seqüência melódica.
Ha, abreviatura de hanasu ou ‘soltar’, é um portamento descendente de tom.
Só ocorre uma única vez (cp. 12) na nota dó, nota estranha ao modo, que parece valorizar o
grau intermediário sib.
76
Já o portamento descendente de semitom é mais utilizado, principalmente nas
notas sib, lá e fá. No fá só ocorre uma vez no compasso 4, valorizando talvez a nota mi.
Sobre a nota lá (cp 1, 110 e 134) há dois usos: na primeira, a nota láb parece insinuar um
portamento até o fá, e os da última secção oferecem um impasse na progressão, variando a
figura sha-sha-ten, entre os compassos 6 e 7. Sobre o sib, o portamento funciona dezenove
vezes como antecipação (v. cp. 7) do próprio lá, e uma vez como mordente inferior (v. cp.
23).
Osu, ‘pressionar’, é o portamento ascendente de um tom que acontece predominantemente nas cordas 7 e 12, nota ré, e ocasionalmente na nota fá, corda 9. O portamento sobre fá aparece só na II secção. Nos compassos 30, 42 e 43, fá soa como passagem
para o sol. Sobre a nota ré, o mi parece valorizado quando precede um salto descendente
(v. cp. 2), e funciona como antecipação no compasso 15.
O par de notas simultâneas, ou intervalo harmônico sha, só ocorre com cordas
vizinhas. Por grau de ocorrência, temos: cordas 1-2, lá-ré; cordas 3-4 e 8-9, mi-fá; cordas
5-6, lá-sib; cordas 6-7, sib-ré (cp. 14 e 40); cordas 2-3, ré-mi (cp. 114); e cordas 12-13, mimi (v. cp 152-3). Este último par, talvez, deva ser categorizado como efeito, já que a corda
ré 12, apertada um tom acima, dificilmente soa uníssono com a corda mi. A ausência do intervalo harmônico de cordas vizinhas tais como cordas 4-5, fá-la, parece constituir uma regra. Os intervalos harmônicos evitados são, portanto, os de segunda maior e terça maior.
As segundas menores são freqüentes, junto com os outros intervalos anteriores, e só são utilizados no interior da entidade rítmica sha-sha-ten, ou seja, dois intervalos harmônicos
seguidos de um salto ascendente de oitava. Já o intervalo de quinta justa, das cordas 1 e 2,
possui trânsito livre, seja como ponto de chegada ou de partida.
77
Conhecer o sentido dos ornamentos auxilia na compreensão da hierarquia das
notas. Por essa ótica, a ordem hierárquica indica ser lá, ré, mi, sib e fá. Notas estranhas à
afinação, como dó e láb, são empregadas apenas como passagem nas ornamentações.
4.3.2.
motivos e frases
O primeiro elemento de unidade da peça é o motivo descendente kōrorin da figura 14. O nome vem do mnemônico rítmico de figura pontuada. Ele encerra todas as secções, com exceção da última, cuja terminação é o efeito sārarin que conduz para o lá, mas
o motivo é insinuado quando se retoma o tempo inicial, dois compassos43 antes. A partir do
meio de “Rokudan”, final da secção III, o motivo é alargado aparentemente no ritmo escrito, mas soa no mesmo andamento do início, já que o tempo dobrou de velocidade. Nas secções I e II, o motivo melódico aparece dez vezes, sendo sete com o ritmo pontuado; nas
secções III e V, sete vezes; e nas IV e VI, quatro vezes. Em todas as vezes tem um caráter
conclusivo, delimitando, talvez, subsecções, períodos ou frases. Dada a constância do motivo, suponho que o compasso de abertura da peça seja uma pequena variação, uma menção ao mesmo.
Fig. 14. Motivos rítmico-melódicos de Rokudan
O segundo motivo mais observado aparece precedido pelo efeito harmônico
sha-sha no segundo compasso. Também descendente, trata-se da mesma figura rítmica kōrori nas notas mi-ré-si que, geralmente, encontra-se próximo ao primeiro motivo. O segundo motivo ocorre sete vezes nas secções I, II, V e VI e cinco vezes nas III e IV.
43
Como disse anteriormente a noção de compasso não é aplicável na música tradicional japonesa desse período.
Apenas para facilitar a localização, adoto o termo compasso.
78
Acredito que esses dois motivos sejam os principais, mas anotei também alguns outros que ocorrem com menor freqüência e podem ser derivados dos principais.
A frase presente em todas as secções começa com o sha-ten do sexto compasso
e termina no motivo kōrorin do compasso 9 (v. cp 32-35, 58-61, 80-83, 110-17 e 133-39).
Nas secções II e III, sofre uma pequena variação no terceiro compasso e, na IV secção, aparece um pouco reduzida. Nas secções V e VI, ocupa boa parte e está aparentemente alargada, pois o tempo está mais acelerado. A frase ascendente possui um caráter progressivo
para atingir o lá agudo da corda 10.
Outra frase constante é a de encerramento das secções. Na secção I, inicia-se
no quarto tempo do compasso 24, com caráter ascendente, e termina em movimento descendente, no final do compasso 27. Aparece de forma um pouco abreviada entre a metade
do compasso 51 e final do compasso 53 da secção II. A partir da secção III (cp. 75-79),
começa a ser ornamentada e ampliada de tal modo que ocupa mais da segunda metade da
secção V (cp. 119-131). Nas secções IV (cp. 85-105) e V, há um adiamento da conclusão da
frase em um movimento progressivo para atingir a nota mais aguda da peça, ou seja, o terceiro fá (cp. 98 e 125), possível de ser executado através do recurso de pressionar um semitom, a corda 13 na afinação hira. Na última secção, amplia-se, ocupando desde o compasso
146 até o fim, no compasso 157.
A não ser a duração de quatro compassos das secções I, II, III e V, o início de
cada dan não apresenta regularidades, aparentando uma introdução. A secção I expõe os
motivos principais. A II secção sugere o trecho final da frase de encerramento. Na secção
III temos o efeito sārarin, kōrorin seguido de uma transposição do início da frase de encerramento uma quinta acima. A secção IV já começa com a frase progressiva e a V guarda
79
uma lembrança do início da frase de encerramento. A última começa como a secção II e,
no segundo compasso seguinte, muda para a frase progressiva.
4.3.3.
forma geral e subterritórios
Os dois primeiros motivos indicam as terminações de frase. Cada um tem um
eixo gravitacional independente que coincide com os tons nucleares de Koizumi. O ré é o
ponto de chegada do motivo a, assim como o lá é do motivo b. Ainda há um terceiro motivo ascendente mi-sol-lá, que inicia a secção V e se encontra no início da frase de encerramento.
A partir desses elementos, motivos que sugerem entidades, que, por sua vez,
definem inícios ou términos de frases, podemos localizar os períodos ou subterritórios de
cada secção, na tabela seguinte. As frases constantes de cada secção encontram-se na segunda e última coluna. Chamo de seqüência a partir de dois momentos de predominância
de movimento ascendente que parecem ter um ponto culminante agudo. A primeira progressão caminha para a nota lá da frase padrão sha e, logo depois, alcança o mi da corda
13, nas secções I, II, IV, VI e a nota fá, nas secções III e V.
Tab. 9. Estrutura geral e interna das secções de “Rokudan”
período inicial
secção introdução
I
motivo a
1~5
II
motivo b
III
motivo b
IV
motivo c
V
motivo c
VI
motivo b
seqüência
período encerramento
progressão 1
progressão 2
variada
constante
constante
variada
motivo d
mi
mi
mi
6~9
24/4~27
10~11
12~21/1
21/1~24
mi
fá
mi
32~35
51/3~53
36~37
38~47/2
47/2~51/3
fá
mi
fá
58~61
75/1~79
62~64
65/2~68/3
68/3~75/1
102/4~105/4
mi
fá
80~83/2
83/3~91/3 91/4~102/4
fá
fá
110~117/3
129~131
117/4~119/2
119/3~128/4
mi
133/3~139/2 139/3~141/3 141/4~146/3
141/4~157
80
A segunda progressão começa com o motivo d, sol-lá-sib, nas secções I, II, III,
aparece variado, sol-lá-dó, na secção IV e está ausente na V e VI. Na V secção, a progressão se funde com elementos da frase de encerramento, iniciando a progressão com o motivo c. Na última secção, a progressão apresenta um elemento surpresa que é a nota si natural mostrada uma única vez no compasso 20. Esse momento coincide com o máximo do
acelerando, quer dizer, o ápice de todas as secções.
A macro estrutura ternária da peça, retomando o andamento lento-acelerandoralentando, repercute no interior da estrutura de cada secção: um período inicial ou introdutório, um intermediário ou seqüencial e o período de encerramento. Embora haja um acelerando constante, as conclusões descendentes das subunidades provocam um leve jō-ha-jō
em cada uma delas, uma sutil nuance agógica.
Acredito que a análise não se esgota aqui, mas a partir do momento em que não
se encontra tanto desconforto em iniciar a análise de um sistema sem terça em relação ao
primeiro grau, que prefere intervalos harmônicos de segunda menor, saltos de sétima, nona
e disfarça saltos de terça, compensando-os em movimento contrário, já é um começo para
essa difícil experiência de se desvencilhar dos conceitos (e preconceitos) ocidentais. Outrossim, a partir da compreensão da lógica estrutural, regras e valores, abre-se caminho para compreender a simbologia em torno das entidades estruturais da música tradicional japonesa e a possível hierarquia entre elas.
Nota de tradução
xxiv
Melodic ornamentation is also an important trait. The musicianship of a performer is often judged by his
skillful ability to use ornaments and other subtle melodic and rhythmic nuances.
PARTE II
Surgimento e Continuidade de
Atitudes Pré-Guerra
5.
MÚSICA E RESISTÊNCIA DAS FILIAIS BRASILEIRAS DE RYŪKYŪ
Somos o pessoal da música mais cadenciada
da pele mais escura
dos olhos mais redondos44
da alma mais tropical
e do bolso mais pobre do Japão.
Beth Shimabukuro45
5.1. Conduta cultural da minoria okinawana
5.1.1. etnicidade e música
O depoimento de Beth Shimabukuro sintetiza o senso comum e espelha a visão idiossincrática sobre as origens do nisei descendente de Okinawa integrado na sociedade brasileira. A expressão “música mais cadenciada” pode estar se referindo ao ritmo mais rápido, à
atmosfera alegre e descontraída da música minyō, com peculiaridades regionais.
Antes da caracterização, Shimabukuro aproxima o okinawano ao nordestino brasileiro, não sendo a primeira vez que ouço descendentes estabelecerem essa analogia. Em conversa informal, a cineasta Olga Futenma46 aponta a similaridade, salientando que o okinawano
chama a atenção por sua fala e gesticulação generosas, inclusive nas manifestações de afago,
em relação à expressão comedida do japonês. Além de revelar a condição de minoria, a identificação do okinawano com o nordestino destaca a situação de que, apesar de ser economicamente desfavorecido, sua música reflete a “alma mais tropical”, acentuadamente dançante,
espontânea e com sabor local. Curiosamente, a afinação ōshiki-cho (fig. 5) da música de Oki44
Essas características físicas seriam advindas da miscigenação com os povos da Indonésia.
Entrevista concedida a Dorrit Harazim (1998, 64), em matéria sobre coma vígil. A jornalista Harrazim destaca a
atenção esmerada da esposa e seis filhas à sobrevida do sr. Paulo Shimabukuro, explorando as causas culturais de
tal intrigante dedicação.
46
Neta de Binsuke Shinzato, o primeiro graduado em música “clássica” de Ryūkyū, no Brasil.
45
82
83
nawa – considerando o uso moderno, que utiliza a terceira corda como apoio harmônico – apresenta semelhanças ao modo mixolídio da música nordestina, característico pelo intervalo
de sétima menor.
A condição de minoria e “bolso mais pobre”, acarretada por uma condição política
subalterna, indicam também as causas da emigração okinawana. Cada peculiaridade, frisada
por Shimabukuro ou Futenma, reforça o grau de etnicidade ocasionado pelo passado de dominações e discriminações, desde a terra natal. Vale relembrar que, Ryūkyū, outrora reino independente, foi dominado economicamente pela China e, politicamente, pelos EUA e Japão.
O okinawano ordena uma série de preferências, no tocante à identidade cultural.
Entre Japão e China, prefere a China e entre EUA e Japão, prefere o Japão47. Na eleição de
seus ícones culturais – livro pelo chinês, espada pelo japonês e instrumento musical pelo okinawano – inferi que, para reforçar sua índole pacífica, “o ryūkyūano prefere aproximar-se da
postura do chinês ao reverenciar os pensadores da sua cultura do que a bravura dos samurai”
(Satomi 1998, 31).
O mais interessante da epígrafe deste capítulo é o orgulho de ser okinawano mesclado aos valores de ser brasileiro, com exceção do “bolso mais pobre”. Para o brasileiro que
se orgulha de ter o samba e a bola no pé, ter “a pele mais escura”, significaria saúde e lazer;
“olhos mais redondos”, implicaria em ser mais esperto; e a “alma mais tropical”, sugere um
modo de ser menos formal, mais relaxado e caloroso. Certamente o japonês tradicional não se
orgulharia de ter a “pele mais escura”, nem “os olhos mais redondos”, a música mais sambável e a “alma mais tropical”.
Independente de valores por geração e diante do passado de subordinações, considero mais relevante a soberania cultural que representa a música, desempenhando um papel
decisivo para imprimir o padrão e identidade culturais. Sempre que há uma oportunidade de
47
V. item “A Segunda Guerra Mundial e a ocupação militar norte americana” (Satomi 1998, 228).
84
revelar a etnicidade, a música é mencionada. Indagado sobre o que é ser okinawano – uchinanchū no dialeto local – Ernesto Arashiro48 (Chinen 2002, 3) responde:
Ser uchinanchū é não esquecer jamais a história de lutas e sofrimentos deste povo. É dar continuidade a essa luta como quem luta
pela sobrevivência conquistando vitórias em qualquer frente, sem jamais esquecer as origens. É saber apreciar as suas músicas, danças e a
culinária típica [grifo meu].
5.1.2.
coesão e bairrismos
Com base nos dados divulgados pelo Centro de Estudos Nipo-Brasileiros, em
1988, pelo boletim do II Festival Mundial de Okinawanos, em 1995, e pelo IBGE, em 2000,
estimei uma atualização de dados da população nikkei e de okinawanos em São Paulo e no
Brasil. O acréscimo foi calculado de acordo com os dados do IBGE que forneceu a média anual de 1,5% no crescimento demográfico de São Paulo, nos últimos seis anos.
Tab. 10. Estimativa da população nikkei em S. Paulo e no Brasil
população
Nikkei no Brasil
Okinawanos no Brasil
Paulistana
Nikkei em São Paulo
Okinawanos em São Paulo
últimas fontes
1.400.000
128.400
10.009.231
326.000
70.000
ano
1988
1995
2000
1988
1995
acréscimo estimado
22,5%
12%
4,5%
22,5%
12%
2003
1.715.000
143.808
10.459.646
399.350
78.400
Para se ter uma noção da proporção do nikkei e okinawano entre a população paulistana, temos o seguinte gráfico:
Fig. 15. Proporção entre paulistanos, nikkei e okinawanos
nikkei
okinawana
paulistana
Na população paulistana, a comunidade nikkei já representa em torno de 4%. E
desta fatia, bastante significativa para uma imigração que completou apenas 95 anos, a comu-
48
Nisei natural de Cambará (PR), Arashiro trabalha, como diretor, em indústria alemã instalada em Manaus.
85
nidade okinawana representa 19,6%. Isso seria equivalente a dizer que a cada 125 paulistanos,
cinco são nikkei e destes, um é okinawano.
Para uma comunidade de tal proporção, inserida em uma megalópole como São
Paulo, o sintoma natural seria o da dispersão. Contudo, a existência de dezesseis subsedes da
AOKB espalhadas por bairros da capital – enquanto as demais 45 Prefeituras japonesas só
têm uma sede – pode atestar o grau coesivo mais acentuado dos okinawanos.
Quanto à capacidade associativa, relembro o dito popular “sempre que há três famílias japonesas, logo se tem um kaikan [sede social]”. Por isso, não é possível abordar a comunidade nikkei sem elucidar o seu caráter associativo.
Há quatro órgãos principais da comunidade nikkei: a SBCJ – Sociedade Brasileira
de Cultura Japonesa ou Bunkyō; a FAPJB – Federação das Associações de Províncias Japonesas no Brasil; a CCIJ – Câmara do Comércio e Indústria do Japão; e a Beneficência NipoBrasileira Enkyō. (v. fig 17).
Durante a pesquisa, visitei esporadicamente os auditórios da SBCJ e de algumas
associações de províncias, conhecidas como kenjinkai49. Dentre estas, a AOKB – Associação
Okinawa Kenjin do Brasil foi a mais visitada por ter as escolas de música clássica atreladas a
si. A AOKB centraliza as atividades culturais e desportivas de 42 subsedes nos estados de São
Paulo, Mato Grosso do Sul e Paraná, bem como no Distrito Federal.
Segundo o jornalista José Yamashiro (1996, 94-5), a matriz da associação de Okinawa nasceu em 1926 “para acabar com a discriminação existente contra okinawanos” e a luta
pela revogação da proibição da imigração okinawana. Os esforços valeram a liberação parcial,
a partir de 1926, e a revogação completa em 1936. Entre 1941 e 1953, houve um hiato em todas associações, ocasionado pelas medidas restritivas da ditadura Vargas, que chegou a fechar
escolas e jornais dos imigrantes alemães, italianos e japoneses. A desinformação causada de49
Eventualmente visitei os kenjinkai das prefeituras de Mie, Kumamoto e Tottori para observação de aulas, ensaios
e comemorações de aniversários.
86
sembocou no episódio fanático do movimento “irredentista” da Shindo Renmei – facção de
imigrantes japoneses “vitoristas”, que não acreditavam na derrota da pátria, na II Guerra, e
perseguiam os compatriotas “esclarecidos” do resultado real50. Apesar disso, a comunidade se
mantinha coesa através do Comitê de socorro às vítimas da guerra no Japão, estabelecido em
1947.
Tab. 11. Procedência dos associados dos grêmios Nomura e Sōkyoku
cidades
Naha
Nago
Nishihara
Yomitan
Gushikawa
Nakijin
Itoman
Okinawa
Urasoe
Ôzato
Gushikami
Kunigami
Yonagushiku
Kumejima
Iheya
Kadena
Nakagushiku
Chinen
Ginowan
Motobu
Ogimi
Miyajima
Ginoza
Ishikawa
Higashi
Sashiki
Onna
Kin
total
21
19
15
14
14
12
12
11
9
8
5
4
3
3
3
3
2
2
2
2
1
1
1
1
1
1
1
1
DKB
2
3
1
2
10
6
5
1
4
3
1
1
1
1
ANB
3
12
1
2
3
6
6
5
2
2
1
2
1
3
2
2
1
1
1
1
1
1
1
subtotal
5
15
2
4
13
12
11
6
6
5
2
2
2
3
1
3
1
2
2
1
1
1
1
1
1
PKB
8
3
7
6
PNB
8
1
6
4
1
subtotal
16
4
13
10
1
3
2
3
1
1
1
5
3
3
3
2
1
1
1
2
1
1
1
2
1
1
1
1
1
2
1
2
1
1
O caráter associativo se aplica também aos microterritórios, considerando que Okinawa-ken é composta por 53 localidades entre distritos, povoados e aldeias. No mapa seguinte, aparecem os nomes dos locais de origem dos associados das escolas de música koten.
50
Relato e análise detalhados sobre a Shindo Renmei podem ser verificados na obra de Fernando Moraes (2000) e
Hiroshi Saito (1970).
87
Fig. 16. Mapa de procedência dos associados de música clássica de Ryūkyū
88
Muitas dessas localidades têm suas associações ou sonjinkai em São Paulo. Ao
observar a ordem das identificações sociais nos cartões de visita dos principais co-autores,
bem como a seqüência dos discursos dos líderes da comunidade nas festividades, elaborei o
seguinte fluxograma – emprestando a idéia estruturalista de que uma sociedade é composta de
camadas superpostas com a aparência de uma cebola – para ilustrar as possibilidades de pertença do okinawano:
Fig 17. Possibilidades associativas dos okinawanos
1. SBCJ
Bunkyō
2. AOKB
Honbu
C
C
I
J
4. Subsede
5. Assoc. cidade
ongaku kai
shibu
sonjinkai
6. bairros ou outros locais de
passagem
Benef. Nipo-brasileira
3. Clube Musical
FAPJB – Federação das Associações de Províncias Japonesas do Brasil
Naturalmente, não é possível participar de todas instituições ao mesmo tempo. O
professor Shinkun Chibana, por exemplo, um dos articuladores mais atribulados51 da música
“clássica” de Ryūkyū, acumula funções nas camadas 2, 3, 4 e 5. Ele pertence à diretoria da
AOKB, presidência da PNB – Preservação Nomura do Brasil, conselho da AOVC – Associação Okinawa de Vila Carrão e da vila de Yomitan. Os principais articuladores das artes tradicionais musicais ou cênicas da comunidade integram ou integraram a diretoria da AOKB,
posto máximo atingível em razão da dedicação necessária para o preparo das performances.
Normalmente, basta pertencer a uma das 42 subsedes, na maioria bairros (camada
6) e municípios da Grande São Paulo, para ser membro da AOKB. A última camada referese, ainda, a outras agremiações, tais como: o grupo que imigrou para a Bolívia antes do Brasil,
o grupo da antiga colônia rural Aliança Getulina ou a associação dos provenientes do bairro
51
Shinkun Chibana restaura e monta sanshin, afina os kutū antes das apresentações e ainda é responsável pela pintura das faixas e rotundas dos palcos dos eventos da AOKB.
89
Oroku, em Naha. No interior desta última camada haveria ainda outra, representada pelo grupo Uzato munchyō – membros de um mesmo “tronco familiar”.
E na camada mais profunda dessa estrutura social, encontraríamos a possibilidade
mínima de subgrupo, segundo o dito inicial, que seria a tríade familiar. Aliás, segundo Hajime Afuso, a partir da díade pai-filho é que se justifica a coesão de todo o grupo social. E esta
seria a molécula mãe que fortaleceria um poder centrífugo, na construção da identidade étnica. O inverso da força política e administrativa das associações é que seguiria na direção centrípeta.
Voltando à seqüência dos discursos de líderes okinawanos, é possível acrescentar
duas camadas externas: a sociedade paulista e a brasileira. Na festa dos 95 anos da imigração,
antes de homenagear quatro professoras de kutū, dois professores de sanshin, seis diretores e
ex-presidentes da AOKB, um médico e o presidente da SBCJ, foram homenageados o vereador de Santo André, um ex-prefeito de Suzano, três empresários e o ministro das comunicações, Luiz Gushiken. Todos oriundos de Okinawa: os issei representando as camadas internas
e os descendentes, a camada externa, i. e., a sociedade majoritária, paulista e brasileira.
Embora tenha notado que o ex-presidente da AOKB, Shigeru Miyagi, assessora
atualmente a diretoria da SBCJ, as várias camadas não funcionam como patamares hierárquicos. O presidente atual da SBCJ, Dr. Kokei Uehara52, proveniente de Oroku, foi eleito por
seu destaque na vida acadêmica, sem ter ocupado, antes, cargos nas camadas internas. A hierarquia funciona mais no interior de cada entidade, a partir da segunda camada. Para se alcançar a presidência, é preciso ter participado da diretoria, e/ou clube musical e, anteriormente, de algum setor, seja o esportivo, feminino, juvenil ou ancião.
Esta secção tentou mostrar a capacidade associativa em camadas tão subjacentes
que podem caracterizar a atitude “bairrista” dos okinawanos. E a música parece ter um papel
52
Professor emérito do curso de engenharia hidráulica na escola Politécnica da USP, que mereceu o livro sobre sua
história e perfil, escrito por seu aluno Aldo Pereira (1994).
90
reconhecidamente importante na coesão dessa comunidade, pois no exemplo dos homenageados, a música foi considerada como “relevante serviço prestado à comunidade”. Ou seja, os
professores de música clássica colocados no mesmo patamar dos dirigentes da área política,
econômica e da saúde.
5.2. Antecedentes e causas da formalização dos grêmios de música “clássica”
Nos festejos de maior porte, a AOKB congrega oito grupos de música vernacular:
dois grupos de taiko, integrados por crianças e jovens; duas filiais de minyō, compostas por
todas as faixas etárias; e quatro filiais de koten, onde a maioria é imigrante na terceira idade53.
Das seis entidades oficiais, as mais respeitadas são as quatro filiais de música tradicional. Por gênero e instrumento as quatro entidades poderiam ser agrupadas em Escolas
Nomura e Escolas Sōkyoku. O primeiro par composto predominantemente por homens que
tocam sanshin e o segundo, por mulheres que tocam kutū. No entanto, sanshin e kutū são
complementares na performance, resultando em outra possibilidade de agrupamento: PNB –
Preservação Nomura do Brasil com PKB – Preservação Kutū do Brasil e ANB – Associação
Nomura Brasileira com DKB – Difusão Kutū Brasileira. Portanto, as quatro escolas resumemse em dois grupos com características sociais e históricas próprias. E para construir historicamente as sōkyoku, é inevitável abordar sobre as Escolas Nomura.
5.2.1. circunstâncias históricas e os dissabores sociais
As filiais sōkyoku consideram a data de reconhecimento da matriz no cômputo de
suas existências. A PKB foi oficializada em 1970 e a DKB em 1975, mas, anteriormente, as
respectivas escolas Nomura já estavam filiadas em 1963 e 1962, respectivamente. Esta legitimização da matriz aconteceu só depois da PNB e ANB estarem formalizadas, o que sucedeu
após uma existência informal junto com as executantes de kutū e de dança. Considerando es-
53
Maiores detalhes foram descritos na dissertação anterior (Satomi 1998).
91
se aspecto, é preciso retroceder no tempo localizando as possíveis causas do processo de institucionalização.
A música clássica de Ryūkū era praticada de maneira informal e esporádica no período pré-guerra devido à fase rural e à extrema mobilidade física do okinawano. Revendo a
trajetória do fundador da PNB Binsuke Shinzato – primeiro imigrante pré-guerra a ser reconhecido como professor kyōshi, em 1956 (Satomi 1998, 80) – a atividade de koten pode ter se
intensificado em São Paulo na década de 40, pois foi a época em que ele se fixou na capital
paulista, justamente naquele hiato em que o japonês vivia acuado pela política autoritária de
Vargas – que impedia qualquer aglomeração de imigrantes dos países do eixo – e pelo arbítrio
dos próprios compatriotas “irredentistas” (v. p. 86). A dupla opressão pode ter adiado a tendência natural da formalização das agremiações musicais, mas, ao mesmo tempo, acabou por
fortalecer ainda mais a coesão e resistência em torno do pretexto musical54.
Segundo crônica do ex-presidente da AOKB, Mosei Yabiku (1987, 218-21), a antecessora da PNB, chamada Liga Nacional de Pesquisa e Preservação da Música e Dança de
Ryūkyū, foi fundada em 1953 e a ANB em 1955. A época coincide com a retomada das Associações de Províncias. Ambas as fundações ocorreram no bairro da Cantareira55.
Além de certificar o momento do refluxo da imigração no pósguerra, a formalização das escolas de koten atesta também a ocupação
dos okinawanos nas imediações do mercado central, confirmando a
tendência dominante no setor de comércio de produtos agrícolas (Satomi 1998, 84).
A afirmação acima indica o outro fator determinante na construção histórica das
agremiações de koten no Brasil. O movimento imigratório é retomado em 1951, quando entram apenas 50 okinawanos. Teríamos no pós-guerra três fases de entrada de okinawanos no
54
Vejo também uma correlação com o fato de que festa de casamento, como a dos meus pais realizada em 1944,
era permitida desde que o delegado soubesse, e de preferência fosse convidado, com antecedência. Daria para supor que se festa podia aglomerar imigrantes, a sua preparação musical também.
55
Situado na região central, o antigo centro de abastecimento da cidade de São Paulo, onde a maioria dos comerciantes era imigrante português, italiano e japonês. Nas cercanias, predominava o comércio de tecidos e armarinhos
dos sírio-libaneses. A fundação da ANB se deu em um restaurante “turco” desse bairro.
92
Brasil: entre 1952 e 1958, um número crescente até atingir a casa de 1400; entre 1959 e 1964,
um número decrescente, caindo abruptamente para 200, no ano do golpe militar; entre 1965 e
1973, conserva a média anual de 100 pessoas56.
No pós-guerra a emigração expressiva de okinawanos decorre da dominação norte-americana, entre 1952 e 1972. Conta o jornalista Humberto Kinjō em conversa informal:
Naquele período o okinawano residente fora do seu país tinha
que pedir permissão a Washington para visitar seus parentes. E se
cismassem que o requerente fosse de esquerda, a licença era negada.
Imagine você, ter que pedir licença a um estranho para entrar na sua
própria casa!
O termo “estranho” soa até brando se considerarmos que o invasor destruiu um
terço da população e cimentou túmulos e sítios sagrados, imagino, para construir uma espaçosa base militar, que está lá até hoje, pela estratégica localização do arquipélago no Oriente57.
Dessa forma, a fundação das escolas de música clássica é fruto da coesão dos okinawanos pré-guerra com a dos imigrantes pós-guerra. Temos como causa principal a Segunda Guerra Mundial, que ocasionou a dupla vigília para os primeiros, e o duplo constrangimento – o domínio americano e a omissão japonesa – para os segundos. Os dissabores sociais em
dimensões redobradas, tanto no país de acolhimento quanto na terra de origem, seriam as causas da coesão que, por sua vez, foi fator determinante na formalização das escolas koten no
Brasil.
5.2.2. vinda de especialistas no pós-guerra
Segundo Yabiku (1987, 219), a institucionalização das escolas Nomura foi impulsionada pelo envio de músicos especialistas da terra de origem. Acredito que a atitude oficial
seja em retribuição ao empenho dos compatriotas do Comitê de socorro às vítimas da guerra.
56
Interpretação do gráfico construído a partir de dados fornecidos por Ishikawa (1992, 25).
A população de Okinawa, todavia, demonstra tensão nas questões recentes da devolução de Formosa à China, ou
mesmo na ofensiva e invasão ao Iraque.
57
93
Ainda em 1998, quando se comemorou os 90 anos da imigração japonesa no Brasil, o então
governador de Okinawa, Masahide Ota, pronunciou:
Após 50 anos da Segunda Guerra Mundial, Okinawa consolidou o seu desenvolvimento. Isto se deve à ajuda proporcionada pelos
nossos irmãos além-mar, sobretudo o Brasil, que estenderam as mãos
quando Okinawa estava em escombros.
Os músicos que aqui estiveram tinham formação tanto tradicional quanto européia. Seihin Yamanouchi58, que estimulou a filiação da atual PNB – Preservação Nomura do
Brasil – foi iniciado por seu avô, mestre de música da corte de Shuri. Vinholes (1957), compositor e estudioso da música japonesa (v. nr 16), comenta sobre sua tese musicológica:
O propósito fundamental do professor Yamanouchi é o de
estudar a fundo as melodias antigas e populares do nosso continente,
persuadido de que a investigação científica em torno dos fatos, pode
trazer à luz inesperadas relações entre as antigas culturas da América e
do Oriente.
O pressuposto de Yamanouchi apresenta indícios de uma orientação da escola difusionista alemã, onde se acredita que as coisas são inventadas uma única vez na teoria do
Kulturkreiss, i.e., ‘círculo cultural’.
A musicóloga e compositora Kanai Kikuko visitou o Brasil, em 1954, e incentivou Kishin Nakandakare59 na filiação da ANB (Yabiku 1987, 221). Ela transcreveu para o
pentagrama o repertório antológico, de sua terra natal, e publicou o artigo “Folk Music of the
Ryūkyū’s” (Kikuko 1955). Yamanouchi e Kikuko participaram “na qualidade de delegados do
Japão, da Conferência Internacional do Folclore por ocasião do IV Centenário desta capital”,
frisa, ainda, Vinholes.
Yabiku comenta adiante que, os mestres de Okinawa transmitiram técnicas atuais
como uso do pentagrama, do metrônomo, de instrumentos ocidentais para atrair os nisei. No
58
Segundo Yabiku (1987, 218), o casal Yamauchi permaneceu no Brasil, entre meados de 1952 até meados de 1954,
após viajarem pelo Havaí, EUA e Peru. No estado de São Paulo, apresentaram-se em Marília, Tupã, Lucélia, Presidente Prudente e Santos; no Paraná, em Cambará, Paranaguá; e no Mato Grosso, em Campo Grande. “Localidades
que indicam grande concentração de okinawanos na metade do século” (Satomi 1998, 78).
59
Ele liderou um grupo de dezessete pessoas na fundação da ANB, que se deu em 11 de novembro de 1955.
94
entanto, tenho observado apenas o uso de instrumentos ocidentais, como bandolim e teclado,
nas performances de minyō. Apesar do imigrante issei demonstrar preocupação com a falta de
interesse do descendente na música koten, o fato de não acatar as sugestões de modernização
indica uma conduta de resistência cultural mais acentuada que a dos próprios conterrâneos
que permaneceram em Okinawa.
5.3.
“Ideologia” e manutenção até a década de noventa60
5.3.1.
conceitos “preservação” e “difusão” como reconstrução da tradição
As escolas de kutū exibem, no próprio nome, os dois conceitos “preservação” e
“difusão”: Ryūkyū Sōkyoku Hozonkai – Preservação da Música para Kutū de Ryūkyū e Ryūkyū Sōkyoku Koyōkai – Difusão da Música para Kutū de Ryūkyū. De acordo com David Hughes (1993, 353):
[...] a idéia “preservação” hozonkai surgiu em torno do começo
do século XX, parcialmente, através de incentivos governamentais61.
[...] essa organização sob controle local está devotada a ‘preservação’
(mas, usualmente, também desenvolvimento e propagação) de uma
canção ou dança local [...]. Enquanto ‘preservação’ pode parecer uma
ideologia inapropriada para forçar as artes folclóricas, cujos estudiosos
presumem ter evolução continua como parte de sua natureza, não há
como negar que muitas formas folclóricas teriam desaparecido sem o
crescimento desse conceitoxxv.
O que Hughes chama de “ideologia inapropriada”, inculcada de cima para baixo,
remete à definição de Eric Hobsbawn (1983, 9) “‘tradições’ realmente inventadas, construídas
e formalmente institucionalizadas [...] estabelecendo uma continuidade bastante artificial”.
Concordo com Hughes que a institucionalização não seja a saída ideal, mas na falta de outra
alternativa, torna-se imprescindível na manutenção da música vernacular.
60
Esta secção constará, de maneira sintética, da revisão de alguns dados da pesquisa anterior, concluída em 1998,
não se tratando de nenhum marco especial para as escolas.
61
Seria válido lembrar que na época, a política Meiji incentivava a ocidentalização, principalmente da música, incluindo o repertório europeu no currículo escolar. Ao mesmo tempo que o governo ameaçava a música tradicional,
tentava protegê-la, o que aparenta uma incoerência ou sentimento de culpa.
95
No caso da música de Ryūkyū, que é repertório de minoria também na terra de origem, a reconstrução da tradição exige que o conceito de “preservação” seja levado mais a
sério, lembrando que a música representa a soberania cultural. E quando se torna repertório de
imigrante, a ideologia da “preservação” pode assumir proporções redobradas, conforme as razões expostas anteriormente (top. 5.2.1).
5.3.2.
objetivos, estágios, performances, protagonistas e âmbito físico
No Brasil, as escolas Nomura e sōkyoku nasceram com os seguintes objetivos: estudar, divulgar e pesquisar a música antológica, colecionando e armazenando partituras e coreografias; preparar os instrumentistas para acompanharem a dança; certificar, através de diplomas, os professores e os mestres; e cooperar com entidades da comunidade.
Há cinco estágios de titulação para o executante da música vernacular para escalar: shinjin ‘estreante’, yūshū ‘com distinção’, saikō ‘máxima’, kyōshi ‘professor’ e shihan
‘mestre’. Observei que é necessária uma média de dez anos para se alcançar o grau de kyōshi
e mais uma década para ascender ao de shihan, “se houver uma dedicação regular” (Satomi
1998, 81).
Desde o início, as escolas de koten mantinham o formato do show de variedades
Engeitaikai praticado desde as viagens de navio62. Engeitaikai incluía performances de música da corte, minyō, dança individual, em grupo e teatro cômico, reporta Yamashiro (1993, 240)
sobre as comemorações da fase rural. Sobre a PNB, Yabiku (1987, 221) relata que, bienalmente, acontecia o Festival de Música e Dança e que, a cada quatro anos, vinham especialistas da
terra natal para participar das apresentações e outorgar títulos.
Yabiku (1987, 219-20) testemunha que, nas apresentações da PNB, em 1975, havia
50 sanshin e 30 kutū e que dez anos depois contava com 120 associados. Olsen (1983a, 112)
registrou, em 1981, entre 80 a 100 membros. Em 1993, o número permaneceu estável em 120
62
Shuhei Hosokawa (1992, 127) descreve como protótipo de Engeitaikai o concurso de fantasias, declamação de
poesias e músicas folclóricas de cada província que ocorria durante a travessia do Equador.
96
sócios. Até então, foram habilitados 11 mestres e 21 professores de sanshin, 1 mestra e 22
professoras de kutû. Os professores mais atuantes foram: Binsuke Shinzato, Yōei Tonaki,
Kamasuke Kobashikawa e Shinkun Chibana. Todos esses mestres de sanshin atua(ra)m na
zona leste, principalmente, no bairro de Vila Carrão (v. fig. 18), onde se tem a maior subsede
da AOKB. As professoras principais de kutū até então são: Toyo Ōshiro e Harue Yamada, que
atuam em Vila Carrão e São Mateus; e Tsuru Yonaha, em Santo André (Satomi 1998, 80-104).
Enquanto a PNB é um reduto da música de Ryūkyū, exclusivamente da zona leste
da cidade de São Paulo e da região do ABC paulista, a ANB abrange além de Campo Grande
(MS), (v. fig. 19) outros municípios paulistas como Guarulhos, Suzano, Campinas e Santos.
A ANB contou com a adesão de 30 sócios no primeiro ano, em 1956, e quintuplicou para 150, em 1985. Até 1993, o número de associados caiu para 130, cuja porcentagem de
92% é imigrante. Os dirigentes alegam que a maioria dos associados tem idade avançada, alguns vieram a falecer e os mais novos voltaram para o Japão, como dekasegi. Até então, foram diplomados 52 professores e 12 mestres de sanshin, 1 mestra e 8 professoras de kutū.
Os mestres atuantes até 1993 são: o pioneiro Kishin Nakandakare; Kaisaku Nakamoto, da Casa Verde; Chōko Wauke e Seichū Ōshiro, de Santo André; Kensho Tengan, da
Vila Alpina; Koshin Yonamine e Shigenobu Ōshiro, de Campo Grande. As mestras principais
da DKB: Take Takara, da Casa Verde; Sachiyo Shimabukuro, de Santo André e Kame Gushiken, da Vila Alpina. As localidades que congregam maior número de associados são: Campo
Grande, Casa Verde, Santo André, Ipiranga, Vila Alpina e São Caetano.
As escolas koten refletem a situação numérica de associados nas subsedes da
AOKB. Por ordem decrescente temos: Vila Carrão, Campo Grande, Casa Verde, Santo André,
Ipiranga, São Mateus, São Caetano do Sul, Vila Prudente e Vila Alpina.
97
Lendo sobre os fatores da sobrevivência da música okinawana no Havaí, expostos
por Anderson Sutton (1983, 75-80), anotei muitos pontos semelhantes com as escolas de koten
no Brasil (Satomi 1988, 104, 147):
A dinâmica em que se processa a continuidade – além da disponibilidade de partituras e gravações; o grau de coesão; o contato
permanente com as suas respectivas matrizes em Okinawa; e a prática
pelas novas gerações [...] – é alicerçada em primeira instância no universo hierárquico dos concursos, performances e da aprendizagem;
posteriormente, na disponibilidade e manutenção de instrumentos; por
último, o bairrismo, rivalidades entre escolas e a superioridade dos
naichi63.
5.4. Preservação do Kutū no Brasil (PKB): cenário e protagonistas
5.4.1.
situação atual da PNB
Na lista conjunta da PNB e PKB, de 2002, consta um total de 81 associados: 43
executantes de sanshin e 38 associadas da ala kutū (v. ap. 6). O gráfico em colunas, da figura
20, apresenta a PKB em vermelho e a ala de sanshin em azul. Da esquerda para a direita: o
bairro Casa Verde se situa na zona norte, Jabaquara e Santo André na zona sul, Campo Limpo
na zona oeste e o restante na zona leste64.
Fig. 20. Distribuição dos associados da PNB e PKB na Grande São Paulo
30
Distribuição por zonas em S. Paulo
25
20
2%
1%
15
7%
4%
10
5
86%
63
nh
a
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eu
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Norte
Centro
Sul
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0
Termo utilizado pelos okinawanos para se referir aos demais japoneses.
Ponte Rasa não corresponde a uma subsede da AOKB, mas achei relevante representá-la, pois trata-se do endereço da professora principal da PKB.
64
98
Com exceção da Penha, vemos que a parte mais significativa se encontra a partir
da Vila Prudente. E no gráfico seguinte se confirma que a zona leste65 compõe 86% da PNB e,
dessa fatia, 2/3 representa a Vila Carrão.
A Vila Carrão surgiu com a presença de imigrantes portugueses, italianos e japoneses, no começo do século, e a paisagem rural predominou até a década de 60. Hoje os japoneses, especificamente okinawanos, marcam forte presença na feição local. A seguir, um trecho do diário de campo descrevendo o trajeto para a AOVC, a maior subsede da AOKB.
Antes de entrar no centro comercial da Av. Conselheiro Carrão
prevalece o cenário de sobrados geminados e algumas fábricas (muitas
delas desativadas), apáticos66 na conservação de suas fachadas desfiguradas pelas pichações. Dobrando a avenida de lojas, quase todas de
japoneses, alcança-se a praça arborizada, mas cercada, destinada às atividades esportivas do bairro. A área reservada para o gateball67, esporte preferido dos anciões japoneses, indica que chegamos na frente
da Associação Okinawa da Vila Carrão (v. ft. 1).
Na fachada, as cores coincidem com a bandeira paulista.
Branco na parte superior e sobre o mármore preto da parte térrea, delineando a entrada central para o auditório, o portal vermelho, uma réplica reduzida do ‘portal da cortesia’ em Shuri. A conservação da fachada fica por conta da ala jovem da Associação. Eles apagam as pichações sem reclamar, ou sem sentir responsabilidade pela heresia rotineira cometida por indivíduos da mesma geração.
A praça arborizada é um raro tom verde reminiscente do bairro que começou a ser
ocupado com parreiras de uvas. A descrição acima aponta dois fatores do declínio da música
koten: problemas de segurança68 e a preferência cada vez maior dos idosos pelo gateball.
Do total de 81 associados da PNB, apenas quinze são descendentes – treze nisei e
dois sansei. Os issei representam 79% do total e são provenientes de Naha, Yomitan, Nishihara, Okinawa e Nago. Salvo esta última que se situa ao norte, as demais ficam na região centro-
65
A zona leste pode ser caracterizada como bairro de (i)migrantes, pelo menos até a década de 80. Logo no início
da Av. Radial Leste ficava a Casa de España e, nas imediações da estação do Braz, podia se ouvir fortes sotaques
italianos e nordestinos. Ali ficava a Hospedaria dos Imigrantes, onde hoje funciona o Museu da Imigração, que preserva a edificação e parte da sua memória.
66
Talvez estejam aguardando a valorização apenas do terreno para a previsível verticalização do bairro.
67
Jogo com taco cujo objetivo é atravessar a bola em pequenas traves cravadas no campo de terra.
68
Especialmente, a Vila Carrão apresenta altos índices de furtos e homicídios, embora este tenha diminuído de
1998 para cá, segundo Data Folha, 30.10.2003. Quem sabe, a campanha Yves Ota (sansei okinawano de seis anos
seqüestrado e morto em 1997 pelos próprios agentes de segurança do seu pai) tenha contribuído para essa redução.
99
sul de Okinawa-ken (fig. 16). Abaixo de 55 anos de idade, há apenas duas nisei com 17 e 21
anos. As demais apresentam uma média de 70 anos.
5.4.2.
professoras principais
A Ryūkyū Sōkyoku Hozonkai, matriz da PKB, surgiu em Okinawa, em 1957. Fora
do Japão, há apenas a filial do Havaí e a do Brasil. No livro editado em comemoração aos 40
anos da entidade, consta uma associada no Havaí e 75 associadas69 no Brasil.
Embora o ano oficial da fundação seja o da PNB, 1963, a filial brasileira PKB foi
reconhecida pela matriz, em janeiro de 1970. O fato de que isto sucedeu quatro anos após a
chegada no Brasil de Toyo Ōshiro – a única professora com o título de shihan durante os 23
primeiros anos da PKB – leva a crer que ela seja a principal responsável pelo acontecimento.
Adiciona-se o fato dela ter sido a primeira presidente da filial brasileira e discípula de Toshi
Okuhama, presidente da matriz na época.
A professora Ōshiro, nos seus 85 anos de idade, nunca demonstra cansaço e continua sendo a instrumentista mais requisitada70 nas celebrações da comunidade que não são
poucas e nem breves. Proveniente de Naha, ela alega que estuda desde os onze anos, simplesmente porque gosta. Como ela imigrou em 1966, em plena era da ocupação norte-americana,
presumo que tenha presenciado os horrores da guerra e convivido bem de perto com a presença non grata. Sabe-se que em Naha há uma vila chamada Oroku que mantém ainda grande
parte do arsenal bélico americano instalado na ilha.
Toyo Ōshiro lidera um grupo de seis graduadas, das quais duas shihan (v. tab. 12):
Harue Yamada e Chibana Chieko. As três “mestras” são as principais agentes da Sōkyoku
Hozonkai em São Paulo.
69
70
Na lista da comemoração dos 40 anos da PNB, realizada em agosto de 2003, constam 38 associadas.
Para se ter uma idéia, em 37 anos de Brasil só esteve uma vez na terra natal para rever o único filho e neto(s).
100
Tab. 12. Professoras e alunas da PKB, em 2003
Harue Yamada Œ
Toyo Oshiro Œ
Chieko Chibana Œ
Fumi Taba ‹
Kiyoko Toma Š
Hatsue Omine Š
Tsuru Taba …
Yoshiko Miyazato ‹
Fumi Ueta ‹
Sachiko Ueta ‹
Tomi Teruya ‹
Yoshiko Moromizato ‹
Aiko Arasaki ‹
Hatsuko Itokazu
Yoshi Misato
Sadako Nakasone
Mitsuko Uehara Hideko Shiroma ‹
Emi Arashiro Š
Yoshie Takaesu Š
Toyoko Akamine …
Kazue Shiroma
Naomi Arashiro Yoko Yamauchi Katsuko Nakasone Chiyo Ameku ‰
Kikue Uehara …
nn professora
nn profa e (ex)presid.
Πshihan
‹ kyoshi
Š saikô-sho
‰ yûshu-sho
… shinjin-sho
Na festa dos 95 Anos da Imigração Japonesa da AOKB, das cinco mulheres homenageadas71 quatro são professoras de kutū, sendo duas da PKB: Toyo Ōshirob e Harue
Yamada.
Harue Yamada, cuja família se dedica ao comércio em Vila Carrão, é proveniente
de Kunigami, extremo norte da maior ilha de Okinawa. Além da música, a professora atua na
área do teatro e dança tradicional. Na PKB, ela já formou duas professoras kyōshi, não atuantes, computando sete alunas residentes em Vila Carrão e formou mais quatro professoras em
São Mateus. Entre estas professoras, Yoshiko Yamazato é responsável por mais duas alunas
do mesmo bairro.
Chieko Chibana ocupa o cargo, em sua terceira gestão, da presidência da PKB.
Emigrou de Yomitan em 1948, com apenas dezesseis anos, primeiramente para os Mares do
Sul, onde passou nove anos e, antes de chegar no Brasil, morou mais oito anos na Bolívia, em
Santa Cruz de la Sierra. Desde 1971, passa a viver definitivamente na cidade de São Paulo.
71
Entre os vinte líderes da comunidade que incluiu desde o ministro Luiz Gushiken, Dr. Kokei Uehara, etc.
101
Havia anotado, primeiramente, que o maior contingente da PNB provinha de Yomitan, “a cidade de Akainko, o criador da música de Ryūkyū” (Satomi 1998, 32). Seria válido
acrescentar que foi uma das primeiras cidades tomadas pelas tropas americanas, em 1945. Alia-se à lembrança de que outro emigrante de Yomitan, o atual presidente da PNB72, revelou,
desde o primeiro contato, um sentimento antiamericano exacerbado abominando qualquer
termo americano adotado pelo idioma japonês moderno.
Observei, também (Satomi 1998, 102), que a Vila Carrão tinha a peculiaridade de
reunir imigrantes que estiveram na Bolívia, antes de chegarem ao Brasil.
Nas apresentações na sede de Vila Carrão, não é incomum
presenciar o uso do charango andino entre os sanshin. Alguém que esteve pela Bolívia adotou o alaúde revestido de tatu para praticar o canto da sua terra e, vindo para o Brasil, não esqueceu de incluir em sua
bagagem o companheiro ‘adotivo’ de suas agruras.
Como as três integrantes da PKB da Vila São Mateus, a professora Chibana e outras alunas de Santa Clara também estiveram na Bolívia, a peculiaridade deva se estender para
toda a região leste. Aliás, dizem que em Vila Carrão permanecem os irmãos mais velhos chōnan, enquanto os demais se espalham em bairros adjacentes. Esta informação induz que,
quando os negociantes, sejam eles lojistas ou pequenos empresários, se estabelecem, surge a
necessidade de expansão abrindo outras sucursais.
5.4.3.
preparação e performances
Atualmente, apenas 22 das 38 associadas estão ativas na prática do kutû. Na especialíssima comemoração dos 40° aniversário da PNB, notei que apenas 18 tocaram. A professora Chibana esclarece então que três das associadas, também professoras de dança, só têm
tempo de coordenar a performance de dança delas e das suas alunas, durante o evento. A outra ausência é a da jovem Naomi Arashiro, que está em Okinawa como bolsista estagiária.
72
Shinkun Chibana imigrou em 1966 para Campo Grande e reside em Vila Carrão desde 1968.
102
Em 1998, havia observado uma continuidade otimista, já que a ala de kutū era
maior que a do sanshin, e a preparação de crianças e jovens. Porém, revendo o número de 67
associadas em 1993 – das quais 28 participavam dos eventos – constata-se o declínio no número total de associadas. Para compensar, foram habilitadas mais três mestres shihan e sete
professoras kyōshi, nos últimos dez anos. Só que, das quatro shihan, apenas três estão desempenhando suas funções e a mestre Yuriko Kogachi parece ter preferido dinamizar a dança.
Quanto às jovens, permanece apenas a Emi Arashiro, nisei de Yomitan, aluna da professora
Chibana, e nenhuma criança.
Se compararmos o quadro de professoras do apêndice com a tabela 12, não há
mais continuidade em Santo André, nem na Vila Prudente. A PKB restringe cada vez mais
sua área de atuação, atingindo apenas alunas da Vila Carrão, Santa Clara e São Mateus. Tratase, atualmente, de um fenômeno exclusivo da zona leste de São Paulo.
Ōshiro ministra as aulas de kutū para o grupo de professoras em sua residência, no
bairro da Ponte Rasa. Na sede da AOVC, há o encontro mensal do grupo de professores da
PNB e da PKB, que ocorre na segunda-feira da segunda semana de cada mês.
A professora Chibana reúne suas nove alunas semanalmente em sua própria residência (v. ft. 7), situada acima do supermercado da família. A laje acima ainda foi aproveitada
como cobertura, servindo para a o treinamento de dança. Ela e as três associadas, professoras
de dança mencionadas anteriormente, da Sōkyoku, são também da Associação Brasileira da
Escola de Dança Tamagushiku. O professor de taiko, Naohide Urasaki, também dirigente da
Associação de Dança Hananokai do Brasil, havia esclarecido que, em geral, o interesse pelo
instrumento busca o aperfeiçoamento da dança.
Como se pode observar na foto 2, mesmo durante as aulas elas tocam ajoelhadas
no chão, suportando a posição incômoda, durante duas a três horas. Pude presenciar uma das
preparações para o concurso anual de koten. Embora a avaliação seja individual, o treinamen-
103
to é sempre coletivo. Não somente a professora, mas aquelas que já dominam o repertório revisam-no repassando a experiência apenas tocando juntas, sem interrupções verbais. Cada peça é tocada umas três vezes. A professora pode tecer algum comentário entre as repetições,
evitando dirigir alguma ressalva de ordem pessoal. Na quarta vez, a candidata ao concurso sola simulando a apresentação do dia do concurso.
“Além de amenizar o coração, o significado principal da música é a união entre os
associados”. Essa assertiva direta – mas breve e profunda como um hai-kai – da professora
Chibana, carrega a soma de um passado sofrido e o objetivo maior do fazer musical: manter a
coesão do grupo social. É por isso que a outorga de títulos nem sempre segue o critério estritamente musical, dependeria muito mais do papel pela união que a candidata (ou seus familiares) tem desempenhado junto às entidades. Dessa forma, o critério pode seguir a ilustração da
estrutura institucional do último fluxograma (v. fig. 17).
5.5. Difusão do Kutū no Brasil (DKB)
O palco principal das atividades em conjunto, das escolas de música koten, tem
sido o da sede principal da AOKB (ft. 3), seja no Nenmatsu, último encontro anual em novembro, ou no concurso anual realizado em abril (ft. 4). Nas notas de campo, descrevi a seguinte paisagem sonora da sede da AOKB, no bairro da Liberdade (Satomi 1998, 93):
Se traçarmos um itinerário sonoro, é preciso passar pela Rua
Conde de Sarzedas, onde soam hinos evangélicos, protestantes e católicos das lojas, congestionamento de comerciais de fé concorrendo decibéis em mensagens. Dobrando a esquina da Rua Tomás de Lima
pode-se ouvir um forró acanhado de um dos sobrados geminados –
construções típicas dos anos 50, pintados em recente auriverde contrastando com o lixo amontoado na esquina e a miséria dos habitantes
em frente à sede social. Chegando na sede da AOKB, em qualquer dia
da semana, é possível ouvir o som recatado do sanshin e o som evanescente do kutū.
Passados cinco anos, o cenário mudou bastante. As primeiras lojas e o sobrado em
frente à sede, cujas paredes tinham a função de receber, ou abrigar pessoas, foram derrubadas
para abrigar, agora, carros. Sem embargo, para os freqüentadores da sede ficou mais acessí-
104
vel, pois o estacionamento do subsolo da sede era insuficiente. Retirando os arredores, o mais
lamentável é não poder ouvir com tanta freqüência o som das cordas do sanshin ou do kutū,
sobretudo o motivo melódico das “Gotas de Chuva”, devido ao falecimento recente dos professores Kaisaku Nakamoto e Nobuo Agena.
5.5.1.
principais agentes e âmbito da ANB
A filiação brasileira da Ryūkyū Sōkyoku Koyōkai ocorreu em 1975. Em 28 anos
da DKB, foram habilitadas seis mestras e vinte professoras.
A lista da ANB, em 2002, conta com 154 associados, dos quais 85 executantes de
sanshin e 69 de kutū. Na distribuição por bairros, a ala kutū está em laranja e o setor sanshin,
em verde. Os bairros Ipiranga e Jabaquara compõem a zona sul; de Patriarca até São Mateus,
a zona leste; São Caetano do Sul e Santo André, o ABC paulista; de Suzano até Campinas, as
demais cidades do estado de São Paulo; e Campo Grande, o único núcleo do estado do Mato
Grosso do Sul.
Fig. 21. Associados da ANB e DKB, em 2002
30
25
MS
16%
norte
14%
centro
3%
20
sul
10%
SP
18%
15
10
5
ABC
20%
leste
19%
Su
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et
an
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Através do gráfico por bairros, vemos que o maior número de associados está em
Campo Grande, seguido de Casa Verde, Vila Alpina, Santo André e São Caetano.
Em 1994, observei (Satomi 1998, 95) que a ordem decrescente, após Casa Verde,
difere de Santo André, Ipiranga e Jabaquara. Campo Grande reflete a situação de ser a segunda subsede mais numerosa da AOKB. Casa Verde reflete a atuação do professor Kaisaku
105
Nakamoto, falecido em 2002, que presidiu cinco gestões desde quando fundou a ANB, em
1972. A ascensão da Vila Alpina deve-se à atuação recente do professor Kensho Tengan, que
presidiu a entidade durante dois mandatos consecutivos, entre 1992 e 1996.
Tomoo Handa (1987, 388-94) documenta dois grupos pioneiros de okinawanos em
Campo Grande. O primeiro, que emigrou inicialmente para o Peru, instalou-se em 1910, depois de trabalhar na construção da ferrovia no Mato Grosso. O segundo grupo, formado por
sete famílias, instalou-se na colônia Mata do Segredo em 1917, para plantar arroz, cana-deaçúcar e depois café. Ando Wakisaka (1992, 86) registra um terceiro grupo de 49 famílias, que
fundou a colônia Bandeira, em 1918, para o cultivo de verduras e que, quarenta anos depois,
já era constituída por 450 agricultores.
O cinturão verde é ainda hoje uma importante configuração em
torno de Campo Grande [...] conhecido como “cidade de turcos rodeada de japoneses”. Ou seja, sírio-libaneses cercados de okinawanos,
pois estes constituem mais de 90% dos nikkei da cidade (Satomi 1998,
70).
Embora exista o kenjinkai, desde 1922, o ano oficial da fundação da Associação
Okinawa Campo Grande é 1966, data de inauguração da sede local, depois de quatro anos de
mutirão, segundo o jornal Uchiná Press (Chinen 1998, 9). Em 1995, o guia de endereços da
AOKB fornece o número de 402 famílias associadas em Campo Grande.
Do total de 154 associados da ANB, apenas vinte são descendentes, dezoito nisei
e dois sansei. Os issei representam 78% do total e são provenientes de Nakijin, Nago, Gushikawa, Itoman e Okinawa. Invertendo a situação da PNB, os emigrantes são provenientes da
região centro-norte com exceção de Itoman, localizado no extremo sul da ilha maior de Okinawa.
5.5.2.
as protagonistas
A lista específica da DKB mostra uma predominância diferente de associados da
entidade maior, ANB. Ao invés de Campo Grande, o maior número de sócias está no bairro
106
da Casa Verde seguido de Vila Alpina, São Caetano, Campinas e Santo André. Nos últimos
cinco anos, o número de associadas diminuiu de 81 para 69, mas pouco mudou em relação à
predominância. Apenas São Caetano sobe agora para o lugar de Santo André, que ocupava o
terceiro maior núcleo de koten.
A Associação Okinawa de Casa Verde (AOCV), onde se tem o maior número de
associadas da DKB, segundo o gráfico da figura 21, foi fundada em 1960 por quarenta famílias. Apesar do bairro perder dois grandes incentivadores da cultura musical okinawana, os
professores Kaisaku Nakamoto, da ANB, e Nobuo Agena, da Preservação do Minyō, jovens
talentos, como Leandro Satoru Saito73 e Vitor Ōshiro74, despontam no bairro.
Nos últimos oito anos, apenas a professora de Campinas, Haruko Yonamine, ascendeu para shihan. E permanecem as mestras: Take Takara, da Casa Verde; e Kayoko Shimabukuro, Toshiko Ōshiro e Nobuko Akamine, de Santo André. Em compensação, foram habilitadas mais oito professoras kyōshi: Sachiko Uema, Miyo Miyagi, Tomiko Arakaki, Haru
Ota, Miyo Uehara e Fumiko Hentona, da Casa Verde; Yaeko Yamashiro, de São Caetano;
Ryoko Kuniyoshi, da Vila Alpina. As integrantes, realçadas em amarelo na tabela seguinte,
foram presidentes da DKB e em verde, as atuais professoras que já desempenharam a função
de presidente.
A presidente, desde 2000, é Ryoko Kuniyoshi que reside na zona leste e consta
como imigrante de Yomitan, mas nasceu nas ilhas dos Mares do Sul, em 1936. Na época seus
pais é que eram emigrantes de Yomitan. A família voltou para residir na cidade de Okinawa
na época da II Guerra e, depois, a presidente foi fazer o curso técnico de cabeleireira, em
Tôkyô, antes de imigrar para o Brasil com seus pais, em 1967. Lidou bem pouco na lavoura,
73
Aluno também da DKB, mas sua atividade principal é como dançarino do estilo Tamagushiku, embora autodidata desde os quatro anos de idade.
74
Vitor, com apenas nove anos de idade, é virtuoso do sanshin e cavaquinho. É aluno do professor Takashi Komesu, da Preservação do Minyō no Brasil.
107
trabalhou como cabeleireira e, principalmente, auxiliando o marido fotógrafo. Seu pai, Sosei
Machida, já gostava de koten e recebeu o diploma de kyōshi da ANB, em 1985.
ABC e V. Alpina
Kayoko Shimabukuro Œ
Toshiko Ôshiro Œ
Nobuko Akamine Œ
Haruko Ichi ‹
Yaeko Yamashiro ‹
Haruko Kamiya Š
Chiyoko Higa Š
Chiyo Kuniyoshi Š
Sumiko Ôshiro Š
omikoTamayose TŠ
Matsuko Iramina ‰
Ryoko Kuniyoshi ‹
Tatsuko Tengan …
Yoshiko Kakazu Š
Sadako Kakazu Š
Misako Noborikawa ‹
Teruko Tengan Š
Toki Onaga Š
Haruko Yamaguchi Š
Tab. 13. Professoras e alunos da DKB em 2002
zona norte
Diversas localidades
Take Takara Œ
Tomi Nakano Š
Hideko Tomei ‹
Tomi Nakasone ‹
Sachiko Uema ‹
Miyo Miyagi ‹
Tomiko Arakaki ‹
Haru Ota ‹
Miyo Uehara ‹
Fumiko Hentona ‹
Tomi Teruya Š
Tsuneko Kanashiro Š
Tamae Arashiro Š
Toyoko Serikyaku ‰
Tomie Agena …
Yoko Asato …
Satoru Saito … ♂
Haruko Yonamine ΠCampinas
Centro
Hana Itokazu
Maria Aguni Š
Misae Kayo Š
Keiko Yonamine ‰ Ipiranga
Take Kuniyoshi ‰
Kayo Matsuda Š Guarulhos
Yoriko Shimabukuro ‰ Suzano
Shige Shimabukuro Š MS
… shinjin
‰ yūshū
Š saikō
‹ kyōshi
Πshihan
As principais líderes da Grande São Paulo continuam sendo as primeiras shihan
da entidade, Take Takara e Kayoko Shimabukuro, ambas com 92 anos de idade. E foram,
também, as duas homenageadas da DKB, na Festa dos 95 anos da Imigração.
Observando o vigor e dinamismo dessas duas mestras de kutū, logo me surge a
conexão com o elevado índice de longevidade das okinawanas. Hideyoshi Ōhashi (1986, 8-9)
atribui à responsabilidade espiritual que as anciãs carregam para manter o culto aos antepassados75 como uma das causas ocultas de sua longevidade. Acrescento, então, que no caso das
decanas, a responsabilidade pela manutenção da tradição musical também pode ser a motivação de tamanha disposição.
75
À mulher cabe preparar as oferendas, convocar os parentes e dirigir orações ao deus do fogo (próximo ao fogão
da cozinha) e ao altar dos antepassados (Satomi 1998, 27).
108
A procedência Naha e o sobrenome Takara indicam que a professora da Casa
Verde pode pertencer ao clã Uzato, acumulando outra responsabilidade. Humberto Kinjō
(1997, 6-7) explica sobre esse patamar de etnicidade:
Na imigração japonesa, a maioria é okinawana; dentre os uchinanchus, a maioria é de Oroku e dentro dos orokunchus, a maioria é
do Uzato munchō. [...] Munchō é um clã familiar que se reúne a cada
sete anos76 no cemitério da família [...] quando se prepara a tradicional
sopa de cabrito [...] e as famílias se informam sobre o desenvolvimento da árvore genealógica.
Os pioneiros chegaram em 1917 e hoje somam cerca de 3600 pessoas distribuídas
em 670 famílias concentradas, especialmente, em Santa Maria e Casa Verde, bairros da zona
norte da capital paulista.
5.5.3.
treinamento e apresentações
Os treinamentos são realizados semanalmente em cada bairro. E os líderes de cada
bairro ensaiam uma vez por semana no grupo de estudos na sede principal da AOKB. Em
1997, havia apenas uma mulher no grupo tocando a flauta tradicional. Hoje, há mais quatro
graduadas em kutū pela DKB. O grupo de estudos, após a morte de Kaisaku Nakamoto, não
possui uma coordenação musical específica, relata a presidente Kuniyoshi. Quanto à conduta
do treinamento da DKB (ft. 5), havia observado uma dinâmica similar à aula da PKB (Satomi
1998, 99):
No bairro de Casa Verde presenciei um dos treinamentos dirigidos pelo professor Nakamoto. São três horas da semana muito aguardadas pelas participantes, onde tocam um repertório de vinte músicas. A única fala é a do professor anunciando a próxima música a ser
tocada. As interpelações são raras, denunciando um profundo sentimento de veneração por parte das alunas e respeito por ambas partes.
Naquelas horas mágicas se esquecem de artrose, diabete, pressão alta,
etc., suposição que se reforça pelas guloseimas ‘ritualizadas’ para o
intervalo. Ali se exorcizam problemas pessoais e até possíveis regimes
alimentares.
76
Mesmo intervalo em que ocorrem rituais para retirada de ossos, conforme a necessidade e disposição hierárquica
nas sepulturas.
109
Quanto às performances específicas da ANB continuam os encontros anuais da
primavera e outono – que podem estar relacionados com os ritos sazonais ou de equinócio. O
shinnenkai, ‘primeiro encontro do ano’, realizado em conjunto com a PNB, cedeu lugar ao
nenmatsu, encontro de ‘fim de ano’.
O grupo de graduados da ANB e PNB segue marcando presença com a música da
corte (v. ft. 6) no Festival Folclórico, que acontece em todo final do mês de julho, quando as
cerejeiras estão florindo, no Centro Cultural Okinawa do Brasil (CCOB), situada em Diadema77 (v. ft. 2). O Festival seria a reminiscência do Engeitaikai, a tradição mais remota que
permaneceu desde a viagem do imigrante. Trata-se do evento anual mais aglutinador observado em toda a pesquisa de campo.
As onze academias de dança, as duas escolas de taiko, os quatro clubes de música
koten e dois de minyō – sem contar a presença dos jovens talentos Leandro Satoru Saito, Vítor
Ôshiro, da zona norte, e a banda Ton ton mi78, da zona leste – permeiam a atração principal do
evento, que é o concurso de beleza, chamado Miss Ryūso. O concurso atrai a presença de
uma torcida cada vez maior e mais animada de jovens, munidos de apetrechos ruidosos de
plásticos, usados em estádio de futebol, tais como: buzina, matracas e apitos79.
O festival tem a duração total de umas doze horas. O mesmo conjunto, de escolas
e talentos musicais, é exibido com orgulho em todo os ensejos comemorativos de aniversário,
especialmente, da AOKB e da Imigração Japonesa. Nas apresentações dos grêmios de koten,
prevalece o repertório sacralizado uta-sanshin chamado kunkunshi. No entanto, para as sōkyoku, o repertório específico de kutū chamado dan no mono, é considerado mais importante. Para se alcançar o grau de shihan é preciso dominar os sete dan no mono. No apêndice 2, cons-
77
Município que compõe a região ABCD da Grande São Paulo.
Grupo integrado por cinco jovens que residem no bairro de São Mateus. Eles cantam música vernacular moderna, tocando sanshin, guitarra, baixo e teclado.
79
No concurso de beleza parece prevalecer o mesmo critério dos concursos de koten, descrito no tópico 5.4.3.
78
110
tam as transcrições das duas peças dan no mono mais apresentadas pelas sōkyoku de Ryūkyū:
“Tachi Utūshi” (tr. 1) e “Rokudan Sigagachi” (tr. 2).
5.6. Sentido da atitude musical
Durante a pesquisa de campo, detectei a maneira como os agentes enculturativos
atribuem à música o papel principal para a coesão e etnicidade da comunidade okinawana.
Antes da afirmação da presidente Chibana (v. p. 105) sobre o papel da união que
desempenha a música, tive a oportunidade de entrevistar os principais articuladores da ANB,
em 1997. O ex-presidente Kensho Tengan, da Vila Alpina, alegou o seguinte sobre o sentido
do fazer musical:
Em qualquer lugar é assim. Quando se separa da ilha ou do país onde nasceu e encontra os compatriotas com a mesma dor de estarem longe de sua terra, a tendência é se juntar
e permanecer unido.
Outro ex-presidente Soshin Kayo, do bairro do Ipiranga, complementa:
Como Okinawa é muito pequena, tudo que passou e sofreu
junto, por exemplo na II Guerra, não dá para esquecer. Por isso é unido, cultiva a ajuda mútua e a solidariedade. E este sentimento de união
dura até hoje e não vai se acabar.
Embora eles afirmem que o principal objetivo é despertar interesse nos nisei e
sansei, as alegações explicam, em parte, o fato de não haver uma expressiva adesão de descendentes ao koten.
Quanto à música como elemento diferenciador da categoria “nós” e “eles”, o professor Kensho Tengan frisou: “O koten para nós de Okinawa não é canto de samurai. A voz e
a letra são especiais e têm muita profundidade...” Há uma nítida oposição ao espírito guerreiro
do japonês, na primeira sentença. Em seguida, Tengan salientou a característica da voz emitida como se estive apertando a garganta, ou seja, de um povo que resiste à imposição dos “outros” para que se calem.
111
O texto da poesia ryūka é bastante metafórica, carregada de preceitos éticos e morais. Segundo Nobuo Agena, a peça “Sōchikubai” – muito tocada em casamento, nascimento,
Ano Novo – apresenta os três elementos da sorte e da felicidade: pinheiro, ameixeira e bambu,
que simbolizam, respectivamente, raiz forte, retidão dos sentidos e transparência80.
Quando indagada se o formato dos plectros da sōkyoku de Ryūkyū seria parecido
com o formato da Yamada-ryū, a presidente da DKB fez questão de frisar que não conhece
muita coisa sobre a sōkyoku de Naichi, mas sabe que o tipo de tsume de Okinawa é único. E
acrescenta: “Dizem que em Naichi também tem ‘Rokudan’, mas o nosso deve ser mais bonito
porque nosso toque é delicado e suave. Lá, as cordas soam mais estridentes e o toque é mais
agressivo”.
Aqui a singularidade do formato do plectro e a conduta musical remarcam o sentimento de pertença. E a peculiaridade do toque poderia estar remetendo à oposição “não é
música de samurai”, expressa pelo sr. Tengan. Esses são alguns detalhes da conduta do kutūû
trazendo insight(s) sobre a conduta cultural do grupo social estudado, em que a etnicidade é
tão marcante, que atinge os descendentes e formadores de opinião como o jornalista Humberto Kinjō (1996, 3): “Que nos perdoem os demais, mas ser okinawano é como ser corinthiano
[uma das maiores torcidas de futebol da cidade de São Paulo]: sofredor mas orgulhoso, pobre
mas com garra. Mas, fundamentalmente fiel!”.
Nota de tradução
xxv
[…] this organization under local control is devoted to ‘preserving’ (but also usually developing and propagating) a local song or dance […]. While ‘preservation’ may seem an inappropriate ideology to force on folk
arts which are presumed by scholars to have continuous evolution as part of their nature, there is no denying that
many folk forms would have disappeared without the growth of this concept.
80
Da primeira estrofe há a seguinte tradução “Duas vidas emergiram/ quantos anos se passaram/ Como a rocha suporta/ pinheiro vigoroso.” (Satomi 1998, 118)
Fig. 18. Bairros mencionados do município de São Paulo
112
113
Fig. 19. Cidades mencionadas no Brasil e estado de São Paulo
6.
A HERANÇA FAMILIAR NO GRUPO MIWA: MÚSICA E SOLIDARIEDADE
Você está vendo aquele o-koto ali?
Ele sofreu enchente no porão do
navio quando vinha para cá e
passou também por um incêndio.
Miriam Sumie Saito
6.1. Prólogo: o legado e antecedentes
6.1.1.
heráldica transterritorializada do dragão e fênix
Miriam Saito, líder atual do grupo Miwa, é a sucessora familiar da fundadora de
um dos primeiros grupos de música “clássica” japonesa no Brasil, que inclui o repertório para
koto sōkyoku.
Quando indagada sobre a origem do o-koto, forma polida ou reverenciável de se
referir ao instrumento, a professora não tinha lenda ou estória para contar como a dos mestres
chineses do ch’in, mencionados no capítulo dois. No entanto, em novembro de 2002, a professora e duas assistentes vieram se apresentar no I Encontro da ABET – Associação Brasileira de Etnomusicologia, realizado em Recife (v. p. 135). Para anunciar o grupo, eu fornecia algumas informações organológicas do instrumento, quando, repentinamente, a professora me
sussurrou – com a intenção de passar adiante – a epígrafe que, possivelmente, foi transmitida
por sua progenitora.
Naquele momento, eu achara que ela queria elucidar o aspecto de sobrevivência
apenas de daquele “o-koto ali” intacto aos acidentes e soberbo ainda em sonoridade. Mas retomando a acepção anímica do dragão “espírito das águas e das tormentas” e da fênix “espírito do fogo”, vejo que a sobrevivência pode transcender ao exemplar apontado, abrangendo o
universo de sua heráldica milenar.
114
115
Conscientemente ou não, a pioneira do ensino do koto no Brasil inculca em sua
herdeira a responsabilidade de dar continuidade a um instrumento que atravessou todo um oceano, deparou com toda sorte de imprevistos, apresenta algumas cicatrizes externas, mas
conserva sua inteireza interna. É como se não devesse desperdiçar o poder do espírito do dragão e da fênix, revigorado a cada adversidade encontrada, em contexto transterritorializado.
A professora Míriam Saito foi assistente de sua mãe, a partir de 1984, e tem assumido a liderança do ensino da sua herança musical, desde 1990. Antes de abordar a situação atual do grupo Miwa, retomo o esquema da construção histórica.
6.1.2. primeiros registros da música “clássica” japonesa no Brasil
Anterior ao grupo Miwa, a primeira referência, em português, sobre um programa de música para koto obtida em minha pesquisa é a que foi captada por Mário de Andrade
(1989, 279, 473-4). Nosso pioneiro da etnografia musical menciona rapidamente nos verbetes
koto, shakuhachi e shamisen do Dicionário Musical Brasileiro: “instrumento executado no
programa da Sociedade Suiyōkai, a 19 de junho de 1932”.
Naquela época conturbada, devido à eminência da Revolução Constitucionalista
em São Paulo, mais de 90% dos imigrantes japoneses eram agricultores, arrendatários ou
pequenos proprietários e estavam instalados ao longo da ferrovia noroeste ou da linha litorânea Santos-Juquiá, no estado de São Paulo. A falta de registros da música “clássica” vernacular, até então, indica que a vida no campo não propiciou a prática desse estilo musical
(v. Handa 1987 e Satomi 1998).
Provavelmente, Mário de Andrade testemunhou uma das performances mais antigas em território brasileiro do referido trio sankyoku. Como ocorreu na ocasião do 24°
Aniversário da Imigração Japonesa no Brasil, acredito que seja um trio da terra nativa, pois
não há registros posteriores que atestem a permanência do Suiyōkai na terra de acolhimento.
116
E a vinda de especialistas pode ter estimulado a aquisição do koto, pois até então as imigrantes incluíam em sua bagagem instrumentos de porte menor como o shamisen.
Outra referência é o testemunho de Hōzan Miyashita – “o mais importante executante de shakuhachi do estilo Tozan-ryū”xxvi, conforme Dale Olsen (1983a, 122), na década de 70 – sobre o Grupo Futaba. Ele escreveu um memorial para a publicação81 Colonia
geinō-shi, ‘Crônica das artes cênicas da colônia’, intitulada “Koten ni yukashi onshoku [A
melodia refinada da música clássica japonesa]”. O artigo contém o depoimento mais remoto que pude obter dessa música no Brasil.
De acordo com a minha memória, a colônia japonesa começou a praticar a música clássica japonesa no Brasil por volta de 1928.
Naquela época as pessoas que apreciavam este estilo [...] se reuniam
mensalmente e, posteriormente, com a assiduidade e dedicação de
todos, fundou-se o grupo Futaba, acontecendo em 15 de maio de
1931 a primeira apresentação coletiva no Clube do Japão em São
Paulo.
Miyashita (1973, 140)
Miyashita discorre sobre os nomes de três casais, mais três senhores e quatro senhoras totalizando treze componentes desse primeiro grupo formado em São Paulo, apontando como membros centrais o sr. Otsuhito Ikebe82 e a sra. Uchihara. Observando a lista
dos nomes, Chiyoko Oba83, diretora da Associação dos Clubes de Anciões Nikkei do Brasil,
identificou profissionais destacados na área da saúde, na comunidade, e algumas senhoras
da Associação Esperança. Conforme a socióloga Tânia Nomura (1989, 25), que escreveu sobre a mulher nikkei no Brasil:
A Sociedade Beneficente Feminina Esperança surgiu como
prolongamento das reuniões que senhoras residentes em São Paulo
faziam para angariar recursos para um Japão arrasado do período do
pós-guerra.
81
Publicação comemorativa dos 65 anos da Imigração Japonesa no Brasil.
Ikebe, conhecido como fotógrafo na comunidade nikkei, tinha sido cameraman da produtora Sōchiku em Tōkyō e
veio para o Brasil, em 1923, falecendo em 1945 (Nomura 1989, 68).
83
Minha tia materna.
82
117
Quando revi a lista de nomes descrita por Nomura, percebi que não só algumas,
mas todas as fundadoras do grupo Futaba seriam, vinte anos mais tarde, as principais articuladoras da fundação da Esperança Fujinkai, em agosto de 1949. Os sobrenomes listados por
Miyashita que coincidem com os da lista de Nomura são: Sei Takaoka, Mitsue Sugiyama,
Fujiko Hachiya, Yasuno Uchihata, Yasuko Naritomi, Ume Murakami e Hamako Hasegawa.
Sobre as protagonistas, Tânia Nomura (1989, 25) pormenoriza:
As reuniões se realizaram por mais de vinte anos na casa da
já falecida Ume Murakami. A liderança foi assumida [...] por Sei
Takaoka. Casada com um conhecido médico que escrevia no jornal
Nippak sobre assuntos como combate à malária, medicina natural e
remédios caseiros. Sei transmitia informalmente sua vivência nas artes femininas às moças casadoiras.
Os “vinte anos” apontados por Nomura são anteriores a 1949, coincidindo com o
período mencionado por Miyashita, a data de ïnício da “música clássica japonesa no Brasil”
pelo grupo Futaba. É possível afirmar que a primeira sociedade feminina japonesa no Brasil
seja um desdobramento das reuniões de música koten, pois Miyashita menciona que “as senhoras eram responsáveis por tocar shamisen”. Tânia Nomura (1989, 24) prossegue:
Elas se reuniam para [cantar], trocar experiências domésticas
– culinária, puericultura, corte e costura, tricot, bordado. [...] e usando todo o seu poder de persuasão [...] se engajavam num trabalho de
solidariedade. [...] Hoje a Esperança com 1200 sócias tem como objetivo principal a filantropia além do auto-aperfeiçoamento.
Miyashita atribui ao falecimento do sr. Ikebe a interrupção das atividades musicais do grupo Futaba, em 1946. Mas, – remontando o período do patrulhamento excessivo
sobre as aglomerações de imigrantes mencionado no capítulo 5.1 – talvez, o shamisen não
fosse suficientemente grande para disfarçar a escola clandestina. Uma das professoras da
ABMCJ contou que livros e/ou crianças podiam, rapidamente, ser escondidos sob as enormes toalhas ou lençóis que as senhoras, inocentemente, bordavam ou costuravam, quando
agentes do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) chegassem.
118
O certo é que o contexto político de ambos os países exigia um deslocamento
nas prioridades do grupo. Observando a foto de 1947, publicada por Nomura, vê-se as senhoras à frente dos suprimentos que arrecadaram e, como figura central, um padre católico.
Naquele período de dupla opressão, o respaldo de um representante da religião oficial do
país adotivo foi uma medida astuta. Essa aliança poderia explicar o fato da Sociedade Beneficente Feminina Esperança conseguir ser oficializada em pleno hiato das associações, escolas e jornais dos imigrantes dos países do eixo.
6.2.
A implantação do Grupo de Estudos da Música e Dança Japonesa
6.2.1. circunstâncias na chegada do casal Miyoshi
Miwa e Yoshimi Miyoshi são os fundadores da GEMDJ – Grupo de Estudos da
Música e Dança Japonesa – oito anos depois de chegarem no Brasil. Olsen (1983a, 121-22)
destaca a então octogenária sra. Miwa como uma instrutora de koto tenaz e “especialista em
nagauta (‘canção de amor’, música para teatro kabuki)”xxvii. Menciona também que o sr.
Miyoshi foi o pioneiro do “kokyoku (clássico, lit. música ‘antiga’) da Tozan-ryū no Brasil”xxviii.
Em 1931, o casal Miyoshi, proveniente de Kure – distrito da prefeitura de Hiroshima84 – aporta em terras brasileiras trazendo instrumentos que tocavam desde criança. Na
bagagem dele um shakuhachi e na dela dois shamisen, um kokyū – cordofone similar ao
shamisen tocado com arco – e um membranofone chamado kakko. Ela contava com 29 e ele
30 anos de idade.
O período de 1930-35 assistiu ao ápice da imigração japonesa no Brasil, trazendo cerca de 63 mil issei. Os autores de “Emigração como Política de Estado”, Uchiyama et
al. (1992, 137), assinalam o fenômeno histórico:
84
Na primeira fase da imigração, até 1926, Kumamoto, Hiroshima e Wakayama foram as maiores prefeituras emigrantistas (Uchiyama, 1992, 154), além de Okinawa.
119
[...] o substancial crescimento de imigrantes japoneses depois de 1925 foi conseqüência de haver o governo nipônico assumido a emigração para o Brasil como política de Estado, levando em
conta a situação do mundo, do Japão e do Brasil. Então a emigração
para o Brasil recebeu o máximo apoio oficial de Tokyo.
Dentre os fatos desencadeadores Uchiyama (1992, 139, 141) destaca: a crise econômica mundial de 1929; o pânico financeiro de 1927 e o desemprego no Japão, resultantes
da recessão rural iniciada em 1918; e o terremoto de 1923, que abalou a região de Kanto,
“centro nevrálgico do país”. E para aliviar também o problema da superpopulação, o Brasil
representou a opção que restava, pois o movimento antijaponês nos Estados Unidos se intensificava.
Os voluntários fidedignos a essa política de Estado nem poderiam imaginar que
iriam se tornar emigrantes “abandonados à própria sorte”85 e imigrantes vigiados e controlados pela orientação nacionalista de Getúlio Vargas, que assumiu o poder justamente em
1930 e persistiu durante dezenove anos, até seu suicídio em 1954.
Foi nessa atmosfera, então, que o casal Miyoshi chegou e se instalou numa fazenda de plantação de café. Miriam Saito conta que seus pais viveram inicialmente em Mirandópolis, radicando-se em São Paulo, em 1936, quando seu pai foi contratado como contador pelo consulado japonês.
Seguindo o bias da diáspora, revelado por Uchiyama (1992, 195), é possível que
o sr. Miyoshi tenha cumprido o contrato de um ano como “colono” e mais quatro anos como
“lavrador de parceria”, abrindo concessão à etapa posterior de “pequeno proprietário”. Graças ao contrato urbano, as mãos dos Miyoshi tiveram a chance de trocar a enxada pelo shamisen e shakuhachi. Ou seja, abdicando da oportunidade de “fazer a América”, deixaram de
ser um rosto na multidão de imigrantes para se tornarem fundadores do GEMDJ.
85
Menção ao desabafo de Tatsuzo Ishikawa: “Chamam-nos de emigrantes, porém, na verdade não passamos de um
povo abandonado à própria sorte” (Uchiyama 1992, 142).
120
6.2.2. “Noite da Música Japonesa” e a fundação
Antes da fundação do GEMDJ, no ano que os Miyoshi se mudaram para a zona
urbana, surgiu um convite para a sra. Miwa mostrar seus dotes e experiências musicais. Ela
havia iniciado em shamisen aos seis anos de idade, depois dança e koto, chegando mais tarde a estudar nagauta com professores de Ōsaka. Miyashita (1973, 140), aluno de Miyoshi a
partir de 1940, documenta a primeira performance da sra. Miwa e fundação do Grupo:
[...] em novembro de 1936 a sra. Iguchi, esposa do cônsul geral, promoveu a “Noite da Música Japonesa” convidando representantes diplomáticos de todos os países que estavam em São Paulo.
Nessa ocasião, a sra. Miwa Miyoshi, atual representante do grupo de
Estudo da Música Japonesa, foi chamada e compareceu ao evento [a
partir desta oportunidade, ela começou a dirigir um pequeno grupo
de interessados em nagauta e sōkyoku]. [...]
Em 1939 o sr. e a sra. Miyoshi fundaram o Grupo de Estudos
da Música Japonesa e no dia cinco de novembro foi realizada a primeira apresentação coletiva no Clube Lira de São Paulo.
No ínterim entre 1936 e 1939, Miwa Miyoshi empenhou-se em dirigir um pequeno grupo de interessados em nagauta e sōkyoku.
A capa do programa de estréia do GEMDJ (ft. 8) destaca o título “Músicas e
Bailados”, em português86, mas consta, em japonês, ‘Noite da Música e Dança Japonesa’ acrescentando o termo “Dança” ao nome do evento anterior. Este título em japonês do programa das apresentações coletivas permaneceu durante os cinqüenta anos de atuação da professora Miwa. A insistência no nome inaugurado por órgão oficial revela o quanto significou a convocação do consulado, em 1936. Acredito que equivaleu a um aval das suas habilidades musicais, uma legitimação permanente para ela que não teve a chance de trazer um
diploma musical do Japão. “Na época da minha mãe, os pais não estimulavam, pois não era
bem vista a mulher que fosse ou almejasse ser profissional”, esclarece Miriam Saito. O conteúdo musical do programa de fundação é um indicativo do nível musical da líder e dos in-
86
A publicação bilíngüe pode sugerir uma atitude de assimilação, mas creio ser um cumprimento da exigência da
política nacionalista.
121
tegrantes do grupo. No programa de quatorze números constam onze “clássicos”: quatro nagauta – “Momiji no Hashi [Ponte do Momiji]”, “Tsurukami [Deus Cegonha]” e “Renjishi
[Dança do Leão]”; e do repertório sōkyoku, cinco jiuta – “Kurokami [Cabelos Negros]”,
“Yuki [Neve]”, “Cha no Yu Ondo”87, “Nagashi no Eda”, “Tsuru no Koe [Voz da Cegonha]”
e dois zōkyoku do séc. XIX – “Chidori no Kyoku” (tr. 4) e “Kongōseki”.
No programa constam como intérpretes, as senhoras. Miwa Miyoshi, tocando
shamisen, koto e kokyū; Sakae Yoshi Toyo, Hiroko Ida e Kikue Suzuki, tocando koto; os
senhores Yoshimi Miyoshi, Kazuo Suzuki, Tokuo e Yawata, tocando shakuhachi; e Mitsuro
Shindo, shamisen. A professora Saito ressalta que o casal Suzuki e os demais executantes de
shakuhachi eram companheiros do navio de imigrantes em que seus pais desembarcaram.
Em contraste com as peças longas do repertório clássico, algumas peças do cancioneiro popular e urbano são incluídas nos programas da professora Miwa. Consta na estréia a melodia da cançoneta “Okichi Shigure”, executada com koto e shakuhachi, possivelmente, um arranjo da professora. E também o jiuta “Nagashi no Eda”, pois consta o kokyū
como solo.
O programa de fundação do GEMDJ incluiu ainda alguns elementos ocidentais
ou modernos. Na abertura, uma canção de ninar tradicional chamada “Kikin no Suzu”, acompanhada com piano e coreografia; em seguida um número de sapateado; e no intervalo,
uma ária de “O Guarani”, ópera de Carlos Gomes, interpretada por uma cantora e uma pianista convidadas, de aparência caucasiana. A liberdade em incorporar peças alheias ao repertório antológico, incluindo os arranjos, seria o primeiro sinal de adaptação no novo ambiente. Essa conduta musical pode ser influência da variedade e improvisação incentivada
no Engeitaikai88 do navio.
87
Todos os títulos de peças que já foram mencionadas no capítulo 2, não constarão de sua tradução deste ponto em
diante.
88
Show de Variedades, mencionado no capítulo 5.
122
Somando o fato de que a fundação foi realizada em “Benefício da Catequese89
dos Japonezes”, surge uma segunda suposição: a necessidade de manifestar a integração
com a sociedade receptora. Vale lembrar que os defensores90 da “lei dos 2%”, responsável
pelo decréscimo da imigração nipônica após 1935, consideravam “o japonês inassimilável,
formando verdadeiros quistos raciais” (Uchiyama 1992, 161-3). E no esteio da mentalidade
discriminatória era preciso catequizá-lo para eliminar o “perigo amarelo”91. A igreja representou, portanto, um respaldo conveniente para o GEMDJ – no modelo da Sociedade Esperança – pois fingindo ser catequizado, tornava possível o acontecimento da reunião musical,
em tempos frágeis, ou duplamente vigiados, da comunidade.
6.2.3. estabelecimento do formato das performances
A fundação e estréia do grupo estabelecem o nome do evento anual, o caráter
beneficente e a informalidade do repertório nos anos subseqüentes. Miyashita (1973, 140)
testemunha as performances iniciais do GEMDJ:
[..] a segunda aconteceu em 1940 e, em 8 de fevereiro de
1941, no dia da terceira apresentação coletiva, deu-se início a II
Guerra Mundial. Depois disso, a música clássica japonesa foi praticada em cada família até o término da Guerra, quando reiniciaram as
apresentações no Teatro São Francisco, contando com o apoio do
padre José Bonifácio.
Miyashita segue seu relato até a apresentação realizada em 1956. Sintetizando o
seu relato e os programas cedidos pela professora Saito, elaborei o quadro seguinte (tab. 14).
Chamo de suporte institucional as entidades beneficiadas ou promotoras, e nas duas últimas
colunas, o número de participantes de koto (kt), incluindo shamisen, e shakuhachi (shk).
89
O termo “catequese” evoca o papel dúbio da igreja nas comunidades indígenas e confrarias negras. A maior parte do tempo ela se ocupava em diminuir a ameaça ao Estado, transculturando o povo “indócil”, mas um dia por ano
permitia e incentivava as manifestações musicais, absorvendo a fama de “preservar” a cultura do povo a ser domesticado.
90
Entre eles os médicos Miguel Couto, Artur Neiva e Xavier de Oliveira, da bancada baiana, que zelavam “pela
melhoria da formação étnica brasileira, considerando os asiáticos inassimiláveis ao Ocidente [...] as leis eugênicas e
econômicas se opõem à entrada de elementos dessa origem”. Projeto Fidélis Reis, citado por Uchiyama (1992, 1612).
91
Alusão à matéria “O Perigo Japonêz”, publicado em 1942, de Vivaldo Vivaldi Coaracy, articulista do diário carioca Jornal do Comércio.
123
Tab. 14. Quadro de programas do Grupo Miwa
evento
Noite da
Música e Dança
Japonesa
suporte institucional
Catequese dos Japonezes
Ampliação da Escola
Taisho
local
1ª
Clube Lira
2ª
3ª
4ª
Catequese dos Japoneses
5ª
Teatro
Franciscanos
6ª
Noite da
7ª
Grupo de Estudantes SP
São Francisco
8ª
Assistência
Vicentina
Música e
9ª
Assist. D. José Gaspar
10ª
Dança
Fed. Bras. Arte Cultura T. América Latina
11ª
Assistência
Cine Tokyo
12ª
Japonesa
Dom
José
13ª
Gaspar
14ª
Teatro S. Paulo
15ª (20 anos da GEMDJ)
ACBJ, Kinryû e Gakuyû Teatro Municipal
16ª (22 anos da GEMJ)
1° Colônia Geinôshi
Auditório SPCJ
Noite da Música e
Dança Japonesa
16 Colônia Geinôshi
20 anos Tozan-ryû
1°
2°
3°
36°
4°
SPCJ
SBCJ
Audit. SBCJ
Governo do Paraná
Vila Morais
SBCJ
SBCJ
Teatro Guaíra
Miwa-kai
Festival Folclórico
Miwa-kai
Cine Nikkatsu
Rissho Kosei-kai
5°
data
kt shk
03.11.1939
1940
08.02.1941
1948
1949
1950
11.11.1951
14.12.1952
06.12.1953
25/26.12.54
10/11.09.55
1/2.12.1956
23/24.12.57
7/8.06.1958
04
11
21
15
12
15
17
20
19
17
18
17
17
18
04
04
04
06
06
06
04
04
03
04
04
04
04
02
9/10.01.60
27.05.1962
1/2.10.1966
16.04.1967
23.05.1971
1981
18.05.1986
26.05.1991
28.08.1994
19.10.1997
26.08.1997
23.07.2002
07.2002
27.07.2003
23
21
13
24
20
7
06
06
02
12
12
9
23
17
30
10
18
26
25
22
21
18
07
10
Embora não tenha obtido cópia das outras duas apresentações do pré-guerra, a
professora Saito forneceu as informações que complementam o estabelecimento do formato
das apresentações ulteriores. Na segunda apresentação, em 1940, começa a figurar no programa, peças solo para shakuhachi, ou honkyoku. Essas peças mais individuais são dispostas
até hoje à maneira de interlúdio, ou seja, não são tão valorizadas como as peças que abrem e
fecham a apresentação, incluindo todos os participantes. A professora Saito destaca a modernidade de sua mãe que incluiu, na ocasião, a participação do coral da Escola Taisho, ou
Piratininga, e uma peça de Zequinha de Abreu. A participação do coral parece estar mais
relacionada com a predileção observada por Olsen (1983a, 123):
124
[...] os músicos de koto e shakuhachi tem tocado gaikyoku
(lit. ‘música forasteira,’ significando música de câmara para koto e
shakuhachi) em conjuntos para duas ou mais pessoas. O grupo do sr.
e sra. Miyoshi foi o primeiro a apresentar esse tipo de música de câmara da região Naichi.xxix
Quanto à inclusão no programa de Zequinha de Abreu tocada por “brasileira”,
pelo fato de não se repetir a presença de não nikkei interpretando música brasileira na fase
posterior ao controle sobre os japoneses, relembro a conveniência em demonstrar interação
com a sociedade majoritária, que a época exigia.
6.3.
Manutenção do GEMDJ: do pós-guerra até 1990
6.3.1. preparação da segunda geração e aliança católica até 1958
Quando o sr. Miyashita lembra que “depois da II guerra a música foi praticada
em cada família”, é possível que a aparente obediência disfarça uma potencialização: a preparação musical da segunda geração.
No programa de 1952, consta a participação do casal de filhos e nora dos Miyoshi
tocando shamisen, koto e shakuhachi. Na ocasião, Miriam Sumie Miyoshi, a filha que assume mais tarde o legado musical da professora Miwa, estava com quatorze anos. A adolescente – primeiramente iniciada em dança, aos seis anos em shamisen e aos oito em koto – se apresentou dançando com a cunhada, tocando shamisen (ft. 9) nos jiuta “Tsuru no Koe” e “Kurokami”, nos nagauta “Kami Ningyo” [Boneco Deus], “Miyakodori” [Caminho da Capital] e
“Kishi no Yanagi”; e koto no sankyoku “Yachiyo Jishi”.
Nesse mesmo programa, constam mais seis jovens tocando koto: Chiyoko Tsuchiya, Sueli Seiko Suzuki, Hiroko Takayanagi, Michiko Murata, Hiroko Komiyama e Reiko
Hirakawa. Em 1953, as sete senhoritas do koto estavam aptas a tocar “Rokudan” (tr. 3) e no
ano seguinte tocaram “Midare” (tr. 8) e “Chidori no Kyoku” (tr. 4) com a participação de Yoko Endo. Em 1955, ingressaram Sachie Yoshimura, Akemi Okawa e as filhas de Morita e
Suzuki. Em 1956, em tributo ao recém falecido compositor Michio Miyagi, as jovens tocaram
125
na abertura da apresentação “Noji no Ame”; em 1957, “Meiji Shōchikubai” e “Hototoguisu”; e
em 1958, “Nagashi no Eda”.
Na última coluna da tabela 14, a média de participação feminina é de dezoito pessoas, onze koto e sete shamisen, e a de shakuhachi entre três e quatro pessoas. Entre 1952 e
1956, havia entre doze e treze koto sendo ¾ de jovens nisei ou jun nisei – nascidos no Japão,
mas criados no estrangeiro. A coluna do suporte institucional fornece uma idéia geral das
principais instituições da comunidade. Atendo-se ao período 1941 até 1958, vemos a predominância da cooperação mútua entre GEMDJ e entidades católicas.
O padre José Bonifácio, mencionado por Miyashita (p. 122), foi um dos primeiros
catequistas dos japoneses. Conta Fumiko Satomi que o frei franciscano, apesar de alemão, falava muito bem o japonês e atuou na comunidade até falecer, por volta de 1959. Pelo que se
pode observar no quadro de programas, a GEMDJ se aliou à igreja católica durante os vinte
primeiros anos, principalmente com os franciscanos da igreja São Gonçalo de Garcia.
O nome “Dom José Gaspar”, nos programas até 1958, provoca uma conexão com
a trajetória de Tomy Watanabe92, conhecida como “santa Margarida”, por sua “dedicação aos
desamparados”. Conforme Tânia Nomura (1989, 66): “Dona Margarida pediu apoio de D. José Gaspar de Affonseca e Silva, arcebispo de S. Paulo, [...] que supervisionou a formação da
Comissão Católica Japonesa93 de S. Paulo, fundada em junho de 1942”.
Um ano antes de D. José vir a falecer, com o “crescimento das atividades” no
primeiro decênio, “a Comissão oficializou-se em 1953 com o nome Assistência Social D. José
Gaspar”. Entre as atividades da Comissão Católica, Nomura destaca em seguida:
92
Nascida em 1901, Kagoshima, chegou ao Brasil com onze anos, quando foi acolhida por uma família de médico,
não nikkei. Ali obteve formação religiosa católica e trabalhou, mais tarde, como voluntária na igreja São Gonçalo.
93
Antes Tânia revela que, em 1941, a sra. Watanabe conseguia autorização para entrega de agasalhos e conforto
moral para os conterrâneos presos políticos em nome dessa comissão que ainda não existia.
126
Em 1943 a Comissão cuidou dos órfãos de guerra, com o
apoio do Padre Guido da igreja São Gonçalo; deu conforto moral aos
imigrantes que, devido à guerra, ficaram confinados no interior, ajudou pessoas doentes com problemas psicológicos ou tuberculose a
receberem tratamento médico em hospitais etc. Em 1944, as atividades da Comissão foram denunciadas e os quatro membros foram interrogados pela polícia. Mas Margarida não esmoreceu e abrigou em
sua própria casa os pobres e doentes que encontrava perdidos pelas
ruas da Cidade. [...] Após a inauguração do Jardim de Repouso São
Francisco, Ikoi-no-Sono, em 1958, a entidade, da qual Margarida é
presidente, tem-se empenhado na assistência aos idosos.
O nome de Margarida Watanabe pode estar indiretamente ligado às atividades do
GEMDJ, mas se reafirma pelas atividades mantidas até hoje pela professora Saito (v. p. 137).
Em 1951, Miyashita destaca o patrocínio da Liga Estudantil Nipo-brasileira “São
Paulo Gakusei Renmei” e de jornais japoneses. Este apoio marca o ano da volta das associações, jornais e escolas e remete aos nomes dos jornalistas Hideo Onaga e José Yamashiro94,
pois ambos participaram do Liga e foram fundadores do Jornal Paulista, junto com outros colaboradores do extinto Diário Nippak (v. Yamashiro 1992, 181-87).
Em 1954, o suporte da Federação Brasileira de Arte e Cultura, por não se tratar
mais de um órgão exclusivo da minoria japonesa, demonstra o fim das tensões na comunidade. O apoio de uma entidade federal na GEMDJ indicaria que o grupo estaria perfeitamente
assimilado e integrado na maioria brasileira.
6.3.2. GEMJ, a última fase de Miwa Miyoshi
Em 1959, o professor Yoshimi Miyoshi recebe o título Okuden da Escola Tozan
de Kyoto e o pseudônimo Jūzan Miyoshi. A partir de 1960, o GEMDJ reduz a denominação
para Grupo de Estudos de Música Japonesa, GEMJ. Devido ao aumento de alunos de “bailado”, a professora Kinryū Hayanagi95 criou um grupo específico com o seu nome. Isso não al-
94
Embora fossem nisei okinawanos, os jornalistas têm manifestado, até os dias de hoje, uma posição contrária ao
“enquistamento” de conterrâneos, sejam okinawanos ou japoneses.
95
Dançarina que consta no programa desde 1952 e como apoio na 15ª apresentação (tab. 13).
127
terou o formato da performance, pois quase metade do repertório, na comemoração do 20° aniversário, foi coreografada pela mesma professora.
Curiosamente, essa especialíssima apresentação, ocorrida no Teatro Municipal,
teve o programa escrito totalmente em japonês. Até 1958, os programas continham a capa e o
repertório em ambas as línguas. O fato reforça a idéia de que a adoção do idioma português,
em apenas duas das dezenas de páginas do programa, era apenas para cumprir uma exigência
da política nacionalista do país adotivo. A atitude coincide com a “fase de superação da crise
de identidade e a recuperação da autoconfiança” (Saito 1980, 90) e a auto-suficiência das entidades nikkei.
No suporte institucional das apresentações da última fase dos pioneiros (v. tab.
14), constam: ACBJ – Aliança Cultural Brasil Japão; SPCJ – Sociedade Paulista de Cultura
Japonesa, que passou a se chamar SBCJ – Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa96, em
1968. A sede da SPCJ foi inaugurada em 1960. Possivelmente a 15ª apresentação do GEMJ,
promovida pela ACBJ, que ocupa a mesma edificação da atual SBCJ, contribuiu para a sua
inauguração.
Corresponde à essa fase a fundação da Beneficência Nipo-Brasileira Enkyō – cujos ambulatório e administração se alojam no prédio da SBCJ – e a regularidade das apresentações da GEMJ no Sanatório Francisco Xavier de Campos do Jordão, Casas de Reabilitação
Social de Santos e Guarulhos. A Enkyô foi fundada em 1959 e, entre 1963 e 1978, passa a gerir esses estabelecimentos. É por isso que as apresentações em Benefício da Assistência D. José Gaspar se deslocam para a entidade principal SBCJ, ou Bunkyō (fig. 17), nessa fase.
Infelizmente, devido a um acidente cardiovascular em 1952, a saúde do professor
Miyoshi foi se debilitando gradativamente. A partir da apresentação de 1962, ele não pôde
mais se apresentar, vindo a falecer em 1968. Desde a comemoração do 22° aniversário da
96
Segundo Nakasumi (1992, 399 e 403) as SPCJ e ABCJ, fundadas respectivamente em 1955 e 1956, são frutos da
Comissão Colaboradora da Colônia Japonesa Pró-IV Centenário da Cidade de São Paulo. Na ocasião, em 1954, a
Comissão ofereceu à cidade o Pavilhão Japonês, do Parque Ibirapuera.
128
GEMJ, Hōzan Miyashita – “o mais importante discípulo, outro imigrante pré-guerra que retornou ao Japão para obter seu natori da Tozan-ryū”xxx (Olsen 1983a, 122) – assume a liderança dos shakuhachi. Em 1966, ano em que acontece o primeiro “Colônia Geinōshi [Festival de
Música e Dança Tradicionais]”, que corresponde à formalização do grupo Gakuyū da Escola
Tozan, o mesmo que apoiou o 20° aniversário do GEMDJ.
Retomando a última coluna da tabela 14, vemos que a terceira fase de ensino de
Miwa Miyoshi obteve uma média maior de alunos. No pré-guerra, a média foi de dez alunos,
passa para dezoito, no segundo decênio, e alcança a média de vinte alunos na última fase.
Na década de sessenta, seis das jovens iniciadas nos anos quarenta (v. tab. 15) –
Miriam Sumie Miyoshi, Chiyoko Tsuchiya, Hiroko Takayanagi, Michiko Murata – e cinqüenta – Akemi Okawa e Sachie Yoshimura, casam-se e interrompem as atividades musicais. Apenas a filha de Miwa Miyoshi interrompe em caráter temporário. A srta. Miyoshi torna-se a
sra. Saito ao casar-se com outro importante discípulo de seu pai, o sr. Shigeo Saito.
Em 1984, Miwa Miyoshi sofre um acidente cardiovascular e passa a ter a filha
como sua assistente, pouco tempo antes de iniciar a neta de sete anos, Silvia Shinobu (ft. 10),
no koto. Antes ainda, a terceira geração já vinha sendo preparada. Seguindo a tradição, o irmão mais velho de Silvia tinha sido iniciado em shakuhachi, e a irmã em koto. Miwa Miyoshi
consta tocando nos programas até 1986 e em 1991, dois anos antes de falecer, ela ainda cantava.
Nos cinqüenta anos iniciais, cerca de 55 issei e 15 nisei, totalizando mais de setenta alunos, foram orientados pela professora Miwa Miyoshi, dos quais 26 de shamisen, 29 de
koto e 15 dominando ambos os instrumentos. Dentre estas últimas destacavam-se: as sras.
Aiko Tanaka, Kimi Miyashita e Toshiko Sugii; as srtas. Miriam Sumie Miyoshi e Chiyoko
Tsuchiya; e exclusivas de koto, as srtas Sueli Seiko Suzuki e Suzana Toyoko Ishimoto. O
129
quadro de participantes (com pelo menos quatro anos de estudo), da tabela 15, foi elaborado a
partir dos programas mencionados na tabela 14.
integrantes
Tab. 15. Quadro de participantes orientados por Miwa Miyoshi
3ª fase
segundo decênio
Aiko Tanaka║
Akemi Okawa│
Atsue Yagyu│
Chiyoko Tsuchiya│
H. Okaue║
Haru Ohashi
Hiroko Ida║
Hiroko Komiyama│
Hiroko Takayanagi│
Hisae Morita│
Hisae Okamoto║
Kiyo Ikeda║
Kikue Suzuki║
Kimi Miyashita║
Kimiyo Miyoshi║
Kiyomi Miyashita│
86 71 67 66 62 60 58
X X/ /
X/ /X /
/
X
X
║
X X
║ X/ X/
X/ /
X
X
X/ /X X/ X X X X
X/ X/ /X /X /X
X
X
/
║ X X X X X
X
/
X
pré-guerra
57 56 55 54 53 52 51 50 49 48 41 40 39
/
/
X/ X/ X/ X/ /X /X /X /X /
/
X X X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
/
/
/
/
/
/
/
/
/
X
X
X
/
/
/
X
X
X
X
/
/
/
/
/
/
X/ X/ X/ /X /X /
/
/
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/
X/ /
/
║ /
X
X/ X/ X/ X/ X/ X/ X
/X X X X X
/
/
/
/
/
LuizaKazukoWatanabe╫ X
Masako Hisayasu
Michiko Murata│
Miriam Sumie Miyoshi│ X
X
Miwa Miyoshi║
Reiko Hirakawa│
S. Hayashi║
S. Hotta♂
S. Yamamoto♂
Sachie Yoshimura│
Sakae Yoshi Toyo║
Satsuki Sonoda
Setsuko Tanaka
Shizuko Ikegami
Sueli Seiko Suzuki│ X
SuzanaToyokoIshimoto║ X
Takeko Ono
Tamae Morita║
Toshiko Sugî
Uta Taka
Y. Matsumoto║
Yukie Yokota║
Yasuko Akagi
4~5 anos
6~10 anos
11~20 anos
21~29
30~39
X
X
X
X
║ X
X X X X
X
║ X/ X/ X/ X/ X/ X/ X X/
╫X/ /\x /X \X/ // \X X/ \X/ /X X/ \X/
║ X X
/
/
X/ /
/
X/ /X
X X
X
/
/
/
X/ /
/
X
/
/
║
/
/
X
X
X
X
/
/
/
/
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X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
/
/
/
/
/
/
/
/
/
/
/
/
/
/
/
/
/
/
/
/
X
41~50 anos
│
║
╫
/
/
X
53 anos
solteira
casada
viúva
X koto
/ shamisen
\ kokyû
X
X/
/X\
X
X/
X
X/
/X
X
X
X
X/
/X
X
X
X
/X /X
/X /X /X /X /\
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
/
/
/
X
X
X
X
130
6.4. A continuidade com a professora Saito
Miriam Sumie Miyoshi, futura Saito, nasceu em São Paulo, em 1938. Na fundação do GEMDJ ela engatinhava pelo palco do Clube Lira já paramentada com kimono. Começou cedo a aprender dança com a mãe, depois com as professoras Kunie Fujima e Kinryû Hanayagi. A mãe também lhe iniciou no shamisen quando tinha seis anos e no koto, aos oito anos. “Só koten e tudo de ouvido”, sublinha Saito sensei. Quando veio a professora Harue Tofuku, da Ikuta-ryū do Japão, teve a oportnidade de estudar shinkyoku e, em 1996, nagauta
com a professora Kazuko Sugiura.
Apesar da família ter passado por dificuldades financeiras, na década de cinqüenta, Miriam Sumie conseguiu se formar no curso profissional de corte e costura. Foi quando
chegou a ajudar nas economias da casa ensinando o que aprendeu e através de trabalhos manuais, atividades que, ainda hoje, mantém como passatempo.
Depois que a mãe adoeceu, a sra. Saito ensinou as duas filhas a tocar koto, sendo
que a caçula “Shinobu pega no koto só de vez em quando, uns dias antes da apresentação”,
comenta a professora com resignação e orgulho.
Enquanto a filha caçula já esteve duas vezes no Japão, a professora Saito nunca
fez questão de ir para lá. Poder-se-ia dizer que ela é uma das raras nisei que casou com issei
sem a intenção de elevação do status social ou de se tornar mais japonesa. Isso se torna visível
quando a professora Saito, por iniciativa própria, fez questão de obter um registro de musicista brasileira, antes mesmo de pensar em buscar um reconhecimento oficial no Japão.
Em janeiro de 2003, ela se dirigiu a OMB – Ordem dos Músicos do Brasil, submeteu-se aos testes97 e conseguiu o registro, provavelmente, a primeira carteirinha de koto
expedida pelo órgão. Antes de buscar um aval de suas habilidades musicais, creio que a atitu-
97
A examinadora, que jamais tinha visto um koto de perto, aplicou o teste de teoria e solfejo sem perceber que não
teria a mínima conexão com o conteúdo da prática musical de tal “harpa exótica”.
131
de é pioneira em admitir que o público alvo, descendente ou não, é o brasileiro e não mais o
nikkei que pensa estar morando num pequeno Japão dentro do Brasil.
6.4.1. audições do Miwa-kai
Em 1991, ocorre a primeira apresentação do grupo sob a denominação Miwa-kai.
Encabeçando a lista das executantes de koto e sangen, estava a fundadora Miwa Miyoshi e
dos participantes de shakuhachi, Yōzan Sagara. O relato da sucessora Miriam Saito – sobre a
fragilidade da saúde98 da sua mãe nos anos anteriores ao falecimento, em 1993 – e a participação da decana cantando apenas o nagauta “Tanuki”, leva a crer que o primeiro Miwa-kai foi
realizado, efetivamente, sob a liderança da herdeira Miriam Sumie Saito na parte de sōkyoku.
De fato, a professora Saito confirma que, em 1990, quando sua mãe completava
88 anos – 57 anos no Brasil, dos quais cinqüenta dedicados ao GEMDJ – apelou para que a filha mantivesse as atividades musicais e o grupo. A filha, que desempenhava a função de assistente desde 1984, aceita assumir a sucessão e todo o legado musical, coordenando a ala feminina.
Além das professoras, as participantes mais antigas que constam no programa (v.
tab. 15) do I Miwa-kai são: Sueli Seiko Suzuki, aluna de koto da professora Miyoshi desde
1949; Toshiko Sugii toca shamisen, desde 1966, e koto, desde 1971; e Suzana Toyoko Ishimoto, que toca koto, desde 1960. Essas veteranas devem ter sido as principais auxiliares da
professora Saito, quando seus três filhos se encontravam em fase estudantil.
O I Miwa-kai contou ainda com a dança da professora Kinryū Hayanagi, participante desde o pós-guerra. A coreografia ilustrou apenas dois dos cinco nagauta99 apresentados no segundo e nono números da primeira parte e não mais na abertura e encerramento.
98
A professora Saito conta que, a partir do derrame em 1984, a saúde da sua mãe se debilita progressivamente. Salienta que na fase final, apesar de não se lembrar nem dos netos que tanto amava, quando o grupo dedilhava as primeiras notas de alguma peça, lá do quarto, ela começava a cantar o texto na íntegra.
99
A maioria figura na lista dos nagauta nas apresentações coordenadas pela professora Miwa (v. tabela de ocorrências): “Azuma Hakkei”, “Kishi no Niyagi”, “Matsu no Midori” e "Kokaji”.
132
Nestes momentos remarcáveis, contudo, o formato da presença de todos os participantes é
preservado.
Na abertura, consta no programa de 1991 o nagauta “Kokaji”, com a participação
de todos os executantes de shamisen, koto e shakuhachi. No encerramento, a participação geral incluiu o coral Asebex na música tradicional “O-Edo Nihon-bashi [A ponte de Edo]”, que
abriu a segunda parte com acompanhamento de piano e koto, um potpourri de canções mais
conhecidas como “Sakura” [Flor de cerejeira], “Kāsan no uta” [Canção à mamãe], e “Shiki no
uta” [Canção das quatro estações].
A reunião de peças já era adotada pela professora Miyoshi, que tinha também o
hábito de reduzir e arranjar as peças clássicas para facilitar o aprendizado das iniciantes. A
participação do coro e do piano exige, pelo menos, uma acomodação de afinação dos instrumentos tradicionais japoneses com o piano e a extensão vocal. A inclusão de peças minyō e
nagauta, alheios ao repertório sōkyoku, também foi implantada pela antecessora. A profusão
de partituras com arranjos de música urbana “ligeira” para koto, como os de Seiho Nomura ou
Kōsaburo Hirai, pode ter contribuído para a adoção desse repertório.
Desde o I Miwa-kai, a inclusão de cantores ou coro de convidados torna-se uma
norma. O II Miwa-kai100, realizado em 1994, contou com a presença de três tenores do bel
canto no potpourri “Sakura”, “Kōjyō no tsuki [Luar no castelo tosco]”, arranjados por Kōsaburō Hirai, e o shinkyoku “Nichiren”, de Michio Miyagi. Em 1997, aconteceu o III Miwa-kai,
contando com o reforço de Kazuko Sugiura no nagauta “Renjishi”. Este foi o último ano em
que notei a participação de Kinryū Hanayagi e predominância de nagauta – “Genroku Hanami
Odori”, “Goro Tokimune”, “Renjishi”, “Tsuru no Sugomori” e “Oimatsu”.
A partir de 2000, o intervalo de três anos entre uma apresentação e outra se reduz.
O IV Miwa-kai (ft. 12-15) recupera um número expressivo de crianças e jovens contando com
100
Última apresentação em que figura o nome do falecido Yôzan Sagara na liderança da lista da Tozan-ryû, com
trinta membros, participando do III Miwa-kai.
133
a presença do coro infantil da Escola Shiinomi, sob a regência de Miriam Ōtachi, que dirige
também os coros Asebex e Shirahani (ft. 11). Estes dois coros adultos têm participado das últimas apresentações anuais cantando o mesmo potpourri de peças ligeiras, de 1991.
A única peça vocal interpretada pelo grupo de veteranas, observada na pesquisa de
campo, foi o jiuta “Cha no yū ondo”, acompanhando um autêntico cerimonial de chá, que foi
servido aos ouvintes em sinal de agradecimento.
Tab. 16. Repertório predominante101 da Escola Miwa
título
Warabe Uta
Sakura
Sato no Aki/Mushi no Ga
kutai/Mura Matsuri
tradução
Canções infantis
Flor da Cerejeira
autor
Nomura*
Hirai*
Nomura*
Yatsuhashi
Seis Ciclos
Bailando no Ar
Hisamoto
Variações Sakura Miyagi
estilo
data
infantil
tradic. popular
tradic. popular
Miwa Saito
danmono XVII
música nova
música nova 1923
internac.
Haru no Umi
Mar da Primavera Miyagi
música nova
Yatsuhashi
Caos
danmono XVII
Midare
Canto do Passarinho Michio Miyagi
música nova
Kotori no Uta
Kokaji
nagauta
R. Kineya*
Azuma Hakkei
nagauta
Cabelos Negros
anônimo
Kurokami
jiuta/nagauta XVIII
Minezaki/Kineya
Leão
de
Echigo
Echigo Jishi
nagauta
S. Kineya*
Kishi no Yanagi
nagauta
Verde do Pinheiro R. Kineya*
Matsu no Midori
nagauta
Melodia da Cerimô- Kikuoka
XIX
Cha no Yū Ondo
jiuta/
nia de Chá
tegotomono
Genroku Hanamidori
S. Kineya
nagauta
Palavras de Outono Nishiyama
Aki no Koto no Ha
Diamante
Tateyama
música nova
Kongōseki
O repertório da sucessão pode ser dividido em duas fases, conforme o
Rokudan
Hiyaku
Sakura Hensōkyoku
Kachussha
0
0
0
6
4
4
7
1
1
0
0
3
0
2
7
7
5
5
5
4
3
3
3
3
3
2
2
2
1
1
1
1
1
1
4
3
3
quadro
1
1
1
a-
cima. Na parte inferior da tabela, predominam as canções antigas nagauta prediletas da fundadora e executadas apenas uma ou duas vezes durante os primeiros anos da sucessão. A década de 90 representa, portanto, uma fase de transição. A partir de 2000, o repertório revela
uma preparação da geração de sansei, pois nos últimos quatro anos predominam peças de ini-
101
Tabela construída a partir do Repertório Miwa com base nos programas obtidos e algumas apresentações externas das quais participei.
134
ciação no koto, enfatizando os potpourri arranjados por Kōsaburo Hirai, Seiho Nomura, para
os instrumentos tradicionais, onde os ouvintes podem cantar junto as conhecidas melodias
“Sakura,” “Kāsan no Uta”, “Kōjō no Tsuki”, “O Edo Nihon Bashi” entre outras. Do repertório, enfatiza-se as peças estritamente instrumentais como os antológicos danmono “Rokudan”
e “Midare” (tr. 8) ou as ocidentalizadas “Haru no Umi” (tr. 5) e “Kotori no Uta”, de Michio
Miyagi e “Hiyaku” (tr. 7), de Genchi Hisamoto.
Quanto ao palco escolhido, as três apresentações dos anos 90 ocorreram no pequeno auditório da SBCJ. Desde 2000, as três últimas récitas do Miwa-kai foram realizadas
no templo neobudista Rissho Kosei Kai102 (ft. 12-15). A professora Saito chegou a dar aulas
nesse espaço para uns dez alunos, entre 1997 e 2001. Ela revela que o auditório, além de ser
mais perto, é gratuito e sem burocracia103. Aos alunos cabe pagar uma quantia irrisória de vinte reais, em benefício dos enfermos pneumológicos, principal obra assistencial do templo.
Embora a platéia do pequeno auditório do SBCJ seja um pouco maior que a do templo, o salão de apoio deste é maior, arejado e mais iluminado. Trata-se de um espaço ideal para a afinação e montagem dos cavaletes dos koto na preparação, bem como no brinde de finalização,
quando são compartilhados os pratos caseiros preparados com esmero pelas integrantes do
grupo.
6.4.1. apresentações irrestritas à comunidade
Fora do âmbito da Escola, um grupo mais reduzido prontifica-se em atender convites diversos de particulares, entidades da própria comunidade nikkei, bem como da sociedade majoritária. Entre os convites eventuais constam os particulares como casamentos, aniversários e inauguração de empresa, geralmente de amigos “patrícios”. A herdeira relata que a
sua mãe já participava de performances para espectadores irrestritos à comunidade como o
102
Derivação da Escola Nichiren, foi fundada no Japão, em 1938, por Niwano, e trazido para o Brasil em 1970.
Uma das exigências burocráticas da SBCJ é que a reserva do espaço seja feita com bastante antecedência. Como
a professora pretende um máximo de participação dos integrantes, para conciliar a conveniência da maioria, não é
possível agendar com muita antecedência.
103
135
Festival Folclórico de Olímpia, no estado de São Paulo. Seguindo esse âmbito, o grupo Miwa
se apresentou em alguns dos eventos anuais promovidos pela Secretaria de Cultura do Paraná,
chamado Festival Folclórico e de Etnias do Paraná (tab. 13). Miriam Saito lembra:
Quando eu tinha mais ou menos dez anos [por volta de
1948] gravamos Rokudan em disco, aqueles de 79 rotações. Meu pai
tocando shakuhachi, minha mãe shamisen e eu koto, acompanhados
de orquestra. Impressionante, o maestro fez um arranjo bem rápido e
só com dois ensaios a orquestra já estava pronta para gravar!
O professor Shigeo Saito acrescenta que o GEMJ esteve duas vezes gravando na
TV Cultura e participou de três programas ao vivo da extinta TV Tupi, no Teatro São Paulo.
No papel de observadora ativa, participei de três apresentações externas, em 2002.
Em julho, entremeando récitas de protesto, grupos de reggae e rock, os professores Saito, Seiko Suzuki e eu, tocamos “Sakura” e “Haru no Umi” no I Encontro da Diversidade Cultural,
no Parque da Aclimação, promovido pelo Centro das Culturas de São Paulo. Em novembro, a
professora Saito e as assistentes Sueli Seiko e Luiza Kazuko vieram participar de duas apresentações, em Recife. Após o grupo de taiko da Vila Carrão e antes de um Anime Manga, os
coros adultos da regente Miriam Ōtachi e o grupo Miwa interpretou canções populares e infantis, na IV Feira Japonesa do Recife (ft. 16), promovida pela Anbej – Associação Nordestina de Bolsistas e Estagiários da JICA e ACJR – Associação Cultural Japonesa de Recife. Na
programação do I Encontro Nacional da ABET – Associação Brasileira de Etnomusicologia,
que incluía grupos com rabeca, pífanos, ciranda e banda de caboclinhos, o grupo Miwa tocou
as clássicas “Rokudan”, “Haru no Umi” (ft. 17) e “Midare”.
Ainda no âmbito irrestrito, o trio de koto tem se apresentado de forma mais regular em programações do SESC de São Paulo, uma das raras performances remuneradas. Anualmente, o grupo é contratado para tocar na Semana Japonesa, promovida por uma estação de
águas termais, em Goiânia. No ano passado, o grupo chegou a aceitar a sugestão dos organi-
136
zadores para “tocarem música mais assimilável”104 como “La Cumparsita” e “Besame Mucho” (sic). O grupo e o coral Shiinomi participam também de um show beneficente, promovido anualmente por uma franquia americana especializada em fast-food, revertendo a renda
para o Hospital do Câncer de São Paulo, cuja maioria das voluntárias é nikkei.
Na foto 18, o casal Saito toca ao ar livre enquanto é servido yakisoba105 para as
crianças da favela do Morumbi. Trata-se de um projeto social dos ex-estagiários da JICA –
Japan International Corporation Agency106, desde 1998, que inclui ensino de origami e desenho com intuito de diminuir a inclinação para a criminalidade. Anualmente, o casal Saito toca
para o templo budista Nishi Honganji no Bosque da Saúde, do qual é adepto, mantendo a
mesma religião do casal Miyoshi.
Na esfera restrita à comunidade nikkei, vimos que o GEMDJ participou do I Colônia Geinōsai ocorrido em 1966. Nesse evento, realizado todos os anos na semana de aniversário da imigração, o grupo de veteranos (em koto, shamisen e shakuhachi) vinha representando a música clássica japonesa durante umas três décadas. Desde 1970, o grupo sankyoku
participa do ritual budista chamado Ireisai ‘Homenagem Póstuma’ aos imigrantes (ft. 19), que
abre a semana comemorativa, no mês de junho. Na foto 20, o grupo Miwa – professora Saito,
Seiko Suzuki, Toyoko Ishimoto e Kazuko Watanabe; grupo Shinzan – professor Shinzan Saito
e Itsurô Yazaki; Fumi Naiki107 e Shizuko Ikegami fornecem o tom solene da cerimônia executando o jiuta “Cha Ondo”. Simultaneamente, acontecem as exibições do cerimonial de chá
chadō e da arte do arranjo floral ikebana, antes da entrada do monge celebrante.
Outras ocasiões regulares, que envolvem parte dos veteranos e os iniciantes disponíveis, são as apresentações em institutos assistenciais da própria comunidade, seguindo os
104
A concepção de ‘assimilável’ é totalmente subjetiva. Talvez esteja confundindo com ‘impactante’, pois para o
público que tem a expectativa de ouvir música japonesa, no mínimo será surpreendido por música latina tocada por
koto.
105
Prato à base de legumes derivado do prato chinês conhecido como “macarrão shop suey”.
106
Vinculada ao governo japonês, a entidade oferece bolsas ou estágios para os descendentes em todas as áreas de
conhecimento, em especial, projetos dirigidos para a assistência social e técnica.
107
As sras. Naiki e Ikegami reforçam o sangen e o vocal, desde a época dos professores Miwa Miyoshi e Sagara.
137
passos da professora Miyoshi e alguns sítios históricos, ou seja, conquistas da comunidade.
Uma vez por ano, um grupo voluntário do Miwa-kai e Shinzan-kai se locomove para Guarulhos, Santos e Campos do Jordão para tocarem para os idosos da Ikoi no Sono – Assistência
Social Dom José Gaspar, ex-Jardim de Repouso São Francisco, fundado em 1958 por “santa”
Margarida – e duas instituições mantidas pela Beneficência Nipo-Brasileira: a Casa de Reabilitação Social de Santos Kōsei Home localizada na antiga Casa do Imigrante; e Sakura Home
‘Casa das Cerejeiras’ nas instalações do ex-Sanatório São Francisco Xavier, de Campos do
Jordão, fundado em 1931 para atender às vítimas de tuberculose pulmonar.
No começo do ano, por exemplo, o grupo participa da II Festa das Hortênsias realizada no Parque das Cerejeiras (ft. 21) e em prol do asilo de idosos Sakura Home. A seguir
um trecho do meu diário de campo do dia 26 de janeiro de 2003, que descreve a gratificante
reação dos idosos, demonstrando como os voluntários do grupo Miwa partem para uma ação
direta, uma verdadeira sessão de musicoterapia.
Na sala de TV
alto verão
fria manhã
alma esquecida
sumô108 na tela
rosto sombrio
verdes montanhas
nuvens no topo
névoa dissipante
janela encortinada
mãos trêmulas inertes
hortênsias expandidas
ra recolhido
dança das carpas
jardim acessível
pernas penduradas estáticas
108
O trajeto
visitantes chegando
vozes expandem
barracas coloridas
ansiedade reprimida
olhos e ouvidos indiferentes
cadeira movendo
rodas rangem
cheiro de iguarias
sabor proibido
nariz desatento
jovens e senhoras de kimono
memórias da família
koto shakuhachi coro
olhos acendem
ouvidos atentos
A música
canções da infância
saudável nostalgia
cheiro da terra natal
gosto do leite materno
rosto iluminado
mãos tiram determinadas
pesado cobertor
marcam o ritmo
batem palmas
coração aquecido
som ancestral
carência esquecida
pernas estendem dançam
saltitam desajeitadas
alma massageada
Esporte tradicional e bastante popular no Japão, cujo objetivo é empurrar o adversário, pesado, fora de um círculo de 4,55 mt de diâmetro.
138
6.5. Ensino e aprendizagem
6.5.1. locais, atores sociais e motivações
Atualmente, os locais de ensino têm sido na própria residência da professora Saito, Escola Shiinomi e templo Emyōji da comunidade budista Nichiren-shū do Brasil. Neste
templo, a professora Suzana Toyoko Ishimoto é responsável pelas aulas semanais, que são supervisionadas, voluntariamente, pela professora Saito, desde 2000.
A professora Toyoko é nisei e teve a oportunidade de iniciar o koto no Japão, estilo Miyagi, enquanto cursava o segundo grau, da escola regular. O templo é sua residência,
pois é viúva e sucessora do fundador do Emyōji. Além de dirigir os rituais, ministra, voluntariamente, aulas de japonês para jovens sansei e não nikkei do bairro da Saúde. Em uma rápida
entrevista, ela afirma:
As aulas de koto estão incluídas no curso de japonês. Acho
importante que o aprendiz do idioma aprenda também a cultura do
país. Assim como aprendi muito da cultura japonesa através do koto
sugiro aos alunos que o façam também.
Trata-se, portanto, de um complemento opcional, ato missionário e enculturativo
da professora Ishimoto, chamada de Miyoko sensei pelos alunos.
O curso de japonês funciona de forma similar ao aprendizado que obtive nos anos
sessenta. O horário do aluno é livre e flexível dentro dos dias e períodos disponibilizados pelo professor. A classe reúne diversos níveis de alunos e o atendimento da professora, que é
mais intenso na iniciação, é praticamente individual. Conforme o aluno adquire independência na leitura, praticando os exercícios de forma quase auto-suficiente, o professor atende só
quando o aluno tem dúvidas. A proeza do aluno é conseguir que o professor se aproxime apenas para lhe convocar para ler em voz alta para toda a classe.
Observei que o aprendizado de koto segue essa mesma dinâmica. A aula fica dentro do horário do curso de japonês, sendo mais elástico para quem deseja aprender o instru-
139
mento. E, para os alunos da professora Ishimoto, a proeza em aprender o idioma deve ser o de
ser convocado para tocar koto no Hoshi Matsuri ‘Festival das Estrelas’ (v. ft. 22).
No quadro seguinte, temos os alunos da Nichiren-shū numerados com apóstrofe.
As irmãs Karina e Tatiana Ide apontam como motivação “a oportunidade de aprender um instrumento calmo, harmonioso” e reafirmam como objetivo o aprofundamento da cultura ancestral. Hilton Silva, um dos raros alunos do gênero masculino e não nikkei, responde que aprender koto é sinônimo de aprender japonês, possibilitando “ampliar as chances no competitivo mercado de trabalho atual”.
Tab. 17. Quadro atual do Miwa Kai
ano
imigr.
1954
8 Akiyo Ozaki
69 1 Tôkyô/Registro
12 Alice L.Satomi
49 3 Wakayama/Hiroshima 1918
1968
6 Chieko Kawanami
70 1 Kanagawa/Mogi
10 Cíntia Mayumi Ahagon 13 3 Okinawa
11 Deise Sayuri Ahagon 15 3 Okinawa
13 Érika Kinoshita
14 3> Pai Fukuoka
1919
14 Fumiko Satomi
80 2 Hiroshima/Fukuoka
2’ Hilton Marques Silva 1ª 0
Kumamoto/PR
3’ Karina Kaori Ide
16 3
9 Kazue Chinen
76 1 Fukuoka/ S.Paulo
1953
5 LuizaKazukoWatanabe 57 2> Aichi/Hokkaido
1918
15 Mayara S. Farias
15 4> Wakayama/Fuk/Hi
tempo
estudo
7
3
10
4
4
3
3
2
3
6
27
3
1’ Priscila Takaki
4 Silvia Shinobu Saito
2 Sueli Seiko Suzuki
3 SuzanaToyokoIshimoto
4’ Tatiana Junko Ide
7 Toshiko Ueda
20
52
43
3
10
n.
nome
idade ger.
1ª
26
73
3ª
19
62
3
3>
1<
1
3
1
procedência
Pai Fukushima
Sapporo/Bastos
1932
Kumamoto/PR
Osaka/S. Paulo
1956
bairro
religião
Jd. Estela
PB
Guarapiranga
V. Alpina
Jd Panorama
Moinho Velho
VClementino
Saúde
Saúde
Guarujá
Jabaquara
PB
Saúde
Jabaquara
Conceição
Saúde
Saúde
Saúde
budista
católica
budista
espírita
espírita
budista
católica
budista
budista
budista
católica
católica
budista
budista
shinto
budista
budista
protestante
Desde 1997, a professora Saito se desloca semanalmente para a Escola Shiinomi
Gakuen. Embora a placa da frente identifique como Escola de Corte e Costura, resquícios
talvez do pós-guerra, a atividade principal é o ensino de japonês para crianças e adolescentes.
Como atividades opcionais, há cursos de caligrafia, soroban109, dobradura, desenho, canto coral e koto. Para as crianças que freqüentam as aulas de coral e koto, é preciso dedicar um dia
109
Aparato de madeira ou plástico para realizar, rapidamente, cálculos matemáticos.
140
inteiro de sábado. Em 2000, havia sete alunas de koto, mas atualmente prosseguem apenas
três: Érica Kinoshita, as primas Cíntia Mayumi e Deise Sayuri Ahagon (v. ft. 23). A flexibilidade de horário e a duração de aulas dependem, novamente, mais da disponibilidade do aluno
que a do professor. Na sala ornamentada de desenhos das crianças e fotos dos mais de cinqüenta anos de história da Escola, há três o-koto, dos quais dois são emprestados por Seiko
Suzuki.
Como as crianças são estimuladas pelas mães, recolhi delas algumas argumentações sobre a motivação e o significado de aprender koto:
Ocupar o tempo com o conhecimento nunca é demais. Aprender o koto ajuda a criança a fixar o idioma entrando em contato com
suas raízes de maneira prazerosa110. É muito bom também porque,
como a juventude de hoje corre muitos riscos, a criança fica ocupada
prevenindo as possibilidades de más companhias, vícios, enfim, de
fazer tudo o que não presta111.
Na camada superficial, temos como motivação do jovem descendente o reforço no
idioma revestindo a camada do aprendizado da própria cultura. Nas camadas mais profundas,
a idéia de que o “nós”, a família e a escolha social, seja a garantia de segurança e prevenção
de possíveis problemas da juventude. Mas, neste ponto, acredito que a busca da segurança, estabilidade ética e moral prevalece sobre o sentimento de pertença, pois o mundo de problemas
não pertence exclusivamente ao mundo do “eles”.
Fora da sala de aula, equivalente a uma outra apresentação ou avaliação pública,
acontece a ‘reunião de Ano Novo’, shinnenkai. Para a ocasião, todos extravazam suas melhores aptidões culinárias. Os professores Saito oferecem sua casa de campo preparando a chur110
Psicopedagogos aconselham equilibrar tarefas e responsabilidades com atividades lúdicas ou de lazer social.
Mas, pelo visto, restam à criança de grandes centros apenas atividades solitárias como TV, vídeo games, DVDs. No
ambiente “seguro” da própria casa, a atividade mais socializante é a Internet. Para a criança nikkei, dentro das características de estoicismo (v. Benedict 1997), o aprendizado aos sábados significa interação social e atividade lúdica.
111
Longe de uma análise profunda, deixando talvez para outros estudos, arrisco dizer que o aprendizado do koto
implica em ampliar o conhecimento de repertório que pode contribuir para o desenvolvimento do senso crítico personalizado, sem deixar de ser facilmente contaminado pela música de massa ou comercial. Nos questionários aplicados, alguns alunos descendentes apontam como insatisfações musicais os gêneros midiáticos, rap e funk, e a maioria axé, pagode, forró e sertanejo.
141
rasqueira, a mesa de tênis de mesa e reservando a piscina do clube próximo em favor de tornar o mais agradável possível para as crianças. Pela manhã todos tocam, preferencialmente,
peças coletivas, inclusive a ala do shakuhachi (ft. 24). Após o almoço as crianças brincam e os
adultos conversam, bebem e se divertem com o karaokê.
O principal local de ensino da professora Saito é a sua própria residência, no bairro do Jabaquara112. Antes de se casar, a professora morou na Aclimação e Cambuci e, depois,
na Vila Mariana, Aeroporto – sempre na zona sul, prováveis locais de ensino do GEMJ. No
endereço atual, Miwa Miyoshi passou seus últimos dias e hoje funcionam o Miwa-kai, de koto
e shamisen, e o Shinzan-kai da Tozan-ryū (ft. 24). Shinzan é o pseudônimo artístico do professor Shigeo Saito, marido da professora Saito.
Quando conheci o local, se não fossem os kimono cinqüentenários espalhados, após o IV Miwa-kai, poderia me sentir numa sala de visita comum à sociedade brasileira devido à sua decoração. Mas atrás da parede do piano, encontrava-se todo o legado deixado por
Miwa Miyoshi: cinco shamisen, kokyū (ft. 25), kakko, fotos, programas, centenas de partituras. Na outra parede à vista para a sala sete koto (ft. 26) suficientes para reunir as assistentes –
Seiko e Kazuko – e as alunas regulares que freqüentam a casa: Toshiko Ueda, Chieko Kawanami, Akiyo Ozaki, Kazue Chinen e Fumiko Satomi.
Sueli Seiko Suzuki (ft. 12 e 17), natural de Sapporo no norte do Japão, veio em
1932 com apenas dois anos de idade e instalou-se primeiramente em um cafezal, no município
paulista de Bastos. Na tabela 16, a indicação < na coluna de geração significa jun-nisei. Em
São Paulo, trabalhou como costureira para indústria de confecção. Trata-se da única aluna
remanescente da primeira fase do GEMJ, desde 1948, seguindo fielmente o desejo da fundadora do grupo pela continuidade do grupo. Muito dedicada e atenciosa, ela cuida desde a preparação, especialista em troca e ajuste das cordas, até a execução da performance.
112
Especificamente, cidade Vargas, que fica entre a estação Jabaquara e a Rodovia dos Imigrantes. A residência da
família Saito fica próxima a uma praça com antigas paineiras, predominando lotes homogêneos, casas de repouso e
medidas de segurança.
142
Luiza Kazuko Watanabe113, nisei paulistana, conhecia a professora Miyoshi desde
jovem, mas estudava piano na época. Depois que o marido, aluno de shakuhachi de Jûzan
Miyoshi, faleceu, Kazuko resolveu se dedicar ao koto. Hoje ela qualifica a música como indispensável na sua vida, “calmante, relaxante e prazeroso”.
Nas viagens beneficentes do grupo, a participação de Chieko Kawanami e Akiyo
Ozaki, voluntárias do templo Rissho Kosei kai, tem sido cada vez mais freqüente, destacandose por serem muito prestativas. Kawanami, por exemplo, tem sido a mais habilidosa para vestir o kimono. No I Miwa-kai toda a ala feminina, sobretudo juvenil, foi vestida com a ajuda
das veteranas comandadas pela sra Kawanami. Ela respondeu que a sua motivação para estudar koto é dar continuidade ao aprendizado que a avó, do estilo Miyagi, lhe proporcionava na
terra de origem. A sra. Kawanami parece ter sido a articuladora das aulas de koto no Rissho.
6.5.2. estratégias: memória aural, mnemônicos e proezas
Na iniciação musical, as três coletâneas adotadas pelas escolas de koto apresentam
arranjos de melodias infantis e tradicionais e são as mesmas editadas pela subescola Seiha,
onde se aprende, inicialmente, a notação Ikuta tradicional. O ensino não segue a seqüência estabelecida por álbum específico. Para facilitar o aprendizado, recorre-se primeiramente ao repertório aural, ou seja, de conhecimento prévio do aluno.
As alunas da Escola Shiinomi começam o aprendizado pelas músicas que cantam
no coral como “Sakura”, “Akatombo”, “Hamabe no uta”, “Hamachidori” e as canções infantis “Maritsuki”, “Nanatsu no ko”, “O-Edo Nihonbashi”. Uma das primeiras peças aprendidas
por Mayara Farias (ft. 16 e 26) foi “Musunde hiraite”, canção que consta no repertório Suzuki,
método através do qual a aluna estuda violino. A professora Saito conhece bem esse repertório, pois a filha caçula também estudou violino através do mesmo método.
113
Trajada de kimono rosa na foto 17.
143
Dessa forma, quando a música é conhecida, a notação serve mais como referência
escrita da memória aural e o aluno vai apreendendo os códigos da tablatura sem necessidade
de teorizações. Ainda que o aluno não conheça a escrita literária, a notação musical – que emprega ideogramas e silabários (v. cap. 3) – não oferece maiores dificuldades.
Como a notação moderna para koto está próxima do conceito de notação prescritiva, a presença do professor pode parecer dispensável. No entanto, a sua presença é tradicionalmente valorizada, como se pode notar no depoimento de uma aluna de shamisen, registrada
por Toub (1998):
No Japão o aluno, ouve, imita e toca junto com o professor.
[...] Antigamente os alunos moravam com seus professores e ajudavam nas tarefas domésticas, captando a essência da técnica e a concepção artística do professor. Recentemente começamos a usar a notação, semelhante à tablatura de violão ou alaúde que guia a posição
dos dedos e técnicas especiais. Mas é preciso ver o professor, pois
não há como saber pela notação como obter certos efeitos de timbres.
Quando vou à aula, meu professor toca comigo.
Para os primeiros passos, a professora Saito cola uma fita crepe abaixo das cordas
com os ideogramas numéricos correspondentes. Na primeira aula, é escolhida uma peça que
envolva um mínimo de recursos, dedo polegar da mão direita tocado para baixo em um âmbito pequeno. O arranjo deve ser o mais simples possível, de preferência igual à melodia. E esta
sendo conhecida, ou facilmente memorizável, há apenas que seguir a leitura das notas das
cordas e das repetições. A professora se senta ao lado do aluno, canta a melodia, o número da
corda nos valores e o mnemômico da pausa, e aponta as notas nos boxes das notas. Se a nota
for prolongada, o primeiro número entoado é o da corda e segue apontando os boxes completando os tempos e subdivisões rítmicas do próprio compasso. A semibreve ré da corda 7, na
afinação hira, por exemplo, é solfejada em japonês “sete, dois e três e quatro e”, primeiramente o número da corda e depois as pulsações restantes.
Nas aulas individuais, quando o aluno tiver assimilado a leitura, o professor deixa
de apontar a tablatura – solfejando o número das cordas – e toca em uníssono em outro koto,
144
cantando o texto literário. Depois o professor toca uma variação desta, a mesma melodia do
canto ornamentado, ou acompanhamento à maneira de acordes tonais. Nas aulas em grupo, os
alunos mais adiantados auxiliam a melodia na primeira leitura do estreante e/ou tocam a variação ou acompanhamento. As variações “Sakura Hensōkyoku” (tr. 6), de Michio Miyagi, podem ilustrar essas possibilidades. O aluno estreante pode tocar a melodia conhecida do segundo koto, outro aluno pode realizar a variação do koto baixo e outro, mais adiantado, a ornamentação do primeiro koto.
Em cada aula, o aluno aprende uma peça ou variação nova e, conforme vai aperfeiçoando, leva de três a cinco peças para treinar sozinho, em casa. No entanto, nem todos os
alunos jovens possuem o instrumento. Por isso os mesmos ficam disponíveis na própria sala
de aula, no caso da Escola Shiinomi ou do Templo Emyōji.
Quando o aluno está mais familiarizado com a leitura das notas e do ritmo, passa a
aprender os padrões rítmicos do koto na mão direita – o valor pontuado kōrorin, o padrão
composto com timbre tsu-ru-ten, e o composto com intervalo harmônico o grupo sha-sha –
bem como técnicas e ornamentos da mão esquerda e ornamentos da mão direita. Praticamente
na mesma seqüência exposta no capítulo 3.
Em todas as escolas observadas, a professora nunca interrompe o aluno para corrigi-lo. Se tiver alguma frase ou período insatisfatório, a professora solicita que o aluno repita
a peça ou secção inteira.
Na iniciação musical da Escola Miwa, a primeira proeza é tocar sem a necessidade da professora permanecer ao lado, depois, sem ter que repetir a secção e a peça inteira.
Mais tarde, a conquista da independência da fita crepe, tendo que olhar apenas a partitura.
Concomitantemente, o domínio técnico da mão direita e esquerda. E, por último, vem a destreza na velocidade e clareza de afinação nos recursos de cordas pressionadas, nos ornamentos
e nos efeitos timbrísticos.
145
Um ponto passível de crítica é o ensino centrado na tablatura e sem contextualização. A preocupação quantitativa com o domínio do vasto repertório parece dispensar comentários teóricos. As professoras Saito e Kitahara (cap. 8) costumam fornecer informações sobre
o significado do poema da canção, ou que serviu de suporte para a composição instrumental.
Uma executante de shakuhachi (Toub 1998) explica o sentido pragmático do aprendizado,
sem fragmentar a teoria da prática, e o desenvolvimento da sensibilidade musical através da
imitação do modelo e da repetição:
Para aprender a tocar não falamos sobre a estrutura da música.
Você apenas toca lado a lado com seu professor. Diferentemente do
professor ocidental que senta ao lado para ouvir você tocar. Para nós,
professor e aluno tocam ao mesmo tempo, o aluno olha e encontra a
conexão com esta arte.
As aulas em grupo, ou mesmo as apresentações mostram uma certa hierarquia, todavia sem autoritarismo por parte do professor ou do aluno mais antigo, ou mais adiantado. O
que prevalece é a integração social.
6.6. A sucessão musical e cultural: koto e filantropia
Revendo as condutas musicais das duas gerações, há apenas deslocamento de ênfases. Desde 1998, não há mais interessadas, alunas novas ou veteranas, em aprender nagauta
ou shamisen, mesmo entre as veteranas. A professora Saito é a única que empunha o sangen
para complementar o trio sankyoku nas peças instrumentais danmono, tegotomono e, raramente, nas canções jiuta. Desse modo, a herdeira da precursora do shamisen e koto, no Brasil,
consegue delimitar o âmbito para o repertório sōkyoku, aprimorando a técnica do koto.
Se o ponto forte da fundadora era o nagauta e shamisen, para a sucessora, a predileção é o shinkyoku e koto. A própria professora Miwa incentivava o repertório sōkyoku para
a segunda geração, percebendo que o canto nagauta – timbre vocal e instrumental estranho ao
gosto local – é mais condizente com a primeira geração, enquanto a sonoridade do koto – semelhante à harpa – é mais familiar para o ouvido ocidental.
146
Desse modo, o legado do o-koto tem sido aproveitado e promete permanência, já
que a neta Silvia Shinobu Saito teve a oportunidade de estudar desde pequena. Em 2002, foi
bolsista em informática pela JICA, em Kyōto, onde teve a oportunidade de estudar com uma
professora da escola Miyagi durante seis meses114. Dotada de extrema musicalidade e multiinstrumentista como a avó – Shinobu toca piano, taiko e aprendeu violino chegando a integrar
a Orquestra Infanto-Juvenil Municipal. Com tanta versatilidade, quem sabe, um dia, ela faça
soar o adormecido kakko e kokyū da bagagem da avó.
A segunda geração, propensa à modernização e ocidentalização, substituiu a presença da dança com o coral, aproveitando para desincumbir-se do canto. Daí a manutenção de
peças do cancioneiro popular e urbano, arranjados, isoladamente ou em potpourri, por compositores das subescolas Ikuta, como Seiho Nomura, Kōsaburo Hirai e Michio Miyagi. Seguindo a liberdade da mãe em criar adaptações, de acordo com o recurso instrumental e humano disponível, a professora Saito transcreve os arranjos na afinação do teclado e das vozes,
reduz partituras e elabora arranjos conforme encomendas, como no caso de “La Cumparsita”.
Quando apenas o trio feminino esteja disponível para tocar, Miriam Saito adapta a parte de
shakuhachi para koto como no caso de “Haru no Umi”.
O continuum marcante, entre as duas gerações, reside nas apresentações ligadas às
sociedades beneficentes na esfera da comunidade. A feição acentuada da solidariedade pode
ter sido sedimentada com uma passagem da vida do sr. Miyoshi relatada pela filha Miriam:
“Meu pai chegou a ter uma pequena farmácia homeopática, no bairro da Liberdade, onde ele
mesmo preparava chás, emplastros, até certas pomadas, remédios... mas com licença, tudo
certinho...” Isso deve ter ocorrido na época da guerra e imagino o quanto as farmácias dos patrícios devem ter sido úteis num momento em que o Santa Cruz, único hospital da comunidade, havia sido confiscado pelo governo.
114
A perspectiva da manutenção se reforça, considerando que o namorado de Shinobu é aluno do seu pai e também
estudou shakuhachi em Kyōto, nos últimos dois anos.
147
Seja nas aulas, ensaios ou apresentações, a professora Saito está atenta no bemestar também físico dos seus alunos, tendo às mãos para oferecer-lhes alguma pastilha, comprimido, adesivo, até colares terapêuticos, geralmente da medicina alternativa oriental.
Essa conduta prestativa adquirida por hereditariedade é o principal legado cultural
deixado pelos Miyoshi. As apresentações nos asilos, onde todo o grupo se sente envolvido e
estimulado, comprovam que o koto e o shakuhachi não são apenas instrumentos musicais,
mas sim, instrumentos aglutinadores para exercer a solidariedade e filantropia.
Notas de tradução
xxvi
Miyashita Hōzan is the most important Tozan-ryū player in Brazil.
[…] specialists in nagauta (‘love song’, music for kabuki theather).
xxviii
The first activity of Tozan-ryū shakuhachi kokyoku (classical, lit, ‘old’ music) was by Miyoshi Jūzan […]
xxix
[...] the musicians of koto and shakuhachi have performed gaikyoku (lit. ‘outside music,’ meaning chamber
music for koto and shakuhachi) in ensembles of two or more people. The Miyoshi husband and wife team was
the first to perform such Naichi-Japanese chamber music […].
xxx
[...] students, the most important being Hōzan Miyashita, another prewar immigrant who returned to Japan for
his Tozan-ryū natori.
xxvii
PARTE III
Associação Brasileira de Música Clássica Japonesa:
Implantação da Mentalidade Pós-Guerra
7
ESCOLAS DE SHAKUHACHI E YAMADA-RYŪ: A RECUPERAÇÃO DO
“SENSO ARTÍSTICO”
Fomos criados em um sistema europeu, que
dava mais importância a si mesmo em detrimento do
coletivo. Ou seja, fomos ensinados a ser mais individualistas e perdemos o senso de cooperação. São
aspectos negativos que acompanharam os novos imigrantes e que estamos tentando amenizar.
Akio Koyama
A Associação Brasileira de Música Clássica Japonesa (ABMCJ), foi formalizada
em 24 de fevereiro de 1989 por líderes da maioria das escolas de shakuhachi e koto, na cidade de São Paulo. Das escolas de shakuhachi, participaram da fundação os professores:
Hōzan Miyashita, fundador também da Tozan-ryū do Brasil (mencionado no cap. 6); e Baikyoku Iwami, da Kinko-ryū. Das escolas de koto Ikuta-ryū, participaram as professoras:
Yūko Ogura, do Miyagi-kai; e Utahito Kitahara, do Grupo Seiha Brasil de Koto (v. cap. 8).
Atualmente, além das escolas mencionadas, agregam-se: a Academia de Shakuhachi Tozan, liderada por Shūzan Saeki; o Grupo Shinsen-kai da Tozan-ryū, por Kizan Nagai e Gizan Fukuda; e a Academia de Koto da Yamada-ryū, representada por Tomoi Isshiki
Inoki. Devido ao alto grau de grão mestre, o iemoto Iwami assume a presidência e a professora Ogura a vice-presidência, pela sua titulação obtida, no Japão, diretamente com o professor Michio Miyagi.
Os professores mencionados são os principais articuladores da ABMCJ, mas, reservando as escolas Ikuta para o capítulo 8, o presente capítulo restringe-se ao âmbito das
escolas de shakuhachi e da escola Yamada, onde predomina a conduta do imigrante pósguerra. Antes é preciso elucidar a instalação desse novo tipo de mentalidade.
149
150
7.1 Algumas peculiaridades contextuais
7.1.1
novo tipo de imigrante
Akio Koyama, locutor da epígrafe ao jornalista nikkei Aldo Shiguchi (2003, 1),
foi vice-presidente da comissão organizadora dos 50 Anos da Retomada da Imigração Japonesa no Brasil, comemorada em junho e julho de 2003. A interrupção de quinze anos, entre
1938 e 1953, no fluxo imigratório trouxe um novo tipo de imigrante, cuja elite era constituída de técnicos e engenheiros. A causa do novo imigrante ser menos cooperativo que o imigrante pré-guerra, como admite Koyama, creio que não se restringe à formação ocidental.
Alia-se o fato de que os líderes imigrantes, anteriores ao conflito, eram agricultores. E sabese que o senso coletivo prevalece na realidade rural em relação à urbana.
Logo no início da pesquisa de campo, retomei contato com o presidente da
ABMCJ, o grão mestre Baikyoku V Iwami, que me recebeu em sua residência nas proximidades do Palácio do Governo, no Morumbi – um bairro nobre ao sul da cidade, que não tem
muita relação com a história dos imigrantes japoneses. Nessa primeira entrevista, fez questão de frisar que sua vinda ao Brasil se diferencia dos imigrantes pré-guerra, pois não veio
como agricultor e nem de navio. Depois que apresentei minhas intenções de pesquisa, ele
sugeriu:
Eu não estou entendendo muito bem o que você pretende...
Mas, acho que você deveria experimentar ter umas aulas de koto. Depois que você sentir o toque de suas cordas e vestir o kimono, daí você
poderá delinear melhor as suas idéias.
Num primeiro instante, tal convite comungava com minhas intenções de observadora participante “ativa” e senti aliviar a sensação de intrusa. Posteriormente, percebi que
“vestir o kimono” não era simplesmente um convite à experiência empírica. Revendo o poema epígrafe do capítulo 8, senti o peso de uma incumbência maior e causa um certo desconforto saber até que ponto o pesquisador deve permanecer neutro nessas inserções em
campo. Contudo, só o tempo poderá, ainda, dizer algo.
150
151
Deixando as particularidades à parte, convém retomar a distinção salientada por
Iwami que expressa a mudança da natureza da imigração. O tipo de transporte indica a motivação diferenciada para emigrar. Enquanto o navio implica em saída em massa, devido aos
problemas econômicos, advindos da superpopulação e do desemprego, o avião significa um
deslocamento mais individual e espontâneo do “cidadão que quer trabalhar ou gozar a vida
em outras plagas” (Nakasumi e Yamashiro 1992, 422).
Ao mesmo tempo, a declaração de Iwami deixa escapar não somente um ar de
superioridade sobre os imigrantes agricultores, mas também evidencia uma nova categoria
de etnicidade: “nós” ou “eles” do pós-guerra e “eles” ou “nós” do pré-guerra. Soma-se à sua
insatisfação a afirmação de que o descendente, geralmente, não sabe apreciar a arte tradicional japonesa. O artista plástico Tomoo Handa (1988, 16), imigrante pré-guerra, explica a
causa dessa perda do senso estético:
[.] devido ao impacto do novo modo de vida brasileiro, nossa
vida ficou toda desorganizada, num grau inimaginável aos meros observadores. Outrossim, pode-se dizer que, tendo-se abandonado o modus vivendi tradicional por força da preocupação inicial de logo retornar ao Japão, perdeu-se também o senso artístico que dá lustro à vida.
Na conclusão, voltarei a discutir esse aspecto direcionado à música. Neste prólogo, tento apenas destacar essa peculiaridade na liderança da ABMCJ. O transporte aéreo
trouxe não somente especialistas técnicos, mas trouxe também os articuladores da formalização das Escolas Ikuta – grupo Miyagi e o grupo Seiha Brasil de Koto – e Yamada, que
contribuíram para recuperar essa “perda do senso artístico”, salientado por Handa.
7.1.2 hierarquias musicais: iemoto e purismo
A ABMCJ mantém outra peculiaridade: a de contar com a presença de um grão
mestre ou iemoto. O sistema iemoto, cujo sentido literal é ‘principal da casa’, como o próprio nome diz, tem um sentido altamente hierárquico que se equipara ao efeito das institui-
151
152
ções de “preservação” (v. cap. 5) das artes tradicionais japonesas. Conforme David Hughes
(1995, 353):
O sistema iemoto tem causado um profundo efeito nas artes no
Japão. A maioria dos gêneros da música e dança artística tradicional,
e, recentemente, mesmo a canção folclórica, está organizada em “escolas” ou “linhagens” hierarquicamente estruturadas com um iemoto
autocrático na liderança, que toma decisões sobre estilo de performance, licença de professores, etc.xxxi
Shūhei Hosokawa (1996, 217) complementa e reforça o papel de conservação do
sistema:
[...] não se pode lecionar sem essa permissão. Se infringir essa
regra poderá ser expulso. O sistema iemoto é sustentado por um ciclo
em que o poder para conceder a licença movimenta-se de cima para
baixo e o dinheiro para se conseguir uma licença escorre de baixo para
cima. No entanto, pode-se afirmar que tanto no shamisen como no nogaku [música de teatro no], esse sistema é bastante evoluído, tanto que
mesmo nos dias de hoje, as suas músicas quase não sofreram alterações.
Soma-se ainda o fato de que o isolamento de um autêntico iemoto da ‘casa’ de
origem, desemboca na pureza estilística. Dimensionando a linhagem de Baikyoku V, Dale
Olsen (1983a, 122-3) – que foi seu aluno durante a pesquisa, em 1981 – confirma esse traço
de preservação:
A importância real de Iwami Baikyoku V no mundo da música, entretanto, não está simplesmente em sua presença no Brasil como
um iemoto de shakuhachi, mas está no fato de que ele é o único executante vivo de shakuhachi que é um descendente direto de Kodō Araki IV. Assim, ele é uma ligação importante na cadeia Kinko-ryū, representando um estilo muito puro. O fato que ele vive isolado no Brasil, por mais de vinte e cinco anos, significa que ele tem se mantido intocado pelas influências de outros artistas de shakuhachi e outras escolas de pensamento. Ele, de fato, se considera um “fóssil vivo” da pura
tradição de shakuhachi Kinko-ryū, sem influência das modernas tendências de shakuhachi no Japão.xxxii
No caso da Kinko-ryū, temos no Brasil, provavelmente, um fenômeno singular
da música japonesa transterritorializada: um grão mestre que se desloca da casa principal.
Desse modo, vieram para cá não só o kimono, a roca, o fio – elementos de preservação
sugeridos pelo poema de Morioka (epígrafe do capítulo 8) – como também o fiador mor.
152
153
Contudo, sentindo o pilar hierárquico abalado, Iwami declara com sentimento
dúbio de orgulho e resignação:
Aqui duas escolas diferentes, como Tozan-ryū e Kinko-ryū,
podem tocar juntas, o que não é possível no Japão. No Brasil, a sociedade é mais horizontal, sem muita hierarquia, e no Japão a sociedade
é mais vertical. E não tem sentido a verticalização no Brasil.
7.2 Ala masculina: escolas de shakuhachi
7.2.1
formação e atuação de Iwami e Baikyoku V
Tsuna Iwami (ft. 27), nascido em Tōkyō, em 21 de março de 1923, iniciou-se no
shakuhachi aos sete anos de idade com os professores Hodō Igura e Kodō Araki IV – o primeiro Kodō viveu há 360 anos na era Edo. Durante a segunda guerra obteve o pseudônimo
Baikyoku V, i. e., herda a tradição de iemoto, representando a quinta geração da corrente
Kinko, quando estava com apenas dezenove anos de idade. Olsen (1983a, 123) destaca sua
notoriedade e formação ocidental:
Durante aquela época ele próprio era famoso no Japão, aparecendo sempre no NHK (Companhia Difusora Nacional Japonesa) e
fazendo gravações com seus contemporâneos. Ele era conhecido também como um performer de okuralo, uma flauta com o corpo de chaves ocidentais com a embocadura de shakuhachi.xxxiii
Em 1943, estudou paralelamente composição ocidental com o professor Kishio
Hirao, aluno de Vincent D’Indy e César Franck, entre 1930 e 1935. Suas principais obras
compostas no Japão foram: “Ariette para flauta”, em 1944; “Cinco Canções de Manyō-Shū”,
entre 1945e 1955; e “Três Poemas para Piano115”, em 1948. Em 1947, formou-se geofísico e
químico pela Universidade de Kyōtō, o que possibilitou a atuação profissional nas áreas de
engenharia química e de administração industrial.
115
O pianista José Eduardo Martins que gravou seus “Três Poemas” comenta: “Sua obra é técnica e esteticamente
pós-impressionista. Imbuída do espírito zen, possui base comum com a música de Debussy, ou seja, música tradicional erudita japonesa” (Martins 1979).
153
154
Chegou ao Brasil, em 1956, com sua mãe Tomii Iwami (v. secção 7.4) e abriu
sua própria firma industrial. Casou-se com uma pianista nisei, com quem teve um casal de
filhos, e naturalizou-se brasileiro em 1978. Olsen (1983a, 123) comenta sua integração como
compositor na sociedade paulistana:
Em São Paulo, Tsuna Iwami é conhecido nos círculos de música clássica japonesa e também tem uma boa reputação como compositor. Seus numerosos concertos em São Paulo têm sido tanto de música japonesa Naichi quanto de música contemporânea, quando figuram
suas próprias composições.xxxiv
Em 1973, realizou um concerto de suas obras no auditório da SBCJ e participou
do festival Música Nova de Santos, em 1982. Na terra adotiva compôs “Sonata para Violoncelo e Piano”, em 1978; “Estudo para Mão Esquerda” e “Fragmento Cantabile” para piano, em 1983; e “Koro-Koro Fantasy” para shakuhachi, teclado e orquestra, em 1991. Estas
obras e as peças compostas na terra nativa foram reunidas no CD T. Iwami (2002).
Como intérprete de shakuhachi, vem se apresentando desde sua chegada, em
1956. Na primeira década, atuou principalmente com a sua mãe Tomii Iwami, ao koto (v.
secção 7.4), e, posteriormente, com Tomoi Inoki, Yūko Ogura, Gakkyo Yūmoto e Utahito
Kitahara (cap. 8). Desde 1968, organiza diversos recitais no Teatro Municipal e no MASP –
Museu de Arte de São Paulo, palcos principais da música erudita na capital.
Em 1970, viajou para o Japão e recebeu um convite da NHK para uma gravação
sobre a história da música para shakuhachi. Aqui no Brasil também tem realizado diversas
gravações como intérprete e compositor na rádio e TV Cultura de São Paulo participando,
em 1991 e 1992, do programa “Primeiro Movimento”, apresentado pelo maestro Jamil Maluf. Além da habilidade musical, o sr. Tsuna Iwami destaca-se como ceramista116, tendo participado de exposições locais e até em Ginza, bairro artístico de Tōkyō, em 1977.
116
Infelizmente o Sr. Iwami foi obrigado a fechar o atelier de cerâmica que dividia com outro ceramista japonês,
que teve sua vida hediondamente abreviada por assaltantes que lhe abordaram dentro do próprio atelier.
154
155
7.2.2
discípulos da Kinko-ryū
Como iemoto, Iwami costuma ir à terra natal, periodicamente, nos encontros da
Kinko-ryū, quando acontece a outorga de certificados. Além de Olsen, que recebeu o pseudônimo de Bai-Ō (v. tab. 18), Baikyoku V habilitou aqui no Brasil os alunos Bai-o Natori,
Baiko Kobayashi, e Baikyo Tomic. Sobre os dois primeiros, Olsen (1983a, 122-3) registra:
[…] um executante e professor da Kinko-ryū, Kuniji Natori,
chegou no Brasil, em 1934, mas não se mudou para São Paulo (subúrbio de Suzano) até 1951. Embora ativo como performer, ele é, portanto, um fenômeno pós-guerra, desde que na plantação de café, onde ele
trabalhou primeiro, não era possível a dedicação necessária ao shakuhachi. Ele agora, um homem idoso de 81 anos, não tem mais tocado
shakuhachi há mais de dez anos. [...]
Seu aluno mais notável é Julio Koichi Kobayashi, um nisei cujo pai foi o primeiro executante da Kinko-ryū. Kobayashi, após vinte
anos de estudo, recebeu seu natori, em 1976, sob Iwami, ficando conhecido profissionalmente como Kobayashi Baiko.xxxv
Tab. 18. Participantes de shakuhachi da ABMCJ117
Escola idade ger. imig 02 00 97 94 89
Nome
1956 ‫׀ ׀ ׀ ׀ ׀‬
1. Tsuna Baikyoku Iwami
Kinko 80
1
2. Kuniji Baiō Natori
Kinko +
1
‫׀ ׀‬
3. Júlio Baiko KobayashiÓ
Kinko 63
2
4. Dale Bai-ō Olsen
Kinko 62
‫٭‬
5. Antonio Mauro RodriguesRoque Kinko
‫׀‬
6. Carlos Raigorodsky
Kinko 80
‫׀ ׀ ׀ *׀‬
7. Danilo Baikyo Tomic
Kinko
8. José Vicente Ribeiro XemÓ Kinko 43
‫׀ ׀ ׀ ׀‬
9. Máximo Akira Hanada
Kinko
2
‫׀‬
10. Hōzan Miyashita
Tōzan +
1
1960
‫׀‬
‫׀‬
11. Shigeo Shinzan Saito
Tōzan 66
1
1955
‫*׀‬
‫׀‬
12. Itsurō Shinju Yazaki
Tōzan 74
1
‫׀‬
13. Hōgetsu Watanabe
Tōzan +
‫*׀‬
14. Hōritsu Nishitani
Tōzan
‫׀‬
15. Hōshin Tanaka
Tōzan
‫׀‬
16. Mari Saito ♀ (SBK)
Tōzan 27
3
1973 ‫׀‬
‫׀ *׀‬
17. Shōjiro Shuzan Saeki
Tōzan 65
1
‫*׀‬
18. Luis Yosei Furlaneti
Tōzan
‫*׀‬
19. Márcio Yosho Valério
Tōzan
‫׀‬
20. Kizan Yohō Nagai
Tōzan
1(¿)
‫׀‬
‫׀ *׀‬
21. Toshio Yonen Fukuda
Tōzan
2
‫׀ *׀‬
22. Minoru Yoshō Michiyama
Tōzan
1
‫׀ ׀ ׀‬
23. Nenkyo Matsuba
Tōzan
1
‫׀‬
‫׀ *׀‬
24. Takashi Yokō Harada
Tōzan
1
‫*׀ ׀ ׀‬
25. Tatsuyuki Yotatsu Otsuka
Tōzan
1
1955
26. Yoyū Yamaoka
Tōzan
1
117
88 87 est Origem
‫ ׀ ׀‬73 Tōkyō
‫׀‬
‫׀‬
‫׀‬
‫׀‬
‫׀‬
35 S. Paulo
Minnesota
5
>7
12 São Paulo
>3
10 Tupã
‫׀‬
37 Fukushima
Nagano
‫׀‬
‫׀‬
11 Sto. André
12 Sto. André
‫׀‬
‫׀‬
Sto. André
‫׀‬
Legenda: Ó= dekasegiando; | = shakuhachi; + = falecido; *=recebimento da titulação; est.= anos de estudo.
155
156
Júlio Kobayashi, nascido em São Paulo, foi estudar com o professor Iwami, em
1959, quando estava com dezenove anos. Participou ativamente dos recitais e apresentações
coletivas da ABMCJ até 1997, quando resolveu ir trabalhar no Japão como dekasegi.
Um fato curioso é que entre os oito alunos que figuram nos programas obtidos
das apresentações (tab. 18), coordenadas por Baikyoku Iwami, apenas três são nikkei: Baiō
Natori, já falecido; e os nisei Júlio Kobayashi e Máximo Hanada118. Predominam, portanto,
intelectuais não nikkei, admiradores da cultura japonesa tais como: Carlos Raigorodsky119,
Antonio Mauro Rodrigues Roque120, Dale Olsen, Danilo Tomic e José Vicente Ribeiro121.
Segundo o professor Iwami, eles conhecem e valorizam a música artística japonesa mais
que os próprios descendentes122. Entre os cinco descendentes de caucasianos, os três últimos são músicos profissionais, o que pode acenar para um efeito multiplicador.
Dale Olsen, doutor em etnomusicologia na área de música japonesa e latinoamericana pela UCLA – Universidade da Califórnia, Los Angeles, em 1973, graduou-se anteriormente em musicologia e flauta pela Universidade de Minnesota, onde nasceu em 1941.
Iniciou-se em shakuhachi na UCLA e foi aluno do professor Iwami, enquanto realizava sua
pesquisa no Peru e no Brasil, em 1981.
Danilo Tomic (ft. 27), paulistano descendente de europeus, é músico especializado em piano e composição, em Saint Paul, regência e musicologia, em Berlim. Estimulado por filmes de Kurosawa, despertou para o shakuhachi na Alemanha, em 1990, e prosseguiu os estudos com o professor Iwami, de quem recebeu o pseudônimo Baikyō, em 2001.
118
Médico natural de Tupã, SP. Estuda shakuhachi há dez anos com o professor Iwami.
Engenheiro civil, resolveu aprender shakuhachi para acompanhar a mulher Mary Celeste, aluna do Miyagi-kai.
120
Antonio Mauro Rodrigues, carioca intérprete também de shō, pode ser também músico profissional, mas não o
conheci pessoalmente, para assegurar tal informação.
121
Flautista, aluno de Antonio Carrasqueira, estudou shakuhachi com o professor Iwami até 1987. Reiko Nagase e
sua filha Yūka contam que Xem era um elemento bastante dinâmico da ABMCJ, no contato para apresentações e
nas sugestões de interpretação. Desde 1987 está no Japão, onde sobrevive da música brasileira, tocando flauta
transversal, logicamente.
122
E para um grão mestre, deve ser mais suportável conviver a horizontalização com não descendentes, do que com
os próprios nikkei.
119
156
157
É executante também de okuralo. Nas aulas semanais, o professor Iwami ensina também o
idioma japonês para Danilo.
Raramente, o grão mestre iniciou discípulos jovens, porém, assistindo a uma apresentação do grupo na Semana de Cultura Japonesa (ft. 27 e 36), promovida pelo SESC
Vila Mariana, em 2001, um jovem estudante de música, não nikkei, candidatou-se a seu aluno. No ano seguinte, durante a Hikizome, “primeira reunião anual”, da ABMCJ, um eurasiano, mais jovem ainda, surge tocando “Rokudan”. Trata-se de Maurício Mazzuco (ft. 28), neto do professor Iwami, quem sabe a sexta linhagem, iniciado na Kinko-ryū com a mesma idade que o avô iniciou no shakuhachi.
7.2.3 Academia de Shakuhachi Tozan-ryū
Dentre os 26 executantes de shakuhachi da ABMCJ (tab. 18), 8 são da Kinkoryū e 18 estão subdivididos em três grupos da Tozan-ryū: Shinzan-kai, Shinsen-kai e Academia Tozan. O primeiro, liderado por Shigeo Shinzan Saito, é sucessor do grupo fundado
por Jūzan Miyoshi. Trata-se da ala masculina, do grupo Miwa, abordado no capítulo anterior. Os outros dois grupos da Tozan-ryū são conseqüência do grupo de Santo André, liderado
por Yōzan Sagara. O grupo Shinsen-kai, liderado por Mare Kizan Nagai e Toshio Gizan
Fukuda, de Santo André, está mais atrelado ao grupo Seiha Brasil de Koto.
A Academia Tozan está mais presente nos pequenos grupos organizados pela
ABMCJ e tem uma configuração semelhante a Kinko-ryū. O professor Shōjiro Shuzan Saeki (ft. 29) se enquadra na era do “novo imigrante”, aterrizando com sua mulher e filho, em
1973, para instalarem-se na área urbana. Ele veio trabalhar em firma brasileira como engenheiro eletrônico. O professor Saeki faz questão de ressaltar que na Tozan-ryū o fundamental é a relação de companheirismo entre os integrantes do grupo.
A maioria do repertório da corrente Tozan é polifonia a duas
vozes e é preciso fazer música conversando. E a cada contato há o desejo natural de voltar de novo. Música é natureza... E ninguém pode
forçar a natureza.
157
158
Depois que foi interrompido em suas atividades profissionais, o professor Saeki
dedica seu tempo integral à música. A sua sala de estudos é isolada acusticamente e diz que
prefere estudar no silêncio da madrugada. Além do shakuhachi, estuda koto e desenvolve
um estudo minucioso sobre os sistemas de afinação do shakuhachi, koto e ch’in, expondo
uma instigante e inédita relação entre afinação e comportamento humano, na seguinte assertiva:
Em 1680, na fusão da música chinesa no Gagaku havia doze
modos distintos. Cada escala tinha um temperamento diferente de acordo com o shō. O koto então era afinado na quinta natural da escala
dos físicos, onde o coração fica mais puro. [...] Depois do temperamento do piano, a música ficou comercial, o homem perdeu a sua profundidade, ficou mais ambicioso e propenso a guerrear.
Dos quatro alunos do professor Saeki – Ênio Possebom, Márcio Shūho Valério,
Luís Yōsei Furlanetti e Paulo Ikehara – apenas um é nikkei. A motivação de todos passa
por um viés intelectual ou uma opção consciente. Logo no primeiro encontro, o professor
Saeki me forneceu uma gravação de um programa chamado “Timbres”, da Rádio Cultura,
que exibia um especial sobre shakuhachi. O entrevistado do programa foi o seu aluno Ênio
Possebom, arquiteto que se interessou pelo shakuhachi em uma feira popular na Índia. Em
uma criteriosa seleção de repertório, entremeada de explicações sobre as possibilidades e estrutura do instrumento, Ênio ressaltou a origem social da música para shakuhachi e seus usos contemporâneos, i.e., a música zen ou solo e a combinação com koto, orquestra ocidental, tabla e sintetizador.
Márcio (ft. 29), nascido em Santo André em 1968, mantém uma loja de CDs em
Campinas e todo final de semana regressa para São Paulo, onde assiste às aulas de shakuhachi com o professor Saeki. Sobre sua motivação pelo aprendizado, Márcio responde:
Eu tocava violão e guitarra e não conseguia alcançar a profundidade que desejava. Quando ouvi pela primeira vez o shakuhachi
numa apresentação, o som me tocou profundamente, era a “voz” que
eu precisava para expressar o que pretendia e tinha um aspecto de passado mítico.
158
159
Indagado sobre suas intenções, Márcio revela a sua enculturação nipônica, um
misto de preceitos zen, taoísta e confucionista, através dos treze anos de aprendizado de
shakuhachi:
Gostaria de conseguir um bom relacionamento com o instrumento. E se possível, numa conseqüência natural, através da música
que brota em mim ou de mim, revelar mistérios, profunda beleza, curar, criar, trazer/chamar serenidade, paz, reverência, harmonia, felicidade e alegria, uma espiritualidade aliada à natureza.
Márcio me ofertou dois CDs contendo experimentações suas em solo de voz e
shakuhachi. Melodias pentatônicas improvisadas com um número reduzido de fonemas que
soam como se fosse uma generalização intuitiva ou um denominador comum entre a língua
indígena, africana e japonesa. Algumas terminações e inflexões próprias do shakuhachi também são exploradas na voz. Nas gravações, transparecem a sua vivência, o seu gosto musical
e as expectativas expressas acima.
7.3 As performances da ABMCJ
As performances da ABMCJ são mais escassas do que as dos grupos que dela
participam, sobretudo das escolas de koto, mas certamente a associação funciona como órgão centralizador dos convites. Para as eventuais apresentações profissionais, há pelo menos
um trio sankyoku disponível para aceitar convites externos e até internacionais. Os professores Iwami, Ogura, Kitahara e Tomic chegaram a participar da comemoração do 60° Aniversário da imigração no Paraguai e já foram convidados das embaixadas japonesas no Chile e na Argentina.
O Colônia Geinōsai ou Festival de Música e Dança Japonesa – que acontece,
desde 1966 (v.cap. 6), todo o mês de junho em comemoração ao aniversário da imigração
japonesa no Brasil – seria a continuidade e ampliação do Show de Variedades Engeitaikai
do navio, com uma diferença: conta com participantes selecionados, sendo menos amadores.
É a vitrine dos grupos musicais e de dança tradicional, popular e clássica da comunidade
159
160
nikkei, preenchendo vinte horas de programação, em torno de 130 números, no fim de semana, realizada no auditório da sede da SBCJ – Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa
(ft. 30).
Já se tornou uma tradição, na programação de domingo, a abertura musical com
uma ou duas peças interpretadas pelo grupo da ABMCJ (ft. 31), logo após a homenagem aos
anciãos que completam cem anos de idade. No Geinōsai têm se apresentado os professores
da Kinko, da Academia de Shakuhachi Tozan, Grupo Miyagi e Seiha e alguns alunos, totalizando entre quinze e dezenove integrantes no palco. O repertório tem sido os mais conhecidos do zokusō – “Chidori”, “Rokudan” – e shinsō – “Haru no Umi”, “Hiyaku” e “Yabe no
Sato”.
Desde a fundação, em 1989, a principal performance, promovida pela própria
ABMCJ, ocorre a cada dois ou três anos (ft. 32) em prol da Kibō no Ie ou Sociedade Beneficente Casa da Esperança. Seria a retomada ou reminiscência do Grupo Futaba que desembocou na Sociedade Feminina Esperança (secção 6.1). Hoje, a Kibō no Ie é “um asilo para
excepcionais, que recebe ajuda do governo japonês, entidades beneficentes do Japão e da
comunidade nikkei” (Nakasumi 1992, 446-7). Na organização do evento, os líderes se reúnem para selecionar o repertório e cada escola seleciona os executantes aptos e disponíveis.
Freqüentemente, o concerto apresenta convidados das escolas de dança, cerimônia de chá
e/ou coral.
7.4
As remanescentes da corrente Yamada
7.4.1
formação e atuação artística de Tomoi Inoki
A apresentação beneficente da ABMCJ oferece uma rara oportunidade de apreciar
no Brasil a “autêntica” forma de cantar da Yamada-ryū, através da última remanescente da escola, Tomoi Isshiki Inoki. Pude observar que muitos issei ficam extasiados com sua interpretação e expressam admiração quando descobrem que ela é nisei. Logo deduzem: “Ah, mas a
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161
senhora deve ter estudado e vivido no Japão um bom tempo”. Ao que Tomoi responde sem titubear: “Não, foi no Brasil mesmo” aumentando, ainda mais, a surpresa dos issei.
Deu para notar que o issei acredita que o descendente possa até cantar sem nenhum sotaque, mas sempre fica faltando algo para expressar a verdadeira essência na maneira
de entoar as canções clássicas. É a corriqueira cobrança do autêntico e genuíno equivalente
ao brasileiro observando o japonês sambando ou tocando choro.
Tomoko Isshiki nasceu em Santo André, caçula entre quatro irmãos que tiveram
formação erudita ocidental. O irmão aprendeu violino e as duas irmãs mais velhas são musicistas profissionais, uma violinista e outra pianista. Inicialmente, Tomoko aprendeu piano
com a professora Satiko Fukuda e posteriormente, com o maestro Leonid Urbenin.
Numa entrevista concedida Tomoi declarou que foi motivada a estudar koto porque se sentiu atraída pelo som e pelo visual elegante de suas cordas sobre os cavaletes, através
de um filme japonês que assistiu quando tinha dezesseis anos. Procurou então a professora
Kikue Hayashida. Olsen (1983a, 121), que chegou a conhecer pessoalmente as pioneiras do
koto, Miwa Miyoshi e Kikue Hayashida, comenta sobre a primeira professora da Tomoko:
A outra instrutora e performer de koto que atuou antes da guerra foi Kikue Hayashida, 79 anos, uma musicista Yamada-ryū e mãe da
mais ativa professora de koto, Yūko Ogura. A sra. Hayashida foi a única performer da música da Yamada-ryū, embora ela tocasse com
tsume Ikuta-ryū. Ela não atuou muito tempo como professora.xxxvi
A informação do plectro diferente chega a ser intrigante. Tecnicamente, alguns
ornamentos da corrente Yamada são impossíveis de obter com os plectros da Ikuta-ryū como,
por exemplo, o recurso sārarin (v. cap. 3). Mas se o estudioso categorizou a professora Hayashida como Yamada-ryū deve ter sido pelas edições das tablaturas que ela utilizava. Porém,
como no caso de Miwa Miyoshi, o repertório trazido pelas imigrantes pré-guerra era aquele
retido na memória, segundo a filha de Hayashida. Quando as tablaturas começaram a chegar
161
162
no Brasil, depois da guerra, a preferência ou acesso de Hayashida deve ter sido pelas edições
da escola Yamada.
Segundo Yūko Ogura, sua mãe Kikue Hayashida nasceu em 1904, na cidade de
Bihoro, Hokkaidō, em meio a nove irmãos da família Sugino. Imigrou para o Brasil na década
de vinte, instalando-se em uma fazenda de café, em Promissão. Depois que se casou com fotógrafo, de Kumamoto, viveu em Penápolis, Marília e São Paulo. Tiveram oito filhos e todos
tiveram a oportunidade de estudar um instrumento musical: os meninos violino, clarinete, violão e bandolim e as meninas, koto e piano, além de dança. Ela mesma se incumbia de dar aulas de koto para suas filhas. Atuou como professora e performer de koto em São Paulo e chegou a ter alunas no Paraná.
Como fruto do ensino de Hayashida, Tomoko Isshiki apresentou no Teatro Municipal, em 1963, a versão de “Haru no Umi”, que o próprio compositor Michio Miyagi e o violinista Isaac Stern estrearam dez anos antes no Japão. A provável estréia brasileira deu-se com
Tomoko, ao koto, e sua irmã Clara Akiko Inoguchi, ao violino.
Em 1964, Tomoko Isshiki passou a estudar com a professora Tomii Iwami. O ideograma # i do pseudônimo artístico Tomii é emprestado de Imai Keisho, de quem ela foi
aluna direta. Tomii parece ter sido a primeira e única primeira professora titulada de koto que
veio para o Brasil com o propósito de permanecer em caráter mais definitivo. Isso porque o
filho mais velho imigrou anteriormente e já estava bem estabilizado como diretor de indústria
de produtos eletrônicos. Assim, ela resolveu vir em 1956 com o seu filho mais novo, o grão
mestre Baikyoku Iwami.
L. C. Vinholes escreveu outra matéria jornalística comentando a apresentação,
talvez o primeiro registro em jornal de língua portuguesa, desses ilustres professores da Escola Kinko e Yamada no Brasil. Segundo Vinholes (1956b), o recital ‘Música Antiga Japonesa’
aconteceu no encerramento do Festival de 1956, promovido pelo Grêmio Bartók, no salão dos
162
163
Seminários de Música Pró-Arte, em São Paulo. No artigo, Vinholes elogia, com conhecimento de causa, a competência dos Iwami que interpretaram “Rokudan”, “Chidori no Kyoku”,
“Shiki no Kyoku”, “Haru no Kyoku” e “Midare”:
A professora Tomii Iwami pertencente a Yamada Ryū, uma das
mais importantes correntes dos kotoistas japoneses, e o professor
Baikyoku, exímio executante de shakuhachi, de Kinko Ryū, deram
provas de um conhecimento total de sua arte e da grandiosidade e nobreza da mesma.
Vinte e cinco anos depois, Olsen (1983a, 121-2) atesta a importância da professora
Iwami: “A atividade de koto no pós-guerra tem sido muito mais extensiva, devido à imigração
de uma importante professora e performer Yamada-ryū, Tomii Iwami, já falecida”xxxvii.
Tomoko Inoki se formou em 1970, pela Escola Yamada, recebendo o nome artístico Tomoi (ft. 38) de sua professora Tomii Iwami. Tomoi relata que a professora Iwami empenhou-se sobremaneira na sua formatura, um pouco antes de ser consumada pelo câncer:
Como eu estava grávida a sensei, mesmo doente, vinha até a
minha casa me preparar para a prova de formatura com peças representativas da Yamada-ryū. E convenceu meu pai a investir muito dinheiro tanto para a formatura como para comprar um koto. E ela
mesma fez questão de acompanhar a construção do meu koto lá no Japão.
Em seu currículo artístico exibido em um dos seus programas, Tomoi elucida as
performances com instrumentos ocidentais ou o teatro do meio artístico erudito:
Em 1963, apresentou “Haru no Umi” com a irmã no Teatro
Municipal. Em 1967, tocou “Seoto”, de Michio Miyagi com o violoncelista Cristian Benda. Desde1964, apresentou-se diversas vezes com
o grupo instrumental do maestro Iwami no Teatro Municipal e no auditório do MASP. Em 1972, apresentou, em primeira audição no Brasil o “Concerto para Koto e Shakuhachi”, de Shinichi Yuize, com a
Orquestra de Câmara da SFSP, regida pelo maestro Kenichi Yamakawa, e diversas vezes em outras apresentações dessa orquestra. Por ocasião do 70° Aniversário da Imigração Japonesa no Brasil, atuou com
a Orquestra Sinfônica Municipal na presença de Ss. Aa. II., o príncipe
Akihito e a princesa Michiko. Participou do concerto ‘Segundas Musicais’, em 1980, no Teatro Municipal. Nos 80 anos da imigração, apresentou com a irmã um programa com a música do maestro KenIchi Yamakawa.
163
164
Maestro Ken-Ichi Yamakawa, fundador da Orquestra de Câmara da SFSP – Sociedade Filarmônica de São Paulo – é cunhado de Tomoi, ou seja, é casado com a outra irmã
chamada Sonia Junko. O casal já foi apontado pela APCA – Associação Paulista de Críticos
de Arte – como melhor compositor e melhor pianista. Em 1972, o maestro Yamakawa compôs especialmente para sua cunhada a peça “Koto no tame ni [Para koto]” (v.app. 4).
A intensidade da atuação de Tomoi Inoki é proporcional ao seu talento, mas também ao conhecimento e atividade do seu meio familiar junto ao meio artístico.
7.4.2
breve período de ensino da Tomoi-kai
Como sucessora da professora Tomii Iwami, a performer Tomoi Inoki assume o
título de professora de koto, em fins da década de setenta. Entre 1979 e 1985, acontecem três
Tomoi-kai, com intervalo de dois anos. Em 1981, a professora Tomoi esteve no auge do ensino, quando Olsen (1983a, 122) teceu o seguinte comentário:
A maioria do ensino e performance de koto na atualidade está
a cargo de Yūko Ogura e Tomoi Inoki, uma nisei e última natori Yamada-ryū, sob Tomii Iwami. Cada uma dessas professoras de koto
tem entre dez e vinte alunos e, normalmente, dois ou três recitais de
alunos e professores são promovidos por ano. As alunas são, em maioria, mulheres de meia idade issei, embora algumas sejam nisei, estas
também tocam muito bem.
Hoje, o único conjunto profissional de instrumentos musicais
de Naichi é o grupo de koto conhecido como Tomoi-kai. Fundada pela
performer e professora Tomoko Inoki em 1979, todo o conjunto de
koto inclui aproximadamente oito membros (alunas de Inoki) que dão
um concerto por ano e também performances com outras organizações
musicais tais como a Sociedade Filarmônica de São Paulo [SFSP],
uma orquestra sinfônica toda japonesa.xxxviii
O quadro seguinte foi elaborado a partir dos dois programas obtidos: o II Tomoikai, em 1981, e o terceiro, em 1983. Nestes programas constam os nomes das duas filhas da
professora Inoki: Erica e Misa. Segundo a professora Tomoi, muitas issei voltaram para o Japão, e as que constam uma sigla entre parêntesis, notei que estão atualmente nas escolas correspondentes: Miyagi-kai (MK) e Seiha Brasil de Koto (SBK).
164
165
Tab. 19 Participantes das apresentações Tomoi-kai
1983
1.
2.
3.
4.
5.
6.
7.
8.
9.
10.
11.
12.
13.
Tomoi Inoki
Erica Inoki
Junko Kumashita (MK)
Kaori Kiyomizu
Kichida
Misa Inoki
Miyoko Karasawa (MK)
Namiko Yamamoto (MK)
Rika Kiyomizu
Setsuko Kadoi
Utako Torigoe (MK)
Yoko Kumashita
Yūko Teruya(MK)
g
er
2
3
1
3
1
1
1981
1.
2.
3.
4.
5.
6.
7.
8.
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10.
11.
12.
13.
14.
|Tomoi Inoki
Erica Inoki
Keiko Genkyō
Keiko Nagai (SBK)
Kumiko /
Misa Inoki
Michiyo Shokata
Namiko Yamamoto
Midori Ōniwa
Miho Kifuji Kotō
Setsuko Kadoi
Shokō Itō
Utako Torigoe
Yoko Kumashita
Em 1984, tive a oportunidade de iniciar o aprendizado de koto com a professora
Tomoi, na sede da SFSP no bairro de Vila Mariana. Lembro-me de que, na primeira aula, aprendi a afinação hira e levei para estudar em casa a tablatura de “Sakura” e “Rokudan”. Á
princípio, o aprendizado da leitura e, à medida que avançava nas secções ou dan, a professora
cuidava da sonoridade e exigia a postura elevada do pulso. Solicitava também um toque enérgico e passava exercícios para o polegar, e posteriormente para os indicador e médio da
mão direita. Era um treinamento similar ao método “Hanon”, de escalas e arpejos para piano.
Em 1985, infelizmente, ela interrompeu as atividades como professora e diminuiu
as atividades como performer. Se alguém questionar o fato, logo vem a resposta: “mas koto
não enche a barriga de ninguém”. A década de 80 assistiu a uma inflação galopante e o marido resolveu arriscar o trabalho temporário no Japão. Por um problema de dispersão (v. Nakasumi 1992, 455), que costuma afetar a família dekasegi, ela se viu obrigada a desviar o ensino
do koto para o ensino da língua japonesa.
Hoje em dia, ela dá aulas particulares de japonês e participa só do Concerto Beneficente da ABMCJ (ft. 32), a cada dois ou três anos, e, eventualmente, nos hikizome, ‘primeira
reunião’, realizados anualmente na residência de praia do professor Iwami (ft. 34). Esporadi165
166
camente, aceita convites independentes da ABMCJ, tocando em eventos especiais, tais como,
no SESC e na TV Cultura e em sua própria igreja Mahikari.
Ela relata, como experiência pitoresca, o fato de tocar “Asa Branca” no koto com
um grupo de música étnica em um show no SESC, na qual ela teve até que “improvisar”.
O engraçado é que eles dizem que não pode nem ensaiar.
Cheguei só para afinar e passar o som. Daí eles disseram: é só a sra.
tocar o tema depois do Carlinhos. E depois, a sra. toca livremente o
que estiver sentindo, ou como é que eles dizem mesmo? Isso. Improvisação.
E, assim, a exímia performer da Yamada-ryū, que atuou por mais de vinte anos
nas celebrações marcantes da comunidade – tocando até para os atuais imperadores do Japão
– e fora dela, vive hoje isolada e sem o devido reconhecimento. E na falta de perspectivas e
incentivos para retomar o ensino do koto, deixado durante o último par de décadas, abate a
esperança de continuidade da Yamada-ryū no Brasil.
7.4.3 Yumiko Hayashi
O fluxo inverso da imigração, nikkei que buscam trabalho na terra ancestral, chegou a afetar, de certa forma, a continuidade de alguns integrantes ativos de música clássica japonesa no Brasil, como o caso de Júlio Kobayashi e, indiretamente, no ensino da Yamada-ryū.
A maioria dos dekasegi brasileiros não pensa mais em regressar. Masahiro Shimabukuro
(2000, 10) expõe o problema:
O maior argumento destes brasileiros é que no Brasil não se
tem segurança, impera desonestidade dos dirigentes políticos, dos fiscais de toda categoria, dos policiais123, enfim a revolta à justiça inoperante fez com que tomassem a decisão drástica.
Porém, entre a minoria que regressa, houve um ganho para as escolas de koto. O
movimento dekasegi traz a adepta da Yamada-ryū, Yumiko Hayashi (ft. 35), que imigrou em
1994, casada com o nisei Antonio Toshio Sato, de Sorocaba, estado de São Paulo, que havia
123
Isso retrata acúmulos de exploração dos japoneses desde o nacionalismo de Vargas. Dizem que os policiais costumavam extorquir, facilmente, sob ameaça de prisão, qualquer diálogo reconhecido como língua japonesa, mesmo
que os locutores estivessem pronunciando apenas o nome de algum conterrâneo.
166
167
ido trabalhar no Japão e aproveitou para estudar acupuntura. Quando o filho completou três
anos124, desconhecendo a existência da única representante da Yamada-ryū em São Paulo,
Yumiko voltou a praticar o koto, com a professora Yūko Ogura, do grupo Miyagi. Somente
com este propósito ela se desloca, quinzenalmente, de Sorocaba para a capital e, semanalmente, quando se aproximam as apresentações.
Embora ela seja de Tōkyō, a sua educação parece ter sido bastante tradicional.
Aos seis anos e seis meses, a idade ideal para uma menina se iniciar nas artes tradicionais, sua
mãe a levou “na casa de Noda sensei para aprender koto e mais tarde com Shinohara sensei.
As duas da Yamada-ryū”, relata Yumiko. Paralelamente, estudou piano com a professora Obara, em Kawai Music Center, em Tōkyō, onde também se formou em Direito pela Universidade de Waseda, em 1991. O piano parece ser o instrumento preferido de sua família, pois enfatiza que os pais tocam e o primo é professor. A sua avó é que tocava sōkyoku no estilo Ikuta.
Outra habilidade musical de Yumiko Hayashi é o shimai, canção xintoísta entoada no idioma
chinês. Assinala como performance marcante em sua vida, a ocasião em que apresentou shimai junto ao iemoto, em Tōkyō.
Ao lado da refinada educação musical, aprendeu também a arte marcial aikidō, cerimônia de chá urasenke e caligrafia o-shūji125. Desta forma, a comunidade nikkei de Sorocaba tem a oportunidade de obter aulas de japonês, caligrafia, além de assistir às suas apresentações de aikidō, sōkyoku, chadō e shimai. Não há como saber qual dessas artes tradicionais o
destino irá privilegiar, mas quiçá ela possa fundar um núcleo de sōkyoku em Sorocaba, eliminando a ameaça da continuidade da Yamada-ryū no Brasil.
Notas de tradução
124
Até três anos de idade, a mãe japonesa dedica tempo integral à criança.
Nasceu em 1966, ano do cavalo de fogo no calendário chinês. No dito popular há um mau presságio para o homem que se casa com a mulher nativa nesse signo. Dizem que mães de meninas nascidas sob esse signo, tentam
compensar ou até mesmo camuflar tal dado de nascimento, refinando ao máximo a educação das filhas para garantir-lhes o futuro. Quem sabe, a sua refinada educação possa ter alguma relação com essas crenças, ainda presentes
no senso comum japonês.
125
167
168
xxxi
The iemoto system has had a profound effect on the transmission of the Arts in Japan. Most genres of traditional art music and dance, and recently even folk song, are organized into hierarchically structured ‘schools’ or
‘lineages’ with an autocratic iemoto at the head, who makes decisions about performance style, licensing of
teachers, etc.
xxxii
Baikyoku V Iwami’s real importance in the world of music, however, is not simply his presence in Brazil as
a shakuhachi iemoto, but is the fact that he is the only performing shakuhachi player alive today who is a direct
descendant of Kodō Araki IV. He is thus an important link in the Kinko-ryū chain, representing a very pure
style. The fact that he has been isolated in Brazil for over twenty-five years means he has been untouched by influences from other shakuhachi artists and other schools of thought. He, in fact, considers himself a ‘living fossil’ of the pure Kinko-ryū shakuhachi tradition, uninfluenced by modern shakuhachi trends in Japan.
xxxiii
During that time he himself was famous in Japan, appearing often on the NHK (Japanese National Broadcasting Company) and making recordings with his contemporaries. He was also known as a performer on the
okuralo, a Western-keyed flute body with a shakuhachi headjoint.
xxxiv
In São Paulo Tsuna Iwami is known among Japanese classical music circles, and he also has a good reputation as a composer. His numerous concerts in São Paulo have been both of traditional Naichi-Japanese music
and of contemporary music featuring his own compositions.
xxxv
[…] a Kinko-ryū performer and teacher, Kuniji Natori, arrived in Brazil in 1934, but did not move to São
Paulo (Suzana suburb) until 1951. Although active as a performer, he is thus a post-war phenomenon, since little
shakuhachi activity was possible on the coffee plantation where he first worked. Now an old man of 81 years, he
has not played shakuhachi for over ten years. […] His most notable student is Júlio Koichi Kobayashi, a nisei
whose father was the first Kinko-ryū shakuhachi player Kobayashi, after twenty years of study, received his natori in 1976 under Iwami, and is known professionally as Kobayashi Baiko.
xxxvi
The only other koto instructor and performer who was active before the war is Kikue Hayashida, age 79, a
Yamada-ryū musician and mother of Brazil’s most active koto teacher, Yūko Ogura. Mrs. Hayashida was the
only prewar performer of Yamada-ryū music, although she played with Ikuta-ryū tsume. She is no longer active
as a teacher.
xxxvii
Postwar koto activity has been much more extensive, due to the immigration of one important Yamada-ryū
teacher and performer, Tomii Iwami, now deceased […].
xxxviii
The majority of the koto teaching and performing today is carried on by Yūko Ogura e Tomoi Inoki, a nisei
and Yamada-ryū nattori of the late Tomii Iwami. Each of these koto teachers has between ten and twenty students, and usually two or three student/teacher recitals are held each year. The majority of their students are
middle-aged issei women, although several younger nisei female students are also performing very well.
Today, the only active professional ensemble of Naichi-Japanese musical instruments is the koto group known as
Tomoi-kai. Founded by the Yamada-ryū teacher and performer Tomoko Inoki in 1979, the all-koto ensemble includes approximately eight members (students of Inoki) who give one concert per year as well as performances
with other musical organizations such as the Philharmonic Society of São Paulo, an all-Japanese symphony orchestra.
168
8
ESCOLAS IKUTA-RYŪ: MANUTENÇÃO E ADAPTAÇÃO
O céu azul límpido e o vento que sopra suave
Ao longe o som de uma roca a fiar
As meninas depositam seus sonhos
Neste fio firme e delicado
O fio que se transformará no tecido
O tecido num lindo kimono
Este sonho continuará para sempre.
Ontem, hoje e amanhã.
Akira Morioka
Na primavera de 2000, a XII Apresentação do Grupo Seiha Brasil de Koto (SBK)
abriu com a recitação do poema acima, uma tradução da canção de Akira Morioka, soando
como um lema da escola que, com o passar do tempo constatou-se, é encarado com muita seriedade e responsabilidade.
A Associação Brasileira de Música Clássica Japonesa (ABMCJ) congrega duas
ramificações modernas das escolas de koto da corrente Ikuta: o Miyagi-kai e o Grupo Seiha.
Estas duas escolas merecem um capítulo à parte, pois nelas observa-se um equilíbrio entre a
mentalidade pré-guerra e a pós-guerra. Ou seja, elas primam pelo senso estético sem abrir
concessão do espírito coletivista e podem até modernizar em favor de atrair os jovens, mas
sem esquecer a premissa da preservação ditada pelo poema de Morioka.
A coexistência das duas atitudes deve-se ao fato de que foram formalizadas por
professoras imigrantes do pós-guerra, mas mantidas por professoras nisei ou jun-nisei, descendente de imigrantes do pré-guerra. Por isso o presente capítulo descreverá os principais atores sociais dos grupos Miyagi e Seiha que, de alguma forma, refletem locais e entidades
principais da presença japonesa, principalmente na zona oeste da cidade de São Paulo.
169
170
8.1
Miyagi-Kai do Brasil
8.1.1
ƒ
trajetória da pioneira Yūko Ogura
aprendizado até 1956
No mesmo ano em que desembarca no Brasil, a professora da corrente Yamada,
Tomii Iwami (v. cap. 7.4), retorna de um intenso aprendizado de três anos, diretamente com o
compositor Michio Miyagi, em Tōkyō, Yūko Hayashida126. Esta teve o privilégio de ser uma
das últimas alunas do mestre e torna-se a primeira nisei brasileira habilitada em sōkyoku no
Japão. Desta forma, o ano de 1956, fase de recuperação da autoconfiança dos nikkei, a comunidade em São Paulo ganha a presença dessas duas especialistas em koto.
Yūko Hayashida (ft. 32) nasceu em Penápolis, estado de São Paulo, em 1930127, e
iniciou os estudos de koto aos quinze anos com sua mãe Kikue Hayashida (v. secção 7.4.1).
“Naquele tempo, não havia partituras e minha mãe ensinava tudo de ouvido”, ressalta ela. A
família radicou-se para a cidade de São Paulo em 1937, quando o pai resolveu instalar em Pinheiros128 – bairro da zona oeste onde se concentra parte razoável dos nikkei – um estúdio fotográfico, patrimônio cuidado pelo irmão mais velho até os dias atuais.
Quando criança, Yūko Ogura experimentou tocar piano, violão e mandolim, instrumentos que os irmãos aprendiam. As aulas de música, com tais instrumentos, eram dadas
na Escola de Formação Feminina, Akama Gakuin129, onde estudou até o terceiro ano, cursando depois corte e costura, justamente na época da guerra. Seus pais se esmeraram na educação
dos oito filhos. O mais velho teve a oportunidade de estudar fotografia na Bélgica e Yūko, de
receber os ensinamentos de koto, em Tōkyō.
126
Nome de solteira da professora Yūko Ogura, filha da professora Kikue Hayashida, mencionada no tópico 7.4.
Outra nativa do ano do cavalo.
128
Na época era a última parada de bonde mais próxima da saída para a região oeste do Estado. A concentração de
japoneses aumentou com a instalação da sede da CAC – Cooperativa Agrícola de Cotia, importante entidade da
comunidade vigente até a década de noventa.
129
Fundada em 1933 por Michie Akama, era uma espécie de “escola de formação de noivas” preparando as moças
para boas esposas e mães, segundo a ética japonesa. Aprendiam português, japonês, corte e costura, arte culinária,
dança, música, ikebana, desenho e teatro (Nomura 1989, 29-30).
127
170
171
Muito modesta, a professora Yūko conta pouco do seu aprendizado, especializado
para professores, com Michio Miyagi. Apenas salienta que era preciso treinar muito antes da
aula e lhe era exigida uma média de duas peças novas por semana. Em três anos, ela deve ter
aprendido todas as trezentas criações (composições e arranjos) do mestre. Logo que ela retornou ao Brasil, em fevereiro de 1957, o compositor L. C. Vinholes organizou uma homenagem
no aniversário de morte de Michio Miyagi, uma apresentação com os clássicos da escola Miyagi, incluindo oito obras de seu fundador. Conforme o programa do apêndice 4 constam peças virtuosísticas como “Seoto [Murmúrio do rio]”, “London no ame [Chuva de Londres]”,
“Mizu no Hentai [Sete variações da água]” e “Eihei no kotai [Marcha dos guardiões]”.
ƒ
ensino e performance até 1966
Antes de ir ao Japão, Yūko já auxiliava a mãe no ensino substituindo-a nas aulas
em Assaí, no Estado do Paraná. Desde quando regressou de Tōkyō, entre 1956 e 1966, passou
a dar aulas na própria residência da família em Pinheiros, chegando a entregar muitos certificados de nível básico shōden.
A professora Ogura me presenteou com o LP “Uguisu [Rouxinol]”, uma gravação
realizada em 1964 pelo grupo “Sankyoku Wakabakai [Grupo Folhas Viçosas]”, que ela integrou entre 1959 e 1966. O disco contém seis músicas: “Hokkai minyō-cho130 [Melodias de
Hokkaidō]”, arranjo de Michio Miyagi para dois koto; “Dō-Yō”, canção infantil escolar arranjada para koto; “Cha no yū ondo”, um jiuta clássico; e três canções shinkyoku, sendo duas de
Michio Miyagi – “Aki no shirabe [Estudo de outono]” e “Uguisu” – e uma de Genchi Hisamoto – “Hana no tsuyukusa [Orvalho da flor]”.
“Aki no shirabe” se destaca pela qualidade profissional de interpretação e afinação
da parte instrumental. Na parte vocal, um grupo coral substitui o canto solista, recurso observado anteriormente no grupo Miwa. Acredito que se trata de uma adaptação própria do ambi130
Um arranjo instrumental para duas canções conhecidas de Hokkaidō, norte do Japão: “Soran-bushi” e “Oiwakebushi”.
171
172
ente, já que o movimento coral advindo do canto orfeônico nas escolas estava bem disseminado na década de sessenta.
Quanto ao grupo Sankyoku Wakabakai, Olsen (1983a, 124) revela:
O mais impressionante advento acontece após a Guerra, entre
1959 e 1966, com um grande conjunto conhecido como Sankyoku
Wakabakai. A singularidade desse grupo foi a de conseguir reunir
performers, do Brasil, de diferentes escolas da música clássica japonesa de Naichi. Por exemplo, executantes de koto da Miyagi-ha, Ikutaryū (Yūko Hayashida, Marie Okamoto, uma outra nisei que estudou
Miyagi-ha em Tóquio e que vive agora em São José dos Campos, e
Masae Tani, uma kaisha131 que já retornou ao Japão) e uma kotoista
Yamada-ryū (Tomii Iwami) reuniram forças com executantes de shakuhachi da Kinko-ryū (Júlio Kobayashi e Kuniji Natori) e Tozan-ryū
(Yoshioka Souzan). O grupo se apresentou cerca de seis concertos em
vários teatros e auditórios em São Paulo. Em 1966, entretanto, o Sankyoku Wakabakai se extinguiu porque diversos membros casaram, tiveram filhos e tornou-se cada vez mais difícil arrumar tempo para ensaiar.xxxix
ƒ
interrupção e retomada do ensino até 1981
Em 1966, a professora Yūko casou-se com Manabu Ogura, issei proveniente de
Yaizu, em Shizuoka, que veio trabalhar em uma companhia de pesca japonesa na cidade de
Santos. Tiveram três filhas e um filho. A mudança de cidade seria a causa principal da interrupção do ensino de Ogura. Assim que nasceu a caçula Lina, em 1971, a professora mudouse para Taboão da Serra, bairro próximo à saída da capital para Santos. “Por insistência da sra. Naiki132, eu voltei a dar aulas carregando meus quatro filhos até o estúdio fotográfico do
meu irmão em Pinheiros”, recorda a professora. Mesmo com as crianças ainda pequenas, a
partir de 1975 começou a dar aulas também em domicílio. Naquele período, tinha alunas crianças e adolescentes incluindo as três filhas e suas coleguinhas. Dentre as moças, Olsen
(1983a, 122) destaca: “Uma aluna de destaque da sra. Ogura é Suely Rumiko Hayashi, uma
131
Executivo de firma japonesa implantada no Brasil que vem trabalhar por tempo determinado. Ao invés de dekasegi o fenômeno é denominado kaisha ou ‘firma’ (Olsen 1983a, 127).
132
A aluna decana do Miyagi-kai (v. p. 180-1).
172
173
sansei com 24 anos, que estudou (como uma kibei133) com Miyako Tanabe (Miyagi-ha) em
Tóquio por seis meses. Ela própria almeja começar a ensinar”xl.
Em 1981, houve a formatura de Suely Rumiko Hayashi, que recebeu o certificado
de kyōshi através da professora Ogura. Depois que seu sobrenome muda para Kawato, sua
participação musical diminui no programa de 19852 e, em 1989, aparece pela última vez nas
audições do Miyagi-kai (v. app. 6). Na mesma ocasião, Nobue Sugio e Sachiko Naoi recebem
os certificados de shōden.
O curso da escola Miyagi tem oito níveis: shōden, chūden, okuden, kaiden, jōkyō,
kyōshi, shihan e daishihan. Segundo a professora, no primeiro estágio é preciso dominar peças antigas do repertório danmono, “Rokudan” e “Chidori”, e a peça “Sakura Hensōkyoku”,
de Michio Miyagi. Para se obter um certificado não basta somente tocar. Há uma taxa determinada por estágio, em uma progressão geométrica134. Mas, em São Paulo, a maioria das alunas parece não se importar com esses graus oficiais. De uma certa forma, revela uma atitude
irreverente diante da “outorga mercantilista” mencionada por William Malm (1959, 171):
O sistema especial de taxas no ensino japonês tem enfatizado
mais o significado em aumentar o soldo do professor do que proteger
a pureza da escola. [...] há alguns grupos menos reputáveis que se especializam em outorgar nomes profissionais para jovens ansiosas para
obter tais diplomas como melhoria do dote na transação matrimonialxli.
Embora para a professora Ogura o aprendizado de koto possa ter representado
uma ascensão social, possibilitando o casamento com um issei, ela parece mais se importar
com o reconhecimento de um público maior envolvendo a sociedade majoritária. Por exemplo, ela assinalou como fatos marcantes da sua carreira: a apresentação, em 1979, no MASP; a
comemoração da imigração no Teatro Municipal, em 1980; e o centenário do tratado de ami-
133
Conforme Kitano (1969, 51) “kibei são descendentes que tiveram a oportunidade de estudar no Japão”.
Enquanto paga-se trinta mil ienes para prestar a prova de shōden, o título de okuden custa setenta mil ienes e o
último grau de daishihan a quantia elevada de quinhentos mil ienes, equivalente a 854.85 dólares, ou seja, mais de
2.500 reais.
134
173
174
zade Brasil-Japão, ao lado dos trinta mestres da matriz do Miyagi-kai, em 1995, também no
Teatro Municipal.
8.1.2
ƒ
formalização, professoras e alunado
Masae Tani e Reiko Nagase: iniciativa e incentivo
Além da professora Ogura, a formalização do Miyagi-kai, em 1982, não seria possível sem a iniciativa e incentivo das issei Masae Tani e Reiko Nagase.
Segundo Yūko Ogura, em julho de 1977, desembarca na cidade Masae Tani,.
Após a professora Iwami, é a segunda professora issei que migra para São Paulo com o título
para ensinar koto. Porém, fixou-se temporariamente, acompanhando o marido que veio trabalhar em firma japonesa implantada no Brasil135. No programa comemorativo, realizado no dia
18 de junho de 1980 – data da Imigração Japonesa, auspiciado pela prefeitura de São Paulo,
consulado do Japão e ACBJ – consta sobre Masae Tani:
Natural do Japão, iniciou sua formação artística em 1949, ingressando no grupo Miyagi, estilo Ikuta, sob orientação da professora
Fumie Mori. Em 1959 tornou-se aluna do diretor do grupo Miyagi diplomando-se em 1963. Em 1968, conquistou o diploma de mestre. Em
Tóquio, realizou inúmeros concertos e orientou diversos alunos. Em
julho de 1977, radicou-se no Brasil e, desde então, vem realizando intensa carreira artística, tendo se apresentado em diversas cidades e estados, sob o patrocínio de importantes entidades oficiais.
Os mesmos órgãos oficiais que constam em outro programa de 1980, quando o
currículo dela aparece maior e em primeiro plano136, em relação ao da professora Ogura, indicam que Masae Tani deveria ter um fácil acesso a tais entidades. Segundo Reiko Nagase, que
foi sua aluna, a professora Tani permanece apenas sete anos no Brasil. Observando outro
programa, constato a indicação de que ela estaria bem relacionada com os órgãos oficiais.
135
.Quando o fluxo é inverso, ao invés de dekasegi, o fenômeno é denominado kaisha ‘firma’.
Ou teria um grau acima na titulação em relação à professora Yūko. De qualquer forma prevalece a hierarquia por
geração.
136
174
175
Outra propulsora do grupo é Reiko Nagase (ft. 36). Nascida em Kumamoto, em
1942137, chega em São Paulo em 1969, casada com o nisei Francisco Takashi Nagase, que tinha ido ao Japão como bolsista. Ela estudou os dez primeiros anos de koto com a professora
Kami Sakoda, desde 1958. No Brasil estudou durante uns cinco anos com a professora Masae
Tani. Antes, nos primeiros anos de residência em São Paulo – especificamente até 1971,
quando nasce a primeira de suas duas filhas –Nagase figura nos programas do Miwa-kai.
Começou a dar aulas em 1984, substituindo a professora Masae Tani, quando seu
filho caçula completava três anos. Nagase trabalha em tempo integral como agente de viagens, atendendo um número restrito de alunos. Suas alunas que tocam em nível de okuden são
suas duas filhas, Yūka e Reina, além de Hiroko Yanagi138, proveniente de Tōkyō no mesmo
ano da professora.
ƒ
principais alunas da professora Ogura
Desde 1980, ocorreram vinte apresentações do grupo Miyagi (ft. 37), de São Paulo. Através dos dezessete programas, reunidos na pesquisa, verifiquei que 97 pessoas participaram das apresentações (v. app. 6) do Miyagi-kai de São Paulo. Com exceção das professoras – Ogura, Kikue Hayashida, Masae Tani e Reiko Nagase – e dos convidados – Kiyoko
Yūmoto (v. top. 8.2), Miki Tōru e Kimi Miyashita – totalizam noventa alunos que foram orientados pela professora Yûko Ogura. A tabela 20 apresenta um levantamento dos quarenta
alunos que estudaram por mais de cinco anos no grupo Miyagi. Destes, vinte continuam participando dos Miyagi-kai conforme o quadro da tabela 21. As duas professoras estão realçadas em verde, a assistente em azul e as duas auxiliares em amarelo. Constam ainda mais sete
veteranos, seis participantes que podem ainda retomar as atividades, como as filhas das professoras, e duas ex-alunas, que consegui entrevistar.
137
Coincidentemente, outra nativa do ano do cavalo.
Natural de Tenshin em 1943, época da guerra, quando os pais procedentes de Nagano eram imigrantes na China.
Formou-se em biblioteconomia no Japão, exercendo atualmente o cargo de bibliotecária na ACBJ e CEJ, da USP, e
de professora de japonês na ACBJ.
138
175
176
Nome
Clarice Ikeda
Chieko Motoie
Emi Ogura
Erika Kaneko
Fujie Watanabe
Fumi Naiki
Harumi Wang
Hatsue Omine
Hiroko Yanagi•
Hisako FukadaŠ
Jōko Ishihata
Junko Kumashita
Kayoko Nishimori
Kazumi Sugio
Kazuyo Kuze
Kirico Hseu
Lina Ogura
Mary Celeste Mayumi Ito Otsuki
Mayumi Ogura
Mika Ogura
Mikiko YazakiŠ
Mitsue Fukada
Naomi Inoue
Nobue Sugio‹
Reina Nagase×
Rika Ikeda
Rumi H. Kawato‹
Shizuko Ikegami
Stella Pernet
Sumi Mizumoto
Taeko Hatayama
Tereza Senda
Olavo Tomohisa Ito
Utako Torigoe
Yoshiko Ito
Yūka Nagase×
Yukiko Naoi
Yūko Teruya Iha
Yuriko Miyakasa
Tab. 20. Alunos do Miyagi kai desde 1980
ger 03 02 00 99 98 97 95 94 91 90 89 88 87 86 84 81 80
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16
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18
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pausa
okuden
jōkyō
•
aluna da professora Reiko Nagase
iniciou com a professora Ogura quando criança e seguiu com a mãe Reiko Nagase.
×
iniciou com a professora Ogura quando criança e seguiu com a mãe Reiko Nagase.
×
176
177
A assistente Nobue Sugio (ft. 36) emigrou de Kōchi, em 1952, quando tinha doze
anos, vindo com o irmão e a mãe viúva139, que os sustentou ministrando aulas de japonês no
Colégio Aurora, em Pinheiros. Casou-se, em 1965, com nisei de Duartina (SP) e teve a oportunidade de voltar para o Japão em 1970, acompanhando o marido que obteve bolsa de pósgraduação em geologia. Formada em contabilidade, trabalhou como secretária de Koichi Kishimoto e depois como funcionária de banco japonês, em Pinheiros. Paralelamente ao koto,
estuda, atualmente, piano e afirmou que gostaria de aprender técnica vocal para aprimorar-se
no canto. Nobue Sugio iniciou no koto em 1962 e obteve o grau de shōden, em 1981, um ano
antes de começar a aprender sangen. Obteve o chūden tocando “Haru no Umi”, em 1986, e
okuden, executando “Seoto”, em 1992, ano em que começou a tocar o koto grave jūshichigen. Ela obteve o título de jōkyo ‘professor assistente’, em 1998, alcançando o grau
mais alto dos alunos da professora Ogura.
Além da sra. Sugio, há mais duas alunas da professora Ogura associadas à matriz
do Miyagi-kai: Hisako Fukada e Mikiko Yazaki (à direita na ft. 38). Elas obtiveram o certificado de okuden através da professora Ogura. A sra. Fukada é proveniente de Gifu e veio,
também adolescente, com doze anos de idade. É casada com empresário sócio de uma indústria de salgadinhos embalados e dono de um restaurante na zona leste, onde foi realizada a avaliação do 19° Miyagi-kai. Estuda com a professora Yūko, desde 1985, e chegou a tocar
“Nichiren” na apresentação do Teatro Municipal, em 1985.
Mikiko Yazaki é proveniente de Nagano e imigrou para São Paulo em 1959, com
seu marido Itsurō, do grupo Shinzan-kai (cap. 5). No Japão, o casal tocava violino em orquestra e começou a estudar música clássica japonesa somente aqui no Brasil. Ela iniciou o aprendizado de koto em 1986. Os shinnenkai do grupo Miyagi são realizados em sua residência, no bairro Caxingui, zona oeste. A sra. Yazaki foi professora de japonês e ikebana. Como
139
Possivelmente o pai foi vítima da guerra.
177
178
educadora, ela se preocupa com o desinteresse dos jovens da comunidade pela música clássica
japonesa e opina que o grupo deveria tocar mais para esse tipo de público.
ƒ
outros veteranos
Destaco a seguir outros alunos participativos, diversos na geração, gênero e ascendência, mas que concederam uma entrevista mais detalhada.
O único aluno do gênero masculino140 da escola Miyagi é Olavo Tomohisa Ito (à
direita na ft. 37). O analista de sistemas de 44 anos é sansei paulistano, cujo pai é proveniente
de Nagasaki e a mãe nisei natural da Manchúria. É pai de três filhos com Julieta Chiaki Daiten, nisei de Caravelas BA, professora da Escola Pioneiro, antiga Akama Gakuen. Há 25 anos
Olavo toca também guitarra e violão, aprendendo-os de forma autodidata. Começou a estudar
koto com a professora Ogura, em 1986, com o intuito de “captar os aspectos musicais e culturais japoneses", conforme o questionário (MK-10). Formado em Física e Letras pela USP, é
envolvido tanto na comunidade nikkei – desempenhando o cargo de assessor cultural da Fundação Japão – quanto na maioria paulistana. Além de atuar, desde o VI Miyagi-kai, sobretudo
com o jū-shichigen, tem participado como kotoista das performances de dança e pintura com
Lenira Rangel, Ivald Granato e de shows com Alberto Marsicano, poeta executante de sitar
indiano.
Dos noventa alunos participantes das vinte apresentações anuais do Miyagi-kai,
10% é de ascendência caucasiana. Poucos permaneceram mais de seis anos como Mary Celeste Bueno (ft. 38), que figura nas apresentações entre 1983 e 1999. Pianista formada pelo Conservatório Dramático e Musical é professora aposentada, formada em Letras Clássicas. Uma
experiência pedagógica que ela conta com entusiasmo é a do curso de apreciação artística que
140
Em 2000 participou da apresentação anual Plínio Sotto Maior tocando a cítara chinesa se, de 25 cordas, mas ele
só estudou um ano com a professora Yūko.
178
179
ministrou na FAAP141 através de músicas étnicas do Extremo Oriente, África e América Latina.
Mary Celeste conta que já conhecia a professora Yūko anterior à “época da guerra
em que vira e mexe tinha japonês escondido na farmácia do meu pai em Pinheiros”. A pianista re-contatou a professora Yūko para aprender inicialmente o shamisen – o aprendizado do
sangen é, geralmente, posterior à iniciação no koto – com o propósito de entrar em contato direto com a cultura oriental e aprimorar suas criações no teclado. Ela explica:
Na época eu tocava gratuitamente para um grupo de estudos do
Quarto Caminho, da filosofia de Ouspensky e Gurdjieff improvisando
para classes de movimentos. [...] Através do aprendizado de sangen e
koto não só atingi o objetivo inicial, como consegui apreender a forma
vertical e introspectiva de encarar a música, adquirir a disciplina japonesa (pelo menos em parte) e compreender essa linguagem especial de
uma música simples e ao mesmo tempo dificílima.
Parece-me que Mary Celeste absorveu o purismo dos mestres a tal ponto que condena as atitudes de fusões de estilos tradicionais, mas o lado brasileiro transparece quando
deixa a resignação de lado e extravasa indignação com o descaso das entidades culturais para
com o grupo:
Os órgãos oficiais [da comunidade] andam patrocinando iniciativas estapafúrdias, como candomblé misturado com butoh. Vestem
o folclore com uma roupa mais ‘arrumadinha’ e dizem que isso é arte?... A professora e demais pessoas envolvidas não têm nenhum apoio material e seu esforço é absurdamente pesado. Tanta verba destinada a cinema e outras atividades artísticas, da mais baixa qualidade, e
nada para uma associação de tão alto nível.
A professora Yūko lembra que até a década de noventa havia predominantemente
alunas issei, acima dos 50 anos de idade, e sansei, abaixo dos 20. Atualmente, não há mais
alunas estudantes restando, de forma equilibrada, a segunda e terceira idade, ou seja, metade
se encontra na faixa etária entre 27 e 55 anos e a outra metade acima dos 55 anos.
A decana do grupo com 91 anos de idade, Fumi Naiki, (ft. 40), imigrante préguerra, é proveniente de Engaru, em Hokkaido, mesma região da professora Kikue Hayashida
141
Fundação Armando Álvares Penteado, faculdade de artes e arquitetura, do bairro de Higienópolis.
179
180
(top. 7.4). Em 1933, imigrou para Ribeirão Preto, depois se instalou em Bauru e mora na capital, desde 1948. Em 1954, ela e o marido, proveniente de Gifu, abriram a primeira floricultura de japoneses em São Paulo. Ensinou muito tempo ikebana, arte do arranjo floral no estilo
Ikenobo. Cinqüenta anos depois, ela ainda cuida das suas orquídeas e plantas na cobertura do
edifício, onde funcionou a sua floricultura por mais de trinta anos, no bairro do Paraíso. De
aparência sorridente e vaidosa, é presença certa nas principais apresentações da ABMCJ e do
Miyagi-kai. E na apresentação anual de Homenagem aos Mortos no Iminsai ela é a voz principal do jiuta “Cha Ondo”.
Dotada de uma vitalidade admirável, locomove-se sozinha para todos os compromissos – Liang Kong diariamente, coral e koto, missa da São Gonçalo142 semanalmente, etc.
A sra. Naiki é de tal modo independente que, se alguém insistir em ajudá-la a carregar o koto
ou vestir o kimono143 ela pode até demonstrar certa impaciência. A mais recente imigrante do
grupo, Yumiko Hayashi (cap.7.4), observa que “apesar de Naikisan estar há muito tempo no
Brasil, a sua elegância e impecabilidade ao vestir o kimono revelam que ela não perdeu ainda
o verdadeiro modo de ser japonesa.”
Dentre as alunas mais jovens encontram-se: as três filhas e sobrinha da professora
Yūko Ogura, Mayumi e Mika, em trabalho temporário no Japão, a professora Lina e a comerciante Eliane; as duas filhas de Reiko Nagase, a médica Yūka e a advogada Reina; e a filha de
Nobue Sugio, a médica Mayumi, promessas de continuidade no futuro. Apenas Reina, Mayumi e Eliane participam esporadicamente, das apresentações.
E se a história persistir, talvez as demais voltem a praticar o koto, quando se aposentarem ou quando os filhos estiverem independentes.
142
No Bazar Anual da igreja São Gonçalo, ela é responsável pelo preparo de dezenas de quilos de fukujinzuke, tipo
de conserva de legumes.
143
Para vestir o kimono as mais experientes ajudam as mais jovens ou há sempre uma pessoa designada para essa
meticulosa tarefa de ajustes e apertos internos, que garantem a elegância, sobretudo da gola e do cinto externo chamado obi.
180
181
8.2
Grupo Seiha Brasil de Koto
8.2.1
Gakkyō Yūmoto, “a semeadora”
O Grupo Seiha Brasil de Koto é a mais nova escola sōkyoku transterritorializada
para o Brasil. Nova em muitos sentidos, pois tanto o grupo quanto o repertório e atitudes de
interação social soam joviais. A preparação do terreno começa, quando se instala em São
Paulo, em 1979, a fundadora Gakkyō Yūmoto, que ainda não tinha trinta anos completos.
Kyōko Yūmoto nasceu na província de Aomori, norte de Honshū, ‘ilha principal’,
em 1949. Quando estava morando em Tōkyō, em 1969, resolveu aprender koto recebendo
precocemente o nome artístico de Gakkyō, em 1973. Em 1978, completou os estudos na Escola Superior de Koto Ikuta Seiha, participando de vários recitais no Japão, até novembro de
1978, quando se mudou para o Brasil, aqui permanecendo até 1984.
Yūmoto é a terceira especialista de koto do pós-guerra chegando apenas quinze
meses depois de Masae Tani. Em junho de 1980, ela participa do programa comemorativo da
imigração no Teatro Municipal e Paço das Artes, sob a iniciativa de Masae Tani. Olsen, que
tocou com Gakkyō, Tomoi e Baikō em um programa de 1981, no 25° Aniversário da ACBJ,
comenta:
A única professora e performer ativa de koto tradicional em
São Paulo é Kyōko Yūmoto, uma kaisha que está no Brasil desde
1979. Ela é uma natori da escola Sei-ha em Tóquio que tem instituído
uma ramificação Sei-ha em São Pauloxlii.
Em janeiro de 1982, Gakkyō Yūmoto começa a ministrar aulas para um pequeno
grupo, fundando o Grupo Brasil de Koto. A primeira apresentação conseguiu reunir oito alunas (v. app. 6) – Tamie Kitahara, Eiko Hoshino, Keiko Nagai, Kiyomi Fukushima, Mami Fukuda, Misako Fukushima, Yoko Yamaoka e Yumi Michiyama – e um aluno, Soyo Kabe, de
koto e sete alunos de shakuhachi do Shinsen-kai, da Tozan-ryū – Yoho Nagai, Yoyu Yamaoka, Minoru Michiyama, Shigeru Arikuma, Takashi Harada, Tatsuyuki Otsuka e Toshio Fukuda – coordenados pelo “grão mestre” Yōzan Sagara.
181
182
No programa constam quatorze músicas, das quais duas de shakuhachi solo e doze
do repertório sōkyoku: sete peças de Michio Miyagi, do ‘álbum de iniciação’ Shōkyoku-shu;
duas peças do nível básico shōtoka “Rokudan no Shirabe”, de Kengyō Yatsuhashi, e “Mizu wa
Utsuwa”, de Noboru Tateyama; uma do nível médio chūtoka “Chidori no Kyoku”, de Kengyō
Yoshizawa; e, para fechar o programa, Gakkyō interpreta “Shinsen Chobukyoku” [Oferenda
Musical], de Shinichi Yuize. Possivelmente, esta peça seja do nível de shihan, pois conforme
o programa seguinte, “em 1982, Yūmoto foi promovida ao título de Mestra”, ou talvez, pelo
mérito da tarefa social semelhante ao abordado no capítulo 5. Mas, para confirmar a capacidade técnica consta no programa de 1984: “Em 1983 ela retornou ao Japão para estudos de
aperfeiçoamento, durante dois meses, e lá participou de um concerto se apresentando como
mestre.”
Em três anos de atuação no ensino, Gakkyō Yūmoto conseguiu aglutinar treze alunas de koto, contando que ingressaram mais quatro alunas novas – Kuniko Komatsu, Hiroo
Kabe, Mika Matsubara e Saki Kanetake – no programa de 1984. A segunda apresentação contou também com a participação especial do iemoto da Kinko-ryū Baikyoku V, além do Shinsen-kai144, no elenco de shakuhachi.
A continuidade do GSBK, durante os últimos 21 anos, certifica o grau de afinco e
determinação na implantação do estilo Seiha pela professora Gakkyō, apesar da sua curta estada de seis anos no Brasil. Ela mesma só pode usufruir a segunda metade dessa estadia, colhendo apenas as duas primeiras safras, ou seja, as primeiras apresentações, em 1983 e 1984.
Isso se deve aos três primeiros anos, quando ocorreram o conhecimento e preparo criterioso
do terreno, que garantiram a boa semeadura, em 1982.
144
Com a presença de Harumitsu Hirata e John Steven Fisher, além dos sete participantes de 1982.
182
183
8.2.2 Tamie Kitahara: sucessão desde 1984 e o corpo discente
Em 1984, Tamie Kitahara, devido às suas habilidades técnicas, substitui a professora fundadora. Entre as primeiras alunas da professora Yūmoto ela devia se destacar, pois na
primeira apresentação do grupo já aparece solando “Chidori”, peça do nível médio, e na segunda apresentação, “Saga no Aki”, do nível intermediário. Sua facilidade no aprendizado
pode ser atribuída ao embasamento adquirido ainda criança, antes de emigrar. Em 1952, a então Tamie Ueda de nove anos iniciara o estudo de koto com o professor Shibata, tendo que interromper três anos depois para acompanhar a família que resolveu emigrar de Ubeshi, em
Yamaguchi.
Em 1955, chega em Santo André a família Ueda que se dedicou inicialmente ao
cultivo de hortaliças. A família muda-se para o bairro Butantã, instalando uma tinturaria, em
1958. Desde então, mesmo após o casamento, Tamie segue morando no Butantã. Outro indício da musicalidade de Kitahara é o meio familiar, cujo ponto forte é o canto. O pai cantava
minyō; a mãe além de professora de dança, toca shamisen; a irmã, toca koto e o irmão caçula
cantou no Coral Ashibue, do maestro Ken-Ichi Yamakawa.
Na década de 60, casou-se com nisei natural de Cotia e tiveram três filhos. Isso
quer dizer que, quando ela assumiu o GSBK em 1984, os filhos se encontravam na segunda
metade do ensino fundamental. Quando eles já estavam cursando o nível médio e superior, em
1989, a professora Kitahara esteve dois meses em Tōkyō para um curso intensivo na Escola
Seiha, e regressou com o título de professor kyōshi. Tamie Kitahara145 relata que, no exame
para obter o certificado, há duas peças obrigatórias para serem tocadas de memória, e a banca
sorteia mais duas peças, de uma lista que contém entre dezesseis e trinta peças, que podem ser
tocadas lendo.
145
cujo pseudônimo artístico – que empresta parte do nome do grão mestre – é Utahito, que soa igual ao do presidente Utashito Nakashima, mas uma das letras é diferente.
183
184
Em 1996, em virtude da amizade do professor Iwami com o falecido fundador do
Seiha e sua filha Yasuko Nakashima, atual presidente da Escola Seiha, veio uma comitiva
composta de dezesseis mestres e dois grão mestres: os compositores Shinichi Yuize e a própria presidente. Além de oferecer um concerto pelo centenário do Tratado de Amizade BrasilJapão e do centenário de nascimento do fundador Utashito Nakashima, a comitiva veio para
ministrar aulas, aplicar exames e outorgar certificados.
Nessa ocasião, a professora Kitahara e mais quatro alunas suas – Tonan Hoshino,
Toshō Kishikawa, Gakkyū Komatsu e Toyū Saito – tiveram uma chance atípica de se submeterem às provas, ao vivo, sem precisar ir ao Japão. Foi quando Utahito Kitahara obteve o grau
de ‘mestre assistente’ jun-shihan. Como foi visto anteriormente, Tomoi e as próprias Gakkyō
e Utahito receberam alguns certificados através de provas realizadas à distância, enviando o
parecer da professora daqui e/ou uma fita gravada em vídeo.
Assim como a professora Tomoi, Utahito vivenciou um aprendizado acelerado,
intenso e quase todo no Brasil. Parte pela pré-disponibilidade musical, do meio familiar, mas,
sobretudo, pelo empenho das professoras que estimularam essa corrida na aprendizagem para
compensar a desvantagem da realidade transterritorializada.
ƒ
corpo discente
Nestes 21 anos de GSBK, foram realizadas quatorze audições, das quais doze foram coordenadas por Tamie Kitahara, com a participação de 55 alunas e 3 professoras (app.
6). O gráfico em colunas da fig. 21 foi elaborado a partir do total de alunos ingressados, desde
1982, demonstrando a seguinte ordem de predominância estipulada pelo gráfico de ativos:
sansei na faixa etária entre 12 e 32, nisei entre 25 e 68, issei entre 54 e 66 anos, yonsei entre
14 e 17, não nikkei entre 37 e 42 anos. O primeiro gráfico fornece uma idéia da permanência
e evasão. Temos como resultado proporcional a seguinte ordem crescente de permanência: 1/3
das issei, metade das sansei, 5/13 das nisei, 2/3 das não nikkei e 1/1 no caso das yonsei. Esse
184
185
resultado poderia apontar para um prognóstico de predominância, nos próximos vinte anos
das seguintes gerações: sansei, yonsei, nisei, não nikkei e issei.
Fig. 21. Participantes da GSBK
25
20
15
ativos
yonsei não desc.
4%
9%
10
5
issei
22%
0
issei
nisei
sansei
yonsei não desc.
ativos
5
5
10
2
1
ingressos
15
13
20
2
3
sansei
43%
nisei
22%
Embora a professora lamente um pouco sobre a evasão das alunas em fase de estudo ou profissional, observei que a GSBK mantém o menor índice de evasão: 24,5%. Desta
parte, metade transferiu-se de São Paulo para outras cidades ou países, como por exemplo, a
fundadora Gakkyō que regressou para Tōkyō e a professora Gakkyū Komatsu, que mudou-se
para Mogi das Cruzes. Entre as não descendentes, Carla Wolff mora atualmente em Florianópolis, mas veio participar do XIV Apresentação do GSBK.
Na tabela 22, temos a fundadora, a professora e as quatorze alunas veteranas até o
número 16, das quais sete mantêm-se ativas. Em seguida, as dezessete alunas que compõem o
quadro atual das apresentações da GSBK. No total são 25 participantes. Na coluna de procedência a maioria é da cidade de São Paulo, que abreviei para SP sem estar me referindo ao estado. Após a cidade de origem, consta a cidade dos pais, no caso das nisei ou não nikkei, e
avós, no caso das sansei.
185
186
8.2.3 dados de manutenção: transmissão musical e núcleo familiar
ƒ atitudes no ensino e aprendizagem
Sendo a mais jovem professora de sōkyoku em São Paulo, Kitahara é também a
mais disposta para ministrar aulas em domicílio. Munida de koto, sangen, partituras e celular
ela atravessa a cidade de São Paulo de um extremo a outro em transporte próprio. O ensino
abrange residentes das áreas da zona oeste – Rio Pequeno, Butantã e Cerqueira César; zona
sudeste – Vila Mariana e Saúde; e Santo André, município da região do ABCD, depois da zona sudeste.
Sua agenda semanal, além de duas manhãs em sua própria residência (v. ft. 41 e
42), no Butantã, inclui as seguintes locomoções: duas tardes na sede da Associação de Minyō,
na Vila Mariana; uma tarde e noite na residência dos Kurosawa em Rio Pequeno; uma tarde
na casa de Misako Fukushima (ft. 43) no Jardim Saúde; e outra tarde em Cerqueira César ou
Santo André.
Mesmo em domicílio, as aulas são, preferencialmente, em grupo com o intuito de
torná-las mais estimulantes e divertidas. A professora procura reunir alunos circunvizinhos de
algum colega que ofereça a própria residência para as aulas semanais. Poupando neurônios e
adrenalina das alunas, a professora arrisca-se em uma atitude “missionária” como ela mesma
revela:
Sabe, em São Paulo as distâncias, o trânsito congestionado, o
perigo de sair de casa... Então, se eu não resolvesse ir até a casa dos
alunos, provavelmente eles não estariam aprendendo koto. Ensinar,
para mim, é como uma missão aqui na Terra.
O ensino em grupo se processa de modo semelhante ao observado nas aulas das
crianças e adolescentes, das professoras Saito e Ishimoto. Cada um que se aproxima da professora pode até conversar em português mas, uma vez diante do instrumento, só se fala japonês. No caso das aulas da professora Kitahara, as alunas sansei e yonsei aprendem na primeira aula duas pequenas frases. No início, antes mesmo de colocar os plectros nos dedos, faz-se
186
187
reverência ao professor dizendo “onegai shimasu [peço encarecidamente]”. E no final agradecem com o “dōmo arigatō gozaimashita”. Soam falas automatizadas, mas que terminam
por condicionar uma atitude de respeito e humildade para com o professor e o instrumento.
A primeira atitude das crianças, que chama a atenção, é o nível de concentração.
Mesmo quando estão aguardando a vez, elas permanecem atentas àquelas que estão tocando.
Ou, preparam mentalmente a sua lição, através da leitura da tablatura, solfejando internamente
e gesticulando fora do instrumento. Considerando que muitas se dedicam ao aprendizado por
iniciativa das mães, é de se esperar uma certa dispersão nesse primeiro momento. Todavia,
uma vez diante da mestre e do o-koto, a conduta é de total entrega ao aprendizado.
Parte das crianças e adolescentes freqüenta a escola de língua japonesa Hi Mawari
[Girassol], no bairro do Jaguaré, como as irmãs Luciana Chiemi, 9 anos, e Juliana Akie, 14
anos. As irmãs Shimura especificam nos questionários anexos (qt. SBK 38 e 44) que a escola
disponibiliza cursos de “desenho, caligrafia, teatro, música e intercâmbio.” Todas as doze estudantes que residem nas imediações do Jaguaré – tais como Vila Leopoldina, Pinheiros, Rio
Pequeno, Butantã – e freqüentam cursos de língua japonesa, possivelmente, são alunas estimuladas pelas aulas de música da Escola Girassol.
Tive a oportunidade de assistir, de forma ativa, a uma aula da professora Kitahara.
Dotada de voz potente e afinada, ela valoriza essas duas qualidades, também, no instrumento:
“O que eu gosto nos meus alunos é a sua juventude. Eles aprendem com facilidade e têm mais
persistência. Aprendem logo o canto e o toque firme e decidido”.
Através da peça “Hana Ikada [Flor Jangada]”, ela cuidou dos seguintes detalhes
timbrísticos, rítmicos e de intensidade: que o toque do shan (com o plectro 3) fosse mais firme
e claro, evitando ser estridente demais; que a apogiatura de três notas pudesse ser mais acelerada e leve; que extraísse mais som do dedo polegar; que obtivesse a dinâmica de eco nas frases imitativas; que pudesse obter leveza e clareza do recurso sukui; e enfim, que transmitisse a
atmosfera de uma flor, permitindo ser embalada pelas ondas, solta como uma jangada.
187
188
ƒ
graus de parentesco
Quase todas as escolas apresentam parentesco entre os membros, mas o GSBK parece extrapolar na adesão de famílias. Somente na família da professora Kitahara há seis executantes de koto: as duas filhas Sandra Emi (qt. SBK-6) e Rumi; a irmã Aiko, por sua vez mãe
de Mami, as sobrinhas Érica e Naomi Ueda.
Entre as jovens, além das irmãs Shimura e Ueda, constam: as irmãs yonsei Karina
e Terumi Egashira, Kaori e Chizuka Kihara, as irmãs sansei Mari (qt. SBK-10), Tsubomi (qt.
SBK-15) e a mãe Reiko Saito. Na díade mãe e filha, incluindo a professora Kitahara, sua irmã
Aiko Fukuda e Reiko Saito, temos seis casos: a nisei peruana, Yukie Utsumi é mãe de Paula
Chiemi; a issei, de Saga, Ayako Baba é mãe de Sayaka; e Keiko Nagai, proveniente de Hokkaido, é mãe de Kiyomi Fukushima.
Entre os 56 alunos que ingressaram no GSBK, apenas dois representantes do gênero masculino participaram tocando koto: Shōjiro Saeki, professor da Academia Tozan, e o
falecido Hirō Kabe. Este foi aluno de Yūmoto e, mais tarde, sua mulher Soyo ingressou no
SBK. Outras díades sociais explicam o vínculo do GSBK com o Shinsen-kai, da Tozan-ryū.
Aiko é esposa de Gizan Toshio Fukuda; Cristina Sagara é filha de Yōzan Sagara; e Kiyomi
Fukushima é filha de Kizan Mare Nagai.
Yōzan Sagara é o fundador do Shinsen-kai e, desde seu falecimento em 1996, assumiram a liderança do grupo, os professores Kizan Nagai e Gizan Fukuda. O professor Nagai é proveniente de Fukushima e residiu em Suzano com sua mulher, Keiko, antes de radicarse em Santo André. A família de Kitahara parece ter estabelecido fortes vínculos sociais em
Santo André, apesar do breve período de tempo que residiu no município.
Afora a relação de parentesco entre os articuladores do grupo Seiha e do Shinsenkai, destaca-se a família Saito, do GSBK. Reiko Saito, nascida em Mirandópolis (SP), em
1938, é nisei, cujos pais imigraram de Nagano. A sra. Reiko consta tocando koto desde 1992 e
188
189
sangen desde 1999. Concomitantemente, ela aprende minyō com a professora Tamie, tocando
shamisen.
Em conversa informal, a sra. Saito acrescenta: “no passado cheguei a aprender um
pouco de piano, violino e bandolim”. Vale lembrar que estes instrumentos são aqueles disponíveis em escolas da comunidade – a Akama, por exemplo – com o propósito de refinamento
na formação das moças, conforme mencionado anteriormente. Reiko é casada com o nisei
paulistano Takeshi Saito, proprietário de academia de ginástica em Rio Pequeno. Mãe dedicada, começou a aprender koto um pouco depois das filhas Elizabete Tsubomi e Ameris Mari.
8.2.4 estudantes modelo e a interação com a maioria
Sandra Emi Kitahara, nascida São Paulo, em 1971, é da terceira turma de alunos
do GSBK, e da primeira turma iniciada pela sua mãe. Ela estava então com treze anos de idade. Apesar das atribulações de estar cursando o doutorado em Biologia e trabalhando como
professora universitária, ainda se dispõe a participar das apresentações. Na primeira reunião
hikizome de 2002, na casa do professor Iwami, ela interpretou no koto baixo um interessante
dueto de shakuhachi e jū-shichigen chamado “Karasugawa”, uma bela peça moderna de Kōzaburo Miyata. E no XIV Concerto do grupo, ela toca outra de suas peças modernas preferidas, “Kinu no Michi”, do compositor Shinichi Yuize.
Assim que Sandra Emi concluiu o curso de graduação na Unicamp, obteve a bolsa
de estudos da prefeitura de Yamaguchi para desfrutar, em terra materna, de um curso de aperfeiçoamento em sua área, entre os anos de 1996 e 1997. A oportunidade de imersão na cultura
ancestral, através da bolsa de estudos, parece ter sido um dado constante desde a filha da professora Saito, da professora Ogura e, agora, da professora Kitahara. E este dado transpõe os
limites das herdeiras da professoras de koto, como no caso das duas filhas de Reiko Saito.
Não tive a oportunidade de conhecer pessoalmente Elizabete Tsubomi, que não
tem participado das apresentações recentes do Seiha, mas ela teve a gentileza de responder o
189
190
questionário (SBK-15), anexo no apêndice. O que chama a atenção no questionário dela são as
viagens realizadas para o Japão146. Em 1986, quando contava com dezessete anos de idade,
ela esteve lá com propósito musical, pois respondeu que o minyō foi o motivo da viagem. Pode ter sido até para participar de concurso após vencer os concorrentes locais. Na segunda
vez, durante todo o ano de 1997, Elizabete esteve no Japão como bolsista, pela prefeitura de
Nagano. Aproveitando a estada para estudo na sua área de medicina, ela freqüentou as aulas
de koto da professora Tamura, na cidade onde foi fundada a Associação Seiha de sōkyoku.
Na pergunta sobre “o aluno ideal”, a professora Tamie respondeu rapidamente:
“Mari Saito147, embora não estude muito”. Na expressão concessiva fica implícita a modéstia
da professora e o talento natural da aluna. Formada em Letras e Educação Física pela USP,
Ameris vem trabalhando como bancária mesmo antes de se formar, demonstrando sua versatilidade. Na música começou aprendendo piano e mais tarde violoncelo, durante quatro anos.
Ela começou a estudar shakuhachi – a única do gênero feminino no âmbito das escolas Tozan
e Kinko – aos doze anos de idade com o professor Nagai, e koto desde os quinze anos.
Devido ao seu domínio do idioma japonês e habilidade musical, Mari Saito esteve
quatro vezes no Japão. Aos quatorze anos de idade, em 1991, obteve uma bolsa da Fundação
Japão no programa de aprimoramento da língua japonesa para o curso intensivo de um mês.
Na segunda vez, com dezessete anos, foi vencedora do Speech Contest 1994, com uma redação de sua autoria. A viagem musical aconteceu na terceira vez, quando conquistou o prêmio
do concurso de minyō, em 1999. Em 2000, obteve da Fundação Japão uma bolsa de três meses para estudar koto na matriz da Associação Seiha, em Tōkyō. Ela teria regressado, então,
com o certificado do nível intermediário chūtoka, pois revelou que “Chidori no Kyoku” – peça
obrigatória do referido nível – tem um significado especial para si, justificando que foi a peça
de formatura no Japão.
146
147
E também o domínio de quatro idiomas – japonês, inglês, francês e alemão, além do português.
Irmã mais nova de Elisabete Tsubomi Saito.
190
191
Tamie Kitahara foi a professora que mais atendeu e entendeu as minhas solicitações em campo. Ela me forneceu, além dos programas da escola, outros que comprovam uma
maior interação com a sociedade circundante.
Um dos programas mais recentes foi uma participação em uma mostra denominada “Instrumentos Orientais”, sexta aula do Projeto “O Som é Assim”. Trata-se de uma série
idealizada para crianças, produzida pelo SESC Ipiranga e gravada pela TV Senac. O projeto
inclui a produção musical e performance dos compositores Sandra Peres e Paulo Tatit, responsáveis pela temática e elaboração dos arranjos. O espetáculo didático, “Instrumentos Orientais”, exibido em setembro de 2002, apresentou o shakuhachi, shamisen e koto japoneses,
tabla (membranofone) e sitar (alaúde) indianos e o membranofone árabe, darabukka.
Mari Saito assinala como performances importantes de que participou: a do Teatro
Maksoud, onde sucedeu o Concerto com os mestres japoneses, em 1996; as apresentações anuais do GSBK no Pequeno Auditório da ABCJ148; e as bienais da ABMCJ (ft. 44), no Teatro
Santa Catarina. Mas primeiramente ela citou o Teatro Crowne Plaza e, em segundo lugar, o
Sheraton. Verifiquei todos os programas reunidos pela professora Tamie e descobri que o
primeiro teatro mencionado é uma apresentação intitulada, simpaticamente, “Kitty toca Koto”, realizada em 2000.
Trata-se de uma apresentação irrestrita à comunidade japonesa, por iniciativa da
regente Maria Cristina Pereira Bucci (SBK-42), conhecida no meio artístico-musical como
Kitty. Em conversa informal, ela disse ter um magnetismo recíproco com a comunidade japonesa. Antes de conhecer a professora Tamie, ela havia sido procurada pela diretora da Escola
Pioneiro, antiga Escola Akama, para trabalhar o coral das turmas do ensino fundamental e
médio. Ali ela teve a oportunidade de estabelecer maior contato com o cancioneiro japonês.
148
No auditório maior da ABMCJ ela e os grupos coordenados pela professora Kitahara, tanto o de sōkyoku como o
de minyō da Associação Kyodo Minyō, têm marcado presença assídua nos Festivais Anuais de Música e Dança
chamado Colônia Geinōsai.
191
192
Kitty (ft. 45) relata que, quando integrava o Mawaca149, grupo de pesquisa da sonoridade vocal de vários povos, deparou-se com um koto que precisava de reparos. “O instrumento à mão e a sonoridade me motivaram a iniciar os estudos”. As integrantes se dirigiram à Fundação Japão e saíram com as informações sobre o local onde pudessem restaurar e
aprender o instrumento. “E foi assim que eu conheci a Tamie”, conclui Kitty.
Quando a conheci pessoalmente, Kitty atendeu a tantas solicitações e ainda me ofereceu muito material importante como programas e gravações de todas as suas participações
fora do âmbito da comunidade. Foi então que desvendei o Teatro Sheraton, salientado por
Mari Saito. Nesse local, em 1997, aconteceu a primeira apresentação do trio Mari Saito, Tamie Kitahara e Kitty Pereira. A participação de Mari indica que este seja o primeiro trio exclusivamente feminino, com a formação sankyoku – koto, shakuhachi e sangen – em solo brasileiro.
Em menos de um ano, Kitty logrou dominar peças básicas como “Sakura”, “Sandan no Shirabe”, “Hiyaku” e “Mizuumi no Uta” e de estágios mais avançados como “Haru
noUmi” e “Chidori no Kyoku”. Kitty Pereira interpreta “Rokudan” no CD do violista Fábio
Tagliaferri (1998).
Em 1998, as musicistas profissionais Kitty Pereira e Magda Pucci – líder do grupo
Mawaca – figuram no programa da X Apresentação do GSBK. No primeiro disco do Mawaca
(Pucci 1998), Danilo Tomic, Tamie Kitahara e Magda Pucci interpretam uma inusitada “releitura” de koto e shakuhachi da balada irlandesa “The Star of Slane”.
Na XI Apresentação do GSBK, além de constar tocando koto, Kitty Pereira regeu
a peça “Yomo no Umi”, composta pelo fundador da Associação Seiha, Utashito Nakashima.
No mesmo ano, Kitty participa tocando koto em “Meu Limão, Meu Limoeiro”, faixa do CD
149
Conforme explicação no encarte do CD Mawaca (Pucci 1998) “Para a etnia hausa, do norte da Nigéria, waka
significa ‘poema cantado’ e ma o intérprete do poema.” Coincidentemente, waka também é um tipo de poema no
Japão.
192
193
Canto de Vários Cantos (Tereza Alencar 1999), resultado do processo pedagógico da escola
Teca Oficina de Música, contando com a participação dos alunos.
Em 2000, Kitty resolve produzir o recital “Kitty toca Koto”, em que a seleção do
repertório reflete o gosto ocidental: o exotismo de “Rokudan no Shirabe” e “Shun-ō-ten"; as
melodias pentatônicas submetidas aos acompanhamentos da harmonia ocidental na sua concepção original, tais como “Sakura” e “Akatombo”; preferência pelo modo mixolídio na música “Ryūkyū Minyō ni Yoru Kumikyoku”; e as síncopas de “Kinu no Michi”. Há interessantes
fusões com a cultura ocidental como a participação de acordeão na peça de Ryūkyū, viola de
orquestra em “Rokudan no Shirabe” e um inusitado quodlibet, sobrepondo a melodia “Akatonbo” à “Minha Roseira”, da tradição oral brasileira.
É de Kitty Pereira também a iniciativa da primeira peça de que tenho notícia composta para koto no âmbito da “produção independente”. Por encomenda da poeta Hânia Ribeiro (2002), que resolveu registrar em disco uma coletânea de seus poemas, Kitty – que ficou
encarregada de musicar o poema “Assassinato em Si” – optou por compor com base no koto,
ou seja, na condição de acompanhamento, ela elaborou um ostinato rítmico que dá a base para
criar a melodia que segue o ritmo dado pelas palavras do poema (v. app. 4).
Esses CDs que eu gravei foram um mero acaso, não estudei
koto com esse objetivo. Eu me assusto um pouco quando aparece um
convite deste tipo. Me sinto numa responsabilidade muito grande porque é um instrumento tradicional e não tenho tradição nenhuma. Primeiro porque não sou japonesa. Segundo, porque não convivo com esse tipo de música, toco do jeito que é gostoso de fazer e nem sei se estou fazendo um som distorcido...
O Grupo Seiha, por sua característica jovial, demonstra uma inserção também musical na sociedade circundante, mas com passos tímidos e cuidadosos.
xxxix
The most impressive endeavor came after the War, beginning in 1959 and lasting until 1966, with a large
ensemble known as Sankyoku Wakabakai. The uniqueness of this group was that it joined together many of Brazil’s performers of Naichi-Japanese classical music from different schools. For example, Ikuta-ryū Miyagi-ha
koto players [Yûko Hayashida, Marie Okamoto, another nisei who studied Miyagi-ha in Tōkyō and who now
lives in San Jose dos Campos, and Masae Tani, a Miyagi-ha trained kaisha who has now returned to Japan] and a
Yamada-ryū kotoist (Tomii Iwami), joined forces with shakuhachi players of the Kinko-ryū (Júlio Kobayashi
193
194
and Kuniji Natori) and Tozan-ryū (Yoshioka Souzan). The group performed about six concerts at various theaters and auditoriums in São Paulo. In 1966, however, the Sankyoku Wakabakai broke up because several members married, had children, and it became increasingly difficult to find time to rehearse.
xl
One outstanding student of Mrs. Ogura is a 24 year-old sansei, Suely Rumiko Hayashi, who studied (as a kibei)
with Miyako Tanabe (Miyagi-ha) in Tōkyō for six months. She hopes to begin teaching herself.
xli
[...] the special fee system in Japanese teaching became more of a means of increasing the teacher´s income
than of protecting the purity of the school. […] there are a few less reputable groups who specialize in bestowing
professional names to young ladies anxious to have such diplomas as assets in the matrimonial market.
xlii
The only other active teaching and performance of traditional koto in São Paulo is by Kyōko Yūmoto, a kaisha who has been in Brazil only since 1979. She is a natori of the Sei-ha school in Tōkyō who has begun a Seiha branch in São Paulo.
194
Tab. 21. Quadro atual do Miyagi kai
nome
18. Célia Kazumi Sugio
14. Clarice Ikeda
21. Eliane Hayashida
5. Emi Ogura
4. Fumi Naiki
17. Hiroko Yanagi
8. Hisako Fukada
22. Jōko Ishihata
26. Junko Kumashita
23. Kazuyo Kuze
21. Kirico Hseu
19. Lina Ogura
12. Mary Celeste 25. Mayumi Ito Otsuki
20. Mayumi OguraÓ
15. Mika OguraÓ
9. Mikiko Yazaki
3. Nobue Sugio
2. Reiko Nagase
6. Reina Nagase
16 Shizuko Ikegami
13. Sumi Mizumoto
24. Tereza Senda
10. Olavo Tomohisa Ito
7. Yūka Nagase
1. Yūko Ogura
11. Yūko Teruya Iha
27. Yumiko Hayashi
idade
2ª
51
2ª
84
90
60
2ª
3ª
50
81
69
32
65
2ª
2ª
2ª
72
63
61
27
3ª
83
66
44
33
72
2ª
37
ger
3>
2
3>
1
1
1
1
1
1
1
2
3>
2
3>
3>
1
1
1
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1
1
2
2
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2>
1
1
est
>12
16
>4
>24
>24
13
18
10
5
7
>10
>11
>16
6
>11
>14
17
32
>24
20
>13
>16
7
17
19
51
17
31
procedência
S. P.: Kōchi
Tupã: Hiroshima/Ehime
S. P.: Kumamoto/Hokkaidō
ano
1953
Engaru/Hokkaido
1933
Nagano/Tōkyō
1969
Gifu
1964
Kobe
1973
Tōkyō
1968
Mie
1949
Marília: Kumamoto/Hokkaidō
SP.: Shizuoka/Penápolis
São Paulo/Sp
SP.: Shizuoka/Penápolis
SP.: Shizuoka/Penápolis
Nagano
1959
Kōchi
1952
Kumamoto
1969
Kumamoto/SP
1953
1932
SP: Mie
SP: Nagasaki/Manchúria
SP: Kumamoto/SP
Penápolis: Kumamoto/Hokkaido
Okinawa
1968
Tōkyō
1994
residência
Bela Aliança
Pinheiros
Pinheiros
Aclimação
Paraíso
Aclimação
atividade
religião
médica
católica
secretária
comerciante
prendas domésticas
budista
lojista aposentada
católica
professora japonês
protestante
Jd Anália Franco prendas domésticas
nishi honganji
Sto. Amaro
ex-secretária CENB
budista
Sta. Terezinha professora dança
V. Clementino ex profª escola japonesa budista
Alto Lapa
profª piano aposentada
Pinheiros
professora
Cerqueira César professora aposentada católica
Pinheiros
informática
Japão
Japão
Caxingui
professora aposentada católica
Bela Aliança ex-bancária
católica
Cerqueira César agente viagens
nishi honganji
Cerqueira César advogada
Aeroporto
prendas domésticas
budista
Paraíso
ex-lojista
católica
V. Mariana
matemática
Seicho no ie
Saúde
analista de sistemas
V. Clementino médica
Pinheiros
profª sōkyoku
nishi honganji
Cerqueira César prendas domésticas
budista
Sorocaba
assistente acupuntura
xinto
195
196
Tab. 22. Quadro de professoras e alunas do Grupo Seiha Brasil de Koto
Nome
age ger est
procedência
ano
residência
atividade
religião
1. Gakkyō Kyōko Yūmoto║Ó 54 1 34 Aomori
78~84
Tōkyō
professora de koto
1955
2. Utahito Tamie Kitahara║
60 1 23 Yamaguchi
Butantã
professora koto e minyō nishi honganji
3. Tonan Eiko Hoshino║
66 1 21
4. Missako Fukushima║
66 1 21
Saúde
prendas domésticas
5.Kiyomi Fukushima║
46 2 21 Suzano: Fukushima/Hokkaido
Sto. André
prendas domésticas
6. Sandra Emi Kitahara│
32 3> 19 SP: SP/Yamaguchi
Butantã
professora 3°grau
católica
7. Tosho Mika Kishikawa║ 35 2- 19
8 Kazuyo Nishimura
2
2 16
aero-moça
9 Rumi Kitahara
30 3> 15 SP: SP/Yamaguchi
Butantã
10. Toyu Ameris Mari Saito │ 27 3 14 SP: Mirandópolis/Aliança, Nagano
Rio Pequeno
bancária
11. Reiko Saito║
68 2 13 Mirandópolis: Nagano
Rio Pequeno
aposentada
católica
12. Yukie Utsumi║
61 2 13 Lima
Sto. André
12
13. Gakkyū Kuniko Komatsu 66 1
Mogi das Cruzes SP
14. Soyo Kabe╫ Ó
1 12
15. Elizabete Tsubomi Saito│ 34 3 11 SP:Mirandópolis, Nagano
Rio Pequeno
médica
católica
16. Miyoko Kanaoka Hanada║ 68 2 11 Herculândia: Shizuoka’
Estuário?
professora
católica
18. Akemi Tokunaga
19 3 10
Butantã
estudante
19. Chizuka Kihara
19 3 10 SP: Fukushima/Kumamoto
Rio Pequeno
estudante
20. Erika Mayumi Ito
21 3 10 SP: Itapetininga/Terra Roxa
Butantã
estudante
9 SP: Berlim/Santos
23. Carla Wolff║
42 Florianópolis SC empresária publicidade
protestante
8
26. Nancy Naomi Ueda
24 2
SP: Mie/Mie
Butantã
estudante
30. Juliana Sayaka Baba
25 2 6 SP: Saga/Saga
Jabaquara
estudante
budista
36. VanessaYurie Kurozawa
12 3 5 SP: Fukushima/Kumamoto
Rio Pequeno
estudante
31 Angélica Kaori Kihara
15 3 6 SP.: Kagoshima/SP
Rio Pequeno
estudante
1961
35. Ayako Baba║
57 1 5 Saga
Jabaquara
prendas domésticas
Bushinji
38. Juliana Akie Shimura
14 3 6 SP: Marília/Pres. Prudente
V. Leopoldina
estudante
sōka gakkai
39. Kelly Kanazawa
18 3 5 SP: Suzano/SP
Pinheiros
estudante
evangélica
5
41. Lílian Terumi Egashira
17 4
SP
Rio Pequeno
estudante
católica
5 Orlândia
42. Maria Cristina P. Bucci ║
37 Cerqueira César
regente coral
católica
43. Karina Mayumi Egashira
14 4 4 SP
Rio Pequeno
estudante
católica
44. Luciana Chiemi Shimura
9
3 4 SP: Marília/ Pres. Prudente
V. Leopoldina
estudante
sôka gakkai
57. Cristina Izumi Sagara│
2
1
Santo André
budista
196
9
ENCERRAMENTO: SENTIDO SÓCIO-CULTURAL DA RESISTÊNCIA MUSICAL
A nossa música não parece música do índio?
Só que índio é dono da terra [?],
mas o sentimento de união,
a pureza e a simplicidade são iguais.
Quanto mais civilizado é mais complicado.
Em Okinawa não. É mais puro.
Mário Teruya
Mário Teruya é um dos nisei mais idosos e ativos que conheci na pesquisa de
campo. Morador de Santos, cidade histórica dos imigrantes japoneses, Teruya integra um dos
assentos cativos da diretoria da Associação Okinawa Kenjin do Brasil e freqüenta as aulas de
minyō para praticar o canto ancestral acompanhado do seu sanshin, percorrendo o trajeto Santos-São Paulo sempre que um desses compromissos lhe chama.
Neste momento de finalização, busco aprofundar a questão da resistência cultural
e, embora a proposta inicial recorte apenas a música clássica, tomo como ponto de partida a
reflexão sobre a fala de Teruya, no posfácio do meu trabalho sobre a música de Okinawa (Satomi 1998, 149), pois fornece os principais argumentos do presente capítulo pretenso a conclusões:
Sem ser apologista de Merriam, Teruya realiza uma analogia
do modelo tríplice do eminente etnomusicólogo: a música como produto do conceito e comportamento humanos. Antagonizando dois universos, Teruya declara nas entrelinhas que a função da música para ele
é de auto-preservação, se defendendo da desunião, impureza e complicação do neurotizante e estressante mundo civilizado. Nesta perspectiva o papel da manutenção musical, que para o imigrante é de reconstrução do ethos de sua pátria, se desloca para o sentido de uma estabilidade ética, moral e emocional para os seus descendentes.
197
198
9.1.
Retomando as questões iniciais
Enfatizo o lado da resistência musical, traço peculiar ao imigrante issei, pois este
está na liderança da ação enculturadora, já que se trata de música tradicional. Neste fechamento de tese tentarei explorar as possíveis ou momentâneas respostas para a pergunta de partida:
Qual o sentido sócio-cultural de tocar koto no Brasil? (p. 6). Contudo, considerando que,
nas principais apresentações, o segmento feminino do koto figura ao lado da ala masculina –
que toca sanshin ou shakuhachi – resolvi reiterar alguns conceitos e atitudes observados nos
capítulos 5 a 8 e aspectos pontuais da dissertação do mestrado, ampliando a delimitação “tocar koto no Brasil” para: o fazer musical para os adeptos da música tradicional japonesa em
contexto transterritorial.
Na formulação do problema (v. p. 14) – se os japoneses estão tão integrados na
cultura brasileira, por que a música continua tão resistente? – almejava descobrir provas
musicais resultantes da intersecção cultural em questão. No campo das artes plásticas, cinema
e teatro há evidências desse contato, como por exemplo, as obras de Tomie Otake, Tizuka
Yamazaki e Antunes Filho. No campo da música pop, Cherry Taketani, performer em canto,
dança e shamisen, do grupo O-Koto, interpretava uma fusão com a linguagem do rock. Porém, o grupo, que despontou em 1988, não existe mais150. No campo da música “erudita”, a
presença influente dos compositores Koellreutter151, responsável pela formação de vários
compositores brasileiros, e Yamakawa, que escreveram para koto (p. 3), indicava pistas para a
existência de novas composições para o instrumento. Contudo, no decorrer da pesquisa encontrou-se somente a cautelosa iniciativa de Kitty Pereira (p. 196). Como as criações estão fo-
150
Longe das escolas e do instrumento, seguindo a moda das duplas sertanejas, chegaram a despontar as duplas Nisei e Sansei (2000) e os irmãos Melissa e Marcus (2002), mas com a efemeridade da música midática. Como nesta
esfera, o japonês é uma presença rara e, ainda, estigmatizada, eles cantam versões de composições brasileiras cantadas no idioma ancestral.
151
Nascido em Freiburg e radicado no Brasil, desde 1937. Viveu um curto período de sua vida no Japão, fato que
reflete nas suas composições “Yûgen” (1980) e “Yume no Naka no Hito [A pessoa do Interior dos Sonhos]”.
199
ra do âmbito ou repertório das escolas, apenas registro trechos de algumas dessas iniciativas
no apêndice 4, deixando sua descrição e análise para pesquisas ulteriores.
A formulação do problema foi ingênua se considerarmos que:
1) os japoneses valorizam mais a interpretação do que a composição152.
2) tradicionalmente, os compositores foram célebres kotoistas, mas em contexto alternativizado, a interpretação está nas mãos das mulheres, que, mundialmente, apresentam uma
tendência maior pela preservação do que pela inovação.
3) o centro da cultura nikkei brasileira encontra-se em São Paulo, onde “o capitalismo predatório e selvagem destruiu a cultura regional tradicional” (Weffort 1979, 21), não há muito
com o que se identificar153, muito menos fundir.
4) a prova da integração dos nipo-brasileiros encontra-se na esfera profissional da música erudita ou popular, na proporção sugerida pelo gráfico da figura 3. Essas áreas são estanques, mesmo no interior das escolas, refletindo a imagem de “compartimentalização” da
cultura musical japonesa, ressaltada por Shūhei Hosokawa (1995, 218):
Diversas eras coexistem, separadamente, desde o gagaku até o
rock. Provavelmente, não somente os sons dos instrumentos herdados
de eras remotas, mas essa imagem da ‘compartimentalização’ é que
pode ser denominada ‘tradição’.
5) “coexistência não quer dizer sincretismo”, assim como “bilingüismo não significa assimilação” (Bastide
1971, 192),
que pode ser constatado na adoção do catolicismo, repertório e
roteiro nos dois idiomas observados nos programas do grupo Miwa (cap. 6).
6) em qualquer cultura, a música dita tradicional ou consagrada pela historicidade e pela notação musical, especialmente a “clássica”, é o último reduto onde pode sofrer transforma-
152
Hosokawa (1993, 141) observou que no Brasil se disputam novas composições enquanto no âmbito da “colônia
disputava-se a melhor interpretação de músicas antigas”.
153
Em festas da comunidade okinawana, enquanto nikkei peruanos, bolivianos e havaianos dançavam huayno e rito
de pesca, os “paulistanos puderam exibir apenas uma improvisada ‘dança da boquinha da garrafa’” (Satomi 1998,
147).
200
ções e, em torno dessa música transterritorializada, “cristalizam-se todos os valores que
não querem morrer”154.
9.2.
Atitudes culturais predominantes
Para se distinguir traços gerais e peculiares dos três grupos, de música clássica ja-
ponesa, abordados no presente estudo de caso, torna-se necessário correlacionar (confesso que
com certo desconforto) os pontos comuns e distintos entre as escolas, pequenos núcleos sociais dentro da minoria étnica em São Paulo.
Revendo como se estabeleceram as escolas, é possível concluir que as três escolas
correspondem a três esferas ou camadas sociais distintas. O grupo Miwa representa a iniciativa informal de um núcleo familiar. As filiais PKB – Preservação do Kutū do Brasil e DKB –
Difusão do Kutū do Brasil, das sōkyoku de Ryūkyū representam a camada “local” da prefeitura de Okinawa. E a ABMCJ – Associação Brasileira de Música Clássica Japonesa, aglutinador dos grupos Miyagi, Seiha e Yamada – representa o “nacional”.
Mas, a reprodução dos três pilares pode estar relacionada às esferas da terra de acolhimento. Antes retomo outra questão inicial do presente trabalho (p. 14): Tocar koto implica etnicidade, ideologia ou herança cultural?
Na elaboração desta pergunta, emprestando a idéia de “compartimentalização”,
havia pressuposto categorizações para cada grupo: os rótulos etnicidade para as sōkyoku de
Okinawa, herança cultural para o grupo Miwa e ideologia para o grupo ABMCJ. As inferências foram suscitadas através das peculiaridades percebidas durante a sondagem de campo.
1) nas escolas sōkyoku de Ryūkyū não se observa a presença de membros provenientes de
outras prefeituras japonesas, senão de Okinawa, nem de brasileiros não nikkei.
2) no grupo Miwa-Kai, a filha sucede a função de professora e líder após o falecimento da
fundadora do GEMJ;
154
Reproduzindo as palavras proferidas por Bastide (1971, 193), em relação ao papel da religião para o imigrante.
201
3) os articuladores dos grupos da ABMCJ pertencem a um grupo de elite da comunidade,
predominando uma mentalidade moderna e ocidentalizada.
9.2.1.
etnicidade
Aprofundando as observações, verifiquei que, no primeiro caso, a etnicidade procede das micro-estruturas dos limites geográficos em Okinawa e no Brasil, sobretudo em São
Paulo (v. fig. 17). Os agrupamentos se acomodam ainda de acordo com outras camadas subjacentes como gênero, geração e faixa etária, mas a mais evidente é a fronteira Okinawa/ Naichi, salientada por Shimabukuro, na epígrafe do capítulo 5.
A atitude de elaborar a diferença Okinawa / Naichi, análoga à de nordeste / sudeste, sinaliza que os okinawanos continuam sofrendo algum tipo de discriminação dos japoneses
de outras províncias, mesmo no Brasil. O antropólogo Darcy Ribeiro (2001, 407) exemplifica
como o nordestino, sinônimo de baiano, é visto na megalópole:
Ouvi um politicão paulista dizer que o que São Paulo tem de
analfabetismo e atraso é culpa da presença baiana, e propor que se pagasse a viagem de volta deles para suas terras. Afortunadamente essa é
uma minoria.
Acrescento que é realmente de admirar que na terra onde frutificou um Mário de
Andrade ainda se possa ouvir certas expressões com o mesmo sentido depreciativo: “isso é
baianada”, “aquilo é caipirada”, “fulano deu uma de português”, “programa de índio”. Refletindo acúmulos históricos, essas expressões pejorativas pontuam os povos que desagradaram
determinadas elites econômicas nos 450 anos de São Paulo.
Acredito que os okinawanos em São Paulo continuarão sentindo a necessidade de
coesão, enquanto perdurar a condição de minoria no país de origem. O fato, por exemplo, de
a ilha continuar sendo alugada para base militar norte americana, reflete o descaso da política
central. Soma-se, ainda, a superioridade dos demais nikkei que parecem ter assimilado o
mesmo complexo da elite paulistana. Confirma-se que as atitudes culturais podem ser consi-
202
deradas tanto de manutenção dos valores da terra emigrada quanto de adaptação ou absorção
dos valores da terra imigrada.
O repertório específico para kutū é mantido apenas nas apresentações internas das
sōkyoku. Por enquanto, o que importa é participar das apresentações em conjunto com as escolas de sanshin da corrente Nomura, principalmente nos eventos onde desfilam todas as escolas de música da comunidade. A conduta de etnicidade da sōkyoku de Okinawa pode ser
comprovada pelos depoimentos das principais articuladoras que atribuíram ao significado de
tocar koto – última pergunta do questionário – as atitudes de união, preservação e divulgação.
Creio que, esse comportamento cultural coaduna-se com a seguinte comparação
estabelecida por Hans J. Koellreutter (1983, 72): “O pensamento e ação do ocidental são centrados no eu enfatizando a personalidade, enquanto o pensamento e ação do japonês são descentrados do eu, voltados para a comunidade”.
Observando a tabela 23, que apresenta o resultado do quesito “significado de ensinar, ou aprender, o instrumento” dos questionários aplicados, vejo que a resposta “união” se
manifesta também nas jovens sansei, do grupo Miwa, e nas professoras nisei e jun-nisei, da
ABMCJ. O “pensamento e a ação voltados para a comunidade” são mais acentuados nos elementos que vivenciaram a experiência rural. Portanto, o desejo da coesão, como atitude de etnicidade para aumentar as forças do “nós”, não é exclusividade do grupo oriundo de Okinawa.
Contudo, a generalização pretende destacar o traço mais determinante do grupo. A maioria
das respostas fornecidas pelas professoras okinawanas, tais como “preservação” e “divulgação
para as novas gerações” – conceitos aparentes no próprio nome das entidades PKB e DKB, abordados no capítulo 5 –vem reforçar a atitude missionária da enculturação através da música.
O “sentimento de pertença” delimitado pela fronteira geográfica pode ser uma reprodução da atitude na terra natal. Mas na terra receptora, os grupos mantêm a conduta dos
seus fundadores ou articuladores, construindo mais um patamar de etnicidade demarcado pela
Tab. 23. Significado da música
total
issei
nisei
sansei
outros
AOB Mw ABMCJ AOB Mw ABMCJ AOB Mw ABMCJ AOB Mw ABMCJ
prazer, alegria, paz
respostas em branco
não sabe
união, harmonia
preservar
divulgar para novas gerações
ameniza o coração, acalma o espírito, serena a mente
polir a alma, purifica o coração
alimento da alma
eleva o espírito
desenvolve a sensibilidade
educa para a vida
forma a personalidade
refinamento
veia musical familiar
reflexão, instinto, insight, interiorização
penetrar na alma
indispensável, vital
elevar a espiritualidade
poder mágico
descontração, higiene mental, terapia, liberdade
longevidade, desenvolve a concentração
e a coordenação motora, previne a esclerose
persistência, perseverança
saudades
aprofundar a cultura japonesa
forma de expressão, sentimentos
arte
17
10
1
7
7
5
5
2
2
1
5
2
1
5
1
1
5
1
1
2
2
3
3
2
1
3
1
1
1
1
2
1
1
1
2
2
2
1
1
1
1
1
1
2
1
1
1
1
1
1
4
1
6
2
10
3
3
1
6
10
3
1
1
1
1
1
1
1
2
1
5
1
2
1
2
1
1
1
1
1
1
2
2
1
1
1
1
2
1
1
1
5
1
2
3
1
203
204
Segunda Guerra, ou seja, um limite temporal. Assim, nas associações fundadas por imigrantes pré-guerra – AOKB e Grupo Miwa – prevalecem atitudes rurais e as fundadas por imigrantes pós-guerra, ABMCJ, condutas urbanas. A etnicidade, tanto a espacial quanto a temporal, só não procede, logicamente, nos não nikkei, mas estes apresentam o sentimento de pertença à escola, seja de koto ou shakuhachi.
9.2.2.
ideologia por herança cultural
Com base na definição de Pileti (p. 15) o emprego da terminologia “ideologia” será subdividido em dois processos de enculturação, o familiar e o nacional – incluindo “escola,
televisão, jornais, moda, cinema, etc”.
A herança cultural familiar é o traço mais característico do grupo Miwa. A professora Miriam Saito, casada com o líder do Shinzan-kai, é filha dos precursores de koto e
shakuhachi e mãe da terceira geração, que mostra uma forte tendência na continuidade dos
instrumentos e da configuração familiar da avó. A única variação é que a professora nisei prioriza o repertório sōkyoku em detrimento do repertório nagauta, pois os componentes de segunda e terceira geração do grupo não parecem demonstrar interesse pelo estilo predominante
da primeira geração.
Como no caso da etnicidade, a herança cultural familiar não é conduta exclusiva
do grupo Miwa. Embora não sucedam a mesma escola de suas mães, as professoras dos grupos Miyagi e Seiha tocam koto por hereditariedade musical. A professora Kitahara responde
sobre o significado musical sintetizando os comportamentos ideologia por herança cultural.
Eu sou simples. Eu gosto de música e não sei explicar o por
quê. Sempre gostei de cantar, tocar e esqueço de tudo quando pratico.
Desde pequena eu participava de coral ou conjunto e era muito requisitada. Só parei depois que me casei e as crianças eram pequenas. Minha mãe, que tocava shamisen e era professora de dança, sempre nos
incentivou para a música. Uma vez minha filha foi solicitada para explicar as partes do kimono na escola. Ela estranhou que entre tantas
colegas nikkei só ela sabia. O fato de ela reconhecer a importância em
conhecer sua cultura de origem, isso já foi muito gratificante.
205
Com exceção dos grupos de Okinawa – que manifestam, em maior escala, atitudes
coletivistas, importando-se mais com a continuidade do grupo social do que com a linhagem
familiar – abordou-se, ao longo da parte II e III deste trabalho, o eixo comum da herança familiar. Seguindo o exemplo das pioneiras Miwa Miyoshi e Kikue Hayashida, além da professora Saito, do Miwa-kai, as professoras Tomoi Inoki, da Yamada-ryū, Yūko Ogura e Reiko
Nagase, do Miyagi-kai, e Tamie Kitahara, do grupo Seiha, ensinaram koto para suas filhas,
apontando para a continuidade de suas respectivas escolas. Cabe incluir uma observação de
Renato Ortiz (2000, 62-3) sobre a percepção nipônica de família:
Uchi (dentro) e soto (fora) são conceitos que as crianças aprendem desde a infância. A casa, a família são uchi, o que se encontra fora de seu âmbito tem uma conotação negativa, perigosa. [..] o universo da família é associado à noção de “limpeza”. Ele seria por natureza “seguro, contrapondo-se à sujeira” e às diversidades existentes
“lá longe.” O que se encontra “dentro” está protegido, fora do seu alcance dos elementos estranhos existentes no dia-a-dia dos “outros.”
Essa dicotomia não é um atributo endogênico da sociedade japonesa como foi ilustrada no capítulo 6, quando foi abordada a motivação principal das mães que ocupam o
tempo livre da criança com o aprendizado da cultura ancestral. A casa, na cosmologia brasileira, é onde deve reinar “a harmonia sobre a confusão, a competição e a desordem”, e o comércio deve ser excluído, segundo Roberto da Matta (2001, 27):
Tudo que está no espaço da nossa casa é bom, é belo e é, sobretudo, decente. [...] Os tabus são como nós e nos ajudam a estabelecer nossa mais profunda identidade social, como membros indiferenciados de um mundo anônimo e asfaltado onde ninguém conhece ninguém – esse mundo tenebroso da selva de pedra; e como membros diferenciados que residem numa dada parte da cidade e que podem
transformar esse local onde moram em algo único, especial, singular e
“legal”.
Passando da ideologia inculcada no núcleo familiar para o âmbito da nação, há um
dado relevante. A maioria das entrevistadas issei não respondeu à pergunta sobre o significado do fazer musical. Conforme a tab. 23, as respostas em branco predominam, em número de
dez. As palavras de Satoshi Tanaka (Koellreutter 1983, 69) talvez expliquem o fato:
206
[...] não possuímos o dom de formular opiniões, o que procuro
explicar pelo fato de que todos somos homens que ‘pensamos da
mesma maneira’. [...] Freqüentemente o medo impede o japonês de
expressar livremente o que pensa, pois receia ser mal interpretado.
O receio mencionado pelo sr. Tanaka seria ainda mais acentuado nas mulheres. E
o pensamento homogêneo da nação talvez seja advindo da própria escrita japonesa. O termo
ongaku ‘música’ é composta pelos ideogramas
‘prazer’ e
‘som’. Apenas dois issei res-
ponderam o óbvio, ou seja, o sentido literal ‘som prazeroso’. Até aqui o conceito não parece
conflitante com a definição brasileira da palavra “música”. No dicionário Aurélio consta “arte ou ciência de combinar o som de forma agradável”.
Tab. 24. Preferências musicais
Estilo
gostos insatisfações
música clássica ocidental
13
música clássica japonesa
4
música folclórica brasileira
2
3
new Age
em branco
7
11
música internacional
3
16
6
rock
2
jazz
eletrônico
1
1
5
funk
1
reggae
forró
2
8
axé
4
samba
2
5
pagode
9
sertanejo
1
4
pop internacional e japonesa 11
1
4
techno
música urbana kayō
7
1
música folk minyō
6
MPB
8
1
3
rap
Kelly Key
2
5
3
karaokê
trilha novela
2
Para se ter uma idéia melhor do que representa o termo “prazeroso”, há duas perguntas sobre o gosto musical. Conforme a tab. 24, para o issei, o gosto musical predominante
207
é o da música clássica ocidental e, em segundo lugar, música popular urbana japonesa do gênero ryukōka. Quanto à questão “insatisfações musicais”, novamente as respostas em branco
predominaram, ou pelo motivo exposto por Tanaka, de não querer fazer juízo de valores, ou
por desconhecerem a música brasileira. Algumas que responderam “música de trilha sonora
de novela”, que inclui músicas internacionais, pensam estar se referindo à música brasileira.
9.3. Função formativa e terapêutica por geração
9.3.1.
para os imigrantes
Algumas issei, que forneceram respostas em branco sobre o “significado da música”, acabaram por responder a pergunta sobre “significado de aprender o instrumento” de
forma semelhante às respostas do primeiro “significado”. Aglutinando os resultados das duas
perguntas temos: “saudades”, “música ameniza o coração”, “acalma o espírito”, “polimento
da alma”, “purifica o coração”, “alimento da alma”, “elevação do espírito”, “educa para a vida”, “forma a personalidade” e “refinamento estético”.
Estas atribuições funcionais da música ou do aprendizado de koto, que explicam o
pragmatismo japonês, desembocam em princípios budistas com aplicabilidade psicológica e
pedagógica sugerida pela seguinte resposta da educadora Kazuyo Kuze155 (ft. 48):
Quando se ouve o koto, o espírito acalma. Toda criança deveria aprender música para quando crescer estar preparada para enfrentar
as intempéries da vida, as feridas e as perdas. Tendo um hobby como
a música, desenho ou caligrafia elas terão como extravasar. Principalmente aprendendo koto, ikebana ou artes marciais. Na caligrafia, por
exemplo, desde a preparação do carvão há a preparação do espírito.
Essas atividades ajudam a criança a construir a verdadeira alma e sensibilidade japonesa e a firmeza do caráter.
O depoimento aponta para a própria experiência das artes tradicionais japonesas,
como solução para superar traumas. Kazuyo Kuze, imigrante pós-guerra, que perdera três dos
155
Nascida em Mie Ken, em 1922, imigrou em 1949 e reside em São Paulo desde 1959. Foi professora de piano e
natação da escola regular, sob orientação japonesa, em Campo Limpo. Praticava ikebana e arte com espada naginata e ainda dá aulas de caligrafia shodō.
208
cinco irmãos durante a guerra, começou a aprender koto depois que ficou viúva. O psicólogo
Jorge Hashimoto (1995, 31 e 35) equipara o ato de emigrar com o de luto:
[...] emigrar passa pelo mesmo processo de enlutamento cujas
raízes se encontram no complexo jogo de presença-ausência do objeto
amado. [...] A ausência do objeto amado que é ao mesmo tempo uma
fonte de identificação, produz no indivíduo um mecanismo de luta para se defender desse vazio provocado por essa ausência.
Nesse sentido, praticar a música clássica japonesa pode representar um poderoso
mecanismo de defesa do vazio do “objeto amado”. A resposta de uma das issei, que veio para
o Brasil com dezesseis anos, “eu aprendo koto porque eu tenho saudades da infância” seria
uma forma sadia de resolver o conflito da perda da terra mãe, pois, conforme Hashimoto
(1995, 31):
Nessa luta frente à possibilidade de deterioração de objetos e
imagens afetivas, pela introdução de novos objetos e imagens, nega-se
a outras e a possibilidade de amá-las. Teme-se que com o amor novo
ocorra a atrofia das imagens ausentes e isso [o jogo que recupera lógicas internas para enfrentar e elaborar a perda ou ausência] as faz tornarem-se cada vez mais nítidas, positivas e cuidadosamente separadas
de qualquer contaminação.
Essa elaboração da perda poderia explicar a razão da resistência cultural e do purismo veemente nas expressões tradicionais “transterritorializadas”. Para os imigrantes, tocar
koto, kutū, sanshin, shamisen, fuyê ou shakuhachi representa o “cordão umbilical onde se tem
a perspectiva de continuar sendo nutrido pela terra mãe” (Satomi 1998, 145).
Muitos encaram a música como algo vital, inerente ao desenvolvimento da sensibilidade humana. A bibliotecária e professora de japonês, Hiroko Yanagi, reafirma: “Seja alegre ou triste a música revitaliza e fortalece. Música é indispensável para a vida”. Koellreutter
mantinha a seguinte assertiva intrigante: “No Japão não há ética. Tudo é estética”. Ele sugere
que a arte japonesa se confunde com modos de ser, ditados pelos preceitos budistas, o que distanciaria do conceito de música como “ciência” do dicionário brasileiro. Tendo em mente que
“ética” está imbutida no termo “estética”, o fazer musical representaria um dos “caminhos para elevação do espírito”. Yumiko Hayashi, mencionada no capítulo 7, confirma: “Música é a-
209
limentação para a alma. Ao mesmo tempo, algo indispensável para mim. Acho que no Japão
não significa apenas música, mas, principalmente, um refinamento estético”.
A sra. Kuze salienta que todas as artes chadō, kadō, judō têm em comum o sufixo
dō cujo significado é ‘caminho’. O que importa é o meio, a preparação do espírito, a concentração de praticar com a retidão dos sentidos e firmeza do caráter. E se a condução da preparação for bem feita, necessariamente, se alcança um belo resultado em todas essas artes dō da
cerimônia do chá, arranjo floral e artes marciais. Kuze, Hayashi e a cerimônia Ireisai indicam
que tocar koto estaria no mesmo patamar das artes do ‘caminho’. Fumi Naiki, a decana do
grupo Miyagi, reforça essa proximidade, fornecendo a receita de sua longevidade:
A música e o ikebana só podem fazer bem para a longevidade,
porque usa a cabeça e a coordenação motora. Para fazer boa música é
preciso concentração.
[...] Outro dia fulano faleceu... Como é que uma pessoa pode
passar uma vida inteira sem aprender a cantar ou tocar um instrumento?
9.3.2.
para os descendentes internos e externos à comunidade
As nisei já não apresentam receio em expor suas opiniões. Apenas uma descendente de Okinawa respondeu que não sabe o significado da música. A resposta mais freqüente
foi a do significado do ideograma ongaku “prazer” e outros próximos, tais como “paz” e “alegria”.
A segunda resposta emitida pelas nisei foi relacionada ao poder terapêutico, salientando a aplicabilidade na fadiga corporal e mental: “música significa descontração”, “higiene mental”, “terapia”, “liberdade”, “poder mágico de mudar a energia das pessoas ou lugares”.
Outras respostas encontradas, a partir dos descendentes, são: “interesse em aprofundar a cultura japonesa através do koto ou shakuhachi”, “música é arte” “é expressão de
sentimentos”. Clarice Ikeda, aluna do Miyagi-kai, que respondeu em versos, sintetiza o pensamento das nisei, revelando um misto entre a ideologia japonesa e brasileira:
210
Quando ouço é a emoção de alguém que entendo
Quando canto é a minha emoção que estou externando
Música é alegria, por mais triste que a música seja,
eu não canto se estiver triste.
Música é vida, é arte, é emoção, é cultura, é terapia.
Para as jovens sansei e os não descendentes, a resposta mais comum foi novamente o significado do ideograma “música”. Kitty Pereira reforça: “estudo koto quando estou estressada, meio triste e me faz muito bem”. Em segundo lugar, o pensamento ocidental de
“forma de expressão de sentimentos”. Em terceiro lugar, a ideologia miscigenada com o valor
terapêutico. Em quarto e quinto lugares, a volta aos propósitos de manter o grupo étnico, tais
como “união”, “harmonia”, “perseverança”, “persistência”. E a retomada de acepções budistas tais como: “reflexão”, “instinto”, “insight”, “interiorização” e os atributos abaixo, de Márcio Valério:
Para mim música é a principal forma de entrar em contato comigo
mesmo, ou aspectos do meu interior, para atingir outros níveis de
consciência. Contribui para minha elevação espiritual, serena a mente, purifica o coração.
Mary Celeste, que também se aproximou da cultura oriental por razões filosóficas
(p. 180), sublinha o fazer musical como uma forma de escapar da vida moderna, semelhante
ao de Mário Teruya na epígrafe do presente capítulo. Sendo que para Mary, a música oriental
seria uma receita, um antídoto específico para o excesso de notas156, ou decibéis, da música
atual contemporânea e midiática:
Eu acho que todo o músico deveria conhecer o princípio mesmo da música oriental. Não teoricamente, mas praticando. Para completar e harmonizar o seu som, deixar mais delicada a música, pois a
nossa música ocidental está cada vez mais barulhenta e dissonante.
Minha visão atual da música. Muita gente compreende as notinhas da música como se fossem as estrelas num céu, numa noite bem
límpida, onde a gente pode ver aquele espaço imenso, que é o silêncio,
pontilhado de luz, que seriam os sons.
156
O professor Koellreutter freqüentemente ressaltava a qualidade da pausa na música japonesa, ou seja, o som não
é valorizado se não houver o silêncio.
211
9.4.
A reconstrução “pura” do elo perdido
Muitos imigrantes do pós-guerra relatam que, antes de virem para o Brasil, nunca
tinham se interessado em aprender instrumentos tradicionais japoneses. Nos capítulos 6, 7 e 8,
viu-se que uma boa parte das executantes de koto aprende(u) piano. O sr. Shigeo Saito tocava
clarinete e o casal Yazaki era integrante de orquestra, antes de migrarem. Emprestando as lentes de Jorge Hashimoto, analiso que, trocando o violino e clarinete pelo shakuhachi, piano pelo koto, eles conseguiram, pois, administrar o conflito da perda da terra mãe. E para garantir a
nitidez do objeto amado longínquo, eles passam a defender energicamente a própria cultura,
condenando atitudes de “deterioração” ou “contaminação dos valores” na terra nativa. Segundo Itsuro Yazaki, do Shinzan-kai:
Alguns instrumentistas jovens japoneses percorrem o mundo
afora e arrebatam prêmios em concursos internacionais tocando Beethoven, Bach, etc. Mas se alguém pedir para ele tocar alguma peça japonesa, ele sequer sabe de alguma. O jovem alemão além de Bach, sabe alguma melodia tradicional, mas o japonês nada... E aí como é que
ficamos?
Sua expressão é a indignação pela falta da “virtude da vergonha” (v. Benedict)
nesses jovens ocidentalizados. Tanaka (Koellreutter 1983, 70) expõe também um temor similar
ao do sr. Yazaki sobre a ocidentalização:
Receio que muitos japoneses que desde a Restauração Meiji se
ocupam com demasiada assiduidade da cultura ocidental, não percebam o quão distante estão de sua própria cultura. [...] não estão apenas
interessados em integrar outras culturas, mas tentam também, além
disso, e sempre de novo, renunciar à sua própria cultura.
A ex-professora de piano Kazuyo Kuze também se revolta com a recente diretriz
da escola japonesa, fornecendo uma associação de causa e efeito tão contundente quanto à do
professor Saeki no capítulo 7: “É um absurdo! Como é que se retira o hino nacional das escolas japonesas? É por isso que a juventude começou a pintar os cabelos de amarelo e cantar
aquelas músicas barulhentas...”
212
O hino nacional do Japão é o símbolo do sentimento de lealdade ao imperador.
Romper com o símbolo ameaçaria todos os preceitos construídos na história, a identidade, o
porto seguro do povo japonês. No entanto, a nova diretriz do ensino japonês impôs a música
tradicional como disciplina obrigatória: meninos aprendem shakuhachi e as meninas koto. O
hino nacional “Kimigayo” faz parte do repertório sōkyoku.
Os imigrantes parecem ignorar a substituição da lacuna, preferem lembrar que aqui estão seguros da contaminação ocidental na terra natal. No Japão, os meios de comunicação de massa divulgam, por exemplo, um trio de koto tocando a “Ária da Quarta Corda”, de J.
S. Bach, ou um duo de shakuhachi e koto interpretando um tango virtuosístico, de Astor Piazzolla. A maioria dos performers com uma aparência moderna, ou a tal da aparência ocidental
forjada, observada por Kuze, através do formato e cor dos cabelos, cirurgia plástica nos olhos,
nariz, seios. No Brasil, a TV Cultura apresentou “Rokudan”, “Haru no Umi” e “Shika no Tone” por executantes da ABMCJ em sua constituição física natural. Quando há cabelos claros
não são tingidos, pois trata-se de descendentes de caucasianos.
Dessa forma, para os imigrantes, o fazer musical além de ser um eficaz meio de
gerenciar o luto da terra amada, a sua reconstrução pode recuperar a sua mais pura fragância
na terra de acolhimento, já que se mostra deteriorada na terra natal. E os descendentes, internos e externos à comunidade, na busca de um refinamento pessoal, de suavizar suas vidas ou
aperfeiçoamento espiritual reconstroem um mundo idealizado, livre de contaminações. Se retomarmos as palavras do nisei Mário Teruya (p. 196), do professor issei Saeki (p. 158), e da
não nikkei Mary Celeste (p. 180 e 210), poderíamos afirmar que num consenso geral, portanto,
a música representa a reconstrução da terra ou de uma terra perdida no espaço e no tempo.
APÊNDICE 1
Fotos
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APÊNDICE 2
Transcrições
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Tese Alice Lumi Satomi parte 1 - RI UFBA