XI I C ON G R ES SO D E E D U C AÇ Ã O DO NORT E PI O N EI RO
Educar para a Sensibilidade:
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AS CARTAS DE CAMINHA E MACUNAÍMA: DIÁLOGOS E ESTRATÉGIAS
Natalia Guerra Brisola Gomes (Bolsista PIBIC-UENP CNPq/ G-CLCA-UENP/CJ)
Natasha Fernanda Ferreira Rocha (G-CLCA-UENP/CJ)
Marcela Verônica da Silva (Orientadora-CLCA-UENP/CJ)
Resumo: As produções literárias do Quinhentismo são os mais antigos registros de escrita em
nossa terra, servindo de inspiração aos autores dos próximos séculos que voltassem seus
trabalhos à nacionalidade brasileira. Surgiram, portanto, diversas releituras a partir dessa
Literatura de Informação, sempre relacionando o desenvolvimento do Brasil às suas formações
enquanto pátria. Um dos diálogos mais conhecidos foi o estabelecido por Mário de Andrade,
por meio de seu personagem Macunaíma, de livro homônimo, que bebe da carta de Caminha e
sua descrição do território recém-descoberto.
Palavras-chave: Caminha. Macunaíma. Intertextualidade.
Introdução
Durante o ensino de literatura no Ensino Médio, faz-se necessária alguma estratégia
da parte dos professores para que as aulas despertem o interesse dos alunos. Por conta do
grande distanciamento temporal dos períodos literários, a compreensão dos jovens deve ser
facilitada, estabelecendo-se uma aproximação possível. É o caso dos textos quinhentistas, que
se tornam mais acessíveis quando casados a produções de linguagem e contexto mais atuais,
direcionando-se ao horizonte de expectativa desses leitores, conforme definido por Hans
Robert Jauss (1994).
Para tanto, fazem uso das releituras modernistas, que, comprometidas com o
movimento literário, buscam a construção de um caráter próprio para o país. Aceitam,
portanto, a antiga condição de colonização para, ao mesmo tempo, afirmarem-se insubmissas
à cultura estrangeira imposta, aproveitando dela apenas o que lhes interessa – o chamado
Movimento Antropofágico.
Objetivamos destacar alguns paralelos estabelecidos entre as produções de Pero Vaz
de Caminha, Carta do Achamento do Brasil (1500), e Mário de Andrade, “Carta pras
Icamiabas”, Macunaíma (1928), um dos diálogos mais trabalhados na sala de aula.
Procuraremos demonstrar que, apesar dos séculos que as separam, tornam-se ainda mais
ricas quando trabalhadas em conjunto, por completarem e contrastarem ideias e permitirem
uma profunda reflexão histórica e social.
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Fundamentação teórica
Outro paralelo, que tem realização possível, é a aplicação simultânea desses textos
em sala de aula. A análise de ambos pode ser feita sob a luz da teoria do Método Recepcional.
Este se baseia na defesa da ideia do “relativismo histórico e cultural, [...] já que está
fundamentalmente convicta da mutabilidade dos objetos, bem como da obra literária, dentro
do processo histórico” (Fokkema & Kunne – Ibisch, 1977: 138) e na Estética Recepcional de
Jauss, que valoriza os conhecimentos prévios que o leitor possui.
Segundo Jauss,
A obra que surge não se apresenta como novidade absoluta num espaço vazio,
mas, por intermédio de avisos, sinais visíveis e invisíveis, traços familiares ou
indicações implícitas, predispõe seu público para recebê-la de uma maneira
bastante definida. Ela desperta a lembrança do já lido, enseja logo de início
expectativas quanto a “meio e fim”, conduz o leitor a determinada postura
emocional e, com tudo isso, antecipa um horizonte geral da compreensão
vinculado, ao qual se pode, então – e não antes disso –, colocar a questão
acerca da subjetividade da interpretação e do gosto dos diversos leitores ou
camadas de leitores. (JAUSS, 1994, p. 28).
Sendo assim, quando o leitor tem contato com um texto, um campo imediato de
lembranças e conceitos já está formado. O que não se diferencia quando a prática educacional
inicia-se com um texto tão conhecido como a Carta de Achamento. Para que os alunos sintamse mais próximos ao texto, é preciso que haja uma contextualização histórica, que pode ser
feita através de mídias que instiguem o envolvimento dos mesmos. Vídeos, pinturas e músicas
sobre o assunto, ainda que não produzidos na época do descobrimento, exercem – muito bem
– esse papel de estímulo e atendimento de expectativa.
O Método Recepcional prega uma sequência de passos a serem seguidos para que
professor e alunos alcancem uma progressão no nível de leitura e consequente expansão do
horizonte de expectativa – termo cunhado por Hans Robert Jauss, que diz respeito às
expectativas que o leitor nutre em relação ao texto, como citado acima. Uma das etapas que
devem ser atendidas segundo tal método – provavelmente uma das mais significativas – é o
momento em que o professor apresenta um texto que difere dos já estudados, seja em forma
ou conteúdo, para que os alunos rompam com as expectativas já criadas, para assim
assimilarem novos conceitos.
A proposta de ruptura que pode ser adotada é a leitura de trechos da Carta às
Icamiabas. A fuga simultânea do padrão culto e popular, haja vista o fracasso do estilo
pomposo da escrita de Macunaíma, seu tom de malandragem e esperteza, rompem com a
estética extremamente séria e linguagem formal da carta de Caminha, atraindo a atenção e
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efetivando uma leitura prazerosa aos alunos do Ensino Médio, cujo provável primeiro contato
com a historiografia do cânone literário não causará grande estranhamento.
Além de preparar o aluno para a recepção do texto de difícil entendimento, a
recorrência a intertextualidade, segundo Laurent Jenny (1979, p.21) permite a ampliação da
leitura, o adentrar em camadas mais profundas de significação. A intertextualidade
caracteriza-se pela introdução de um novo modo de leitura que faz estalar a linearidade do
texto. Cada referência intertextual é o lugar duma alternativa: ou prosseguir a leitura, vendo
apenas no texto um fragmento como qualquer outro, que faz parte integrante da sintagmática
do texto – ou então voltar ao texto origem, procedendo a uma espécie de anamnese
intelectual em que a referência intertextual aparece como um elemento paradigmático
deslocado e originário de uma sintagmática esquecida. Na verdade, a escolha apenas se
apresenta aos olhos do analista. É em simultâneo que estes dois processos operam na leitura –
e na palavra intertextual, semeando o texto de bifurcações que lhe abrem, aos poucos, o
espaço semântico. Assim, é pelo contraste na escrita e pela observação das intenções que
ocorre a quebra na estrutura linear do texto, permitindo ao leitor as associações e reflexões.
A Literatura de Informação, produzida no século XVI, consiste em registros históricos
feitos por exploradores e cronistas. Por não ser feita por ou voltada a brasileiros, Candido (p.
24, 1975), que considera a tríade autor-obra-leitor como compositora da literatura, classifica
as obras quinhentistas como manifestações literárias, precedendo o cânone propriamente
nacional que se iniciaria em meados do século XVIII. Ainda assim, essa literatura é valiosa
para estudos sobre origem do Brasil, sua organização enquanto nação, diversas culturas que
se somaram em sua formação e visão eurocêntrica que constam nessas impressões.
O movimento literário que mais recorreu à fonte quinhentista foi o Modernismo,
surgido no início do século XX, com sua busca pela definição da identidade nacional. Nada mais
lógico que recorrer à “certidão de nascimento” do país, como é referida por alguns a carta de
Caminha e outros documentos históricos da época. Alguns modernistas, como Oswald de
Andrade, Mário de Andrade e Murilo Mendes, procuraram libertar o Brasil do estigma de pobre
colonizado, indefeso e conformado com o futuro que lhe fora imposto. Para tanto, usaram do
artifício da desconstrução desses primeiros registros brasileiros, recriando o que já havia sido
cristalizado pelo tempo.
Ao longo da história da Literatura Comparada, os textos anteriores e posteriores
passaram por teorias que os enalteciam ou desvalorizavam. Os primeiros estudiosos franceses
consideravam os primeiros textos como fontes, sendo que os mais recentes não passariam de
cópias. Já os críticos americanos, defendiam serem as últimas produções uma evolução das
obras antigas. Hoje acredita-se num canal de via dupla, como diria Borges (1974, p.712 apud
CARVALHAL, 1992, p. 65): “cada escritor cria seus precursores. Seu trabalho modifica nossa
concepção de passado como há de modificar o futuro.”. Assim como os escritores modernistas
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se apropriaram do material oferecido pelo Quinhentismo, as primeiras produções dos europeus
quando chegaram ao Brasil também passaram por um processo de transformação durante as
releituras antropofágicas, possibilitando aos novos leitores uma interpretação ampliada, mais
crítica e profunda dos textos. Quanto a essa contribuição do novo antropofágico, Tânia
Carvalhal (1992, p. 80) recomenda cautela:
O procedimento “devorador” não está muito distanciado das relações efetuadas
entre os textos, do qual cabe à intertextualidade dar conta [...]. E é justamente
aí que podemos chegar para refletir sobre essa estratégia de reversão, quando
empregada nos estudos literários comparados. É preciso atentar para o risco de
cair no extremo oposto. Se antes, no comparativismo tradicional, a direção era
única – da cultura dominadora para a dominada -, comprometendo toda a
atuação ao torná-la determinista e restringindo o ângulo de visão, adotar a
perspectiva antropofágica consistiria em inverter essa direção, apenas. Dito de
outra maneira, passaríamos de uma radical postura de admiração passava e
incondicional pelas culturas européias a outra atitude, igualmente radical, de
fechamento num “autobastar-se” nacionalista.
No objeto de estudo do presente artigo, entretanto, não se percebe o sentimento de
autossuficiência a ser evitado. O que se percebe é uma apropriação da cultura como um bem
comum entre os povos. A relação estabelecida entre as cartas de Pero Vaz de Caminha,
escrivão da armada portuguesa, e Macunaíma, personagem de Mário de Andrade, talvez seja
um dos mais notórios estudos de Literatura nessa perspectiva. Caminha pertencia à frota de
Pedro Álvares Cabral e redigiu o relatório de seus primeiros dias de adaptação e descobertas
em Porto Seguro, no dia 01 de maio de 1500. O escrito, de 27 páginas, foi levado a Lisboa por
Gaspar de Lemos, comandante do navio de mantimentos da frota. Tem fortes marcas
descritivas, por, além de prestar contas pelo trabalho do grupo, ter o compromisso de
apresentar ao rei D. Manuel I o território empossado.
Macunaíma, por sua vez, foi publicado em 1928, com um pequeno número de
tiragem. Mário de Andrade, que o escreveu em apenas seis dias, refere-se a ele como uma
rapsódia de mitos e lendas indígenas e folclóricas, resultados de uma pesquisa que desenvolvia
há certo tempo. Macunaíma, o personagem homônimo ao livro, é o “herói sem nenhum
caráter”, extremo oposto da imagem desbravadora e romanceada dos colonizadores
portugueses. Ele inverte os papéis nessa nova descoberta do Brasil, sendo, dessa vez, o índio
a encontrar uma civilização moderna e contar a sua tribo sobre as novidades com que se
depara. A viagem ocorre devido à perda do muiraquitã, amuleto dado por sua mulher Ci,
Rainha das Icamiabas, pretexto que direciona nosso anti-herói do Amazonas a São Paulo.
A afirmação de Carvalhal (1992, p. 84) de que “[...] a autonomia cultural não está na
recusa frontal de ‘olhar para fora’, mas na capacidade crítica desse olhar.” vai ao encontro da
proposta de Macunaíma, que leva seus leitores a questionarem-se a respeito do processo de
colonização. A autora parte do comentário de Silvano Santiago a respeito do trabalho
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modernista de Mário de Andrade, que defende a importância do confronto proposto pelo novo
texto, apoiando-se em sua condição de explorado:
[...] não se faz de conta que a dependência não existe, pelo contrário, frisa-se a
sua inevitabilidade; não se escamoteia a dívida para com as culturas
dominantes, pelo contrário, enfatiza-se a sua força coerciva; não se contenta
com a visão gloriosa do autóctone e do negro, mas se busca a inserção
diferencial deles na totalização universal.
[...] paradoxalmente, o texto descolonizado na cultura dominada acaba por ser
o mais rico (não do ponto de vista de uma estreita economia interna da obra)
por conter em si uma representação do texto dominante e uma resposta a esta
representação no próprio nível da fabulação, resposta esta que passa a ser um
padrão de aferição cultural da universalidade tão eficaz quanto os já conhecidos
e catalogados. (1982, pp. 22-23 apud CARVALHAL, 1992, p. 84)
Apesar de esse jogo contrastivo com a história brasileira se fazer presente ao longo da
narrativa de Mário de Andrade, ele se torna mais explícito no capítulo “Carta pras Icamiabas”.
Desde o início podemos facilmente notar a paródia construída: a fracassada tentativa de
Macunaíma em escrever pomposamente destoa do resto do livro, coloquial, dando ainda maior
ênfase ao intermezzo, o capítulo IX, inserido na metade da obra. Isso não apenas aproxima o
trabalho modernista da carta quinhentista, como também satiriza o movimento parnasiano e
sua linguagem rebuscada. Segundo Botoso (2011) a paródia seria, assim, a disputa entre duas
vozes que não se unificam dentro da obra. Para que seu efeito se concretize, é necessário que
o leitor reconheça e perceba a existência do texto parodiado dentro de outra estrutura
narrativa. O que marca o discurso parodístico são seus recursos, que podem ser muito amplos
e diversificados.
No cabeçalho, enquanto Caminha se dirige ao Rei de Portugal, seu superior,
Macunaíma faz o relato a suas súditas, as icamiabas, e se denomina imperador – ou melhor,
“imperator”, como o escreve. Outro ponto, mais sutil, que se apresenta nas primeiras linhas é
a coincidência das datas. A Carta de Achamento do Brasil foi assinada em 01 de maio de 1500
e a segunda, em 30 de maio de 1926, quase que em extremos opostos do mesmo mês.
A partir disso, vários outros pontos de encontro podem ser traçados entre as obras.
Caminha conta sobre a estranheza dos índios em relação à comida que lhes foi oferecida:
“Deram-lhes ali de comer: pão e peixe cozido, confeitos, fartéis, mel e figos passados. Não
quiseram comer quase nada daquilo; e, se alguma coisa provavam, logo a lançavam fora.
Trouxeram-lhes vinho numa taça; mal lhe puseram a bôca; não gostaram nada, nem quiseram
mais.” (1968, p. 76). Em Macunaíma, é o paladar do protagonista que faz novos experimentos,
como bebidas, produtos importados e lagostas. Quanto a essas últimas, ele diz às icamiabas:
“E que monstros encantados, senhoras Amazonas!!! Duma carapaça polida e sobrosada feita a
modo de casco de nau, saem braços, tentáculos e cauda remígeros, de muitos feitios; de modo
que o pesado engenho, deposto num prato de porcelana de Sêvres, se nos antoja qual
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velejante trirreme a bordeisjar água de Nilo trazendo no bojo o corpo inestimável de
Cleópatra.” (1999, p.73). Como se vê, diferentemente dos nativos encontrados pelos
portugueses, Macunaíma está aberto às novidades.
A apresentação dos nativos também se faz através de contrastes. O escrivão
português relata que “A feição dêles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons
rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Não fazem o menor
caso de encobrir ou de mostrar suas vergonhas; e nisso têm tanta inocência como em mostrar
o rosto.” (Ibidem, p. 75). Grande diferença se faz pelo tom de pele e o costume das
vestimentas em São Paulo, conforme Macunaíma conta: “Andam elas vestidas de rutilantes
jóias e panos finíssimos, que lhes acentuam o donaire do porte, e mal encobrem as graças,
que, a de nenhuma outra cedem pelo formoso do torneado e pelo tom. São sempre alvíssimas
as donas de cá [...]” (Ibidem, p. 73).
Essa comparação de aparências e comportamentos entre os habitantes dos dois
círculos sociais será reflexo do nível de inocência, no caso dos índios da costa brasileira, e de
malícia, a respeito dos moradores da capital paulista, principalmente quando Macunaíma fala
sobre as prostitutas. Quanto à falta de roupas para os indígenas, que a princípio constrangeu
os portugueses, Caminha reforçou em vários pontos da carta que não comprometia a pureza
daquelas pessoas: “Ali andavam entre êles três ou quatro môças, bem môças e bem gentis,
com cabelos muito prêtos e compridos pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas, tão
cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tínhamos
nenhuma vergonha.” (Ibidem, p. 78); “Assim, Senhor, a inocência desta gente é tal, que a de
Adão não seria maior, quanto a vergonha.” (Ibidem, p. 92). Não podemos deixar de notar a
sensibilidade de Mário de Andrade ao trabalhar com o assunto, já que as índias igualmente
sofreram abusos sexuais dos colonizadores, como também havia feito Oswald de Andrade em
seu poema As Meninas da Gare.
E, portanto, se os degredados, que aqui hão de ficar aprenderem bem a sua fala
e os entenderem, não duvido que êles, segundo a santa intenção de Vossa
Alteza, se hão de fazer cristãos e crer em nossa santa fé, à qual praza a Nosso
Senhor que os traga, porque, certo, esta gente é boa e de boa simplicidade. E
imprimir-se-á ligeiramente nêles qualquer cunho, que lhes quiserem dar. E pois
Nosso Senhor, que lhes deu bons corpos e bons rostos, como a bons homens,
por aqui nos trouxe, creio que não foi sem causa. (CAMINHA, 1968, p. 90)
Conforme mostrado no trecho acima, os portugueses almejavam impor sua cultura
aos índios. Em contraposição, a ideia dos modernistas era devorar o que lhes interessasse do
estrangeiro, deglutindo em proveito próprio: “Pois não contentes de terem aprendido de
França, as subtilezas e passes da galantaria á Luís XV, as donas paulistanas importam das
regiões mais inhóspitas o que lhes acrescente ao sabor, tais como pezinhos nipónicos, rubis da
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Índia, desenvolturas norteamericanas; e muitas outras sabedorias e tesoiros internacionais.”
(ANDRADE, 1999, p. 74 e 75); “Como vedes, assaz hemos aproveitada esta demora na ilustre
terra bandeirante [...] por aprendermos as coisas mais principais desta eviterna civilização
latina, por que iniciemos, quando for do nosso retorno ao Mato Virgem, uma série de
milhoramentos, que, muito nos facilitarão a existência, e mais espalhem nossa prosápia de
nação culta entre as mais cultas do Universo.” (Idem, ibidem, p. 76).
Um último paralelo entre as produções ainda pode ser apontado, fazendo menção à
fauna e à flora dos ambientes com que se deparam os viajantes: “Enquanto andávamos nessa
mata a cortar lenha, atravessavam alguns papagaios por essas árvores, dêles verdes e outros
pardos, grandes e pequenos, de maneira que me parece haverá muitos nesta terra. [...] Mas,
segundo os arvoredos são mui muitos e grandes, e de infindas maneiras, não duvido que por
êsse sertão haja muitas aves!” (CAMINHA, 1968, p. 87); “Porém, senhoras minhas! Inda tanto
nos sobra, por esse grandioso país, de doenças e insectos por cuidar!... Tudo vai num
descalabro sem comedimento, estamos corroídos pelo morbo e pelos miriápodes! Em breve
seremos novamente uma colônia da Inglaterra ou da América do Norte!...” (ANDRADE, 1999,
p. 79). Pero Vaz de Caminha encontra um Brasil vasto em árvores e pássaros de variadas
espécies, sinônimo de fertilidade e fartura, mas Macunaíma vê um país já decaído, em que
predominam insetos e doenças, prestes a perder tudo que conquistou com tamanho esforço ao
longo dos séculos.
Considerações finais
Partindo das observações e comparações feitas entre as cartas assinadas por Pero Vaz
de Caminha e Macunaíma, podemos criar uma visão panorâmica do Brasil, desde o momento
de sua colonização até a modernidade. Muito do que nos era valioso foi perdido ainda em seus
primeiros anos enquanto nação, como a ampla população nativa e a riqueza da fauna e flora.
O reconhecimento dado à “Carta de Achamento do Brasil” é justificado em suas razões
históricas, por tratar-se do marco inicial da colonização de um país que viria a ser uma
potência mundial, mesmo com tanta exploração e injustiça.
Mas a passagem do tempo também trouxe o amadurecimento aos brasileiros, que
vêm mudando suas concepções acerca do próprio país e aprendendo a valorizar sua cultura,
sem deixar de aceitar o que os demais povos podem oferecer. Outro avanço foi a liberdade da
linguagem, não mais restrita às formalidades da normatização, mas moldada conforme as
necessidades de cada situação social, que foi grande contribuição do movimento modernista.
Como bem se percebe, o diálogo entre as obras só tende a enriquecê-las. Ao citarmos não só o
anti-herói Macunaíma – um indício dos contrastes existentes neste país – como a obra
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homônima, seu autor e seu contexto literário, destacamos a importância da literatura e do
pensamento crítico, vista melhor através dessa contínua viagem do presente recorrendo ao
passado, usando a tradição como ponto de apoio para o novo.
Referências
ANDRADE, Mário de. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. São Paulo: Klick; O Estado
de São Paulo, 1999. (Coleção Vestibular).
BOTOSO, Altamir. A reescritura, a paródia e o hibridismo como marcas pós-modernas
do romance histórico contemporâneo. In: Vertentes & Interfaces I: Estudos Literários e
Comparados (v.3, nº2). Vitória da Conquista, jul-dez 2011.
CAMINHA, Pêro Vaz de. Carta de Pêro Vaz de Caminha a El-Rei D. Manuel. In: PAES, José
Paulo (Org.). Grandes cartas da história. São Paulo: Cultrix, 1968.
CANDIDO, Antonio. Literatura como sistema. In: Formação da literatura brasileira. 6. ed.
Belo Horizonte: Atalaia, 1975. (Biblioteca Brasileira de Literatura; 1 – Momentos decisivos).
CARVALHAL, Tania Franco. Literatura comparada. 2. ed. São Paulo: Ática, 1992. (Série
Princípios).
HUTCHEON, Linda. O alcance pragmático da paródia. In: Uma teoria da paródia [A theory
of parody]. Ensinamentos das formas de Arte do século XX. Tradução de Teresa Louro Pérez.
ed. 70. Lisboa: 1989. p. 69-87.
JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária.
Tradução de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática, 1994. (Série Temas, v.36).
JENNY, Laurent. A estratégia da forma. In: Intertextualidades. Tradução de Clara Crabbé
Rocha. Coimbra: Almedina, 1979. (Poétique nº. 27).
Para citar este artigo:
GOMES, Natalia Guerra Brisola; ROCHA, Natasha Fernanda Ferreira. As cartas de Caminha e
Macunaíma: diálogos e estratégias. In: XII CONGRESSO DE EDUCAÇÃO DO NORTE PIONEIRO
Jacarezinho. 2012. Anais. ..UENP – Universidade Estadual do Norte do Paraná – Centro de
Ciências Humanas e da Educação e Centro de Letras Comunicação e Artes. Jacarezinho, 2012.
ISSN – 18083579. p. 221- 228.
228
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