II Congreso Internacional del CLAD sobre la Reforma del Estado y de la Administración Pública, Isla de Margarita, Venezuela, 14 - 18 de octubre 1997
A GESTÃO DE POLÍTICAS DE DESENVOLVIMENTO SOCIAL:
ASPECTOS ORGANIZACIONAIS DO APARATO DO ESTADO
Rose Marie Inojosa
Embora modeladas por diferentes concepções do papel do Estado na sociedade contemporânea,
esquerda, direita e suas nuances têm alguma concordância de que é preciso mudar o modo de
intervenção desse Estado - formas e meios - em um cenário conformado pela globalização e pelas
mudanças economicas e sociais.
Quando são examinados os aparatos através dos quais o Estado intervém na sociedade, é preciso
considerar que o desenho das organizações governamentais e a forma de organizar os processos de
trabalho resultam de um processo histórico, moldam a intervenção e resistem à sua mudança.
Seja a finalidade restringir ao mínimo a intervenção do Estado, na lógica da supremacia do mercado, ou
seja uma intervenção fundada no princípio da solidariedade e voltada para o desenvolvimento social, o
aparato do governo e todos os interesses nele cristalizados surgem como empecilhos à mudança. Não é
sem motivo que governos de vários matizes ideológicos estejam empenhados e, muitas vezes,
enredados, em processos de reforma ou "reinvenção" administrativa.
Mudar o aparato do Estado significa fraturar a estrutura de poder nele enraizada e romper uma teia de
interesses muitos dos quais, em função da história, já perderam outros espaços de poder na sociedade e
amparam-se nesse aparato para sobreviver. Por exemplo, algumas corporações profissionais de classe
média que tradicionalmente foram empregadas pelo Estado e segmentos da antiga classe dominante,
como as elites agrárias, às quais o Estado serviu durante décadas. Velhos interesses nem sempre são
fracos interesses. E também há os novos interesses - como os gestores do capital financeiro - que se
escoram no mesmo aparato que criticam, toda a vez que o jogo do mercado põe suas posições em risco.
A organização tradicional dos três níveis de governo no Brasil - federal, estadual e municipal,
responde a antigos paradigmas organizacionais - hierarquia piramidal, centralização de decisões,
planejamento normativo, autoritarismo, confusão entre o público e o privado, práticas de sigilo. Sua
conformação histórica foi eivada por valores patrimonialistas e clientelistas presentes na sociedade.
Nesse sentido conformou-se um Estado excludente, tanto do ponto de vista da participação nas
decisões quanto na redistribuição de riquezas. As políticas sociais gerenciadas por esse modelo de
Estado tinham caráter compensatório, isto é, buscavam controlar a acumulação da pobreza para não por
em risco a acumulação da riqueza, considerando os problemas sociais como carências.
Na segunda metade da década de 80, no bojo do processo de democratização, há um movimento
de redefinição dessa relação entre o Estado e a Sociedade, buscando transformar o que era tratado
como carências em direitos. Esse movimento ocorreu no processo da Constituinte e resultou na
chamada "Constituição cidadã" de 1988, que consagra como direitos sociais: a educação, a saúde, o
trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência
aos desamparados .
Tão logo a Constituição foi promulgada, vários segmentos da sociedade passaram a declarar a
sua inviabilidade prática. A Carta configurava o terreno para um Estado de Bem-Estar, já objeto de
questionamento nos países democráticos centrais. O argumento mais usado foi e continua sendo a
impossibilidade de financiar todos os bens e serviços garantidos como direitos universais. Claro que
uma sociedade eticamente solidária tem maior prontidão para sustentar o custo da garantia de mínimos
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sociais a todos, ainda que pela redistribuição do usufruto do padrão superior, mas a sociedade onde a
classe dominante estiver preocupada apenas em garantir a sua estabilidade e condições de acumulação
o fará com maior parcimônia, independentemente de quanto custa. Como afirma Kliksberg (1997:30)
manifesta-se, hoje, uma espécie de "raciocínio fatalista": "a polarização, a inequidade acentuada e a
exclusão social seriam fenômenos inevitáveis, e as sociedade latino-americanas estariam predestinadas
a conviver com baixa porcentagem de pessoas privilegiadas e com um grande número de pessoas cujo
nível de vida seria fatalmente precário, ou que, fatalmente, teriam de viver na indigência. Esse mito
oculta, subjacente, uma idéia-força maior: a renúncia expressa à solidariedade."
Mas, a Constituição que está em vigor e vem sendo emendada pelo Congresso Nacional,
inclusive pelo projeto, em tramitação, de reforma administrativa, consagrou algumas diretrizes para a
gestão de políticas públicas, que impuseram modificações no aparato do Estado, como foi o caso da
descentralização.
A descentralização tem sido realizada de formas e ritmos peculiares a cada política do governo.
Isso corresponde à lógica da organização do aparato governamental, que é, em todos os níveis de
governo, setorializado por áreas de conhecimento ou especialização: saúde, educação, assistência
social, saneamento, habitação, cultura, esportes, obras, meio-ambiente, etc.
Limitações da estrutura setorializada por áreas de conhecimento para um projeto referido ao
desenvolvimento social
Há um movimento singular nas políticas sociais no Brasil que merece ser sempre recuperado.
Trata-se do Movimento da Reforma Sanitária, gestado desde o final dos anos 70 e inspirado na
Reforma Sanitária Italiana. Esse movimento, tanto pela participação histórica de parte de sua militância
na oposição ao regime autoritário, como pelo peso que a corporação médica tem na sociedade
brasileira, formou uma massa crítica que, através dos sanitaristas, perpassou o aparelho formador
(universidades) e os aparatos dos governos estaduais do país.
Foi o Movimento que, aliado a outras forças políticas no processo da Constituinte, logrou inscrever na
Constituição a saúde como direito de todos e dever do Estado. E, mais, consagrar, como diretrizes, para
o sistema de saúde, a descentralização, o atendimento integral e a participação (art.198).
É importante ressaltar que, antes mesmo da Constituição de 1988, membros desse Movimento
alcançaram o poder no aparato do governo federal e em alguns estados da união e, através disso, já
estavam promovendo uma profunda mudança na gestão da política de saúde, descentralizando ações e
serviços e induzindo os governos a abrir canais de participação nas decisões.
Mas a singularidade do Movimento da Reforma Sanitária no cenário da gestão das políticas sociais foi
também a sua fragilidade. Nas outras políticas sociais não se observou processo semelhante. Ao
restringir-se à saúde, ao mesmo tempo em que trabalhava com o conceito de saúde ampliado (saúde
como bem-estar físico, mental e social, da Organização Mundial de Saúde), os ideólogos do
Movimento, até por sua vinculação com o aparato governamental e com uma corporação profissional,
ficaram, de alguma forma isolados.
A mudança proposta pelo setor da saúde foi sendo estrangulada de um lado pelo não equacionamento
da questão do financiamento, que continuou direcionado para o pagamento da assistência médica e, de
outro lado, pela impossibilidade de resolver, através de uma estrutura setorializada, situações e
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problemas sobre os quais os gerentes do setor saúde não têm qualquer interferência, como moradia,
alimentação, transporte, renda, etc.
Depois da regulamentação dos dispositivos constitucionais para a saúde, que só ocorreu em
1990, já num cenário de contra-reforma, as políticas da assistência social e da educação também
trilharam caminhos semelhantes, em relação à descentralização, mecanismos de participação através de
conselhos, constituição de fundos especiais para transferência direta de recursos para os municípios e
mesmo para serviços. O que parece um avanço, talvez não seja. As políticas isoladas não dão conta de
uma política de desenvolvimento social que promova a inclusão. Antes, disputam recursos, multiplicam
conselhos no mesmo território, desenvolvem, desarticuladamente, ações que focalizam os mesmos
grupos populacionais e, sobretudo, preservam os espaços de poder, no aparato do Estado, para as
diversas corporações profissionais.
A sociedade tem dificuldades de ver resultados positivos de toda essa movimentação.
A grande bandeira das mudanças, durante esta década, foi a descentralização, tomada como
deslocamento do poder de decisão do governo central para os governos estaduais e para os governos
municipais.
A descentralização da gestão das políticas ou de aspectos da gestão teve impacto nas
organizações federais, estaduais e municipais.
Em relação ao governo federal, a descentralização da prestação e parte do controle da prestação
de serviços de saúde, por exemplo, implicou uma mudança importante. Levou à extinção do poderoso
INAMPS - Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social, que era vinculado ao
Ministério da Previdência e Assistência Social e tinha Secretarias em todos os estados da União. Era
um locus de poder sensível aos interesses do setor privado de saúde. Exigiu mudanças no Ministério da
Saúde, fortalecido, em tese, em seu poder de regulação e, por isso, instado a transformar-se em termos
de funções e dimensões.
No âmbito dos estados da federação, a descentralização da saúde que começou a ocorrer
efetivamente em 1987, implicou, no primeiro momento, uma expansão de seu aparato, logo tornado
crítico em função da municipalização.
Os municípios, que tinham atuação marginal na gestão da política de saúde, foram ganhando a
cena, os recursos, as responsabilidades, um embrião de controle social e viram-se às voltas com uma
estrutura organizacional inadequada. Tenderam a redesenhá-la, no mais das vezes, ampliando seu
espaço e seus quadros.
Contudo, é interessante notar que as estruturas das secretarias municipais de saúde tenderam, de
modo geral, a reproduzir as estruturas das secretarias estaduais e estas as do Ministério.
Nesse movimento, o que se observou foi uma descentralização de caráter vertical, entre os
níveis de governo. A estrutura paralela de conselhos deliberativos de saúde, que perpassava os três
níveis de governo, apontava para um movimento articulado de devolução social, porém isso é apenas
uma possibilidade, dependente de uma mudança social mais ampla (quadro 1).
Quadro 1: Movimento de transferência da gestão de políticas públicas no âmbito do Estado e do Estado
para a Sociedade Civil
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DESCENTRALIZAÇÃO
VERTICAL
DEVOLUÇÃO
SOCIAL
PRIVATIZAÇÃO DA
PRESTAÇÃO
COM
CONTROLE
PELO
ESTADO
Conselhos
Deliberativos
Terceirização
Organizações Sociais
GOVERNO FEDERAL
Conselhos
Deliberativos
Terceirização
Organizações Sociais
GOVERNOS ESTADUAIS
Conselhos
Deliberativos
Terceirização
Organizações Sociais
GOVERNOS MUNICIPAIS
Do ponto de vista da organização do trabalho, houve uma novidade interessante: a introdução do
conceito de distrito sanitário ou "silos" - sistema local de saúde - fortemente divulgado pela
Organização Panamericana de Saúde. Trata-se do delineamento de um território para cuja população
era planejada a rede e a prestação de serviços, sob uma mesma e única gestão, buscando, assim,
alcançar a diretriz da integralidade da atenção - isto é tratar da saúde das pessoas de modo integral,
articulando ações de promoção, prevenção e recuperação da saúde e articulando-se com a gestão de
outras políticas presentes na área. Tratava-se de um processo que poderia dar-se no interior de um
município, sob gestão do governo municipal, ou abranger mais do que um município, sob gestão
estadual ou de consórcios municipais.
Várias secretarias municipais de saúde criaram distritos, silos ou regionais de saúde, focalizando
populações e grupos de risco.
Hoje, passados dez anos do início efetivo desse processo, tem-se uma avaliação aparentemente
contraditória dessa mudança na Saúde. Ao mesmo tempo em que há uma avaliação geral negativa para
o Sistema Único de Saúde - SUS que, com a universalização, não deu conta das promessas de
atendimento integral, existem numerosas avaliações positivas em relação a governos municipais, nos
vários estados do país, que buscaram, com a relativa independência que lhes permitia a legislação e a
transferência de recursos antes centralizados no governo federal, assumir a gestão do sistema local de
saúde. E é justamente nesses municípios onde se têm avaliações positivas que melhor podem ser
observados os limites de um projeto que ambicionava ser a ponta de lança de um processo de
desenvolvimento social e que ficou reduzido a um setor.
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Através de trabalhos de pesquisa e de assessoria da FUNDAP a algumas Secretarias Municipais de
Saúde, que reorganizaram, setorialmente, seu aparato, para realizar as diretrizes do SUS, pode-se
observar muitos exemplos e situações que indicaram a impossibilidade da resolução de problemas da
população exclusivamente por meio da atuação setorial. Os profissionais da saúde, realizando análises
situacionais em micro-regiões no processo de planejamento, buscavam ir às causas dos problemas, para
buscar interferir nos fatores de risco à saúde de grupos populacionais específicos. Resolver os
problemas e não apenas tratar as consequências, implicava, contudo, um conjunto de ações que
extrapolavam a área de saúde, alcançando, particularmente as áreas de desenvolvimento urbano e
educação - e que precisavam realizar-se de forma articulada para impedir ou controlar o risco daquela
população. Entretanto, em todos os casos, o setor que identificava os problemas não conseguia induzir
outras áreas do governo a agir em conjunto. Cada qual mantinha a sua lógica e as suas prioridades,
apesar de estar atuando no mesmo espaço físico e para a mesma população.
Mesmo nas situações em que os programas dos governos municipais estavam calcados em um
projeto de desenvolvimento visando a inclusão social, como no caso dos Municípios de Porto Alegre,
no Rio Grande do Sul (1989 - ), e de Santos, em São Paulo (1989-96), a organização tradicional e
setorializada do aparato do executivo municipal não facilitou uma ação integrada e integradora das
políticas públicas. É provável que o planejamento participativo, empreendido por Porto Alegre, tenha
suprido, em parte, essa dificuldade do aparato estatal, redundando numa ação mais exitosa em termos
da continuidade da gestão.
Entretanto, o que as várias experiências têm em comum é a percepção de que o controle ou a
superação de fatores que implicavam riscos ou agravos à saúde da população estavam fora do âmbito
de governabilidade da área da saúde ou exigiam um trabalho conjunto.
Sobre a origem das dificuldades de articulação
Se a modelagem do aparato do Estado corresponde a uma estrutura de poder, a setorialização, isto é,
departamentalização da estrutura administrativa das Prefeituras por áreas de conhecimento - que
resultam num conjunto de Secretarias paralelas, com o mesmo nível hierárquico e gerenciando suas
próprias redes de serviços, parece responder a três questões:
•
•
•
às práticas de composição política para a formação do Secretariado;
aos poderes dos funcionários públicos e das diferentes corporações que têm quadros no Estado;
e
às práticas fragmentadoras das intervenções especializadas originarias da lógica do aparelho
formador.
É comum que a cada mudança de gestão haja um certo rearranjo da estrutura organizacional dos
governos. Frequentemente essas alterações de estrutura não têm por detrás nenhuma mudança de
concepção da atuação do Estado, mas visam organizar a casa de modo a contemplar os vários acordos
políticos que viabilizaram a eleição do chefe do executivo. Sabe-se que algumas Secretarias são mais
disputadas que outras, em função dos recursos e do prestígio que atraem. Nesse processo de
acomodação das alianças e tendências partidárias algumas Secretarias são fundidas outras se
desdobram. Muda-se a estrutura mas não a lógica de operação.
Esse "loteamento" do governo não tem resultado em times afinados, pois as alianças abrigam, muitas
vezes, projetos contraditórios, apesar da população, em tese, ter consagrado, através do voto, uma
proposta de governo. Se as Secretarias são dadas a conduzir por representantes de projetos
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contraditórios, é natural que a sua articulação seja tênue e que se instaure uma disputa por verbas e
espaço que não considera, em primeiro lugar, o interesse da população atendida.
As corporações são outro ator de peso nesse cenário. O segmento profissional dos funcionários
públicos é um agregado de corporações, com suas histórias e lógicas próprias.
Importantes mudanças qualitativas e quantitativas ocorreram na categoria ocupacional, na última
década, com a queda salarial do funcionalismo público estadual, a não expansão do emprego e o
consequente envelhecimento do quadro, bem como com a perda de prestígio político das suas
representações.
Desse ponto de vista o funcionário público deixou de ser um protagonista da reforma do Estado, pois as
reformas vêm sempre com um rótulo externo - é sempre alguém que assume um mandato ou um cargo,
que tem um tempo determinado e "inventa um novo invento" . Então, há uma desconfiança mútua entre
esses que querem mudar para obter um resultado mais rápido e os que estão na máquina, irritados com
essas mudanças periódicas, às vezes "erráticas", na expressão de Nogueira (1997) e que,
frequentemente, põem em risco posições por eles conquistadas. De outro lado, as propostas de reforma
que nascem no interior da organização, costumam supor a ampliação dos espaços de poder da
tecnoburocracia e resolver, através da multiplicação de cargos, o problema crucial do salário.
Apesar de enfraquecida, a categoria dos funcionários públicos tem expressivo poder de resistência, pois
os governantes passam e ela permanece.
Mas, as corporações têm pesos desiguais, em função de suas possibilidades de inserção no mercado de
trabalho privado e, também, da expressão, para a população, do tipo de serviços que prestam. Os
profissionais de saúde, particularmente os médicos, por exemplo, têm vocalização suficiente para
comandar mudanças e garantir espaços de poder na estrutura e têm, também, capacidade de
mobilização de apoios na sociedade. O prestígio, embora corroído de maneira geral, ainda sustenta a
vocalização de algumas categorias, senão para promover mudanças, com certeza para freiá-las.
Além disso, o aparelho formador também foi historicamente segmentado por áreas de conhecimento e
especialização. Somente agora começa a discussão, ainda incipiente, do fim do currículo e da
transdisciplinariedade. Assim, os profissionais são formados para "fazer o seu ofício" , e com bastante
autonomia, no caso de algumas especialidades. As equipes, no máximo, são equipes de saúde, de
educação, de assistência, onde o profissional de nível superior dá o tom para os demais integrantes que
entram como coadjuvantes. Desenvolveram, assim, as suas linguagens próprias, mecanismos de
proteção de espaços de poder, que disputam entre si.
Essas três questões, as práticas de composição política para a formação dos governos; os poderes dos
funcionários públicos e das diferentes corporações e as práticas fragmentadoras das intervenções
especializadas reforçam a modelagem tradicional do aparato do executivo, fragmentadora da ação e
impeditiva para a gestão de uma política de desenvolvimento social.
Um modelo novo
Face à percepção dos limites da atuação setorial e do modelo de organização que os reitera, é
oportuno refletir sobre uma alternativa que abrigue o desafio da atuação intersetorial.
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Trata-se de uma tentativa de aliar a mudança do modelo de intervenção do Estado a uma mudança do
modelo organizacional de seu aparato.
Nenhum processo de modernização, diz Martins (1994:183), " pode progredir e frutificar se não conta
com o apoio de uma rede de órgãos especialmente criados para funcionar como o terreno no qual esse
processo deita raízes, extraindo daí a seiva que necessita para expandir-se". Nesse sentido é
fundamental que se materialize, ganhe visibilidade, obtenha recursos e acumule os instrumentos
indispensáveis para a viabilização de seus avanços.
A formulação de alternativas parece mais urgente nos governos municipais, pois, inclusive em função
da descentralização, "os municípios começam a enfrentar o desafio de atender urgências sociais que
ultrapassam as limitadas e pontuais intervenções que no campo do social desenvolviam anteriormente.
Os problemas de habitação, saúde, educação, emprego, alimentação etc. começam a constituir matéria
cotidiana de atenção municipal:" (Marsiglia, 1996:69)
Os governos municipais direcionados para a promoção do desenvolvimento social e garantia dos
mínimos sociais a todos os cidadãos, precisam construir uma interferência intencional e monitorada nas
questões que estão no espaço de governabilidade da Prefeitura, com a identificação de problemas dos
grupos populacionais em relação a padrões de qualidade de vida e realização de ações que articulem
saberes e experiências de diversos campos do conhecimento.
Essa ação, em contraposição à lógica setorial, precisa basear-se na população, re-conhecendo os
indivíduos e grupos da população, considerando as suas condições peculiares de vida, demandas e
expectativas. As prioridades, nesse caso, serão definidas a partir de problemas da população, cujo
equacionamento envolve ações integradas intersetoriais.
"Intersetorialidade é aqui entendida como a articulação de saberes e experiências no
planejamento, realização e avaliação de ações, com o objetivo alcançar resultados
integrados em situações complexas, visando um efeito sinérgico no desenvolvimento
social. Visa promover um impacto positivo nas condições de vida da população, num
movimento de reversão da exclusão social." (Junqueira et al, 1997:26)
Para modelar uma organização do poder executivo municipal referida a essa lógica, propõe-se aliar
descentralização e intersetorialidade. Descentralização para transferir poder de decisão para as
instâncias mais próximas e permeáveis à influência dos cidadãos. Intersetorialidade para buscar atender
as necessidades e expectativas desses mesmos cidadãos de forma sinérgica e integrada. Ambas devem
considerar .as condições territoriais, urbanas e de meio-ambiente dos micro-espaços que interagem com
a organização social dos grupos populacionais.
Em termos de desenho de estrutura significa substituir as Secretarias segmentadas por áreas de
conhecimento por um corte regional, com Secretarias tendo por missão proporcionar a melhoria das
condições de vida da população da sua área área de jurisdição, geograficamente delimitada, através das
ações e serviços municipais de competência da Prefeitura. Essa missão é realizada mediante a
identificação e a articulação do atendimento às necessidades e demandas dos grupos populacionais da
região, considerados em sua dinâmica de uso do espaço urbano e peculiaridades sociais .
A organização do trabalho muda, necessariamente, com esse novo modelo.
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No modelo tradicional das Prefeituras o trabalho é organizado por equipes especializadas para o
planejamento, a realização e a avaliação de ações e serviços específicos, em cada Secretaria setorial.
Essa dinâmica supõe um planejamento geral, com base territorial, acima das Secretarias, que articule os
planos particulares de cada uma delas e as respectivas redes de serviço, trabalho nem sempre exitoso,
como sabemos.
O novo modelo supõe uma outra dinâmica. Haverá, necessariamente, em cada Secretaria, um
planejamento referido à sua base geográfica e populacional próprias. A articulação desses planos,
coordenada no nível do Prefeito, possivelmente através de um colegiado dos Secretários Regionais, terá
a função de mediar as eventuais desigualdades regionais, com caráter redistributivo, privilegiando os
grupos populacionais em situação ou risco de exclusão social e, ainda, de impedir o distanciamento dos
planos regionais das prioridades municipais.
Esse modelo novo evidentemente não exclui equipes especializadas por serviços. As escolas, hospitais,
centros de assistência, casas de cultura, equipamentos de esporte e lazer, usina de asfalto, núcleos de
fiscalização de obras, etc. continuarão a existir com suas equipes especializadas. A diferença é que
essas equipes especializadas e esses serviços estarão integradas em uma única rede regional.
Quadro 2: Comparativo de modelos de estrutura organizacional de Prefeituras, considerando o critério
de departamentalização, a missão e a organização do trabalho
CRITÉRIO DE
DEPARTAMENTALIZAÇÃO
MODELO TRADICIONAL
MODELO NOVO
SECRETARIAS POR ÁREA DE
CONHECIMENTO OU
INTERVENÇÃO: SAÚDE,
EDUCAÇÃO, OBRAS,
TRANSPORTES, ETC.
SECRETARIAS POR ÁREA
GEOGRÁFICA: REGIÕES OU
DISTRITOS
MISSÃO DE CADA
SECRETARIA
REALIZAR AÇÕES E SERVIÇOS
DA COMPETÊNCIA DA
PREFEITURA ESPECÍFICOS DE
SUA ÁREA OU SETOR, NO
ÃMBITO DO MUNICÍPIO,
VISANDO CONTRIBUIR PARA
MELHORAR AS CONDIÇÕES DE
VIDA DA POPULAÇÃO
REALIZAR AÇÕES E SERVIÇOS DA
COMPETÊNCIA DA PREFEITURA,
VISANDO PROMOVER O
DESENVOLVIMENTO E A INCLUSÃO
SOCIAIS DA DA POPULAÇÃO DA
SUA ÁREA GEOGRAFICA
ORGANIZAÇÃO DO
TRABALHO
EQUIPES ESPECIALIZADAS
PARA PLANEJAR, REALIZAR E
AVALIAR AÇÕES E SERVIÇOS
ESPECÍFICOS, COM OBJETIVOS,
METAS E INDICADORES
SETORIAIS.
EQUIPES INTERSETORIAIS PARA
IDENTIFICAR
NECESSIDADES,DEMANDAS
DAPOPULAÇÃO, PLANEJAR,
ORIENTAR E AVALIAR AÇÕES
INTEGRADAS, COM A DEFINIÇAÕ
DE OBJETIVOS, METAS E
INDICADORES DE QUALIDADE DE
VIDA
EQUIPES ESPECIALIZADAS PARA
REALIZAR SERVIÇOS
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As chances desse modelo frente às velhas questões
Como as três questões identificadas anteriormente como modeladoras da estrutura tradicional
do poder executivo - as práticas de composição política para a formação do Secretariado; os poderes
dos funcionários públicos e das diferentes corporações e as práticas fragmentadoras das intervenções
especializadas - podem impactar ou serem impactadas pelo novo modelo?
Claro que serão fatores de resistência. Mas a reforma administrativa é, necessariamente, um
processo. E um processo supõe um movimento dialético entre o antigo e o novo, até que se tenha uma
realidade distinta da situação anterior e, provavelmente, também do modelo que pretende substituí-la.
É de todo provável que o jogo político através de alianças e acordos continue gerando o
"loteamento" do secretariado. Então, será que o fato das secretarias regionais de um município serem
comandadas por Secretários com projetos próprios e algo diferentes do projeto do governo municipal
reproduzirá simplesmente a situação anterior, de disputa e desarticulação? Ainda que isso ocorra, em
princípio poderá ser mais fácil perceber resultados negativos ou positivos nas regiões e a população
terá bem clara a identificação do responsável por esses resultados. Onde houver uma alguma tradição
de "accountability" ou de planejamento participativo é possível que a avaliação comparativa acabe por
reduzir as diferenças negativas. Além disso, uma secretaria regional está mais perto e, portanto, mais
permeável à influência da população e mesmo dos profissionais que prestam os serviços do que os
Secretários setoriais, com suas sedes mais próximas da cúpula do governo do que dos serviços e da
população.
As corporações provavelmente também continuarão na sua trajetória de resistência. Nesse
quadro ou encontrarão novos caminhos para reconquistar a legitimidade e a adesão da população ou
tenderão a ser definitivamente empurradas para fora do Estado, perdendo posições importantes para a
classe média.
É também provável que haja adesão, não de corporações, mas de muitos servidores públicos de
diferentes formações, principalmente aqueles envolvidos diretamente com a população e que podem
passar, com o novo modelo, a ver resultados mais positivos de seu trabalho.
Martins (1994:176) alerta que "o pior que pode acontecer a qualquer proposta de mudança é
ficar suspensa no ar como uma idéia incompreendida por aqueles que devem ser seus portadores, uma
intenção não compartilhada pelas vontades chamadas a realizá-las, em fim, um processo sem sujeito" .
A mudança não pode prescindir da participação criativa dos funcionários públicos.
Uma questão crucial, porém, é que o aparelho formador continua distanciado desse movimento. Como
criar, então, uma nova competência, um um olhar integrador, transdisciplinar, capaz de utilizar as
especifidades de conhecimento e formação? Como possibilitar que equipes intersetoriais mobilizem-se,
com a população, para identificação de suas necessidades, de forma de contemplá-las, na ação do
governo municipal, de maneira articulada, promovendo desenvolvimento social e superação de
situações de exclusão?
Será necessário envolver o aparelho formador, inclusive para criar competências para a regulação, e
não só para a prestação. É preciso formar gerentes sociais.
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Como afirma Kliksberg (1997:90), uma gerência pública conduzida pelo paradigma tradicional será
necessariamente impotente para responder com eficiência às novas demandas: "Estado inteligente,
realidade complexa, melhor qualidade dos serviços, atenção ao desenvolvimento humano."
Também é possível que o modelo intersetorial implique o aprofundamento da participação direta da
sociedade civil, um movimento articulado de devolução social, de modo a compartilhar a
responsabilidade pela definição de objetivos e a avaliação de resultados. Esse processo de construção é
também de aprendizagem e de determinação dos sujeitos, da sua consciência e dos seus direitos de
cidadão a uma vida de qualidade.
Para reverter a exclusão e promover o desenvolvimento social é preciso experimentar novas formas de
interação entre o Estado e a Sociedade, com "uma preocupação obsessiva com a universalização dos
serviços e das políticas públicas" (Cardoso, 1997: 31).
Referências
CARDOSO, Fernando Henrique
1997 As Razões do Presidente: Entrevista à Roberto Pompeu de Toledo,
Revista VEJA, 30(36), 22-33
JUNQUEIRA, INOJOSA e KOMATSU
1997 Descentralização e Intersetorialidade na Gestão Pública Municipal no
Brasil: A Experiência de Fortaleza, São Paulo (mimeo)
KLIKSBERG, Bernardo
1997 O desafio da Exclusão: para uma gestão social eficiente. São Paulo:
Fundap
MARTINS, Carlos Estevam
1994 Cinco puntos acerca de la modernización de la Administración Pública en
Brasil, Reforma y Democracia, Revista del Clad, 1
MASIGLIA,A S. Javier
1996 Temas e atores em um cenário de mudanças. Desenvolvimento e Gestão
Local, São Paulo:POLIS, p.63-78
NOGUEIRA, Marco Aurélio
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1997 Recursos Humanos e Reforma do Estado em Tempo de Mudanças (texto
para discussão) São Paulo: FUNDAP (mimeo)
POBLETE, L.F.Duque
1997 Reforma Administrativa Revista de Administração Pública 31(3), maio-jun.
p.133-190
11
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