RESPONSABILIDADE MÉDICA EMPRESARIAL E DA
EQUIPE CIRÚRGICA POR ERRO ANESTÉSICO
TOMÁS LIMA DE CARVALHO1
Em julgamento proferido no dia 22 de setembro de 2009, a Quarta Turma do Superior
Tribunal de Justiça (STJ), de forma não unânime, condenou o médico cirurgião e a clínica
médica a indenizar uma mulher que ficou em estado vegetativo após cirurgia estética mal
sucedida2. Segundo laudo pericial constante no processo, a complicação cirúrgica deveu-se à
imperícia do médico anestesista, afastando-se, pois, a responsabilidade do médico cirurgião.
Todavia, pelo referido julgamento, foi atribuída responsabilidade solidária ao médico
cirurgião e à clínica médica pelo insucesso da cirurgia decorrente do erro procedido pelo
profissional anestesista.
Segundo a Colenda Corte, existe uma relação de subordinação entre o cirurgião e os
demais integrantes da equipe, pois o médico é responsável por todos os atos dos profissionais
escolhidos por ele. Com relação à Clínica Médica, entendeu os i. Ministros tratar-se de
relação que também caracteriza culpa, já que esta é de propriedade do médico cirurgião.
Com efeito, a referida decisão proferida pela Quarta Turma do STJ modificou a decisão
da Justiça de 1ª Instância e do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que entenderam pela
impossibilidade de se atribuir qualquer responsabilidade ao médico cirurgião e à clínica
médica por erro procedido pelo médico anestesista.
Todavia, o entendimento manifestado pelo i. Superior Tribunal de Justiça merece ser
alvo de crítica, eis que atribuiu equivocadamente a responsabilidade pela reparação civil do
dano reclamado a quem não de direito, conforme se verá a seguir.
1
Mestrando em Direito Privado pela Universidade Fumec. Especialista (MBA) em Direito da Economia e da
Empresa pela Fundação Getúlio Vargas. Graduado em Direito pela Universidade Fumec. Professor das
Disciplinas Teoria Geral do Processo e Direito Processual Civil I da Faculdade Minas Gerais – FAMIG. ExProfessor de Direito Civil da Faculdade Minas Gerais – FAMIG. Advogado associado da banca Elcio Reis &
Advogados Associados, com atuação nas esferas consultiva e contenciosa das áreas de Direito Civil e Processual
Civil, Empresarial e Consumidor.
2
Recurso Especial nº. 605435/RJ. Disponível em <http://www.stj.jus.br/webstj/processo/Justica/detalhe.asp?
numreg=200301675641&pv=010000000000&tp=51>. Acesso em 09 de outubro de 2009.
Inicialmente, há que salientar tratar-se de fato incontestável nos autos do processo em
comento que as complicações cirúrgicas não ocorreram por atos ligados à cirurgia plástica,
mas sim, do específico procedimento anestésico.
Com efeito, a cirurgia plástica não pode ser vista como um ato único, diante das
crescentes especializações desenvolvidas na moderna ciência médica e o aprimoramento das
técnicas cirúrgicas, sendo inequívoca a divisão de tarefas entre os vários médicos que atuam
em determinada cirurgia. Assim, os integrantes da equipe médica, embora atuem em conjunto,
não devem, independentemente da verificação de culpa, responder solidariamente pelos danos
causados, os quais o foram, distintamente, por determinado profissional.
Ora, se atuam como profissionais autônomos, cada um em sua especialidade, a
responsabilidade decorrente do procedimento cirúrgico será individualizada, cada qual
respondendo pelos seus próprios atos, de acordo com as regras que disciplinam o nexo de
causalidade.3 Assim, a responsabilidade civil do médico, na qualidade de profissional liberal,
será apurada mediante a verificação da culpa, nos termos elencados no art. 14, §4º, do Código
de Proteção e Defesa do Consumidor (CDC), in verbis:
Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de
culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à
prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre
sua fruição e riscos.
(...)
§ 4° A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a
verificação de culpa.
Infere-se, pois, que a responsabilidade civil do médico cirurgião é subjetiva, ou
seja, impõe-se a necessidade não só da prova do dano, mas também, da conduta culposa do
profissional, seja por negligência, imperícia ou imprudência, sendo certo que a prova dessa
demonstração incumbe exclusivamente ao paciente, vítima do suposto incidente4.
No caso em análise, o médico anestesista foi contactado pelo cirurgião para compor a
equipe médica (não é seu preposto), sendo que não há qualquer informação que desabone a
vida profissional ou reputação daquele. Trata-se, pois, de profissional gabaritado.
Desta feita, se o médico cirurgião, ao escolher o médico anestesista, agiu com a cautela
devida, resta descaracterizado qualquer ato de precipitação, inoportunismo ou insensatez,
afastando-se, pois, a configuração de sua culpa. Isso porque ter-se-ia de conduta culposa tão
3
4
CAVALIERI FILHO, S. Programa de responsabilidade civil. 8. ed. rev. ampl. São Paulo: Atlas, 2008. P. 374.
“Constituindo o erro médico responsabilidade subjetiva, para justificar o dever de indenizar impõe-se a demonstração da
conduta ao menos culposa do agente, assim como o dano sofrido e o nexo que liga este àquela, numa relação de causa e
consequência”. (TJMG - Apelação Cível nº 2.0000.00.509.881-1/000, julg. 20/10/2005).
somente na hipótese de inobservância desse dever de cuidado em que, face às circunstâncias,
poderia e deveria ter agido de outro modo.
Assim, não se vislumbra a chamada culpa in eligendo, já que o profissional indicado o
foi com o maior critério (feito observando-se o dever de cuidado), muito embora naquele dia,
por infelicidade, tenha incidido em erro. Ademais, não há no processo qualquer conduta
perpetrada pelo médico cirurgião, no ato cirúrgico, concorrendo para o ocorrido, já que o erro
ocorreu quando da aplicação de anestesia, anteriormente à cirurgia.
Nesse diapasão, cumpre transcrever as palavras de Nelson Hungria, para quem:
O médico não tem carta branca, mas não pode comprimir a sua atividade dentro de
dogmas intratáveis. Não é ele infalível, e desde que agiu racionalmente, obediente aos
preceitos fundamentais da ciência, ou ainda que desviando-se deles, mas por motivos
plausíveis, não deve ser chamado a contas pela Justiça, se vem a ocorrer um acidente
funesto.5
Portanto, não ocorrendo erro durante o ato cirúrgico, ausente a responsabilidade do
médico cirurgião para responder pelos danos reclamados pela paciente lesada, eis que não
agiu com culpa, ou mesmo, concorreu para tanto (art. 14, §4º, CDC). Frise-se que em havendo
divisão do trabalho por equipes especializadas, o erro procedido exclusivamente pelo
anestesista, profissional gabaritado, engaja apenas para a responsabilidade deste pela lesão e
dano que venha a sofrer o paciente, excluindo-se os demais médicos.
Noutro giro, urge suscitar que a responsabilidade das clínicas médicas quanto aos
serviços médicos prestados é objetiva, ou seja, a apuração de sua responsabilidade independe
da verificação de culpa:
Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de
culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à
prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre
sua fruição e riscos.
§ 1° O serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o consumidor
dele pode esperar, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as
quais:
I - o modo de seu fornecimento;
II - o resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam;
III - a época em que foi fornecido.
§ 2º O serviço não é considerado defeituoso pela adoção de novas técnicas.
§ 3° O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar:
I - que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste;
II - a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.
5
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1981. P. 186.
Ademais, nos termos do art. 34 do Código de Defesa do Consumidor, as clínicas
médicas também são responsáveis pelos atos de seus prepostos (médicos) de maneira
solidária, ou seja, respondem juntamente com o profissional.
Todavia, muito embora se trate de responsabilidade objetiva e solidária, deve-se aferir,
para se configurar o dever de reparação civil, uma relação direta (nexo de causalidade) entre as
falhas apresentadas na prestação do serviço e o dano ocorrido, o que não se vislumbra neste caso.
Com efeito, inexiste qualquer conduta irregular perpetrada pela clínica médica, apta a
caracterizar o eventual vício na prestação do serviço. Além do mais, repise-se, o médico
anestesista fora contactado pelo médico cirurgião para compor a equipe médica, razão pela
qual não é empregado da clínica, não ostentando, pois, o status de preposto.
Assim sendo, ainda que tenha havido insucesso na cirurgia, não é possível apontar
qualquer defeito no serviço prestado pela clínica médica, o que afasta a responsabilidade
desta, conforme os termos do citado art. 14, §3º, I, do CDC. Frise-se que a atividade
hospitalar em análise não foi a causa do evento, mas apenas a sua ocasião, pelo que não pode
ser incluído entre os riscos do empreendimento.
Neste sentido, Sérgio Cavalieri Filho assim preleciona:
Não há dúvida que ao caso em exame aplica-se a disciplina do CDC e que a
responsabilidade do fornecedor é objetiva pelo fato do serviço (art. 14). Essa
responsabilidade, entretanto, embora objetiva, não é fundada no risco integral. O
defeito do serviço é o fato gerador dessa responsabilidade, é ele que desencadeia ou
detona a responsabilidade civil do fornecedor. Em razão disto, o CDC estabelece
causas excludentes previstas no §3º do referido art. 14 e, dentre elas, que tendo
prestado o serviço, o defeito inexiste.6
Portanto, embora objetiva a responsabilidade da clínica médica, impende ressaltar que é
indispensável a prova do nexo de causalidade entre eventual defeito na prestação de serviços
desta e o dano reclamado pela paciente, para que se possa atribuir à esta qualquer
responsabilidade civil e, consequentemente, o dever de indenizar.
Destarte, não havendo qualquer irregularidade em relação aos serviços prestados pela
clínica médica, aptos a caracterizar o eventual vício na prestação do serviço, bem como tendo
em vista que o médico anestesista fora contactado pelo médico cirurgião para compor a
equipe médica (não é empregado da clínica), inexiste uma relação direta entre as falhas
apresentadas na prestação do serviço e o dano ocorrido, razão pela qual também não se pode
atribuir qualquer dever de indenizar à clínica médica.
6
CAVALIERI FILHO, S. Programa de responsabilidade civil. 8. ed. rev. ampl. São Paulo: Atlas, 2008. P. 387.
Insta salutar esclarecer que soa equívoco atribuir a terceiros, sempre, como regra geral,
a responsabilidade civil pelos fatos ocorridos. A indenização (medida reparatória ou
compensatória) não se afigura como regra geral na responsabilidade civil; pelo contrário, é a
exceção.
No direito civil, assim como na legislação consumerista, a regra geral de
responsabilidade é a do “res perit domino”7, ou seja, incumbe à própria vítima, inicialmente,
arcar com os supostos prejuízos sofridos, salvo demonstração inequívoca, na conduta de
terceiros, de culpa, nexo de causalidade e dano.
Com relação ao julgamento ora em análise, como visto acima, não se verifica a
existência de culpa do médico cirurgião, ou mesmo, a existência de falhas na prestação do
serviço deste ou da clínica médica, afastando-se, assim, com relação a ambos, também o nexo
de causalidade, razão pela qual não há que imputá-los qualquer dever de indenizar.
7
A coisa perece para o dono.
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responsabilidade médica empresarial e da equipe