“O Ministério Público é o Benzovac da Polícia Judiciária”
Entrevista com Rodrigo Santiago
A afirmação é de Rodrigo Santiago, 57 anos, advogado em Coimbra, e
especialista em crime, conhecido pelo seu envolvimento em processos tão
mediáticos como o caso das fraudes da UGT ao Fundo Social Europeu, o caso
Moderna, o Vale e Azevedo o caso Casa Pia, critica os juristas em geral,
incluindo os da sua própria classe profissional. Por Isabel Braga
Este advogado com mais de 30 anos de profissão, critica de forma irónica,
sarcástica até, o mundo judicial e policial. Na sua opinião, os juízes e
os magistrados do Ministério Público, assim como os advogados, regem-se
por uma única lei, a do menor esforço. Quanto aos polícias, especialmente
da Polícia Judiciária, acusa-os de encararem a lei como um estorvo e de
se sentarem a ouvir escutas, em vez de investigar.
P. – Os problemas da justiça são antigos, em Portugal. O que se passa
para toda a gente falar agora de justiça?
R. – O que se passa entre nós, a meu ver, não tem a ver com as leis. As
nossas leis são muito boas, honram-nos em termos europeus. O que se passa
é que as pessoas não querem trabalhar. Juízes, magistrados do Ministério
Público (MP), advogados, todos acabam a licenciatura e ligam à terra.
Nunca mais compram um livro, nunca mais reflectem sobre nada, há uma
funcionalização geral. E em regra são pessoas razoavelmente remuneradas.
P. – Como consequência dessa lei do menor esforço…?
R. – … quando entram em vigor novas leis, as pessoas rejeitam-nas porque
não querem perder noites e fins de semana a estudá-las. A esmagadora
maioria dos juristas portugueses, magistrados judiciais, do MP e
advogados, nunca leu todo o Código do Processo Penal uma única vez, vai-o
lendo, à medida que é preciso estudar um instituto qualquer. Depois, é
claro, os resultados são maus, as pessoas tornam-se muito conservadoras.
P. – Sob esse aspecto distingue entre magistrados judiciais e do MP?
R. – Sou conhecido por não morrer de amores pelo MP. Por diversas razões.
Entendo que um juiz trabalha muito mais e tem mais responsabilidade que
um magistrado do MP, por isso, a equiparação total entre as duas
carreiras na prática gera os maiores constrangimentos, que não são
aparentes, mas ocultos. Parece que tudo funciona bem entre um juiz e o
procurador-adjunto que trabalha junto dele, mas na realidade não gostam
uns dos outros, o juiz entende que trabalha mais do que o MP e que devia
ser melhor remunerado, e o MP entende que não devia ser subalternizado em
relação ao juiz. Daí os constantes conflitos – ainda que tácitos - entre
eles.
P. – O que pensa da relação funcional entre o MP e as polícias?
R. – O MP é o grande responsável pelo estado a que chegámos com as
polícias. Ainda que se admita que o MP na prática não investigue nada,
dirige a investigação, em teoria. Mas é à polícia que compete investigar
– tem a informação, a técnica, a logística. A polícia melhorou,
seguramente, do ponto de vista intelectual, do ponto de vista moral tenho
as minhas dúvidas sobre a forma como actuam com os processos.
P. – O que quer dizer?
R. – A lei é um estorvo para a polícia. Ao MP caberia fiscalizar a a
actuação das polícias, o que não faz. O MP é o Benzovac da Polícia
Judiciaria (PJ). Quando a polícia deixa cair uma nódoa, faz uma asneira,
viola um direito fundamental, aparece o MP a correr, tenta apagar a nódoa
para o senhor agente da PJ que prevaricou volte a prevaricar com maior
impunidade ainda, se possível.
P. – Pode dar exemplos concretos dessa actuação?
R. – Não vale a pena, é assim mesmo, todos os dias, qualquer pessoa
percebe que é assim. Há uma relação quase militar entre o MP e a PJ, o MP
sente-se como que o chefe de uma tropa e todos sabemos que a primeira
regra de um militar é dar cobertura aos seus homens.
P. – E os advogados? Estão acima de críticas?
R. – Vamos lá a ver…somos todos iguais, andámos nas mesmas faculdades,
fomos juntos ao futebol e beber copos, fomos correligionários ou
adversários políticos, e, de um momento para o outro, os chamados
magistrados, juízes e Ministério Público, colocam-se num pedestal. Saem
do CEJ (Centro de Estudos Judiciários) e olham-nos com superioridade,
porque, alegadamente, são titulares de órgãos de soberania. Essa razão
não colhe, o juiz não é o órgão de soberania, o juiz não é o tribunal, é
o presidente do tribunal. Os magistrados saem do CEJ como que ungidos por
um sacramento qualquer. Sou fraco em sacramentos, mas não conheço nenhum
da “judicialite”. Com este “background cultural”, dá-lhes para a
arrogância. Um juiz nunca reconhece que erra.
P. – Está a isentar os advogados de criticas.
R. _ Não, mas não se pode dizer que os advogados são piores que os
juízes, são iguais. Vamos supor que, grosso modo, somos mil e os juízes
vinte e cinco vezes mais. Para cada juiz corrupto há vinte e cinco
advogados vigaristas, não há que fugir, justamente porque temos a mesma
origem social, a mesma educação, os mesmos valores.
P. – Não houve um abaixamento recente da qualidade moral dos advogados?
R. – Já havia advogados lastimáveis antes do 25 de Abril e continua a
haver. Continua a haver pessoas que não são sérias, continua a dispenderse muito dinheiro na formação dos advogados, até deontológica, mas há
pessoas a quem não há volta a dar, que não conseguem aguentar-se, por
mais aulas de deontologia que tenham recebido.
P. – Há uma justiça para ricos e outra para pobres?
R. – Penso que não, diz-se muitas vezes que os ricos são favorecidos
porque têm dinheiro para pagar aos melhores advogados...
P. – Falo também da intimidação que pode exercer sobre um tribunal um
arguido socialmente importante.
R. – É possível que haja alguma intimidação. Não é patente à vista
desarmada, mas torna-se patente nas sentenças.
P. – Também se fala na politização dos tribunais. Essa politização
existe?
R. - Penso que no passado isso foi muito evidente. Houve uma certa
politização do MP, que depois falhou…
P. – Refere-se a politização pelo PCP?
R. – Isso é sabido, mas falhou com o colapso a nível interno desse
partido…. A questão é esta, uma pessoa que seja do MP pode perseguir um
inimigo a vida inteira. Um juiz também, diga-se em abono da verdade, em
certos casos, mas deve pelo menos dar a noção da imparcialidade. Ao MP
basta que alegue que tem uma participação, uma denúncia, para investigar,
maçar… Foi seguramente essa a ideia que presidiu à partidarização do MP.
Mas isso acabou.
P. – Mas também se fala em politização de algumas secções de tribunais
superiores como o da Relação de Lisboa.
R. - No Tribunal da Relação ainda há homens e mulheres de 40 e tal, 50
anos, que viveram a partidarização do pós 25 de Abril. Mas não posso
falar do Tribunal da Relação de Lisboa, que não conheço bem, a minha vida
é em Coimbra, não tenho ninguém em Lisboa a angariar clientela para mim.
P. – Esteve envolvido no processo Casa Pia até Janeiro de 2004, como
advogado do embaixador Jorge Ritto. Conseguiu uma série de vitórias. O
que sucederia, se tivesse continuado?
R. – Não me fica bem dizer…. Não, não teria podido ficar até ao fim, a
esta hora estava a ir à sopa dos pobres. Vivo em Coimbra, tenho em
Coimbra o escritório e os clientes, não havia dinheiro para pagar a minha
permanência em Lisboa. Mas tenho ideia de que havia argumentos que não
foram explorados e estavam suscitados, e que podiam ter levado a anular a
acusação.
P. – Que argumentos?
R. – Questões relacionadas com a problemática do juiz natural. Tenho a
ideia de que tudo aquilo - quando o processo, na fase do inquérito,
começou por ser distribuído a um juiz, e esse juiz foi substituído pelo
Dr. Rui Teixeira - foram batotas que, se bem exploradas do ponto de vista
jurídico-processual, teriam conduzido a que o processo não chegasse à
fase do julgamento.
P. – O que pensa do ministro da Justiça, Alberto Costa?
R. – Penso que é uma pessoa com algumas dificuldades de relacionamento
com o poder. Como disse Marcelo Rebelo de Sousa na RTP, penso que ele foi
um erro de casting. Meteram-no numa alhada em relação às férias. Os
tribunais cada vez andam mais devagar. Isso agora é perfeitamente
notório. Há um ano atrás, eu recebia em média, por dia, um número de
notificações que eram o dobro das que recebo agora. Das duas uma, ou os
juízes despacham menos ou despacham o mesmo e os funcionários não
cumprem. Antes despachava-se desalmadamente nos tribunais até à Páscoa.
Hoje não me parece que seja assim.
P. – Que mudanças faria na justiça? Está na forja a revisão do Código de
Processo Penal.
R. – O CPP precisa de uma revisão total, a ponto de quase não ficar pedra
sobre pedra, no que respeita aos recursos. É a pior parte do diploma. Uma
parte remonta à versão original de 1987, depois houve modificações em
1998 e 2000. O resultado hoje é uma manta de retalhos. Havia necessidade
de repensar tudo aquilo e criar um sistema que confira segurança àqueles
que trabalham nos tribunais. As escutas também necessitam de revisão.
P. - Há demasiado garantismo?
R. - O garantismo nunca é em demasia. Só pode entender que há demasiado
garantismo quem entende que a lei é um estorvo. Se a lei é um estorvo,
acabe-se com a lei. Se não, cumpra-se a lei. Não consigo compreender que
haja uma democracia – e essa é a prova provada que não vivemos ainda em
democracia, é um problema complicado, são precisas gerações… Sabemos o
que se passa em Inglaterra, a democracia existe há muitos anos enraizada
e do ponto de vista do garantismo as coisas não são melhores do que cá,
até poderão ser piores. A Inglaterra está longe de ser um bom exemplo das
actuações policiais. Isso é algo que exige um enraizamento quase
genético.
P. – Se não se vive em democracia em Inglaterra, onde é que se vive?
R. – Em países onde as coisas funcionam bem. Na Nova Zelândia…
P. – Na Nova Zelândia!!!
R. – Sim, estamos a falar dos antípodas de Portugal.
Leia também
Graças às escutas, os polícias “estão sentados” e “não investigam”
http://www.publico.clix.pt/docs/nacional/caixa1.pdf
A investigação do processo Casa Pia não primou nem pela linearidade nem
pelo brilho
http://www.publico.clix.pt/docs/nacional/caixa2.pdf
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