O carácter indexical dos termos para espécies naturais
O argumento da Terra Gémea, desenvolvido por Hilary Putnam no
seu célebre ensaio The meaning of ‘Meaning’, pretende refutar a tese
descritivista segundo a qual a referência dos termos é fixada através de
conceitos ou estados mentais individuais. Essa rejeição do descritivismo
resulta de dois aspectos fundamentais acerca da forma como a referência
dos termos (em particular dos termos para espécies naturais) é fixada:
- A referência é, em geral, fixada socialmente (como resultado
da divisão do trabalho linguístico, que parecendo ser uma característica
universal, revela uma cooperação estruturada entre a globalidade dos
falantes
e
subconjuntos
específicos
de
falantes
que
detém
o
conhecimento identificativo dos objectos pertencentes à extensão de
um termo)
- E é, em parte, determinada indexicalmente.
É neste segundo aspecto que nos vamos aqui deter. A discussão que
revela o carácter indexical dos termos que denotam espécies ou tipos
naturais toma como ponto de partida toda a reflexão desenvolvida por
Kripke acerca da noção de “mundos possíveis”, que é aqui tomada como
primitiva. Assim sendo, consideremos o caso de uma definição ostensiva de
um termo como “água” e reconstrua-se o argumento da Terra Gémea
pensando agora em termos de mundos possíveis à maneira de Kripke.
Imaginemos, então, dois mundos possíveis, M1 e M2, nos quais eu existo,
um certo copo cheio existe e nos quais eu pretendo dar uma definição
ostensiva de “água” apontando para esse copo. A diferença entre esses dois
mundos é que, em M1, o copo está cheio de um líquido cuja composição
química é H2O (e que é a substância a que tipicamente se chama “água” em
1
M1) e, em M2, o copo está cheio de um líquido cuja composição química é
XYZ (que é a substância a que tipicamente se chama “água” em M2).
Segundo Putnam, há duas teorias distintas que dão conta do sentido
do termo “água” nesta situação:
1.
Uma
que
entende
que
o
termo
tem
um
sentido
constante, mas que a sua extensão é relativa ao mundo em questão.
“Água” significa o mesmo em M1 e em M2, mas em M1 refere H20 e
em M2 refere XYZ.
2.
Outra para a qual “Água” é H2O em todos os mundos
possíveis, pelo que, em M2, aquilo que é designado por “água” não é,
de facto, água. O termo não tem o mesmo sentido em M1 e em M2.
O argumento da Terra Gémea havia já conduzido Putnam a concluir
que a extensão de um termo é fixada pela comunidade linguística e a
propôr a uma definição ostensiva dos termos para tipos naturais (como
“água”) aliada a um pressuposto empírico: quando aponto para uma porção
de água e afirmo “Isto é água”, pressuponho que essa porção mantenha
uma certa relação de igualdade com a maior parte daquilo a que a minha
comunidade linguística chama noutras ocasiões “água”.1 Esta definição
ostensiva pode então funcionar como condição necessária e suficiente para
que algo seja reconhecido como pertencente à extensão do termo “água”,
uma vez que os casos de erro ficam salvaguardados pelo pressuposto
empírico enunciado: que se trate da mesma substância designada pela
comunidade linguística como “água”. De acordo com isto, a teoria 2. é a
teoria correcta. Aquilo que “água” refere é aquilo que refere no mundo
actual, aquilo que preenche o requisito de ser o mesmo líquido que a
comunidade linguística a que o falante pertence identifica como água. Se
assim é, aquilo que a água necessariamente é, é H20, uma vez que é essa a
substância que no mundo actual é referida pelo termo água. Quando afirmo
“Isto é água”, o “isto” deve ser entendido de re, como diz Putnam.
A diferença entre as teorias 1. e 2. pode ser interpretada em termos
simbólicos, como uma diferença de âmbito, isto é, em 1. “isto” é entendido
como representável por meio de uma variável ligada, enquanto em 2. “isto”
se deixa representar através de uma constante individual. Em 1., água é
1
Putnam, Hilary, The Meaning of ‘Meaning’, in Mind Language and Reality , Cambridge University
Press, p.225
2
aquilo que satisfaz a condição de ser o mesmo líquido que a entidade
referida por “isto” no mundo possível em causa. Em 2. água corresponde
àquilo que satisfaz a condição de ser o mesmo líquido que a entidade
referida por “isto” no mundo actual, qualquer que seja o mundo em causa.
A adesão à tese 2. consiste numa extensão da noção de designação
rígida desenvolvida por Kripke a termos para espécies naturais. Pode dizerse que o termo “água” é rígido:
“A rigidez do termo “água” segue-se do facto de que, quando eu dou
a definição ostensiva “este (líquido) é água” eu pretendo dizer 2. e não 1.”2
A tese kripkeana da rigidez tem consequências imediatas importantes
para a teoria da verdade necessária, já notadas pelo próprio Kripke e que
Putnam salienta nos seguintes termos
Tendo em conta a teoria do sentido adoptada, consideremos dois
líquidos L1 e L2, existentes respectivamente no mundo M1 e M2 . L1 tem as
mesmas características e M1 que L2 tem em M2, ou seja entre eles há uma
relação de identidade. L1 é o mesmo líquido que L2. Se L1 for a água no
mundo actual, L2 só será água se fôr idêntico àquilo que L1 é no mundo
actual. Mas por idêntico entende-se aqui, realmente idêntico, isto é, com as
mesmas características físicas esssenciais.
Se assim é, e transpondo de novo o exemplo para o caso da Terra
Gémea, se a composição química da água fosse desconhecida e a “água
gémea”
pudesse
satisfazer
uma
definição
operacional
de
água
(corresponder às características superficiais normais da água), isso não
faria da “água gémea” “água”. Mesmo sem que ninguém o saiba, as
características dos dois líquidos não são as mesmas. Não são o mesmo
líquido. Num mundo possível idêntico à Terra Gémea, ainda que o líquido
“gémeo” passe o teste operacional, será sempre diferente do líquido
terrestre. A Terra Gémea é um mundo possível onde se bebe e se nada em
XYZ, mas não um mundo no qual a água seja XYZ. Não há mundos
possíveis nos quai a água seja diferente de H2O, porque essa é a natureza
química
da
água,
é
aquilo
que
ela
é
necessariamente.
É
uma
impossibilidade lógica que XYZ seja água. Trata-se de uma necessidade
metafísica.
2
Ibidem, p.231
3
Termos como “água” ou outros termos que designem substâncias
naturais veêm então o seu significado ser definido à custa daquilo que elas
são, à custa da sua natureza. Se não podem ser senão aquilo que são no
mundo actual (em qualquer mundo possível, se existem, existem como são
de facto no mundo actual), o sentido destes termos está sempre indexado
ao contexto do mundo real. Aquilo que estes termos designam em mundos
possíveis é o mesmo que designam neste contexto específico que é o
mundo actual. Por isso se diz deles que têm um carácter indexical.
Os termos indexicais são termos cujo sentido é determinado pelo
contexto extra-linguístico em que são usados. A sua referência varia de
contexto para contexto, como acontece no caso de expressões indexicais
típicas como “eu”, “ali” ou “isto” cujo valor semântico resulta do contexto
específico no qual ocorrem.
No caso dos termos para espécies naturais há um traço de
indexicalidade subtil que, segundo Putnam, passa despercebido, mas do
qual não resulta que os possamos classificar como termos indexicais. O
sentido destes termos é determinado por um contexto específico de uso: o
do mundo actual. É esta substância composta por moléculas constituídas
por dois átomos de hidrogénio e um de oxigénio que constituí a referência
do termo “água”. O sentido do termo “água”, em qualquer circunstância
particular na qual o termo seja usado, é definido por recurso ao nosso
contexto específico:
“A água em qualquer outro momento ou outro lugar ou até num
outro mundo possível tem de manter a relação o mesmoL [ser o mesmo
líquido que] com a nossa “água” para poder ser água”3
Note-se que é importante ressalvar que não estamos perante o caso
de palavras absolutamente indexicais, cuja referência é variável de contexto
para contexto (como por exemplo “eu” que refere pessoas diferentes
consoante é dito por pessoas diferentes). A razão pela qual se diz que a
referência de um termo como “água” é em parte fixada indexicalmente é
porque ela é relativizada a um contexto de uso específico, o do mundo
actual. Mas é fixada por ele, não varia consoante é usada noutros
contextos.
3
Ibidem , p.234
4
Deste aspecto indexical dos termos para espécies naturais resulta a
falsificação do modelo descritivista que consiste na conjunção das duas
seguintes teses:
- As palavras têm intensões, que consistem em algo como os
conceitos que os falantes associam às palavras.
- É a intensão que determina a extensão (de modo que, diferentes
extensões implicam intensões diferentes)
Isto porque a intensão associada à palavra “água” pelo falante da
Terra e pelo falante da Terra Gémea é seguramente a mesma. Mas a
extensão do termo não é, porque é fixada indexicalmente: água é esta
água, H2O. Deste modo, pelo menos uma das teses descritivistas é falsa:
- Se mantemos a ideia de que “água” tem o mesmo sentido na
linguagem usada na Terra e na linguagem usada na Terra Gémea, mas
extensões diferentes (H20 na Terra e XYZ na Terra Gémea), somos forçados
a abandonar a ideia de que o sentido (enquanto intensão) determina a
extensão.
-
Se aceitamos que uma diferença de extensões implica uma
diferença de sentido (intensões), abdicamos da ideia de que os sentidos são
conceitos ou entidades mentais de qualquer espécie.
O aspecto indexical envolvido na fixação da referência dos termos
para espécies naturais, além de refutar a teoria clássica do sentido, exprime
também um ponto de vista realista, fundamental para a compreensão da
teoria externalista do sentido desenvolvida por Putnam.
Segundo ele, as pessoas tendem a ser, relativamente às suas
intuições, ou fortemente realistas, ou fortemente anti-realistas. Assim,
regressemos de novo à Terra Gémea e consideremos a seguine situação:
um copo cheio de XYZ, em 1750, época na qual a composição química da
água era desconhecida. Esse copo, nessa altura, seria perfeitamente
indistinguível de um copo de água. Relativamente a um cenário como este,
Putnam não tem dúvidas, como constatámos, de que ainda que o copo em
causa fosse erradamente tomado por água, não era de facto um copo de
água. A substância XYZ não fazia parte da extensão do termo “água” ainda
que não se distinguisse da substância H20. Mas há uma tendência para
5
considerar que, uma vez que o líquido em causa satisfaria uma definição
operacional de “água” naquela época, fazia então parte da extensão do
termo “água”, embora actualmente já não faça. Note-se que este tipo de
interpretação
é
acompanhado
por
um
certo
grau
de
cepticismo
relativamente à verdade, posição que Putnam não partilha. Aquilo que
importa para determinar a extensão do termo “água” é aquilo que a
substância realmente é, as propriedades essenciais da água, sejam elas
conhecidas ou desconhecidas, e não as qualidades superficiais que
satisfazem
definições
operacionais,
mas
que
não
correspondem
à
verdadeira natureza da água. Aquilo que a água é, a sua estrutura interna,
é o factor determinante para a determinação da extensão do termo “água”.
Aquilo que o termo “água” refere é aquilo que a água é de facto, como
entidade independente do nosso conhecimento, extra-teórica.
Para Putnam, as noções de verdade e extensão estão intrinsecamente
ligadas. A extensão corresponde ao conjunto de coisas cerca das quais o
termo é verdadeiro. Daí que a evolução da ciência e do conhecimento
acerca do mundo permita fixar com um rigor cada vez maior a referência
das palavras que usamos. A sua proposta conduz-nos a uma concepção da
linguagem como ferramenta que evolui no sentido de uma progressiva
aproximação relativamente ao mundo e àquilo que é verdadeiro sobre ele.
Ana Sofia Soares
Seminário de Orientação II
Mestrado em Filosofia
Área de especialização em Filosofia Analítica
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