De Taunay a Nava: grandes memorialistas da literatura brasileira
Prof. Dr. Paulo BUNGART NETO (UFGD)
RESUMO: O trabalho apresenta um panorama da produção de alguns dos principais
memorialistas brasileiros, de românticos de fins do século XIX tais como Visconde de
Taunay, Joaquim Nabuco e José de Alencar, até os modernistas da primeira metade do século
XX (Oswald de Andrade, Manuel Bandeira, José Lins do Rego, Erico Veríssimo, Murilo
Mendes e Pedro Nava, dentre outros). Pretende-se demonstrar também de que maneira o
gênero memorialístico aparece bem representado na atividade literária de escritores sul-matogrossenses como Otávio Gonçalves Gomes, Ulisses Serra, Elpídio Reis e Manoel de Barros,
através de crônicas, poemas, autobiografias e volumes de memórias que retratam, além da
vida pessoal de seus autores, a inserção cultural e identitária do Mato Grosso do Sul como
nova realidade fronteiriça.
PALAVRAS-CHAVE: literatura brasileira, memórias, memorialismo modernista
Introdução
A produção memorialística é fenômeno relativamente recente na literatura brasileira.
Se as crônicas e os registros históricos se iniciam já em 1500, com a Carta de Pero Vaz de
Caminha ao rei D. Manuel, e a poesia e o teatro brasileiros, com os poemas e autos de José de
Anchieta, as primeiras obras do gênero memorialístico, entre nós, surgem apenas durante o
Romantismo, no final do século XIX.
Apesar de recentes, as obras autobiográficas e de memórias alcançaram, em apenas
dois séculos de existência, um alto nível de realização formal e sobretudo estética, sendo
muito bem representada por grandes escritores como Erico Veríssimo, Manuel Bandeira, José
Lins do Rego e Graciliano Ramos. Ninguém menos que Graciliano Ramos e suas
assombrosas, cruéis e sinceras Memórias do cárcere.
O memorialismo brasileiro já deixou registrados o pavor e as atrocidades de uma
guerra absurda (as Memórias, de Visconde de Taunay, sobre a Guerra do Paraguai ou Guerra
da Tríplice Aliança), o ambiente inescrupulosamente pecaminoso dos internatos masculinos
(tema das obras Balão cativo e Chão de ferro, de Pedro Nava, e do romance autobiográfico O
Ateneu, de Raul Pompéia). Por falar em romance, simultaneamente ao início da prática
regular de escrita memorialista por parte dos ficcionistas românticos, é através de um
romance de “memórias” (as Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis,
publicadas em 1881) que a escola realista se impõe em nossas terras. Quase trinta anos
depois, Machado ainda traz à lume o Memorial de Aires (1908), escrito na forma de diário
pelo diplomata aposentado, o Conselheiro Aires. Além disso, é preciso evocar as lúdicas
Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio
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de Almeida, um dos primeiros romances escritos no Brasil, publicado originalmente em
folhetim, como suplemento do Correio Mercantil, entre junho de 1852 e julho de 1853.
O Romantismo é, portanto, a primeira escola literária brasileira a produzir (bons e, às
vezes, ótimos) textos de cunho memorialístico, como as obras Como e por que sou
romancista, de José de Alencar; Minha vida: da infância à mocidade e o sugestivo Quando
eu era vivo, de José Joaquim Medeiros e Albuquerque; e, sobretudo, as Memórias do
Visconde de Taunay, sobre as quais me deterei um pouco mais adiante.
Antes do boom do memorialismo no Modernismo brasileiro, consequência natural do
impacto sofrido com a leitura do romance Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust que,
como veremos, “comandou a cena” da literatura autobiográfica nacional, lida e digerida, no
mais das vezes, diretamente no original francês, antes disso, dizia, é preciso evocar a obra de
Lima Barreto, sobretudo o romance Recordações do escrivão Isaías Caminha e sua obra
memorialística O cemitério dos vivos, ambas as obras repletas de confissões de traumas,
dependências químicas e dificuldades de inserção social e profissional. Rotuladas como “prémodernistas”, as obras de Lima Barreto antecipam muitas das técnicas modernistas, abrindo
caminho para a consolidação de uma tradição confessional que marcou grande parte da
literatura brasileira do século XX.
Romantismo brasileiro: escola pioneira na crítica literária e no memorialismo
A grosso modo, sabe-se que até o século XIX a literatura brasileira era composta
apenas por cartas, relatos de viagem, sermões e poemas épicos e líricos. Em poucas palavras,
literatura informativa, literatura catequética e uns laivos de lirismo e individualismo,
principalmente no Barroco de Gregório de Matos e no Arcadismo de Tomás Antônio
Gonzaga e Cláudio Manuel da Costa.
A partir do Romantismo, há um salto qualitativo em nossa literatura: na poesia,
surgem a lírica nacionalista do “exilado” Gonçalves Dias, o universalismo angustiante de
Álvares de Azevedo e o apelo social de revolta contra a escravidão de Castro Alves; no
teatro, a dramaturgia de Martins Pena; no romance, atinge-se um alto nível de realização
estética através de obras como Helena, de Machado de Assis, O cabeleira, de Franklin
Távora, Inocência, de Visconde de Taunay, e sobretudo de obras paradigmáticas de José de
Alencar como Iracema, Senhora e O guarani, por exemplo.
Tal salto qualitativo não se restringe à “evolução” da produção ficcional em verso e
prosa. É durante o Romantismo que aparece pela primeira vez certa consciência nacional e a
vontade de fazer uma literatura realmente brasileira, voltada para a discussão de aspectos
concernentes à identidade coletiva de nossa nação. Como consequência, o surgimento e a
consolidação da primeira geração de críticos literários, do porte de Sílvio Romero, José
Veríssimo e Araripe Jr.
Essa busca pioneira por uma espécie de autonomia cultural, por menor que fosse,
refletiu diretamente na elaboração estética dos escritores românticos que, ao lado do esforço
de compreensão ideológica de nossa identidade mais complexa e profunda, voltaram-se
também para a tentativa de entendimento individual de seu papel como intelectuais e como
seres humanos, o que resultou no início da atividade memorialista
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entre nós, a exemplo dos já citados Como e por que sou romancista, de Alencar, e Quando eu
era vivo, de Medeiros e Albuquerque.
O maior exemplo de que o memorialismo romântico brasileiro procurou conciliar vida
privada (recordações de infância) e pública (atuação política) é a obra Minha formação, do
abolicionista e monarquista Joaquim Nabuco, publicado na íntegra em 1900. Em meio a
lembranças de infância, dos colégios nos quais estudou e das viagens feitas à Europa, Nabuco
discute relações de poder e toma a defesa da Constituição Inglesa de Bagehot (fins do século
XIX), que o levou a optar pelo sistema monárquico. A intenção do memorialista é bem
sintetizada no texto da orelha da edição de 1997, da Editora Edelbra:
As necessidades de sua pátria, convergindo do Império para a República,
passando pela campanha difícil da abolição da escravatura, foram o único
norte a orientar as intenções de seu texto. Sua linguagem, entretanto,
atendeu aos apelos de uma certa emoção lírica, e a musicalidade da frase,
discreta porém audível, entregou-se na docilidade do entendimento sem
asperezas, exibiu-se amiga, generosa, comunicante e ao mesmo tempo plena
de sugestões (1997).
No entanto, a despeito da importância da obra de Joaquim Nabuco, a grande obra do
gênero no Romantismo brasileiro são as Memórias do também monarquista Visconde de
Taunay. Apesar de semelhante posição política e privilégios de classe, as obras são bem
diferentes, sendo a de Taunay de estilo bem mais leve e informal, focada na visão pessoal dos
acontecimentos da vida do autor, e não em questões políticas. O que não o impede de retratar
a intimidade da família imperial brasileira, com quem conviveu de perto devido à amizade de
seu pai com o Imperador D. Pedro II, e de ridicularizar a então proclamada república (suas
Memórias foram escritas entre 1890 e 1899, ano de sua morte) através da referência irônica a
nossa bandeira:
Ao povo pouco se lhe deu. Preferiu continuar bestializado conforme se
mostrou na frase de Aristides Lobo, por ocasião do levante de 15 de
novembro de 1889 (...) que derrubou as organizações monárquicas,
interrompeu a marcha ascensional do Brasil e o fez retrogradar cem anos na
senda do progresso e da ordem, apesar de todas as afirmações da bandeira
pseudocientífica da faixa e bola, casando as disparatadas cores verde,
amarela e azul. (...) O pavilhão imperial não era, decerto, harmonioso... Se
ao menos tivessem os republicanos aproveitado o ensejo para nos dar
bandeira mais bem organizada? Qual! Agravaram o feio (TAUNAY, 2004,
p. 222).
Três quintos das Memórias de Taunay retratam sua participação na Guerra do
Paraguai, acompanhando, como engenheiro militar, as tropas que partiram de Santos para o
sangrento conflito. O fato de ser monarquista não o faz se esquivar de criticar a estratégia de
guerra do governo imperial, denunciando a falta de planejamento e de visão de quem vê o
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combate de seu “gabinete” e não conhece o sertão brasileiro: “Todos os planos que partiam
do Rio de Janeiro eram errados e só patenteavam a incompetência dos que os formularam e o
absoluto desconhecimento das vastíssimas regiões em que havia sido abandonada aos azares
da sorte a nossa triste e resumida coluna” (TAUNAY, 2004, p. 193). Por ser paisagista e
gostar de desenho, herança do pai e do avô, durante as horas de ociosidade da tropa, Taunay
se dedicava a ilustrar as paisagens com as quais tomava contato no interior do Mato Grosso,
hoje Mato Grosso do Sul, fato que confere maior realismo e exatidão a seu relato. Assim, lêse, por exemplo, no capítulo 22 da Terceira Parte (2004, p. 207-209), o quanto o memorialista
aproveitou as pausas relacionadas ao avanço e recuo das tropas para se dedicar ao estudo da
fauna e da flora da região, chegando a deter-se na observação de formigas e outros insetos.
No capítulo 13 dessa mesma Terceira Parte da obra, Taunay já confessara seu interesse
singular e isolado:
Com a educação artística que recebera de meu pai, acostumado desde
pequeno a vê-lo extasiar-se diante dos esplendores da natureza brasileira,
era eu o único dentre os companheiros, e portanto de toda a força
expedicionária, que ia olhando para os encantos dos grandes quadros
naturais e lhes dando o devido apreço. Como achei majestoso o Rio Grande,
divisa de São Paulo e Minas, o copioso contingente do Paraná! (TAUNAY,
2004, p. 179).
O episódio mais singelo e curioso descrito nas Memórias do Visconde de Taunay é o
que envolve a compra de uma índia da tribo chooronó, da nação Chané, chamada Antônia.
Tratando diretamente com o pai da índia, Taunay fecha o “negócio” recebendo a moça em
troca de “um saco de feijão, outro de milho, dois alqueires de arroz, uma vaca para corte e um
boi de montaria” (TAUNAY, 2004, p. 270). O desfecho da história é igualmente curioso e
praticamente absurdo: impedida de seguir com as tropas, Antônia, mesmo tendo sido
“vendida”, é obrigada a permanecer em sua tribo, o que motiva Taunay a, algumas semanas
depois, tomar uma atitude intempestiva e adolescente para com ela se encontrar, solicitando
dispensa da tropa por um dia e se aventurando, sozinho, em terras inóspitas para cumprir, a
cavalo, um longo trajeto entre o acampamento das tropas e o tribo da índia. Taunay fica com
a índia por algumas horas e retorna ao acampamento, lá chegando exausto e febril. A
desumanidade da compra é, assim, em parte compensada pelo lirismo da aventura. Taunay
deixa novamente a índia na tribo e nunca mais a vê, mas deixa eternizado em suas memórias
um belo depoimento em sua homenagem, ele que conhecera belas mulheres no Rio de Janeiro
e em Paris:
Não me olvidei, certamente, jamais, dessa graciosa criatura, e nisso cumpri
a palavra; mas nunca mais lhe pus os olhos em cima. Sei, porém, que não foi
de todo infeliz. Casou-se com um alferes e teve dois filhos. Enviuvando,
tornou a casar, creio que com um oficial também. Vive hoje em Corumbá ou
Cuiabá e deve ter quarenta e dois anos, o que significa que há de estar velha
e feia mêmê, pois as índias cedo, muito cedo, perdem todos os encantos e
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regalias da mocidade. (...) Pobrezinha da Antônia! Em mim deixou
indestrutível lembrança de frescor, graça e elegância, sentimento que jamais
as filhas da civilização, com todo o realce do luxo e da arte, poderão destruir
nem desprestigiar! (TAUNAY, 2004, p. 296).
Memorialismo modernista no Brasil: antes e depois de Proust
O memorialismo modernista brasileiro sofreu obviamente um grande impacto no
início do século XX devido à publicação da obra A la recherche du temps perdu, de Marcel
Proust, nas décadas de 1920 e 1930. Lida em geral no original em francês (pois só foi
publicada em edição brasileira a partir do final da década de 1940, pela Editora Globo de
Porto Alegre), a história de Marcel, a da lembrança involuntária a partir do bolinho molhado
no chá, repercutiu, direta ou indiretamente, com maior ou menor intensidade, nas obras
memorialísticas da literatura brasileira, que surgiram em profusão. Sem preocupação explícita
de referir a data (à qual generalizo em torno de obras publicadas entre as décadas de 30 e 80),
cito alguns exemplos, para ficar apenas dentre os autores mais canônicos: Itinerário de
Pásargada, de Manuel Bandeira; Um homem sem profissão: Sob as ordens de mamãe, de
Oswald de Andrade; Meus verdes anos, de José Lins do Rego; Solo de clarineta, de Erico
Veríssimo; A idade do serrote, de Murilo Mendes; Viagem no tempo e no espaço, de
Cassiano Ricardo; Infância e Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos; A menina do
sobrado e Explorações no tempo, de Cyro dos Anjos; e Memórias de um pobre homem, de
Dyonelio Machado. Isso apenas em termos de grandes poetas e ficcionistas que deixaram
memória ou autobiografia em prosa. Sem falar nos casos de memorialismo poético (como nas
obras Boitempo, de Carlos Drummond de Andrade, e Memórias inventadas, de Manoel de
Barros), de intelectuais que, não se notabilizando como ficcionistas, escreveram obras
essenciais no gênero, como o jornalista Fernando Gabeira (O que é isso, companheiro?) e os
críticos literários Augusto Meyer (Segredos da infância e No tempo da flor), Gilberto Amado
(História da minha infância); Agripino Grieco (Memórias, em vários volumes), Tristão de
Athayde (Memórias improvisadas), Carlos Dantes de Moraes (Um solitário à procura da
vida – Fragmento de autobiografia) e Silviano Santiago (O falso mentiroso) e do caso mais
paradigmático e assombroso da memorialística brasileira, a obra, em sete volumes (publicada
entre o início das décadas de 1970 e de 1980), de Pedro Nava, médico reumatologista, poeta
bissexto e frequentador assíduo das rodas literárias belo-horizontinas na companhia de
Drummond, Emílio Moura, Rodrigo de Melo e Franco, etc.
Como se pode perceber, o memorialismo brasileiro no século XX é vastíssimo, para
ficarmos apenas nos exemplos citados acima. A grande maioria de inspiração proustiana, no
apelo aos sentidos e na evocação de lembranças de um tempo e de um espaço perdidos.
“Voltar”... “voltar enquanto é tempo à manhã” de nossas vidas, escreveria com amargura e
melancolia Augusto Meyer em 1949, em Segredos da infância. É tarefa praticamente
impossível tentar sintetizar tantas obras em tão pouco espaço. Em comum, a confissão de
“tabus” da infância e da adolescência (masturbação, perda da virgindade, sexo com animais,
o primeiro cigarro, a primeira prostituta, etc) e o despertar do interesse cultural e literário
(livros, cinema, teatros, bares, restaurantes),
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isto é, a tentativa de entender a vida pessoal e comunitária a partir da realidade brasileira do
século XX, século das guerras mundiais, da ditadura militar na maioria dos países da América
do Sul, da guerra fria e da polarização do mundo entre capitalismo e socialismo. Como não
há espaço para comentar todos, passo a resumir os mais representativos.
À exceção de O que é isso, companheiro?, de Gabeira, e das Memórias do cárcere, de
Graciliano Ramos, depoimentos históricos de momentos precisos da história do Brasil (o
primeiro, do sequestro do embaixador americano Charles Burke Elbrick, em 1969, e o
segundo, a respeito da prisão do escritor alagoano durante o Estado Novo de Getúlio Vargas,
em 1937), todos os demais se compõem do relato de episódios marcantes da infância e/ou da
adolescência de seus autores.
Comento brevemente alguns deles, para fornecer um panorama das principais
características do memorialismo modernista brasileiro, de claro influxo proustiano, sobretudo
nas recordações de Augusto Meyer, Pedro Nava e José Lins do Rego. A obra deste último,
então, Meus verdes anos, aproxima-se de Proust não somente no estilo e nos temas, mas até
mesmo nas coincidências biográficas, dolorosamente confessadas: a saúde frágil, a asma, os
mimos dos pais “aristocráticos”, a descoberta do sexo por vias “outras” (em Proust, a
descrição sobretudo do homossexualismo feminino, mas também masculino; em Lins do
Rego, a descrição do sexo com prostitutas e com animais).
Mas nem todas as recordações da memorialística brasileira são proustianamente
nostálgicas. Em alguns casos, são “freudianas”, no sentido de se valer das memórias para
confessar (e tentar se livrar) de traumas da infância. Refiro-me a Graciliano Ramos e suas
tristes e amarguradas obras Infância e as já citadas Memórias do cárcere (1953). Publicada
em 1945, Infância se compõe do traumático relato dos maus tratos sofridos por Graciliano,
em sua infância, durante o processo de alfabetização. Seu pai, a duras penas, ensinava ao
menino o abecedário de palmatória em punho, à espera de qualquer deslize. Após a leitura da
obra, fica em todos nós um aflito questionamento: como um garoto tão torturado e humilhado
conseguiu se tornar um dos maiores escritores do século XX? Por mais cruel que pareça,
Infância é uma prova cabal de que a literatura possibilita a superação de imensos traumas,
feridas só cicatrizadas através da confissão memorialística.
Em Itinerário de Pasárgada (1954), Manuel Bandeira revela ao leitor recordações
pessoais entremeadas a lembranças relacionadas a seu despertar poético e ao aprendizado da
versificação, além de seus primeiros interesses por leitura, de sua passagem por sanatórios do
estado de São Paulo e da Suíça para se curar de tuberculose e de sua convivência com poetas
e escritores de sua geração.
No mesmo ano de 1954, instado por Antonio Candido a escrever suas memórias,
Oswald de Andrade publica Um homem sem profissão: Sob as ordens de mamãe, único
volume memorialístico de um projeto que conteria, no total, quatro obras (as outras intitularse-iam: O salão e a selva, a respeito de sua participação no movimento modernista; O solo
das catacumbas, sobre sua experiência política; e Para lá do trapézio sem rede, sobre a
metade final de sua vida). Infelizmente, Oswald não viveu tempo suficiente para completar
seu projeto memorialístico, e sua coleção de recordações se limita portanto a esse primeiro
volume, no qual relata sua infância,
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adolescência, viagens ao Rio e à Europa e algumas de suas experiências amorosas. O
primeiro episódio evocado remete aos seus três anos de idade e possui óbvias conotações
sexuais, relacionado à lembrança de sua primeira masturbação:
A mais longínqua lembrança que tenho de vida pessoal, destacada do cálido
forro materno que me envolveu até os vinte anos, foi de caráter físico
sexual, evidentemente precoce. Está ela ligada à casa em que morávamos na
Rua Barão de Itapetininga, de jardinzinho ao lado. Sentando-me à porta da
entrada e apertando as pernas, senti um prazer estranho que vinha das
virilhas. Que idade teria? Três ou quatro anos no máximo. (...) Acontece
terem as crianças ereção no primeiro mês de vida e iniciarem um inútil
período de masturbação, enquanto homens de quarenta anos e menos
perdem estupidamente a potência para viver dezenas de anos como
cadáveres. Obra de Deus – querem os padres e as comadres. O limite, o tabu
dos primitivos. A adversidade metafísica. O malefício eterno e presente que
todas as religiões procuram totemizar. (...) Assim, cedo mergulhava eu nesse
maravilhoso universo da bronha onde permaneci virgem até quase a
maioridade (ANDRADE, 2002, p. 37).
Na década de 1970, dois memorialistas brasileiros merecem destaque. O primeiro,
mais pela importância de sua obra ficcional do que propriamente pelos dois volumes
memorialísticos deixados – falo de Erico Veríssimo e seu Solo de clarineta: o 1º volume, de
1973, e o 2º, póstumo, publicado em 1976. Nestas duas interessantes obras, Veríssimo
descreve sua infância em Cruz Alta, interior do Rio Grande do Sul, e sua juventude e
maturidade em Porto Alegre, trabalhando como editor e tradutor da Editora Globo. Um dos
episódios mais singelos é aquele no qual relata sua participação, como editor, da tradução
brasileira de Em busca do tempo perdido – negócio considerado, à época (entre 1948 e 1956),
de alto risco do ponto de vista comercial –, tradução feita por Mario Quintana (os quatro
primeiros volumes), Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Lourdes Sousa de
Alencar e Lucia Miguel Pereira. No primeiro volume de Solo de clarineta, Erico Veríssimo
fala também do método de composição de seus principais romances e da recepção do público.
No segundo volume, os assuntos principais se referem às diversas viagens feitas pelo escritor
aos EUA e a sua família.
O segundo grande memorialista da década de 1970, não possuindo o mesmo talento
como romancista do autor de O tempo e o vento, notabilizou-se justamente pela redação de
suas volumosas memórias, ou melhor, ficcionalizando suas memórias como se invenção
fossem: Pedro Nava, médico aposentado, poeta fortuito, passou a década produzindo a série
memorialística considerada por muitos críticos a mais importante da literatura brasileira. De
um total de catorze títulos projetados para dar conta de todas as suas recordações (como
estudante de medicina, como profissional e como intelectual parceiro de Drummond e Mário
de Andrade), Pedro Nava redigiu seis volumes, e faleceu no início do sétimo. Os títulos das
iconoclastas e geniais obras deixadas pelo escritor mineiro, da mesma Juiz de Fora de Murilo
Mendes, são: Baú de ossos (1972);
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Balão cativo (1973); Chão de ferro (1976); Beira-mar (1978); Galo das trevas (1981); O
círio perfeito (1983); e, finalmente, Cera das almas (1984), este último incompleto.
É praticamente impossível sintetizar aqui, no espaço de pouquíssimas páginas, a
magnitude das ideias e temas abordados na obra memorialística de Nava, e a quantidade de
estudos acadêmicos contemporâneos a respeito dela (artigos, dissertações, teses, etc,
sobretudo em Minas Gerais e no Rio de Janeiro), por si só, já demonstram sua importância e
amplitude para nossa literatura. Bastaria apenas evocar a opinião de Otto Lara Resende,
reproduzida na orelha de alguns desses volumes, segundo a qual a primeira obra, Baú de
ossos, sozinha, “funda toda uma cultura”. Resende se refere à obra inaugural do
memorialismo naviano, que reconstitui a história de sua família e mergulha no inconsciente
coletivo e imemorial brasileiro. Para Francisco de Assis Barbosa, Baú de ossos é um
verdadeiro “(...) monumento literário, desses raros monumentos que se levantam de cem em
cem anos” (ver orelha da 7ª edição da obra, citada nas referências bibliográficas).
Balão cativo e Chão de ferro tratam da experiência de Pedro Nava, durante sua
infância, como aluno interno do colégio Anglo-Mineiro, em Belo Horizonte, e D. Pedro II, no
Rio de Janeiro. Confissões doídas e ferinas, o repugnante ambiente de podridão moral de
garotos obrigados a levar a sério regras às quais se submetem sem concordar relembra em
muito o clima pesado do romance O Ateneu, de Raul Pompéia, sobre praticamente o mesmo
assunto e escrito aproximadamente cem anos antes, o que nos dá uma ideia da rotina vivida
nestas instituições opressoras. Já Beira-mar é bem mais “leve”, ao eleger como tema a
juventude do memorialista e sua vida como acadêmico de Medicina na Belo Horizonte dos
anos 30, onde foi colega de classe de Juscelino Kubitschek e companheiro de rodas literárias
e boêmias ao lado de Carlos Drummond de Andrade, Emílio Moura, Abgar Renault e outros
intelectuais e escritores mineiros. Os três últimos volumes tematizam sobretudo sua prática
médica, como clínico geral e posteriormente como reumatologista, em hospitais de Minas,
Rio de Janeiro e interior de São Paulo. Sua obra inteira é impressionante em vários sentidos,
sendo que principalmente os quatro primeiros volumes são (ou deveriam ser, se houvesse
mais divulgação) referência obrigatória para o leitor contemporâneo brasileiro.
Considerações finais: Um rápido painel do memorialismo sul-mato-grossense
A literatura sul-mato-grossense não ficou indiferente ao crescente interesse pelo
gênero memorialístico ao longo do século XX. Os primeiros títulos que evocam o início do
povoamento, civilização e transculturação da região são, obviamente, anteriores à divisão do
estado do Mato Grosso, realizada em 1979. Além das já comentadas Memórias do Visconde
de Taunay, pioneiro do memorialismo sul-mato-grossense, é necessário citar as obras de José
Melo e Silva (Fronteiras guaranis, de 1939, e Canaã do Oeste – Sul de Mato Grosso, de
1947), abordagens dos mais diferentes aspectos da região – político, social, antropológico,
geomorfológico, histórico, etc -, pertencente, portanto, ao registro da construção da noção de
território e de identidade local; de Ulisses Serra (Camalotes e guavirais, 1971),
interessantíssima coletânea das crônicas publicadas por Serra no jornal “Correio do Estado”,
de Campo Grande, nas quais aborda
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aspectos de Corumbá, sua cidade natal, e do povoamento e colonização de Campo Grande,
hoje capital do estado de Mato Grosso do Sul; e de Otávio Gonçalves Gomes (Onde cantam
as seriemas, 1975), único volume de memórias editado pelo poeta nascido em Ribas do Rio
Pardo, e que elege em sua evocação alguns dos principais marcos culturais do estado, tais
como a seriema, o sabiá, os rios da região e a Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, ligação
entre Mato Grosso do Sul e São Paulo.
Logo após a criação do estado do Mato Grosso do Sul, a obra do político
Demosthenes Martins (A poeira da jornada – Memórias, 1980), avulta como o maior símbolo
literário do período de transição da divisão política do estado. Nascido em Pernambuco,
Demosthenes criou raízes no Mato Grosso do Sul, onde foi prefeito de Nioque e de Campo
Grande, e um dos principais adversários políticos de Pedro Pedrossian, ex-governador dos
dois estados (Mato Grosso e Mato Grosso do Sul), e que em 2008 também deixou seu
depoimento memorialístico através da obra O pescador de sonhos.
Em 1993, o ex-presidente da Academia Sul-mato-grossense de Letras, o
pontaporanense Elpídio Reis, também registrou, na obra Só as doces... uns “causos” por aí,
suas principais recordações da infância passada na fronteira Brasil-Paraguai e da vida adulta
no Rio de Janeiro, onde exerceu uma série de diferentes atividades profissionais, tendo sido
advogado, professor, censor da Embrafilme, assistente social na LBA e radialista. Autor de
uma obra versátil, na qual constam obras de poesia, contos, romances, biografias, etc, Elpídio
dedica grande parte de suas memórias a relatar tais atividades profissionais e literárias,
chegando a transcrever trechos de seus principais poemas e textos ficcionais.
Para finalizar, não poderia deixar de mencionar as obras de memórias do grande
expoente da literatura sul-mato-grossense, o poeta “pantaneiro” Manoel de Barros e suas
Memórias inventadas, escritas em versos. Trata-se de uma trilogia com os seguintes
subtítulos: A infância (2003); A segunda infância (2006); e Terceira infância (2008), além do
volume Memórias inventadas para crianças, publicado em 2010. Neles o grande poeta
pretende relembrar (ou “inventar”, como ele faz questão de ressaltar) sua infância a partir do
expediente de se imaginar criança novamente, algo complicado para a maioria de nós mas
desafiador para um poeta com a imaginação manoelina, afinal, como ele afirma em “Tempo”,
“Eu não amava que botassem data na minha existência. / A gente usava mais era encher o
tempo” (2006). “Encher o tempo”... desafio para memorialistas e demais nostálgicos
inconformados com a rápida passagem do tempo, que deixa na memória marcas indeléveis
como pegadas que jamais se apagarão.
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BUNGART NETO, Paulo. Expiação dos insultos sofridos na escola: feridas psicológicas
assimiladas e exorcizadas pelos memorialistas modernistas brasileiros. In: AZEVEDO, Silvia
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De Taunay a Nava: grandes memorialistas da literatura brasileira