As representações simbólicas do passado português em Marrocos: História e ideologia
Historiografia e ideologias dos patrimónios artísticos e arquitectónicos portugueses ultramarinos
Ana Sofia Neno Leite – Abril 2011
A crise ideológica do mundo árabe e a necessidade do recurso à história
“La sacralité de nos constantes qui font l'objet d'une unanimité nationale, à savoir l'Islam en tant
que religion de l'Etat garant de la liberté du culte, ainsi que la commanderie des croyants, le régime
monarchique, l'unité nationale, l'intégrité territoriale et le choix démocratique, nous apporte un gage et
un socle solides pour bâtir un compromis historique ayant la force d'un nouveau pacte entre le Trône et
1
le peuple.”
O tema da nacionalidade e ideologia, no Reino de Marrocos, passa na actualidade por um
momento de grandes decisões. Temos vindo a testemunhar, nos últimos meses, uma sucessão
de acontecimentos que abalaram uma quantidade significativa de países do mundo árabe. O
descontentamento generalizado no Magrebe vem reclamar a reestruturação destes Estados
através de actos de nacionalismo popular desencadeando uma onda de choque da Tunísia ao
Egipto, encontrando adeptos em países como o Bahrein, Iémen, Líbia e também Marrocos,
embora com particularidades bastante distintas das outras manifestações.
À esquerda as manifestações populares de 20 de Fevereiro, à direita discurso de 9 de Março de Mohammed VI ao povo marroquino
Os milhares de cidadãos marroquinos que se reuniram no 20 de Fevereiro de 2011,
projectando a sua voz nos mídia de todo o mundo reclamando uma reforma nacional não
foram ignorados nas suas exigências. No dia 9 de Março, o discurso do Rei Mohammed VI – o
primeiro grande discurso proferido à Nação após as manifestações populares – introduz
alterações profundas à concepção do Estado marroquino e retoma uma questão que tem sido
1
Excerto do discurso de Mohammed VI de 9 de Março de 2011, em directo para a televisão nacional marroquina. O
texto integral deste discurso pode ser consultado no site oficial do governo de Marrocos, na página electrónica
www.maroc.ma/NR/rdonlyres/00002015/pisgmllvmaxpxxqbirtpudaflwnownkc/Texteint%C3%A9graldudiscoursadre
ss%C3%A9parSMleRoi%C3%A0laNationmercredi09mars.pdf [A sacralidade das nossas constantes que são objecto
de um consenso nacional, ou seja, o Islão como uma religião do Estado garante a liberdade de culto, e a orientação
dos fieis, o regime monárquico, a unidade nacional, a integridade territorial e a escolha democrática, traz-nos uma
promessa e uma sólida base para construir um compromisso histórico com a força de um novo pacto entre o Trono
e o povo.]
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de grande importância na última década2, a regionalização do país e a identidade marroquina
como uma identidade plural, reconhecendo e posicionando a cultura amazigh (berbere) no
quadro constitucional nacional, uma pedra essencial na construção da identidade marroquina.
O discurso da busca de uma identidade fundamentada nas raízes históricas da nação traduz a
simbiose desejada entre o Trono e a Nação. Os detentores do poder procuram
instrumentalizar a história para justificar as opções políticas que sustentam e modelam a
imaginação da comunidade. Para que esta identidade projectada pelo Estado não se resuma a
um conjunto de fragmentos e possa ser efectivamente um reflexo da unidade nacional,
mudanças globais na Constituição nacional do Estado devem ter lugar. Se por um lado o
progresso e a modernidade, seguindo modelos ocidentais, são conquistas legítimas da nação
em afirmação, o elemento forte que continua a unificar esta comunidade imaginada está
latente na sacralidade, no Islamismo como religião do Estado que estabelece um
“compromisso histórico”3 do pacto entre o Trono e o povo. É o Islamismo que nos é
apresentado como o elemento unificador da comunidade plural, a comunidade da Umma4
islâmica. O binómio amazigh-árabe não é mais um problema, a diversidade linguística e a
2
A 17 de Outubro de 2001, Mohammed VI profere o discurso fundador do Institut Royal de la Culture Amazighe
assinando o dahir que regulamenta os seus estatutos. O discurso defende ideia de uma nação unificada na sua
pluralidade: “A travers cet acte, nous voulons, tout d’abord, exprimer ensemble, notre reconnaissance de
l’intégralité de notre histoire commune et de notre identité culturelle nationale bâtie autour d’apports multiples et
variés. La pluralité des affluents qui ont forgé notre histoire et façonné notre identité est indissociable de l’unité de
notre Nation regroupée autour de ses valeurs sacrées et ses fondements intangibles que sont la religion musulmane
tolérante et généreuse, la défense de la patrie dans son unité et son intégrité, l’allégeance au Trône et au Roi, et
l’attachement à la Monarchie constitutionnelle, démocratique et sociale. Nous voulons aussi affirmer que
l’amazighité qui plonge ses racines au plus profond de l’histoire du peuple marocain appartient à tous les Marocains,
sans exclusive, et qu’elle ne peut être mise au service de desseins politiques de quelque nature que ce soit. Le Maroc
s’est distingué, à travers les âges, par la cohésion de ses habitants, quels qu’en soient les origines et les dialectes. Ils
ont toujours fait preuve d’un ferme attachement à leurs valeurs sacrées et résisté à toute invasion étrangère ou
tentative
de
division“.
O
discurso
pode
ser
consultado
na
íntegra
no
site
www.ircam.ma/fr/index.php?soc=textes&rd=21
3
Discurso do Rei Mohammed VI de 9 de Março de 2011 in www.atlasinfo.fr/Texte-integral-du-discours-adresse-parle-roi-Mohammed-VI-a-la-nation-marocaine_a14647.html
4
“In order to clarify my position, I will take the example of the State in contemporary Islam. Islam, we are told, came
to destroy age-old world empires, unjust and corrupt, and replace them with a free, egalitarian, God-fearing
community (Umma). (…) During the colonial era, illiterate administrators and learned scholars were agreed that the
Muslim sees nothing between tribe and Umma and that he will never heed the call of a westernized minority to set
up an imaginary nation-state. Today there is in many parts of the Islamic world a powerful movement working hard
for the demise of the territorial institutions and their replacement by a universal Islamic state. It seems therefore
that there is indeed a case for claiming that Islam cannot, in theory and in practice, coexist fully, harmoniously, with
the laws of a modern nation-state.” Abdallah Laroui in Western Orientalism and Liberal Islam: Mutual Distrust?
Conferência proferida no encontro annual da Middle East Studies Association e publicada no Middle East Studies
Association Bulletin, Vol 31, No. 1, em Julho de 1997
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diversidade cultural podem coexistir porque o Estado está unificado pela sacralidade. Mas esta
conclusão não pode de todo ser entendida como absoluta e definidora do nacionalismo
marroquino. Colocamo-nos ainda perante uma nação em que a dominação colonial produziu
modelos que imprimem as suas marcas no nacionalismo contemporâneo. A proposta de
revisão constitucional introduz justamente o modelo democrático ocidental ao estabelecer
uma nova ordem de valores na base da sua redacção, contemplando a garantia do exercício
das liberdades individuais e colectivas e assim reforçando o sistema de direitos humanos; a
Justiça como poder independente; a separação e equilíbrio de poderes através de um
parlamento constituído por eleições livres, de um governo eleito pela vontade popular, da
nomeação de um primeiro-ministro no seio do partido político com maioria de votos e do
reforço do papel do primeiro-ministro como chefe de um poder executivo efectivo; a
consolidação do papel dos partidos políticos no quadro de um pluralismo efectivo; o controlo
moral da corrupção.
O problema que se vive não está tanto em estabelecer quem controlará as estruturas do
poder, mas é um problema de definição dos modelos fundamentais de ordem política, social e
cultural, um problema portanto de identificação e definição dos discursos.
A continuidade histórica está então ao serviço da formação identitária e o caso
marroquino deve ser interpretado de acordo com a sua realidade histórica, sem ignorar os
vestígios materiais e a memória da sua formação nacional que imprimem a esta comunidade o
sentido de antiguidade e pertença.
r
t y
A influência da presença portuguesa na formação de mitos
e memórias no imaginário nacional marroquino
“O meu ponto de partida é que tanto a nacionalidade – ou, como talvez se prefira dizer, devido aos
múltiplos significados desse termo, a condição nacional [nation-ness] – quanto o nacionalismo são
produtos culturais específicos. Para bem entendê-los, temos de considerar, com cuidado, suas origens
históricas, de que maneiras seus significados se transformaram ao longo do tempo, e por que dispõem,
nos dias de hoje, de uma legitimidade emocional tão profunda.”
5
Para compreender esta discussão sobre ideologia e nação, que não poderia ser mais actual
e pertinente no Reino de Marrocos, e que coloca em confronto o Estado soberano face a um
5
Benedict Anderson, “Comunidades Imaginadas – Reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo”,
Companhia das Letras, S. Paulo: 2009, pp. 30
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nacionalismo popular emergente, temos que ingressar numa viagem ao passado da nação e
perceber a sua formação ideológica pela qual se constituiu uma nation-ness marroquina. Antes
de avançar com a análise histórica, é necessário esclarecer os conceitos de nação,
nacionalismo e ideologia. Utilizarei como base teórica da minha análise os conceitos
fundadores de Benedict Anderson para a definição de nação como uma comunidade política
imaginada: “imaginada como sendo intrinsecamente limitada e, ao mesmo tempo, soberana”6.
B. Anderson recorre a Ernest Renan para justificar esta opção. Este afirmava já na sua obra
“Qu’est-ce qu’une nation?”, em 1882, que o que define uma nação na sua essência é que todos
os indivíduos tenham muitas coisas em comum e acrescentava ainda a importância de que
todos tenham também esquecido muitas coisas. Assim, a nação será o fruto de uma
imaginação selectiva compartilhada por um grupo delimitado de indivíduos. Gellner por sua
vez usa a ideia da imaginação num sentido de certa forma depreciativo, identificando-a com o
conceito de invenção: “O nacionalismo não é o despertar das nações para a autoconsciência:
ele inventa nações onde elas não existem”7. Mas para Anderson as comunidades não podem
ser distinguidas por um princípio de falsidade ou autenticidade de uma invenção, mas pela
forma como são imaginadas, o que nos remete, a meu ver, para a necessidade de reler a
continuidade histórica face às opções de memória das comunidades no seu processo de
imaginação e identificação que é eminentemente histórico e ideológico em simultâneo.
No processo histórico de formação do Reino de Marrocos é possível isolar alguns
momentos fundadores de ideologias nacionais, de criação de imaginários unificadores. Um dos
principais momentos e que considero o fundador do processo de unificação territorial e
ideológica do Reino de Marrocos decorre ao longo do século XVI. É precisamente neste
período que a presença dos portugueses em Marrocos provoca directa ou indirectamente
grandes transformações que conduziriam à primeira unificação do Reino de Marrocos. No
discurso colonial de Henri Terrrace8 esta unificação teve efeitos ideológicos profundos sobre a
comunidade marroquina até à actualidade em que escrevia tornando-a completamente
hermética e impermeável face ao Ocidente: “Les entreprises portugaises eurent pour le Maroc
de profondes conséquences religieuses et politiques. La crise maraboutique est ouverte; elle
6
Benedict Anderson, “Comunidades Imaginadas – Reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo”,
Companhia das Letras, S. Paulo: 2009, pp. 32
7
Ernest Gellner, Thought and change in Anderson, Benedict “Comunidades Imaginadas – Reflexões sobre a origem e
a difusão do nacionalismo”, Companhia das Letras, S. Paulo: 2009, pp. 32
8
Henri Terrasse (1895 – 1971) foi professor (1923-1941) e posteriormente director (1941-1957) do Institut des
Hautes Études Marocaines, uma das instituições criadas pelo Protectorado francês em Marrocos
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survivra aux causes qui l’avaient déclenchée. Elle troublera le Maroc pendant deux siècles et
donnera naissance à un type nouveau de dynastie : la dynastie chérifienne. Les marabouts, qui
étaient apparus dans ces luttes comme des vrais chefs du pays, ont acquis un prestige nouveau
qu’ils sauront un jour utiliser à d’autres fins. L’exaspération du sentiment musulman et la haine
des Chrétiens aideront le Maroc à se replier et se refermer sur lui-même : la politique extérieur
des Saadiens et des Alaouites aura, dans son étroitesse même et son aveuglement, l’adhésion
profonde du pays, devenu plus xénophobe que jamais.”9
Consolidado o poder Sádida, após a queda da dinastia Watassid, havia grande
determinação em libertar Marrocos das forças invasoras, defendendo o território de quaisquer
incursões, mesmo muçulmanas. O Sultão Abdallah el-Ghalib reconstituiu o exército
marroquino, após a morte do seu pai (1557), dotando-o de armas mais modernas, realizando
uma campanha psicológica junto da população, com a ajuda das zaouias – confrarias religiosas
islâmicas – e os líderes destas confrarias. Quando o Sultão sentiu que estava preparado lançou
o cerco a Mazagão com uma forte artilharia. Embora não tenha sido bem sucedido nesta
investida, mostrou aos portugueses que teriam que se preparar para um novo poder genuíno.
Após a sua morte deu-se uma disputa pelo trono na linhagem de sucessão entre o filho do
sultão e o seu tio Mulay Abd el-Malik, adquirindo este último o lugar do poder.
A Batalha de Alcácer Quibir, conhecida também como a Batalha dos Três Reis ou a Batalha
de Wad el-Makhazîn teve lugar no dia 4 de Agosto de 1578 e marcou o início de uma nova era
para os vencedores e para os vencidos. A perda da batalha para o Reino Português teve sérias
repercussões, como sabemos, mas os impactos no Reino de Marrocos foram também de
extrema importância para a definição do que entendemos hoje como a nação marroquina.
Abdallah Laroui disserta sobre este período na História do Magrebe descrevendo este
momento como um dos mais significativos, estabelecendo mesmo uma comparação com a
história do séc. XIX e XX em certas partes do Magrebe. Ele considera que não é possível chegar
à modernidade sem a compreensão do sentido histórico enquanto narrativa crítica, a crítica
9
Henri Terrasse, Conséquences des Entreprises portugaises au Maroc in Histoire du Maroc des origines à
l’établissement du Protectorat français, Éditions Atlantides, Casablanca: 1954 vol.2, p.132-5 [As empresas
portuguesas tiveram para Marrocos consequências profundas religiosas e políticas. A crise marabútica está aberta;
ela sobreviverá às causas que a desencadearam. Ela assolará Marrocos durante dois séculos e estará na origem de
um novo tipo de dinastia: a dinastia xarifiana. Os marabus, que apareceram nessas lutas como os verdadeiros
líderes do país, adquiriram um novo prestígio que souberam um dia utilizar para outros fins. A exasperação do
sentimento muçulmano e o ódio aos Cristãos ajudaram Marrocos a isolar-se e a fechar-se sobre si mesmo: a política
dos Sádidas e dos Alaouitas terá, na sua própria limitação e na sua cegueira, a adesão profunda do país, tornado
mais xenófobo que nunca.]
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das estruturas que fundam o mito da pertença cultural. Para o autor, o nacionalismo é
fundamentalmente uma criação, uma ideologia que necessita de uma fundamentação
histórica. Ele conclui que “o nacionalismo é a ideologia que toma a história e a reduz”10, numa
redução regressiva. Partindo para o passado poderemos assim interpretar o presente.
À esquerda detalhe da única representação conhecida da batalha de Alcácer-Quibir publicada por Miguel Leitão de Andrade na
obra "Miscelânea" (1629), à direita tapeçaria feita através de uma gravura que representa Ahmed Al Mansour observando a
construção do palácio El Badi em Marrakech, um dos monumentos mais representativos da nação marroquina, Dim: 1,60 x1,06m.
O conceito de nação em Marrocos, no século XX, transformou-se num objecto político
utilizado contra o colonialismo francês, da esquerda contra a monarquia ou dos defensores de
uma autonomia berbere, recorrendo ao passado histórico para justificar a fundamentação
ideológica, tal como o Protectorado o fizera ao serviço da sua política.
As grandes campanhas ideológicas que ocorreram no século XVI e no século XX constituem
os dois períodos fundamentais da história que permitem fazer uma leitura mais aproximada do
que é hoje a comunidade marroquina e como ela projecta a sua ideologia numa condição
nacional concreta. Dois períodos tão distanciados no tempo podem parecer díspares, porém
devemos considerar “normalmente que os estados nacionais são “novos” e “históricos”, ao
passo que as nações a que eles dão expressão política sempre assomam de um passado
imemorial, e, ainda mais importante, seguem rumo a um futuro ilimitado. É a magia do
nacionalismo que converte o acaso em destino”.11
10
Abdallah Laroui, Les cahiers bleus - nº8 - Nation, nationalisme et citoyenneté ; Rabat : Le Cercle d’Analyse
Politique, 2007, p.24
11
Benedict Anderson, “Comunidades Imaginadas – Reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo”,
Companhia das Letras, S. Paulo: 2009, pp. 38-39
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A jihad lançada no século XVI contra os portugueses, que culminou na batalha de Alcácer
Quibir foi, do ponto de vista da sua representação histórica e simbólica, como uma
prefiguração da Revolução do Rei e do Povo12 que levou à independência da força colonial
francesa em 1956. O primeiro acontecimento auspicia o estabelecimento de uma nação
marroquina soberana, o segundo cumpre esse desígnio, embora não haja na realidade uma
relação temporal e causal efectiva entre os dois momentos, ela faz sentido do ponto de vista
ideológico: “Só é possível estabelecer esta relação quando se unem os dois acontecimentos,
verticalmente, com a providência divina, que é a única que pode fornecer a chave para a sua
compreensão”.13 Falamos portanto de uma comunidade que percorre a história transportando
e recriando uma ideologia sacralizada pelo Islão, a imaginação de uma comunidade unida pela
língua da religião – o árabe – e a soberania de uma monarquia xarifiana de descendentes do
Profeta.
A conquista ibérica e as suas consequências sócio-culturais manifestaram-se de forma
bastante distinta no discurso ideológico marroquino ao longo dos tempos. Apesar da
gravidade da conquista e dos seus efeitos sobre a psicologia colectiva, estes acontecimentos
não interessaram de imediato aos historiadores e cronistas marroquinos no período em que
decorreram da mesma forma como foram posteriormente invocados, nomeadamente no
período de transição do protectorado francês para o período pós-colonial. A memória colectiva
encarregou-se da amnésia necessária para apagar os ecos de esta passagem pouco glorificante
para a história de Marrocos. As memórias que persistiram nas comunidades locais são vagas e
alteradas. Laroui encara este défice historiográfico como um sinal do estado de decadência do
reino. “A conquista ibérica do litoral marroquino foi muito mal recebida pelos Marroquinos,
sobretudo porque ela coincidia com a queda de Granada e com um declínio generalizado do
Islão. Muitos Marroquinos explicam as vitórias cristãs como um castigo divino e entenderam
como um sinal anunciador do fim do mundo. Ela esteve também na origem de uma verdadeira
crise de consciência e de uma deriva geral dos espíritos que nem a libertação da maioria dos
presídios, nem a vitória no Oued al-Makhazine [Alcácer Quibir] nem os séculos seguintes
12
A Revolução do Rei e do Povo ou Thawratou el maliki wa chaâb é a denominação da manifestação de resistência
que ocorreu no dia 20 de Agosto de 1953 quando o Rei Mohammed V foi enviado para exílio em Madagáscar. Em
todo o Reino de Marrocos a população uniu-se contra o ocupante colonial francês em manifestações e greves e
constituía uma resistência armada que iniciaria a luta pela independência. Mohammed V regressaria ao trono a 16
de Novembro de 1955 declarando “saímos de um combate menor para travar um combate maior”.
13
Auberbach, “Mimesis”, p.64 citado por Benedict Anderson, “Comunidades Imaginadas – Reflexões sobre a origem
e a difusão do nacionalismo”, Companhia das Letras, S. Paulo: 2009, p. 53-54
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puderam apagar.”14 Ibn Yajbush foi um dos poucos cronistas marroquinos que falou sobre
alguns acontecimentos que envolveram os portugueses na sua obra “Tanbih al-himam al
‘aliya”, visto ter sido afectado pela conquista portuguesa de Arzila em 1471. Esta obra
demonstra o efeito sobre a comunidade da ameaça portuguesa e a necessidade de coesão
dessa mesma comunidade. O autor alerta para a gravidade do que aconteceu no Reino e a
necessidade de recorrer à força com o apelo a uma jihad. É uma obra tradicionalista quer pelo
estilo, em prosa e verso, quer pelo conteúdo com o recurso a versos corânicos e aos hadiths15
proféticos. Ibn Yajbush fez este apelo de jihad com a promessa do paraíso para os mártires e
explicou que as vitórias dos portugueses foram o fruto da divisão dos muçulmanos e da sua
insuficiente devoção ao Islamismo. Foi uma batalha pelas almas que se travou naquela época.
Esta ideia foi transversal ao pensamento marroquino daquele tempo e foi um facto constatado
por Ahmed Boucharb na sua análise16 das crónicas marroquinas desse período em que, regra
geral, os portugueses não foram diferenciados dos espanhóis e foram indistintamente
classificados como os cristãos ou infiéis ou de roum, enquanto os marroquinos foram
designados como os muçulmanos. A arquitectura islâmica em Arzila, tal como noutras praças
de Marrocos, foi adaptada às necessidades dos portugueses e muitas vezes as mesquitas
foram transformadas em Igrejas. Este foi também um argumento usado pelo autor para
justificar o seu objectivo. O texto não se interessou pelos factos concretos e não relatou os
acontecimentos da tomada portuguesa de Arzila. O que importou a Ibn Yajbush foi expressar a
ideologia religiosa que unificou posteriormente a comunidade num objectivo comum de
recuperar o território nacional, o território profanado por outra força religiosa.
As crónicas marroquinas não faziam menção em concreto às conquistas e às cidades
ocupadas pelos portugueses, nem a personagens como o famoso aliado dos portugueses Yaya
u ta’fuft que só foi citado pela primeira vez no final do século XIX. Esta opção histórica foi
precisamente o reflexo do que a comunidade marroquina pretendia imaginar para que fosse
possível identificar-se com o seu território e formar a sua própria condição nacional. A própria
14
Ahmed Boucharb, “La conquête ibérique du littoral marocain d’après la Description de l’Afrique : cision d’une
entreprise guerrière en terre d’Islam” p.10 in Salhi, Mohammed; La présence portugaise au Maroc et les relations
actuelles entre les deux pays, Université Mohammed V, Rabat : 2008
15
Hadith é o termo usado para designar aquilo que é a “palavra do profeta”. Os hadiths são uma exposição oficial
dos significados do Alcorão. A lei islâmica é deduzida dos actos, afirmações, opiniões e modos de vida de Maomé.
16
Ahmed Boucharb, “La conquête ibérique du littoral marocain d’après la Description de l’Afrique : cision d’une
entreprise guerrière en terre d’Islam” p.13 in Salhi, Mohammed; La présence portugaise au Maroc et les relations
actuelles entre les deux pays, Université Mohammed V, Rabat : 2008
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batalha de Alcácer Quibir, uma gloriosa vitória para os marroquinos foi pouco evocada nas
fontes marroquinas suas contemporâneas, mesmo as que tiveram como objectivo enaltecer a
figura do vitorioso Al Mansour.
Se as representações históricas foram escassas ou pouco precisas, as representações
simbólicas através da criação de mitos e da transmissão pela memória colectiva proliferaram
na comunidade marroquina contribuindo para a formação ideológica nacional. Para a
mitologia marroquina, esta batalha foi equiparada à batalha de Badr, que faz parte do
património da memória colectiva muçulmana como a primeira vitória do Islão combatente
sobre os infiéis, um dos momentos capitais da vida do profeta Maomé. A batalha para os
marroquinos assumiu um carácter divino como confirma al Nâsirî17: “A morte dos três príncipes
e a subida ao trono de um único é um verdadeiro símbolo que significa a derrota da Trindade e
o triunfo do monoteísmo durante aquela jornada. Mas o Altíssimo é quem melhor sabe todas
essas coisas.”18 A vitória marroquina ficou assim impressa na memória e continuou a ser
invocada como um símbolo da vitória do Islão sobre a Cristandade.
O acontecimento histórico, devido à sua importância na determinação do futuro de ambas
as nações, foi um importante potenciador de mitos, representações simbólicas,
constantemente reutilizadas. A sua fraca expressão no discurso histórico ou académico não
pode ser encarada como uma expressão de desvalorização, pois a dimensão simbólica revela a
sua verdadeira grandeza no imaginário da comunidade. Evidentemente existem muitas
omissões em relação a este passado, mas que também elas são importantes para
compreendermos o verdadeiro lugar que ocupam estas memórias e representações. Em cada
ano, no dia 4 de Agosto, sobretudo desde a independência de Marrocos, face ao Protectorado
francês, a imprensa de difusão nacional marroquina, através do jornal Le Matin du Sahara,
reconstitui a batalha de Wad al-Makhâzin, relembrando a sua importância para a formação da
nação marroquina. Os títulos de cada ano apelam sempre à ideia de comemoração do evento
de dimensão nacional: “Un combat pour la souveraineté nationale” nas edições de 2006 e
2007, “Une page rayonnante de l'histoire du Maroc” na edição de 2008, “Une grande épopée
de la nation marocaine” na edição de 2009, etc. Celebrações à vitória de Al-Mansur são
17
Abu al-Abbas Ahmad ibn Khalid al-Nasiri al-Salawi, (1834/5-1897) é considerado o grande historiador marroquino
do século XIX. Foi um académico reconhecido e membro da família fundadora da Ordem Nasiriyya Sufi no século
XVII. Ele escreveu uma importante obra da História de Marrocos: Kitab al-Istiqsa li-Akhbar duwwal al-Maghrib alAqsa que vai desde a conquista islâmica até ao século XIX.
18
Al Nâsirî in Lucette Valensi, Fábulas da memória – A gloriosa batalha dos três reis, Lisboa, Edições Asa, 1996,
p.109
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produzidas, a cada ano, pelas entidades locais e o mito da batalha é assim reutilizado,
construído, reconstruído e reinterpretado sucessivamente por vencidos e vencedores. Por
exemplo, na edição de do último ano (2010), o jornal noticiou o encontro comemorativo dos
432 anos da batalha organizado pelo Alto Comissariado dos Antigos Resistentes e Antigos
Membros da Armada de Libertação, que pretendiam assim lembrar “les faits et la symbolique
de cette grande épopée qui avait, à l'époque, mis un terme aux desseins expansionnistes des
puissances colonialistes au Maroc et a, depuis, inspiré les Marocains dans leur lutte pour la
défense de la liberté et de l'intégrité territoriale du Royaume.”19 Noureddine Lehrim, chefe do
departamento de estudos históricos deste comissariado, reforça ainda, nas declarações para a
imprensa, a ideia que já vimos anteriormente de que esta época ilustra “majestueusement,
l'éternelle symbiose entre le Trône et le peuple”20 representando assim a grandiosidade do
povo marroquino na luta pela liberdade e independência.
O programa escolar oficial actual do ensino secundário marroquino, ao transmitir a
história de Marrocos, dedica uma parte do programa à passagem dos portugueses e espanhóis
identificando geograficamente as praças dominadas por aqueles e localizando temporalmente
este período. Mas é à batalha de Wad al-Makhâzin que é dado o verdadeiro destaque deste
momento histórico. Poucos compreenderão em Marrocos do que se trata a batalha de Alcácer
Quibir, porém quando falamos de Wad al-Makhâzin tudo muda, tudo faz sentido, como vemos
por exemplo na crónica da viagem de Fernando Venâncio: “Estamos em Marrocos. Tivesse eu
saído do carro, e ele acolhia-me com um braço pelos ombros. «Monsieur», digo, «je cherche la
gare de El Makhazen.» «La guerre?» «Non, monsieur, la gare.» «Mais oui, la guerre, la
bataille.» O parvo, afinal, sou eu. Solícito, ele indica-me o «feu-rouge» onde devo virar à
esquerda.
Como é que uma estação de caminho de ferro o informou da minha exacta busca, havia eu
de compreendê-lo quando chegasse ao sítio: ninguém procuraria, naquele lugarejo, senão
exactamente isso.” 21
19
e
Extracto do artigo Commémoration du 432 anniversaire de la bataille de Oued Al-Makhazine in
http://www.lematin.ma/Actualite/Journal/ArticlePrint.asp?id=137536, publicado on-line em: 05.08.2010 [os factos
e o simbolismo desta grande epopeia que tinha, na época, posto termo às ambições expansionistas das potências
colonialistas em Marrocos e, desde então, inspirou os Marroquinos na sua luta pela defesa e pela liberdade e
integridade territorial do Reino.]
20
idem
21
Fernando Venâncio, Quem inventou Marrocos – Diários de viagem, V.N. Gaia, Editora Ausência, 2004, p.40
As representações simbólicas do passado português em Marrocos: História e ideologia
Historiografia e ideologias dos patrimónios artísticos e arquitectónicos portugueses ultramarinos
Ana Sofia Neno Leite – Abril 2011
Ao contrário do passado colonial recente, dos Protectorados francês e espanhol,
completamente omitido no programa escolar oficial, a passagem dos portugueses por
Marrocos, representada simbolicamente pela batalha de 1578, é um instrumento histórico
importante utilizado para explicar a fundação do reino. Na página electrónica oficial do
Ministério da Cultura22 do Reino de Marrocos encontramos uma zona dedicada ao património
cultural onde são enunciadas as civilizações de Marrocos. Aqui são enunciados os principais
momentos de cada dinastia, na sua sucessão, e a contribuição para a formação nacional.
Quando analisamos o discurso em torno deste período da história, vemos que as conquistas
das praças do Atlântico merecem apenas uma referência breve e genérica como conquistas
ibéricas, no período Merínida, mencionando escassamente as datas de tomada das praças de
Ceuta, Alcácer Ceguer, Arzila, Tânger e Melilla. Ao passar ao período Sádida reencontramos o
sentimento de que a unidade do território através de um só poder central, neste caso a
dinastia xarifiana, oriunda da região do Drâa, no Sul de Marrocos, foi possível pela necessidade
de combater os Portugueses e só assim foi legitimado o seu poder, que culmina uma vez mais
no acto da grande vitória de Wad al-Makhâzin.
r t y
Ideologias e patrimonialização – dos serviços culturais do Protectorado à independência
“Selon Tranchant de Lunel, chef du service des Antiquités, des Beaux Arts et des Monuments
Historiques du Maroc «puisque la tradition est la base solide sur laquelle repose l’art marocain nous nous
ferons, nous serviteurs de l’art, les gardiens de la tradition. Mais au maintien de la paix nécessaire.» et il
ajoute plus loin «Confiant dans la vaillance des troupes qui gardent le front marocain, marquons les
eforts de la lutte en détournant les regards des tribus pacifiées vers les splendeurs de leurs passé
national.» ”
23
O património é um testemunho que se manifesta na sua materialização em objectos
artísticos e arquitectónicos, mas também pela transmissão por palavras e memórias, reflexo da
continuidade histórica de uma comunidade, uma noção bem mais abrangente que o restritivo
22
23
Consultar página electrónica com o endereço: www.minculture.gov.ma/fr/
Samir Kafas, De l’origine de musée au Maroc in Patrimoine culturel marocain, Université Senghor d’Alexandrie,
Paris, Maisonneuve et Larose, 2003, p.43 [Segundo Tranchant de Lunel, chefe do serviço das Antiguidades, das
Belas Artes e dos Monumentos Históricos de Marrocos «sendo que a tradição é a base sólida sobre a qual repousa a
arte marroquina nós nos faremos, nós servidores da arte, os guardiões da tradição. Mas na manutenção da paz
necessária.» e ele acrescenta mais à frente «Confiante na vigilância das tropas que servem a frente marroquina,
notemos os esforços da luta em desviar os olhares das tribos pacificadas para os esplendores do seu passado
nacional.»]
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conceito de monumento histórico. O abandono ou destruição do património significam uma
ruptura com o passado, uma negação de factos, mas também uma opção ideológica de
selectividade da memória que serve a representação da comunidade. A patrimonialização em
Marrocos foi um conceito instituído pelos colonizadores franceses e posteriormente adoptada
pelo estado nacional independente, mas o uso que foi feito desta noção teve um percurso
próprio às necessidades discursivas de cada momento. Os símbolos utilizados são
frequentemente os mesmos, porém o significado atribuído aos símbolos é algo que permanece
em mutação, não é um valor estanque ao momento histórico, político e social que se vive,
adapta-se à voz que profere o discurso do poder. As especificidades inerentes à comunidade
marroquina manifestam-se na distinção do seu património cultural como um factor de
equilíbrio, enriquecimento e desenvolvimento, reforçando a unidade nacional.
O Protectorado francês procurou precisamente identificar as especificidades da cultura
marroquina, como vimos na declaração de Tranchant de Lunel, citada no início deste capítulo,
com objectivos muito particulares. Através de uma atitude paternalista reflectida na política
cultural e da defesa de um tradicionalismo petrificado procuravam estabelecer um regime de
controlo que visava conferir um equilíbrio entre colonos e indígenas, apelando a um
enriquecimento cultural da comunidade indígena pela preservação dos valores tradicionais
que conduziria ao desenvolvimento nacional. As políticas culturais que instituíram a
patrimonialização, a museologia e o urbanismo, neste território virgem neste tipo de
formatações, assumiam um papel importante na tentativa de tornar o colonialismo mais
tolerável para os colonizados e na linha da frente no campo da inovação e experimentação
para o mundo ocidental. O Protectorado acreditava assim na sua missão civilizadora, que
através da criação de uma cidade dual entre a tradição e a modernidade, os indígenas e os
europeus atingiriam o nível de equilíbrio desejado e conveniente. Um pouco por todo o
território do Protectorado francês foi introduzindo estas directivas. As duas cidades eram
separadas por uma zona non aedificandi, um corredor sanitário, reforçando a imunidade
europeia a qualquer contaminação indígena e a medina tradicional era preservada, petrificada
no passado e nas suas tradições levando à criação de instrumentos administrativos e
reguladores inovadores que nunca tinham sido introduzidos na metrópole. “C’est le cas
notamment du Service des Arts Indigènes, des Services des Beaux-Arts et des Monuments
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Historiques auxquels ne répond rien d’analogue dans la métropole.”24 Uma das grandes
inovações foi a visão do monumento na sua integralidade valorizando a envolvente que o
rodeia numa perspectiva de conjunto. Esta consciência da necessidade de protecção da zona
envolvente ao monumento que era legislada em Marrocos, desde 1914, só foi instituída na
metrópole em 1943. A ideia de conservação das medinas visava congelar no tempo e na
história as populações locais, travando o seu desenvolvimento económico e político,
subjugando assim estas populações ao poder do colonizador.
O Service des Antiquités, des Beaux-Arts et des Monuments Historiques foi instituído em
1912, por decreto do Commissaire Résident Général do Protectorado, sofrendo várias
alterações nos anos seguintes até lhe ser conferida a denominação de Service des Beax-Arts et
Monuments Historiques em 1921. Para além da protecção aos monumentos históricos pela via
do urbanismo, este serviço encarregava-se também da inspecção das medinas e monumentos
bem como da sua conservação. A consciência da necessidade de uma política activa de
conservação levou à criação em 1925 do Comité de Restauration des Monuments Historiques,
cuja missão era programar e orçamentar os trabalhos de restauro. Este comité era composto
por representantes dos vários serviços culturais do protectorado incluindo nomes como Henri
Terrasse, director do Institut des Haut Études Marocaines, Prosper Ricard, chefe do Service des
Arts Indigènes ou Tranchant de Lunel, director do Service des Baux-Arts a partir de 1929. Todos
estes homens tiveram papéis importantes na discussão e formação de uma política
patrimonial, cultural, em Marrocos, que moldou até hoje a visão sobre a identidade cultural e
artística do território. “Le dahir de 1912 fut l’un des tout premiers à avoir été élaboré juste
après l’avènement du Protectorat. On reconnaît là la volonté du Maréchal Lyautey de protéger
les vestiges du passé tels que les décrivait Maurice Tranchant de Lunel dans son ouvrage Au
Pays du paradoxe. […] Lyautey et Tranchant de Lunel peuvent donc être considérés comme des
précurseurs dans le domaine de la conservation du patrimoine.”25 A busca de enquadramento e
24
Rima Fadili-Toutain “Historique de la sauvegarde par la législation”, in Patrimoines en situation. Constructions et
usages en différents contextes urbains, Beyrouth / Rabat, Presses de l'Ifpo / Centre Jacques, 2010, p.1 [É o caso
nomeadamente do Serviço de Artes Indígenas, e dos Serviços das Belas Artes e dos Monumentos Históricos aos
quais não corresponde nada de análogo na metrópole.]
25
Rima Fadili-Toutain “Historique de la sauvegarde par la législation”, in Patrimoines en situation. Constructions et
usages en différents contextes urbains, Beyrouth / Rabat, Presses de l'Ifpo / Centre Jacques, 2010, p.5 [O dahir de
1912 foi um dos primeiros a ser elaborado logo após a aparição do Protectorado. Reconhecemos a vontade do
Marechal Lyautey em proteger os vestígios do passado como os descrevia Maurice Tranchant de Lunel na sua obra
Au Pays du paradoxe. […] Lyautey e Tranchant de Lunel podem ser considerados como os precursores no domínio
da conservação do património.]
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a discussão teórica que se fazia em torno deste assuntos revelou-se nas constantes alterações
às denominações das entidades e ao papel de cada uma em todo o processo. Assim, em 1935
Este comité era suprimido e surgiam o Comité e a Inspection des Monuments Historiques, des
Medinas et des Sites Classés, permanecendo com este nome até à independência em 1956
para se transformarem então no Service des Monuments Historiques, des Arts et du Folklore.
Enquanto a motivação do Protectorado era instaurar uma política de interesse comum, a partir
de 1956 a ideologia expressa nas opções políticas e institucionais deviam garantir o interesse
nacional. A partir do momento da independência uma nova preocupação surgiu com a
identificação das necessidades de desenvolvimento do país o que relegou para segundo plano
as políticas culturais e de patrimonialização, que passaram por um período de indefinição, com
a minimização das intervenções ou até mesmo a ausência total em algumas regiões. A
necessidade de encontrar uma linguagem própria que libertasse a identidade cultural
marroquina do discurso do colonizador teve como reflexo esta negligência do sector que só
voltaria a encontrar uma postura eficaz a partir dos anos 80 do século XX. Até então a tutela
destes serviços passou pelo Ministère de l’Éducation nationale et des Beaux-Arts, o Ministère
du Tourisme, de l’Information et des Beaux-Arts, o Ministère de l’Enseignement Supérieure et
des Affaires Culturelles, o Ministère des Habous et de Affaires Culturelles26 e por fim o
Ministère des Affaires Culturelles criado pelo dahir de 25 de Abril de 1974. Com a criação deste
ministério surgiu então a Division des Musées, des Sites, de l’Archéologie et des Monuments
Historiques e posteriormente a Division de l’Inventaire du Patrimoine Culturel e que nos anos
1980 viria a chamar-se Direction du Patrimoine Culturel, tal como a conhecemos nos dias de
hoje. O primeiro acordo de natureza cultural e científica entre Portugal e Marrocos, data
precisamente desta época, de 11 de Dezembro de 1978, com o ressurgimento de um interesse
pelo estabelecimento de órgãos capazes de uma efectiva gestão cultural. A Direction du
Patrimoine Culturel aparecia assim tendo por missão proteger, conservar, restaurar,
inspeccionar e dar a conhecer o património arquitectónico, arqueológico e etnográfico através
dos meios adequados aos diversos valores artísticos nacionais. Em 1990, de forma a agilizar
estas práticas, a Direction du Patrimoine Culturel criou o primeiro centro de investigação
especializado, o CERKAS – Centre de Restauration et de Réhabilitation du Patrimoine
26
O conceito de Habous ou de Waqf apareceu com a chegada do Islão, que incitava os fiéis a afectar os seus bens a
uma obra de caridade. Através da história, estas propriedades constituiram uma fonte inesgotável de rendimentos
que permitiu aos gestores desta fortuna, os teólogos, manter uma certa autonomia face ao poder central. Apenas a
partir de 1915 por iniciativa do General Lyautey os poderes públicos começaram a gerir estes rendimentos e
propriedades.
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Architectural des zones Atlasiques et Subatlasiques – em Ouarzazate e em 1995 surgia então o
CPML – Centre d’Études et de Recherche du Patrimoine Maroco-Lusitanien. Este último tem por
missão a conservação e valorização do património marroquino de origem portuguesa em
todos os seus aspectos: histórico, arquitectónico e artístico.27 O CPML é o espelho de um novo
significado atribuído ao património de origem portuguesa em Marrocos.
r t y
Representações simbólicas do património português em Marrocos
na criação de discursos de poder
“Mas é verdade que, a outros níveis, se Portugal não é um “ilustre desconhecido,” é pelo menos um
“ilustre pouco conhecido.” Ali estão os castelos e as cidades da costa abandonados, que todos os
marroquinos associam de imediato aos “antigos” portugueses, expulsos pela força do Islão e dos
poderes santificados de Marrocos. […] Simon Lévy chama a atenção que a “historiografia popular,”
francesa e colonial, atribui aos portugueses tudo o que é anterior ao Protectorado (francês e espanhol),
salvo evidentemente as mesquitas.”
28
A colonização francesa em Marrocos não se ficava apenas pelo domínio territorial e pelo
poder político e económico, visava também a formação cultural, uma colonização mental das
crenças e das práticas. Ao mesmo tempo que foram instaurados os programas educacionais do
estado colonial, instalou-se também um novo sector dedicado aos serviços arqueológicos
coloniais. Os trabalhos arqueológicos concentraram-se sobretudo na restauração de
monumentos imponentes. Todo o processo de classificação do património arquitectónico em
Marrocos se iniciou com o estado colonial em que “A arqueologia monumental, cada vez mais
ligada ao turismo, permitia que o Estado aparecesse como o guardião de uma tradição
generalizada, mas também local.”29A escolha deste património monumental não era inocente
e declara a intenção dos franceses em se apoderarem dos símbolos de poder do país. As séries
de postais que se produziram neste período, demonstram claramente o interesse que a
governação francesa tinha pelo património arquitectónico monumental e consequentemente
pelo património de origem portuguesa em Marrocos. Através da fotografia dos monumentos
27
Decreto do Ministère des Affaires Culturelles nº275-95 de 30 de Janeiro que visa a criação e organização do
Centre d’Études et de Recherches du Patrimoine Maroco-Lusitanien. Bulletin Officiel nº430.
28
José Alberto Rodrigues da Silva Tavim “Castelo abandonado: Percepções do passado português no discurso
patrimonial dos Judeus de Marrocos (Século XX)", Lisboa, Instituto de Investigação Científica Tropical, 2005, p. 42
29
Benedict Anderson, “Comunidades Imaginadas – Reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo”,
Companhia das Letras, S. Paulo: 2009, p. 250
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portugueses, o colonizador francês colocava-se de novo a um nível de domínio imperial,
intemporal. Os colonos aparecem por vezes nestas imagens ostentando a sua superioridade
civilizacional e contrastando com as imagens que se produziam dos indígenas em estado
natural de inocência, presos anacronicamente a um passado cristalizado, não só nas políticas
urbanas e culturais do Protectorado, como vimos anteriormente, mas também nestas
representações que se faziam deles.
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As imagens reproduzidas em série identificando o património português em Marrocos
foram sobretudo as que podiam alimentar a ideia de um império glorioso e não a de um
colonizador vencido. O discurso produzido nestes postais é de um domínio monumental
europeu, face ao Marrocos pitoresco dos indígenas. O sentido de ser português como
sinónimo de antiguidade que encontramos no imaginário de todos os marroquinos era já uma
simbologia utilizada pelo Protectorado francês. A representação pictórica exprime e articula as
ideologias imperialistas, que conferem uma espécie de continuidade entre um passado
colonial e a dominação europeia do momento moderno. Estas reproduções são imagens
ambíguas, uma vez que podem ser gerados uma série de significados para o conteúdo
revelado, dependendo da visão do observador a que se destina. Neste caso o destinatário seria
uma elite europeia que se deveria rever nesta janela nostálgica sobre o passado imperial
português. A fotografia constituiu a ferramenta essencial para declarar uma realidade
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inegável, uma superioridade comprovada. É claro que esta redução do mundo a duas
dimensões potenciavam uma visão construída, tal como aconteceu com a cartografia,
enquadrando mais uma vez o discurso que se pretendeu transmitir.
Mapa de Hauptm Radefeld de Marrocos, 1844, elaborado após a batalha de Isly em que a França saiu vitoriosa
Na cartografia que encontramos dos finais do século XIX, início do século XX, a marca da
presença portuguesa foi também uma marca visível na forte estrutura Atlântica que definia o
território nacional marroquino. Inclusivamente a denominação destas cidades permaneceu a
mesma do período de ocupação portuguesa como Mazagão ou Mogador, que seria
renomeada na cartografia nacional após a independência como El Jadida (a nova) ou
Essaouira. Também os importantes cabos, etapas determinantes na expansão marítima
portuguesa foram devidamente nomeados nestes mapas.
As antigas praças portuguesas continuaram a ser cidades hierarquicamente relevantes na
geografia marroquina. “Em termos de inúmeras teorias da comunicação e do senso comum, um
mapa é uma abstracção científica da realidade. Um mapa apenas representa algo que já existe
objectivamente “ali”. Na história que eu apresentei, essa relação estava invertida. Um mapa
antecipava a realidade espacial, e não vice-versa. Em outros termos, um mapa era um modelo
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para o que (e não um modelo do que) se pretendia representar. […] Ele havia se tornado um
instrumento real para concretizar projecções sobre a superfície terrestre.”30
O imaginário do império marítimo português esteve assim subjacente ao entendimento do
território durante a colonização francesa. Embora estas manifestações não tenham chegado
até à actualidade como protagonistas do discurso colonial, a presença de representações
simbólicas do passado português e do seu património cultural fundamentou e legitimou
muitas das opções discursivas do império imaginado pelos franceses.
Os primeiros estudos especializados sobre a presença dos portugueses neste território e o
seu legado patrimonial datam também do início do Protectorado com um eminente interesse
em estudar este período da história. Destacaram-se assim vários intelectuais franceses
interessados em criar as suas próprias teses e iniciando um levantamento exaustivo das fontes
documentais. Pièrre de Cenival, em 1934, publicou o primeiro volume de Sources Inédites de
l’histoire du Maroc – Archives et Bibliothèques de Portugal, após o seu falecimento Robert
Ricard e David Lopes publicaram os volumes seguintes em 1939 e 1948, Marise Perial escreveu
Maroc lusitanien (1415-1769) em 1938, Paul-Antoine Évin escreveu L’Architecture Portugaise
au Maroc et le Style Manuelin em 1942 e Un musée portugais à Mazagan em 1945, Henri
Terrasse escreveu Notes sur les contacts artistiques entre le Maroc et le Portugal du XVe au
XVIIe siècle em 1945, Denise Valéro escreveu Petite histoire des ruines portugaises au Maroc
em 1952, Robert Ricard escreveu Études sur l’histoire des portugais au Maroc em 1955. Toda a
produção literária produzida durante o período de domínio colonial francês procurava
enquadrar o passado imperial português e conferir-lhe uma especificidade na lógica de
identificação do património cultural marroquino, como justificação para a sua valorização.
Deste modo, a par com a produção teórica de narrativas sobre o património português em
Marrocos, os serviços culturais foram inventariando e classificando os vestígios desta presença
para a sua salvaguarda: Eglise portugaise de Mazagan (Dahir du 21 septembre 1918, portant
classement, B.O n° 366 du 27 octobre 1919 .P.1213), Château de mer portugais de Safi (Dahir
07/11/1922 portant classement –B.O n° du 21/11/1922- P. 1642), Eglise portugaise de Safi
(Dahir du 21 janvier 1924 portant classement) B.O. n° 593 du 26 février 1924 P.382), Ancienne
citadelle portugaise de Mazagan (Dahir du 15 avril 1924, portant classement, B.O n° 604 du 20
mai 1924 .P 806), Zones de servitude de protection artistique autour du château de mer
30
Thongchai Winichakul, “Siam Mapped: AHistory of the Geo-Body of Siam”, p.310 in Benedict Anderson,
“Comunidades Imaginadas – Reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo”, Companhia das Letras, S.
Paulo: 2009, p. 239
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portugais à Safi (Dahir du 20 février 1924B.O. n° 596 du 25 mars 1924 P. 544), Remparts
portugais d’Azemmour (Dahir du 9 novembre 1927, portant classement, B.O n° 790 du 17
novembre 1927 .P 719), Ruines de l’église portugaise de l’impasse Sidi Abdelkrim à Safi (Dahir
du 7 mai 1930 portant classement B.O. n° 921 du 2 juin 1930- P.735), Murailles du bastion
Portugais (Dahir du 30/7/ 1932 portant classement, B.O n° 1034 du 19/8/1932 .P945), Eglise
notre-dame de la lumière à Mazagan (Dahir du 17 février 1942, portant classement, B.O n°
1534 du 20 mars 1942 .P226), Citerne Portugaise de Mazagan (arrêté viziriel du 29 novembre
1952, BO n° 2096 décembre 1952 .P.1689).
Todas as inscrições dos monumentos de origem portuguesa se reportam portanto ao
período do Protectorado. Com o surgimento dos primeiros museus de Marrocos, o
Protectorado demonstrou também o interesse em construir um museu dedicado ao
património de origem portuguesa. Paul-Antoine Evin descreveu num artigo este projecto de
sua autoria com o título “Un musée portugais à Mazagan”, publicado na edição Mélanges
d’études luso-marocaines dédiés à la mémoire de David Lopes et Pierre de Cénival, em 1945.
Este projecto de museu realizado na época pelo autor, incentivado pelo próprio Marechal
Lyautey e sob a orientação da Direction Général de l’Instruction Publique e a Inspection des
Monuments Historiques do Protectorado dirigida por Henri Terrasse tinha como objectivo a
criação de um museu lapidário, e também histórico de carácter didáctico que restituísse a
história de Portugal e do seu império. O espólio deveria incluir gravuras, moldes, gráficos,
fotografias e deveria ser recolhido com o apoio das instituições culturais portuguesas, bem
como vestígios materiais como canhões e bombardas. Este projecto nunca se concretizou
porém a intenção de concretização e a sua caracterização são úteis para perceber o significado
do património português neste contexto histórico. O autor reforça ainda a importância deste
património para a potência francesa “Mazagan, puissante forteresse pour l’époque, très
remarquable par sa construction dès le second quart du XVIe siècle, a déjà retrouvé les noms
portugais de ses rues par les soins d’un pionnier du Maroc français, le Dr. Weisserber, qui fut
son administrateur. ”31
Para o Marrocos francês a valorização deste património passava pela distinção e não pela
integração cultural. Henri Terrace reforça esta ideia afirmando: “Les architectes portugais
31
Paul-Antoine Evin “Un musée portugais a Mazagan” in Mélanges d’études luso-marocaines dédiés à la mémoire
de David Lopes et Pierre de Cénival, Collection Portugaise, 6º vol., Lisboa, Portugália Editora, 1945, p. 73 [Mazagão,
poderosa fortaleza para a época, notável pela sua construção do segundo quarto do século XVI, já encontrou os
nomes portugueses das suas ruas pelos cuidados de um pioneiro do Marrocos francês, o D. Weisseber, que foi seu
administrador.]
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n’avaient rien à apprendre de ces forteresses archaïques, mal adaptées au terrain et à peu prés
incapables de résister au canon.”32 O passado português correspondia, de facto, como vimos
anteriormente, a algo monumental e de carácter estritamente europeu por oposição ao
pitoresco cenário indígena.
As políticas educacionais francesas fizeram parte das estratégias do colonialismo do
império moderno com o objectivo de uma espécie de miscigenação mental, que apesar de
inevitavelmente indígena no físico, o colonizado idealmente devia ascender na moral e no
intelecto aos modelos do colonizador. Com o florescimento de uma nova era da independência
colonial o tema mais discutido nas esferas do poder em Marrocos foi a recuperação da
identidade para a libertação total, não apenas territorial, mas também ideológica. Recuperouse a moeda nacional, a economia, os territórios e na actualidade as línguas vernaculares. Todas
as comunidades imaginadas se consideram antigas e é esta busca da génese, das tradições, das
raízes que motivaram o nacionalismo no processo da independência. Assim, a representação
simbólica do passado português na independência nacional marroquina assumiu contornos
bastante distintos do que temos visto até aqui. Foi necessário identificar os grandes feitos e os
grandes líderes para compor a narrativa do passado da comunidade e das grandes dinastias. A
batalha dos Três Reis foi frequentemente considerada, neste momento de emergência
nacionalista, como o início de uma idade de ouro marroquina, o ponto de partida da epopeia
de Ahmed Al Mansour que estendeu os limites do império Sádida até aos confins do território
do Mali.
Os vestígios de uma presença portuguesa em Marrocos passaram, na transição para a
independência, a representar a unidade marroquina, como vimos anteriormente, para a
consolidação da nação e do nacionalismo. As políticas de conservação patrimonial
permaneceram adormecidas após a independência, pois não representavam uma prioridade
para o restabelecimento da autonomia nacional. Mas, com o passar dos anos, a relação entre
Marrocos e Portugal passou a representar uma aproximação estratégica de abertura do país à
Europa e pela necessidade de aproximação dos dois países, novas negociações foram feitas no
sentido de estabelecer acordos bilaterais. O imaginário do passado português passou a ser
representado de forma radicalmente distinta. O discurso era agora de um passado de
32
Henri Terrasse “Note sur les contacts artistiques entre le Maroc et le Portugal du Xve au XVIIe siècle” in Mélanges
d’études luso-marocaines dédiés à la mémoire de David Lopes et Pierre de Cénival, Collection Portugaise, 6º vol.,
Lisboa, Portugália Editora, 1945, p. 404 [Os arquitectos portugueses não tinham nada para aprender com essas
fortalezas arcaicas, mal adaptadas ao terreno e pouco capazes de resistir ao canhão.]
As representações simbólicas do passado português em Marrocos: História e ideologia
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aproximação cultural e de tolerância, perfeitamente imiscuído na vivência marroquina:
“Partout où l’on passe à El Jadida, on découvre les traces d’une histoire riche et variée dont la
cité portugaise (Mazagan), le phare de Sidi Bouafi, le théatre municipal, l’immeuble Cohen…
Malheureusement, la place forte de Mazagan (Mazagão ou la cité portugaise), bijou
architectural inestimable et symbole de tolérance et de cohabitation parfaite des trois religions
monothéistes dans une terre d’Islam, est actuellement mal exploitée touristiquement.”33 Tal
como este artigo, podemos encontrar na imprensa nacional marroquina, nos discursos oficiais,
nos comunicados do CPML a exaltação de um passado comum de uma história partilhada, da
tolerância inter-religiosa. Com a excepção do momento da batalha que continua a ser
encarado como símbolo supremo de vitória e independência, todo o restante património
material e artístico é encarado como exemplo bem sucedido de um hibridismo aceitável de
“influences croisées entre les cultures européene et marocaine, qui apparaissent clairement
dans l’architecture, la technologie et l’urbanisme.”34 Com a inscrição de Mazagão como
património da humanidade em Marrocos, este tipo de argumentos passaram a ser uma
produção perfeitamente aceitáveis, ou até mesmo desejáveis. Um património da humanidade
deve representar tolerância, emancipação, valores universais e não pode, de todo, representar
um símbolo de repressão de uma comunidade, o que desencadearia uma crise diplomática.
r t y
Conclusões
“[…] il n’y a pas de patrimoine sans un texte qui le fonde et que l’énonciation de celui-ci, ou au moins
son élucidation, est rétrospective. Ce que désigne Michelet, c’est ce dédoublement qui caractérise
l’existence à la fois fragile et impérieuse des objets patrimoniaux : d’une part, ce qui insiste à exister,
reproduction in-dé-finie de sa propre trace dans les choses et les mémoires, legs d’un passé qu’on ne
choisit pas plus que sa propre famille, avec lequel il faut vivre et composer – y compris, comme le
souligne Renan, en en oubliant des pans entiers, voire en le reniant – et qui fonde l’appartenance
collective à une « nation », quelle que soit par ailleurs la façon de la nommer ; de l’autre des objets qui
n’ont pas d’existence en dehors de notre « imagination », c’est-à-dire en dehors de systèmes de
représentations et de gestions qui les inscrivent dans la trame du présent et les téléologies de la cité et
33
Abdelmajid Nejdi “El Jadida – Fierté et authenticité de Mazagan" in Le Matin du Sahara, 01.07.2007[Por onde
quer que passemos em El Jadida, descobrimos vestígios de uma história rica e variada da qual fazem parte a
cisterna portuguesa, o farol de Sidi Bouafi, o teatro municipal, o imóvel Cohen… Infelizmente, a praça forte de
Mazagão (Mazagão ou cidadela portuguesa) bijou arquitectónico inestimável e símbolo de tolerância e coabitação
perfeita das três religiões monoteístas em terra do Islão, é actualmente mar explorada turisticamente.]
34
Autor desconhecido “Les nouvelles inscriptions portens à 775 le nombre de sites classés : Mazagan, sur la liste du
patrimoine mondial à sauvegarder" in Le Matin du Sahara, 03.07.2004 [influências cruzadas entre as culturas
europeia e marroquina, que aparecem claraente na arquitectura, na tecnologia e no urbanismo.]
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qui commandent leur efficace propre comme repères, témoins ou référents de l’identification
35
collective.”
Lendo a história podemos dizer que nos momentos de dominação, da colonização, surge
um desejo de elevação, de liberdade como reacção a uma perda de identidade eminente. Este
estado psicológico exprime-se como reacção materializável em narrativas que pretendem
representar simbolicamente os patrimónios da história nacional.
O discurso dos poderes emergentes reescreve a história e confere legitimidade aos
vestígios e memórias dessa mesma história. Os processos de identificação, nomeação e
classificação do património têm uma motivação fortemente ideológica e francamente
politizada. Estas opções reflectem-se assim em toda a estrutura social, no tecido humano e no
tecido construído exaltando momentos históricos e omitindo factos que não contribuem para
uma construção desejada da identidade. Podemos assumir que o património português em
Marrocos não tem ainda uma presença claramente reconhecida por toda a comunidade
marroquina, é certo, e é muitas vezes ignorado mesmo a nível local. Porém, a ideia transversal
da antiguidade subjacente ao conceito de ser português, as representações e comemorações
da batalha, a constituição do CPML, a par com outros centros de estudos dos patrimónios de
carácter vernacular marroquinos, revelam que a utilização da ideia de património português é
indubitavelmente uma referência em todo o território e constitui uma pedra de fundação
importante na identidade nacional. “As grandes barragens tornaram-se assim em
monumentos históricos, e a do ued al-Makhâzin consagra um local. E do mesmo modo uma
gare, inaugurada em 1978, ano da celebração do quarto centenário da vitória. No mesmo
momento em que o príncipe herdeiro se dirigiu a Tânger onde uma representação da batalha
era inaugurada no museu militar miniatura do palácio Mendube. (…) Dez anos mais tarde,
35
Alain Roussillon, “À propos de quelques paradoxes de l’appropriation identitaire du patrimoine", in Patrimoines en
situation. Constructions et usages en différents contextes urbains, Beyrouth / Rabat, Presses de l'Ifpo / Centre
Jacques Berque (« Études contemporaines »), 2010, p. 2 [“[…] não existe património sem um texto que o funde e
que a sua enunciação, ou pelo menos a sua elucidação, seja retrospectiva. O que define Michelet, é este
desdobramento que caracteriza a existência por vezes frágil por vezes imperativa dos objectos patrimoniais: por
um lado, o que insiste em existir, reprodução in-de-finida da sua própria marca nas coisas e nas memórias, legado
de um passado que não escolhemos como a nossa própria família, com a qual temos que viver e lidar –
compreende, como sublinha Renan, o esquecimento de segmentos inteiros, ou seja a renegação – e que
fundamenta a pertença colectiva a uma “nação”, qualquer que seja também o seu modo de nomeação; por outro
lado os objectos que não existem fora da nossa “imaginação”, ou seja fora dos sistemas de representações e
gestões que os inscrevem no quadro do presente e nas teleologias da cidade e que comandam a sua eficácia própria
como indicadores, testemunhos ou referentes da identificação colectiva.]
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colocava-se em Suaken, uma das aldeias situadas no local onde se desenrolou a batalha, a
primeira pedra de um grande anfiteatro ao ar livre destinado a acolher as manifestações
políticas e culturais que acompanham as comemorações anuais. Desde inaugurações à
abertura de novas obras, o nome da batalha inscreve-se nos frontões de um número cada vez
maior de edifícios públicos, simbólicos, portanto da comunidade nacional.”36
r t y
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36
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