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Maio/2011
Entrevista
A usinagem nos tempos do
carro elétrico: o que muda?
Denise Marson, da redação
E
Protótipo do Daily Elétrico, caminhão desenvolvido
pela Iveco em parceria com a Itaipu Binacional
▲
le pode ser visto com cada vez
mais frequência nas capas de
revistas, das especializadas às
técnicas, passando pelas semanais e até mesmo pelas que têm
cunho ecológico e/ou social.
Talvez não falte muito tempo
para que seja possível assistir
aos seus comerciais na televisão e aos anúncios em publicações. Daí, para chegarem em
maior número às ruas brasileiras, será apenas uma questão
de tempo e de redução de custos. O carro elétrico já é realidade em diversos países do
mundo e tudo leva a crer
que não falta muito para
que o Brasil receba – ou
até mesmo fabrique – em
larga escala exemplares
com emissão zero.
Iveco
Com o apelo da sustentabilidade, os veículos movidos
a energia elétrica ganham mais espaço entre as
opções de mobilidade nos tempos modernos. Questão
delicada para quem trabalha com usinagem no Brasil
– uma atividade intensamente ligada ao ramo
automotivo – o assunto ainda é um tanto nebuloso.
Em um exercício de futurologia, Máquinas e Metais
conversou com João Fernando Gomes de Oliveira,
diretor-presidente do Instituto de Pesquisas
Tecnológicas (IPT), na tentativa de dar pistas sobre os
desafios tecnológicos que esta opção trará aos
profissionais envolvidos com o chão de fábrica.
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tos também são abordados na
entrevista a seguir.
Máquinas e Metais: Na sua
opinião, qual será o impacto do
carro com motor elétrico nas
empresas que executam
processos de usinagem para
esse setor?
João Fernando: Deve ter muita mudança na manufatura, mas
isso deve acontecer progressivamente durante os próximos 30
anos. Não será de uma só vez
porque o carro elétrico não conseguirá entrar no mercado imediatamente. Primeiro entrará o
carro híbrido, com powertrain diferente do convencional. Por ter
os dois sistemas, também tem
mais componentes.
Na montagem do carro híbrido entram motores elétricos e
componentes novos para as empresas de autopeças, coisas que
elas, de alguma forma, já estão
habituadas a fazer. Mas há grandes diferenças entre os sistemas
de acionamento e transmissão.
No carro híbrido, há duas fontes
de transmissão de torque e de
movimento. Então, o sistema de
transmissão é diferente.
O motor elétrico, no entanto,
é um componente novo, assim
como o sistema de frenagem com
acúmulo de energia. Há várias
peças manufaturadas que serão
diferenciadas, mas a grande mudança mesmo é a proporcionalidade entre torque e rotação: o
carro elétrico tem muito torque
mesmo a baixa rotação.
Muita gente já afirma que a
versão full do futuro terá um
motor elétrico em cada roda,
como é o caso do lançamento da
Mercedes-Benz (o esportivo
SLS AMG E-Cell). Neste caso,
o motor é propulsão e freio ao
mesmo tempo e, dessa forma,
também é gerador para acumular energia. Por aí, já dá para
imaginar a redução na quantidade de componentes.
Há uma expectativa de que
o número de componentes do
powertrain caia de 7 a 10 mil
peças num automóvel para 100,
200 peças em um sistema de
propulsão elétrica. Os processos
de usinagem devem continuar
a existir, mas muito mais ligados aos componentes elétricos,
sem tantos problemas de lubrificação e desgaste como os componentes do motor a combustão,
que são altamente complexos,
com altos índices de temperatura e corrosão.
Como essa mudança é muito
drástica e os componentes passam a ser diferentes, a indústria
de manufatura e a indústria de
máquinas – que fazem planejamento a longo prazo – têm que
começar a pensar em mudanças
dos seus produtos. Mas como o
híbrido agregará as duas tecnologias, é como se você começasse a fazer um sem perder o outro. Depois, uma coisa se transforma na outra.
Qual seria o prazo de transição
mais confiável para as
empresas se adequarem?
A progressão é o híbrido convencional, depois o híbrido
plug-in, que também recarrega
▲
A tecnologia não é nova: os
primeiros veículos movidos a
energia elétrica são quase tão
velhos quanto os equivalentes
a combustão do século 19. No
Brasil, a Gurgel lançou o primeiro projeto de carro elétrico
em 1974 e ele seria pioneiro na
América Latina. Ultimamente,
por causa da pressão para reduzir as emissões de gás carbônico (CO 2), a ideia foi resgatada, mas ainda há uma série de desafios que precisam
ser superados.
E como ficará a usinagem
dentro deste novo cenário?
Considerando a importância
da indústria automotiva para
o setor no país, o temor pode
tomar conta do ambiente em
que essa atividade predomina,
já que o número de itens usinados em um carro elétrico
cairá drasticamente: calculase que de 7 a 10 mil peças para
de 100 a 200. Para o pesquisador João Fernando Gomes de
Oliveira, diretor-presidente do
Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), isso pode sinalizar para as empresas que fazem planejamento a longo prazo que talvez seja a hora de
mudar seus produtos.
Segundo ele, a adaptação
para o veículo elétrico será
gradativa ao longo dos próximos 30 anos. Antes dele, o Brasil deverá adotar veículos híbridos – que combinam o motor a combustão com a propulsão elétrica. Impactos tecnológicos e até mesmo a filosofia
do desenvolvimento de produ-
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Entrevista
laboratórios. O interessante seria que as cidades tivessem opções como, por exemplo, as bicicletas das grandes capitais
europeias. Com isso, diminui a
quantidade de carros e, consequentemente, a poluição.
Esse tipo de solução deve
viabilizar o carro elétrico mais
cedo, mas tê-lo à disposição
como convencional ainda deve
demorar em virtude de limitações tecnológicas, e até geopolíticas, para a obtenção, por
exemplo, de materiais para as
baterias, como os ímãs de terras raras. Por isso tudo, o custo
de manufatura das baterias ainda é altíssimo.
Para fazer um carro totalmente elétrico, do tipo comercial de
médio porte hoje, a bateria sairia mais cara do que o carro inteiro. E o carro seria muito pesado também. As mudanças no
automóvel são no sentido de perder peso, de usar novos materiais, mais leves, como os compósitos. Por isso, o período de
transição do híbrido pode durar
duas ou três décadas.
O mais urgente então seria
diminuir o peso e substituir
os materiais? É com isso
que a indústria deve se
preocupar no momento?
O processo de transformação
vai acontecendo conforme os
pontos críticos vão ficando mais
evidentes. Por exemplo, hoje em
dia, qual é a grande pressão?
Baixar emissões. E como se faz
isso? Reaproveitando a energia
da frenagem para carregar a bateria. Para isso, eu faço um carro
híbrido que gera energia e, com
ela, a bateria é carregada.
Dessa forma, o motor elétrico faz uma forcinha junto com o
▲
e roda como o elétrico, mas
quando acaba a bateria passa
para a combustão, e depois virá
o carro totalmente elétrico. O
carro elétrico é indicado para
situações urbanas ou situações
específicas nas quais o veículo
não é usado como hoje. Por
exemplo, nos centros das grandes cidades, onde você teria à
sua disposição carros para circular apenas ali ou para serviços internos.
Hoje, eles são muito usados
nas empresas. As empilhadeiras
e os carrinhos para transporte
de pessoas, por exemplo, são
todos elétricos, com baterias
substituíveis. Quer dizer, falar
que os carros elétricos só vão
acontecer daqui a 30 anos é
uma bobagem, porque aqui
mesmo, no IPT, temos um veículo desses que transporta materiais para serem testados nos
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Entrevista
Então, ainda há ideias para o
motor a combustão evoluir?
Sim, e elas irão acontecer. A
própria transição do carro a combustão para o elétrico envolve
outras revoluções de conceito em
relação ao uso do produto. Tratase de uma área da manufatura
em que se estuda a venda do uso
ao invés da venda do produto, o
que se chama PSS ou PS2 (de Product Service System).
E qual a diferença disso?
Quando você compra um modelo de bicicleta, por exemplo, e
logo depois o fabricante lança
outro melhor, você vai querer
comprar a nova. Dessa forma, ele
usa o desenvolvimento e a tecnologia para manter o mercado.
Agora, quando você compra o
uso de uma bicicleta, ela tem que
ter tudo o que há de melhor para
durar bastante tempo. É o contrário: como eu quero vender o
uso, eu quero que ela dure bastante. E se o negócio é vender a
bicicleta, eu quero que você compre uma para, logo em seguida,
comprar outra.
Essa transformação na manufatura ou na forma de gerenciar
o negócio é das mais radicais. E
muita gente acha que essa transformação deve entrar no ramo
dos veículos automotivos também. Você não vai comprar um
carro, vai comprar o seu uso. E
qual seria a diferença em termos
de produto? Ao invés de você
montar um carro que terá uma
O esportivo SLS AMG E-Cell da Mercedes-Benz
possui motor elétrico nas quatro rodas
nova lanterna e novos itens no
ano que vem, para motivar nova
compra, você vai querer fazer um
supercarro, supermoderno, com
toda tecnologia que é possível no
momento, de forma que ele tenha uma vida mais longa. Essa é
uma mudança importante.
E qual seria o reflexo
na manufatura?
Com relação ao mundo da
manufatura mais hard, a mecânica, a usinagem, a indústria
de máquinas e ferramentas e a
indústria de autopeças já estão
enfrentando progressivamente,
ao longo das duas ou três décadas, uma inserção de processos mais relacionados ao contexto da propulsão elétrica. Os
processos incluem a usinagem
de materiais mais leves, a
exemplo de ligas de alumínio
e compósitos – o alumínio aparece em vários componentes,
Mercedez-Benz
combustível, o nível de consumo do carro baixa muito e as
emissões também. Em um motor que vem sendo desenvolvido
há muito tempo, como é o caso
do motor a combustão, é muito
difícil obter um ganho de emissões hoje em dia. De repente, ao
acrescentar um motor elétrico,
você consegue isso.
▲
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motores. Por exemplo, uma válvula de escapamento normalmente é feita por dois materiais
soldados: a cabeça da válvula,
que é um material muito mais
resistente à temperatura e ao
desgaste, e a haste, que não precisa desses atributos. Com isso,
o produto tem seu custo reduzido porque você não usa um
material nobre em todo o componente. Essa tendência de
união e junção entre materiais
vai ser um desafio importante
para quem fabrica.
Nas empresas que utilizam
processos de usinagem, se a gente imaginar que vão ser necessários mais motores elétricos, eu
vou ter mais componentes intrínsecos ao motor elétrico, como
chapas ou lâminas com propriedades magnéticas, que são estampadas, exigem muito trabalho
de conformação, ou têm eixos
mais longos e esbeltos que requerem processos de torneamento
mais delicados ou até retificação
do tipo centerless.
Essa é a tendência, mas nada
disso deve acontecer a curto prazo. As mudanças são grandes,
mas devem demorar. Devem ter
mais sucesso as empresas que
conseguem olhar mais longe para
tentar entender como será o futuro, e já começarem a se preparar, a se adaptar.
Isso envolve também mais
precisão nas operações?
Em alguns casos. Mas não
entendo que precisão seja algo
tão crítico, porque o motor a
combustão evoluiu muito em termos de desempenho, com base
na precisão dos componentes.
As tolerâncias de circularidade
de alguns componentes e mancais em válvulas de motores, por
▲
inclusive no motor elétrico –
porque o carro elétrico não
pode ter muito peso.
Além disso, há os desafios de
integrar diferentes materiais em
um mesmo componente no qual
uma parte pode precisar de muita resistência e outra pode ser
leve. No (modelo) Citroën C4
Pallas, o capô é de alumínio, o
para-lama de plástico, a porta de
chapa de aço, o para-brisa é de
vidro e a coluna de aço. Como são
todos juntados?
Imagina que o automóvel
pode ter todo o frame de fibra
de carbono, mas como se parafusa uma fibra de carbono? Ela
é boa porque é leve e resistente, mas a rosca pode estourar.
Vai ser necessário usar uma
pastilha adequada. A fusão entre materiais em diferentes regiões do componente é uma tendência. Isso já acontece em
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Mas o custo do produto
final não vai ser menor
por causa disso...
... por causa das baterias. E
se você imaginar que não é
mais tão difícil fazer um carro,
o mercado mundial de automóveis não precisa ser dominado pelas mesmas empresas.
Isso quer dizer que a oportunidade de ter novos players é
grande, uma vez que a tecnologia ficou mais acessível.
É um processo parecido
com o que ocorreu na informática. A IBM ou a Apple lançaram os primeiros computadores e você tinha dois grandes fabricantes no mundo. De
repente, a tecnologia tornouse padronizada, simplificou,
modularizou – o computador
era uma máquina praticamente integrada, única e depois
virou uma união de placas – e
aí todo mundo começou a fazer computador em qualquer
lugar do mundo. Hoje há muitas marcas e players que entram no mercado e rapidamente se estabelecem. Eu
acho que pode acontecer um
processo parecido com a indústria automobilística.
Vamos falar de uma
realidade que já está
mais próxima, a do carro
híbrido. O senhor acredita
que o Brasil está preparado
para produzi-lo?
Acredito que sim. Há mercado. Os desafios de emissões podem ser divididos em
globais e locais. Os desafios
▲
exemplo, são de 4 a 5 μm.
Uma haste de válvula de motor tem tolerância de 4 μm. Os
erros de forma e posição são
muito apertados, com tolerâncias dimensionais de mais ou
menos 3 ou 4 μm, porque as
folgas são muito pequenas e,
portanto, a variação delas tem
que ser pequena.
Um mancal entre virabrequim e bloco com bronzina,
por exemplo, tem folga de 0,02
mm. Acredito que o motor já
tenha superado desafios de
precisão gigantescos para
chegar ao ponto em que está.
E, para o futuro, haverá novos paradigmas de fabricação,
que não o tradicional de melhorar a precisão.
Acho que a tendência é
esse processo estacionar, e o
desafio tecnológico de manufatura ser sobreposto a outras
demandas, como as relacionadas com as novas formas de
componentes, materiais mais
leves e a fusão/junção entre
materiais diferentes.
Se formos observar o que
é um powertrain elétrico e o
que é o powertrain a combustão, vamos ver que o
modelo a combustão é muito mais complicado. Então,
o elétrico virá para simplificar a produção. E aí aparecerá outra grande oportunidade, pois para se fazer um
carro já não serão necessárias milhares de peças, apenas algumas centenas. Isso
significa que não será tão
difícil fazer um carro.
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Entrevista
energia elétrica para rodar veículos mais eletrificados, para rodar os plug-ins.
No Brasil, parece que a
grande tendência é de, inicialmente, importar os veículos híbridos, mas a aceitação do mercado tem muito a ver também
com imposições legais de redução de emissões, subsídios etc.
Na minha visão, os híbridos
serão a etanol.
Combinaria o motor a
combustão movido a etanol
com o motor elétrico?
Exatamente. Aí você tem um
carro que não polui porque a
cana plantada no campo reabsorve o CO2. E a hibridização, mesmo que seja plug-in, com a qual
você consome mais energia elétrica, poderia ser apoiada por
uma produção maior de energia
pelos produtores de cana-de-açú-
car, uma matriz energética cada
vez mais sustentável. É com base
nessa estratégia que a gente planeja o futuro das tecnologias que
desenvolvemos no IPT. Temos
energia solar, gaseificação de
biomassa para produção de mais
energia ou mesmo novos materiais para produção de componentes de energia eólica etc.
É possível prever o
tempo até que o Brasil
comece a produzir
tanto o veículo híbrido
quanto o elétrico?
Isso é muito vago porque depende de muitos fatores, de
m u i t o s m a r c o s l e g a i s . Po r
exemplo, na Califórnia, você
poderia ter um desconto no
imposto de renda a pagar caso
comprasse um carro híbrido.
Então, o comprador pensa: o
dinheiro que eu vou gastar a
▲
locais são baixar as emissões
em uma região com alta concentração de pessoas, mesmo
que globalmente a fonte de
energia seja poluidora, como a
gerada pelo carvão, por exemplo. E o desafio global é o efeito estufa. Então, se eu continuo
poluindo, mas de uma fonte de
energia limpa, o resultado é
menos danoso. As grandes
vantagens do etanol no Brasil
criam uma perspectiva de hibridização do veículo por etanol,
que parece ser um caminho
mais adequado.
Existem discussões globais de
que o carro elétrico pode poluir
mais porque você tem que produzir mais energia elétrica e
queimar mais carvão. E se no
Brasil nós temos uma matriz limpa e continuarmos com ela, poderemos usar a cana-de-açúcar
e o bagaço para produzir mais
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isso possa acontecer nos próximos 5 ou 10 anos, vai depender
dessas condições.
Existe alguma montadora
que já está pensando em fazer
híbrido no Brasil? A princípio
não, mas vai depender de todos esses marcos e dessas condições regulatórias e do desenvolvimento das tecnologias,
mas não é tão impossível.
O senhor está a par de políticas
de incentivo para a produção
de carros elétricos?
O Ministério da Ciência e
Tecnologia (MCT) está fazendo
uma rede de carros elétricos.
Estão sendo apoiadas iniciativas de pesquisa em eletrificação
de veículos através do sistema
Sibratec (www.mct.gov.br/sibratec), o Sistema Brasileiro de
Tecnologia, que tem três grandes braços: o primeiro é o de
serviços tecnológicos; o segundo é a extensão e o apoio à pequena e à média empresa; e o
terceiro são centros de inovação
para novas tecnologias de maneira integrada às indústrias.
Atualmente, há uma rede específica voltada para o tema e os
projetos estão sendo analisados
pela Financiadora de Estudos e
Projetos (Finep).
■
mais para ter um híbrido, eu
vou economizar no imposto de
renda, vai valer a pena.
Em São Paulo, agora há uma
lei de emissões com perspectiva de redução, até o ano de
2020, de 20% em relação a 2005.
Essa lei deve produzir alguns
desdobramentos, algumas regulamentações, que podem estimular a comercialização desses
veículos, porque eles são mais
caros. Se isso acontecer no Brasil, as indústrias de manufatura podem avaliar as vantagens
de ter um negócio de produção
desses carros aqui ou não. Acho
que é perfeitamente factível que
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