34 Maio/2011 Entrevista A usinagem nos tempos do carro elétrico: o que muda? Denise Marson, da redação E Protótipo do Daily Elétrico, caminhão desenvolvido pela Iveco em parceria com a Itaipu Binacional ▲ le pode ser visto com cada vez mais frequência nas capas de revistas, das especializadas às técnicas, passando pelas semanais e até mesmo pelas que têm cunho ecológico e/ou social. Talvez não falte muito tempo para que seja possível assistir aos seus comerciais na televisão e aos anúncios em publicações. Daí, para chegarem em maior número às ruas brasileiras, será apenas uma questão de tempo e de redução de custos. O carro elétrico já é realidade em diversos países do mundo e tudo leva a crer que não falta muito para que o Brasil receba – ou até mesmo fabrique – em larga escala exemplares com emissão zero. Iveco Com o apelo da sustentabilidade, os veículos movidos a energia elétrica ganham mais espaço entre as opções de mobilidade nos tempos modernos. Questão delicada para quem trabalha com usinagem no Brasil – uma atividade intensamente ligada ao ramo automotivo – o assunto ainda é um tanto nebuloso. Em um exercício de futurologia, Máquinas e Metais conversou com João Fernando Gomes de Oliveira, diretor-presidente do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), na tentativa de dar pistas sobre os desafios tecnológicos que esta opção trará aos profissionais envolvidos com o chão de fábrica. Maio/2011 tos também são abordados na entrevista a seguir. Máquinas e Metais: Na sua opinião, qual será o impacto do carro com motor elétrico nas empresas que executam processos de usinagem para esse setor? João Fernando: Deve ter muita mudança na manufatura, mas isso deve acontecer progressivamente durante os próximos 30 anos. Não será de uma só vez porque o carro elétrico não conseguirá entrar no mercado imediatamente. Primeiro entrará o carro híbrido, com powertrain diferente do convencional. Por ter os dois sistemas, também tem mais componentes. Na montagem do carro híbrido entram motores elétricos e componentes novos para as empresas de autopeças, coisas que elas, de alguma forma, já estão habituadas a fazer. Mas há grandes diferenças entre os sistemas de acionamento e transmissão. No carro híbrido, há duas fontes de transmissão de torque e de movimento. Então, o sistema de transmissão é diferente. O motor elétrico, no entanto, é um componente novo, assim como o sistema de frenagem com acúmulo de energia. Há várias peças manufaturadas que serão diferenciadas, mas a grande mudança mesmo é a proporcionalidade entre torque e rotação: o carro elétrico tem muito torque mesmo a baixa rotação. Muita gente já afirma que a versão full do futuro terá um motor elétrico em cada roda, como é o caso do lançamento da Mercedes-Benz (o esportivo SLS AMG E-Cell). Neste caso, o motor é propulsão e freio ao mesmo tempo e, dessa forma, também é gerador para acumular energia. Por aí, já dá para imaginar a redução na quantidade de componentes. Há uma expectativa de que o número de componentes do powertrain caia de 7 a 10 mil peças num automóvel para 100, 200 peças em um sistema de propulsão elétrica. Os processos de usinagem devem continuar a existir, mas muito mais ligados aos componentes elétricos, sem tantos problemas de lubrificação e desgaste como os componentes do motor a combustão, que são altamente complexos, com altos índices de temperatura e corrosão. Como essa mudança é muito drástica e os componentes passam a ser diferentes, a indústria de manufatura e a indústria de máquinas – que fazem planejamento a longo prazo – têm que começar a pensar em mudanças dos seus produtos. Mas como o híbrido agregará as duas tecnologias, é como se você começasse a fazer um sem perder o outro. Depois, uma coisa se transforma na outra. Qual seria o prazo de transição mais confiável para as empresas se adequarem? A progressão é o híbrido convencional, depois o híbrido plug-in, que também recarrega ▲ A tecnologia não é nova: os primeiros veículos movidos a energia elétrica são quase tão velhos quanto os equivalentes a combustão do século 19. No Brasil, a Gurgel lançou o primeiro projeto de carro elétrico em 1974 e ele seria pioneiro na América Latina. Ultimamente, por causa da pressão para reduzir as emissões de gás carbônico (CO 2), a ideia foi resgatada, mas ainda há uma série de desafios que precisam ser superados. E como ficará a usinagem dentro deste novo cenário? Considerando a importância da indústria automotiva para o setor no país, o temor pode tomar conta do ambiente em que essa atividade predomina, já que o número de itens usinados em um carro elétrico cairá drasticamente: calculase que de 7 a 10 mil peças para de 100 a 200. Para o pesquisador João Fernando Gomes de Oliveira, diretor-presidente do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), isso pode sinalizar para as empresas que fazem planejamento a longo prazo que talvez seja a hora de mudar seus produtos. Segundo ele, a adaptação para o veículo elétrico será gradativa ao longo dos próximos 30 anos. Antes dele, o Brasil deverá adotar veículos híbridos – que combinam o motor a combustão com a propulsão elétrica. Impactos tecnológicos e até mesmo a filosofia do desenvolvimento de produ- 35 38 Maio/2011 Entrevista laboratórios. O interessante seria que as cidades tivessem opções como, por exemplo, as bicicletas das grandes capitais europeias. Com isso, diminui a quantidade de carros e, consequentemente, a poluição. Esse tipo de solução deve viabilizar o carro elétrico mais cedo, mas tê-lo à disposição como convencional ainda deve demorar em virtude de limitações tecnológicas, e até geopolíticas, para a obtenção, por exemplo, de materiais para as baterias, como os ímãs de terras raras. Por isso tudo, o custo de manufatura das baterias ainda é altíssimo. Para fazer um carro totalmente elétrico, do tipo comercial de médio porte hoje, a bateria sairia mais cara do que o carro inteiro. E o carro seria muito pesado também. As mudanças no automóvel são no sentido de perder peso, de usar novos materiais, mais leves, como os compósitos. Por isso, o período de transição do híbrido pode durar duas ou três décadas. O mais urgente então seria diminuir o peso e substituir os materiais? É com isso que a indústria deve se preocupar no momento? O processo de transformação vai acontecendo conforme os pontos críticos vão ficando mais evidentes. Por exemplo, hoje em dia, qual é a grande pressão? Baixar emissões. E como se faz isso? Reaproveitando a energia da frenagem para carregar a bateria. Para isso, eu faço um carro híbrido que gera energia e, com ela, a bateria é carregada. Dessa forma, o motor elétrico faz uma forcinha junto com o ▲ e roda como o elétrico, mas quando acaba a bateria passa para a combustão, e depois virá o carro totalmente elétrico. O carro elétrico é indicado para situações urbanas ou situações específicas nas quais o veículo não é usado como hoje. Por exemplo, nos centros das grandes cidades, onde você teria à sua disposição carros para circular apenas ali ou para serviços internos. Hoje, eles são muito usados nas empresas. As empilhadeiras e os carrinhos para transporte de pessoas, por exemplo, são todos elétricos, com baterias substituíveis. Quer dizer, falar que os carros elétricos só vão acontecer daqui a 30 anos é uma bobagem, porque aqui mesmo, no IPT, temos um veículo desses que transporta materiais para serem testados nos 40 Maio/2011 Entrevista Então, ainda há ideias para o motor a combustão evoluir? Sim, e elas irão acontecer. A própria transição do carro a combustão para o elétrico envolve outras revoluções de conceito em relação ao uso do produto. Tratase de uma área da manufatura em que se estuda a venda do uso ao invés da venda do produto, o que se chama PSS ou PS2 (de Product Service System). E qual a diferença disso? Quando você compra um modelo de bicicleta, por exemplo, e logo depois o fabricante lança outro melhor, você vai querer comprar a nova. Dessa forma, ele usa o desenvolvimento e a tecnologia para manter o mercado. Agora, quando você compra o uso de uma bicicleta, ela tem que ter tudo o que há de melhor para durar bastante tempo. É o contrário: como eu quero vender o uso, eu quero que ela dure bastante. E se o negócio é vender a bicicleta, eu quero que você compre uma para, logo em seguida, comprar outra. Essa transformação na manufatura ou na forma de gerenciar o negócio é das mais radicais. E muita gente acha que essa transformação deve entrar no ramo dos veículos automotivos também. Você não vai comprar um carro, vai comprar o seu uso. E qual seria a diferença em termos de produto? Ao invés de você montar um carro que terá uma O esportivo SLS AMG E-Cell da Mercedes-Benz possui motor elétrico nas quatro rodas nova lanterna e novos itens no ano que vem, para motivar nova compra, você vai querer fazer um supercarro, supermoderno, com toda tecnologia que é possível no momento, de forma que ele tenha uma vida mais longa. Essa é uma mudança importante. E qual seria o reflexo na manufatura? Com relação ao mundo da manufatura mais hard, a mecânica, a usinagem, a indústria de máquinas e ferramentas e a indústria de autopeças já estão enfrentando progressivamente, ao longo das duas ou três décadas, uma inserção de processos mais relacionados ao contexto da propulsão elétrica. Os processos incluem a usinagem de materiais mais leves, a exemplo de ligas de alumínio e compósitos – o alumínio aparece em vários componentes, Mercedez-Benz combustível, o nível de consumo do carro baixa muito e as emissões também. Em um motor que vem sendo desenvolvido há muito tempo, como é o caso do motor a combustão, é muito difícil obter um ganho de emissões hoje em dia. De repente, ao acrescentar um motor elétrico, você consegue isso. ▲ 42 Maio/2011 Entrevista motores. Por exemplo, uma válvula de escapamento normalmente é feita por dois materiais soldados: a cabeça da válvula, que é um material muito mais resistente à temperatura e ao desgaste, e a haste, que não precisa desses atributos. Com isso, o produto tem seu custo reduzido porque você não usa um material nobre em todo o componente. Essa tendência de união e junção entre materiais vai ser um desafio importante para quem fabrica. Nas empresas que utilizam processos de usinagem, se a gente imaginar que vão ser necessários mais motores elétricos, eu vou ter mais componentes intrínsecos ao motor elétrico, como chapas ou lâminas com propriedades magnéticas, que são estampadas, exigem muito trabalho de conformação, ou têm eixos mais longos e esbeltos que requerem processos de torneamento mais delicados ou até retificação do tipo centerless. Essa é a tendência, mas nada disso deve acontecer a curto prazo. As mudanças são grandes, mas devem demorar. Devem ter mais sucesso as empresas que conseguem olhar mais longe para tentar entender como será o futuro, e já começarem a se preparar, a se adaptar. Isso envolve também mais precisão nas operações? Em alguns casos. Mas não entendo que precisão seja algo tão crítico, porque o motor a combustão evoluiu muito em termos de desempenho, com base na precisão dos componentes. As tolerâncias de circularidade de alguns componentes e mancais em válvulas de motores, por ▲ inclusive no motor elétrico – porque o carro elétrico não pode ter muito peso. Além disso, há os desafios de integrar diferentes materiais em um mesmo componente no qual uma parte pode precisar de muita resistência e outra pode ser leve. No (modelo) Citroën C4 Pallas, o capô é de alumínio, o para-lama de plástico, a porta de chapa de aço, o para-brisa é de vidro e a coluna de aço. Como são todos juntados? Imagina que o automóvel pode ter todo o frame de fibra de carbono, mas como se parafusa uma fibra de carbono? Ela é boa porque é leve e resistente, mas a rosca pode estourar. Vai ser necessário usar uma pastilha adequada. A fusão entre materiais em diferentes regiões do componente é uma tendência. Isso já acontece em 44 Maio/2011 Entrevista Mas o custo do produto final não vai ser menor por causa disso... ... por causa das baterias. E se você imaginar que não é mais tão difícil fazer um carro, o mercado mundial de automóveis não precisa ser dominado pelas mesmas empresas. Isso quer dizer que a oportunidade de ter novos players é grande, uma vez que a tecnologia ficou mais acessível. É um processo parecido com o que ocorreu na informática. A IBM ou a Apple lançaram os primeiros computadores e você tinha dois grandes fabricantes no mundo. De repente, a tecnologia tornouse padronizada, simplificou, modularizou – o computador era uma máquina praticamente integrada, única e depois virou uma união de placas – e aí todo mundo começou a fazer computador em qualquer lugar do mundo. Hoje há muitas marcas e players que entram no mercado e rapidamente se estabelecem. Eu acho que pode acontecer um processo parecido com a indústria automobilística. Vamos falar de uma realidade que já está mais próxima, a do carro híbrido. O senhor acredita que o Brasil está preparado para produzi-lo? Acredito que sim. Há mercado. Os desafios de emissões podem ser divididos em globais e locais. Os desafios ▲ exemplo, são de 4 a 5 μm. Uma haste de válvula de motor tem tolerância de 4 μm. Os erros de forma e posição são muito apertados, com tolerâncias dimensionais de mais ou menos 3 ou 4 μm, porque as folgas são muito pequenas e, portanto, a variação delas tem que ser pequena. Um mancal entre virabrequim e bloco com bronzina, por exemplo, tem folga de 0,02 mm. Acredito que o motor já tenha superado desafios de precisão gigantescos para chegar ao ponto em que está. E, para o futuro, haverá novos paradigmas de fabricação, que não o tradicional de melhorar a precisão. Acho que a tendência é esse processo estacionar, e o desafio tecnológico de manufatura ser sobreposto a outras demandas, como as relacionadas com as novas formas de componentes, materiais mais leves e a fusão/junção entre materiais diferentes. Se formos observar o que é um powertrain elétrico e o que é o powertrain a combustão, vamos ver que o modelo a combustão é muito mais complicado. Então, o elétrico virá para simplificar a produção. E aí aparecerá outra grande oportunidade, pois para se fazer um carro já não serão necessárias milhares de peças, apenas algumas centenas. Isso significa que não será tão difícil fazer um carro. 46 Maio/2011 Entrevista energia elétrica para rodar veículos mais eletrificados, para rodar os plug-ins. No Brasil, parece que a grande tendência é de, inicialmente, importar os veículos híbridos, mas a aceitação do mercado tem muito a ver também com imposições legais de redução de emissões, subsídios etc. Na minha visão, os híbridos serão a etanol. Combinaria o motor a combustão movido a etanol com o motor elétrico? Exatamente. Aí você tem um carro que não polui porque a cana plantada no campo reabsorve o CO2. E a hibridização, mesmo que seja plug-in, com a qual você consome mais energia elétrica, poderia ser apoiada por uma produção maior de energia pelos produtores de cana-de-açú- car, uma matriz energética cada vez mais sustentável. É com base nessa estratégia que a gente planeja o futuro das tecnologias que desenvolvemos no IPT. Temos energia solar, gaseificação de biomassa para produção de mais energia ou mesmo novos materiais para produção de componentes de energia eólica etc. É possível prever o tempo até que o Brasil comece a produzir tanto o veículo híbrido quanto o elétrico? Isso é muito vago porque depende de muitos fatores, de m u i t o s m a r c o s l e g a i s . Po r exemplo, na Califórnia, você poderia ter um desconto no imposto de renda a pagar caso comprasse um carro híbrido. Então, o comprador pensa: o dinheiro que eu vou gastar a ▲ locais são baixar as emissões em uma região com alta concentração de pessoas, mesmo que globalmente a fonte de energia seja poluidora, como a gerada pelo carvão, por exemplo. E o desafio global é o efeito estufa. Então, se eu continuo poluindo, mas de uma fonte de energia limpa, o resultado é menos danoso. As grandes vantagens do etanol no Brasil criam uma perspectiva de hibridização do veículo por etanol, que parece ser um caminho mais adequado. Existem discussões globais de que o carro elétrico pode poluir mais porque você tem que produzir mais energia elétrica e queimar mais carvão. E se no Brasil nós temos uma matriz limpa e continuarmos com ela, poderemos usar a cana-de-açúcar e o bagaço para produzir mais Maio/2011 isso possa acontecer nos próximos 5 ou 10 anos, vai depender dessas condições. Existe alguma montadora que já está pensando em fazer híbrido no Brasil? A princípio não, mas vai depender de todos esses marcos e dessas condições regulatórias e do desenvolvimento das tecnologias, mas não é tão impossível. O senhor está a par de políticas de incentivo para a produção de carros elétricos? O Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) está fazendo uma rede de carros elétricos. Estão sendo apoiadas iniciativas de pesquisa em eletrificação de veículos através do sistema Sibratec (www.mct.gov.br/sibratec), o Sistema Brasileiro de Tecnologia, que tem três grandes braços: o primeiro é o de serviços tecnológicos; o segundo é a extensão e o apoio à pequena e à média empresa; e o terceiro são centros de inovação para novas tecnologias de maneira integrada às indústrias. Atualmente, há uma rede específica voltada para o tema e os projetos estão sendo analisados pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). ■ mais para ter um híbrido, eu vou economizar no imposto de renda, vai valer a pena. Em São Paulo, agora há uma lei de emissões com perspectiva de redução, até o ano de 2020, de 20% em relação a 2005. Essa lei deve produzir alguns desdobramentos, algumas regulamentações, que podem estimular a comercialização desses veículos, porque eles são mais caros. Se isso acontecer no Brasil, as indústrias de manufatura podem avaliar as vantagens de ter um negócio de produção desses carros aqui ou não. Acho que é perfeitamente factível que 47