Maria João Avillez
Francisco Sá Carneiro:
Solidão e Poder
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Título original: Francisco Sá Carneiro: Solidão e Poder
Autora: Maria João Avillez
Revisão: Lídia Freitas
Editora: Sara Gomes
Capa: Rui Garrido
Fotografia da capa: Rui Ochôa
Fotografia da autora: Carlos Ramos
ISBN 9789895556052
Ao Francisco, sem a presença de quem não me tinha
sido possível escrever estas páginas.
À minha irmã Maria José, confidente dos bons
e maus momentos desta aventura.
NOTA PRÉVIA
Três décadas após a sua publicação, lembrou-se a Leya de reeditar este livro. Foi uma boa surpresa, espero que tenha sido sobretudo
uma boa ideia. Fala-se tanto de Francisco Sá Carneiro e conhece-se
tão pouco o homem, o seu caminho, o que quis fazer e o que deixou
feito... Por mim, aplaudi esta reedição, onde cabe em corpo inteiro
um retrato feito de palavras: as que na altura – não cortei uma só
palavra, não acrescentei uma linha, nada alterei nesta reedição – me
pareceram as mais adequadas para apanhar o voo de uma anima, as
contradições de um homem, o galope de uma vontade, o sonho de
uma vida. Não o teria porventura voltado a escrever assim, o tempo
e a passagem do tempo sobre as coisas deixam marca e conferem
peso. Julgo porém que o que distingue o retrato por mim feito
ontem se mantém intacto hoje: para os que conheceram Francisco Sá
Carneiro e para os que vão agora passar a conhecê-lo.
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PREFÁCIO
À NOVA EDIÇÃO
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Foi sempre preciso fazer caso de Francisco Sá Carneiro. Entre o
final dos anos 60 e o início da década seguinte, espevitou os espíritos, desinstalou as mentes, arejou o ar político e com isso incomodou o regime. Ao tempo, não era pouco. Elegera como palco a
Assembleia Nacional, tinha como ambição começar a mudar os dias
«por dentro» e como instrumento a Ala Liberal, recém-criada sob o
olhar ainda benévolo de Marcelo Caetano. Sá Carneiro, com menos
ilusões e mais pressa, queria trocar a baça agonia desses dias pela
aurora de uma era civilizada, europeia e com regras políticas decentes. Acreditou que era capaz, perdeu o desafio dois anos depois
quando, com uma amargura humilhada se viu constrangido a abandonar a morada parlamentar. Por pouco tempo: a partir de Abril de
74 foi outra vez preciso fazer caso dele. Esperara a sua hora. Não
sabia quando ou como ela se anunciaria, sabia que chegaria. Mesmo
se o país, entretido com a revolução, demorou a aperceber-se e, porventura ainda mais, a saber lidar com ele. Não que este advogado
portuense, de 39 anos, ajudasse: só dizia o que queria e não queria
o que os outros queriam, nunca se impedindo de manifestar, com
tanto de veemência quanto de convicção, tal «dissintonia». Ele e o
PPD, aliás, partido que entretanto idealizara e fundara e paremos
agora, mesmo que brevemente, neste gesto fundador, datado do dia
6 de Maio de 1974. Foi ao final da tarde e ocorreu na Rua Duque
de Palmela, em Lisboa.
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O PPD? Nos idos do ano da graça de 1974 o PPD começou
por ser uma resposta. Uma resposta dos «homens bons da terra».
Em Portugal existia por essa altura um corpo intermédio da sociedade que começara a ganhar consciência cívica e política com a
Ala Liberal, a Sedes, a portuense Cooperativa Confronto, a JUC, o
Expresso, encontrando assim alguns espaços de intervenção. Não se
revia numa solução marxista nem em qualquer projecto que tivesse
como fim o comunismo ou o socialismo. Eram profissionais liberais,
médicos, advogados, mas também pequenos proprietários, pequenos comerciantes, uma malha forte de gente que tinha já uma independência material ou profissional, em suma. O PPD começou por
se implantar assim nacionalmente, primeiro no norte, depois, país
fora. E quando procedeu à sua própria exteriorização, ela ocorreu
ao contrário dos outros partidos que brotavam de dentro para fora,
e não de fora para dentro como aqui, e sem uma ideologia pré-existente. Do ponto de vista doutrinário nasceu assim uma impressão digital originada pelo cruzamento do que fora o pensamento da
Sedes, do que era a doutrina social da Igreja, do que significara a Ala
Liberal. Foi esta mescla de humanismo, de afirmação do primado
da pessoa humana, que traduziu o pensamento político dos primeiros homens do PPD. Um vasto mar de gente que se identificava
com este «espírito», muito mais do que com os cânones da ideologia.
Que aliás quase não tinha e até talvez dispensasse.
Mas tinham Francisco Sá Carneiro. Ou melhor, havia sobretudo
Sá Carneiro. Senhor de um inequívoco espírito social-cristão, temperado pelo seu liberalismo político (mais do que económico, sublinhe-se) grande cultor das liberdades públicas e praticante de um
personalismo cosmopolita e aberto, teve a mestria de ir tecendo e
levantando aquilo que genuinamente acreditava ser adequado tecer
e levantar na sua pátria, a social democracia. Na altura, porém, prometer, defender e acarinhar a social-democracia era como insultar
alguém e a esquerda confundia-a com um inferno a que chamava
«fascismo». Mas foi esse o modelo eleito. Sobre a social-democracia
discorreu — e convenceu — Sá Carneiro; e da sua prática permaneceu convicto.
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Parece assim descabido — sejamos sérios! — insistir em ver neste
homem o prisioneiro de uma lógica política que se esgotaria no
liberalismo, ou emprestar-lhe falsos arroubos na matéria… Não.
Tratava-se de uma social-democracia que resultava da síntese entre
o projecto nacional de Sá Carneiro e a (sua) a preocupação social,
a que é imprescindível acrescentar a componente europeia sem a
qual o quadro ficaria ingratamente incompleto. A Europa, sim. Um
desígnio prioritário, uma preocupação, uma vontade. Cedo manifestada no Portugal de Abril de 74 mas com a segurança e o conhecimento que advinham de escolha antiga e reflectida. E com o país a
emitir inquietantes e insensatos sinais de desvios terceiro-mundistas
e com tantos arautos — militares, mas também civis… — a reclamarem-se das bondades de tal «projecto», ainda mais Sá Carneiro
acelerou a sua vontade de que Portugal tivesse participação efectiva no cenário europeu. E mesmo que a sua lucidez quanto a essa
imprescindibilidade fosse inversamente proporcional ao quadro e ao
ambiente políticos vigente... que importância? Tudo menos desistir ou claudicar.
Não foi senão isto que acima tentei resumir — a eleição da social-democracia como «inspiração» interna e a Europa como grande
objectivo externo — que ele nos foi dizendo ao longo dos anos.
E com isso interpretando o que de melhor havia no país, amalgamando, Portugal fora, energias e vontades. Seduzindo, surpreendendo, dividindo. E ousando, sobretudo: foi o primeiro a denunciar
a revolução e o primeiro a desviar-se dela, o primeiro a oferecer
amanhãs que não cantavam no coro da festa vigente. Que o mesmo
é dizer o primeiro a preocupar-se com o país e o seu descaminho.
Mas doente, ausente de Portugal (entre o final de 74 e o Outono
de 75) e sem meios de acção ou influência foi Mário Soares quem
inteira, justa e exclusivamente ocupou o devant de la scène com a
correspondente, e aliás muito feliz, chefia das tropas contra revolucionárias. Que à época, recorde-se, mediam — e pesavam — quase
o mesmo que o próprio país.
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Antes e depois disso, porém, e com a irresponsabilidade aspergida
pelo ar do tempo, costumava dizer-se de Francisco Sá Carneiro que
era «caprichoso», «instável», quem sabe mesmo se «insuportável». Eu
própria o disse também. Era verdade que dava trabalho: incomodava na exacta proporção em que abominava a ideologia dominante e ainda mais o compromisso com ela, e quem é que queria
lidar com um desmancha-prazeres capaz de subverter assim os prazeres da festa? Alguém que, não raro com excesso e quase sempre
com crispação, ia sempre contra as coisas?
Quando voltou a Portugal após longa convalescença, primeiro
em Londres, depois no Sul de Espanha, repegou o mote onde o deixara: a urgente construção de uma democracia reformista, civilista,
europeia. Sem compromisso com o que estava ou com o que fora,
a anos-luz das meias-tintas ou meias-medidas que o horrorizavam
e a que nunca deu trégua. Sempre esteve inteiro nas coisas e agora
tinha ainda mais pressa.
Trazia com ele sobretudo o que de mais importante o PPD,
depois PSD, ciosamente guardou até tarde no tempo: a diferença.
Uma marca que nem os que estavam dentro, nem os que estavam
fora sabiam muito bem definir mas que era directamente proporcional á diferença da personalidade de Sá Carneiro: um homem que
podia ser ele próprio antes de ser o que quer que fosse.
Dizia o que (ainda) não se queria ouvir e muito cedo entendeu o
alcance do que era preciso fazer e como; usava um verbo forte, possuía um discurso tenso e antes de outros, detectou o que (lhe) pedia
coragem, (lhe) exigia determinação, (lhe) reclamava energia. Já o
escrevi muitas vezes: vi Francisco Sá Carneiro entrar e sair, partir e
voltar, bater, esgrimir, incomodar, dividir. Vi-o abandonar por mais
de uma vez a liderança da sua barca, namorar o PS, conspirar com
o Dr. Soares, enfrentar congressos tempestuosos. Ficar de mármore
face à dissidência de primeiras figuras e de gelo com o humilhante
abandono de uma centena de deputados «seus» que de um segundo
para o outro, no dia 4 de Abril de 1979, cortaram as amarras do
grupo parlamentar do PSD e começaram, hostilmente, uma nova
vida política no mesmo hemiciclo. Vi-o remar sempre na mesma
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direcção — a da ruptura com o que estava — para depois atingir o porto das reformas que tinha por indispensáveis para a transição democrática e o enjeu europeu que sempre advogou. Também
por isso o vi ter razão antes do tempo e pagar por vezes um preço
exorbitante pela ousadia de destoar ou não caber na ortodoxia do
tempo. Não era um outsider mas até se chegar a uma célebre Primavera, no final dos anos 70, quando metade de Portugal se rendeu a
ele, era quase como se o fosse.
Um belo dia, tal como no antigo regime inventara a Ala Liberal e anos depois produzira o PPD, criou uma nova força política.
Mais forte, mais sólida, mais ampla, mais credível, era uma aliança
política liderada pelo PPD que entretanto já se intitulava PSD e se
escorava no CDS de Freitas do Amaral e Amaro da Costa, no PPM
de Ribeiro Telles e em meia-dúzia, se tanto, de independentes, arregimentados e liderados por Medeiros Ferreira e António Barreto.
Chamou-se Aliança Democrática, nasceu em 79 e com ela, ele, Sá
Carneiro, quase virou o país do avesso da revolução e eu também o
vi fazer isso. Ou seja, vi-o começar outra história política batendo-se como um general que fosse ao mesmo tempo um soldado. É
que era preciso que o país, todo o país, percebesse a dimensão, a
profundidade, o significado daquilo que com os seus amigos e pares
ele arquitectara, essa tal «Aliança Democrática». Com ela esquadrinhou o país de lés-a-lés, explicou, insistiu, convenceu. E quatro anos
depois da revolução oferecia ao Centro e à Direita a sua primeira
vitória política. Estava-se em Dezembro de 79 e tratava-se agora
de arredar de vez a dimensão pretoriana da era pós-revolucionária. Tonificando a qualidade democrática do regime constitucional
e com isso iniciando um novo ciclo. Onde, para além dessa «desmilitarização» do regime coubessem — por exemplo — objectivos
como a legitimidade da empresa privada ou a autonomia da sociedade civil. Num país estatizado, era a «liberalização» possível e em
qualquer caso era obra! Sustentada num pensamento, num critério,
numa determinação férrea.
Mesmo que ainda balbuciantemente, Portugal começava o seu
processo de normalização cuidando ao mesmo tempo da meta
europeia. Mudavam-se os tempos, mudavam-se os combates.
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Todo o percurso do PSD passou assim a ser o de inscrever a plena
democracia na rota dos nossos ventos, afirmando-a no país. Um
percurso de construção de um sistema político que o fosse de facto,
do ponto de vista constitucional, jurídico, organizacional.
Mas era preciso ser capaz de pensar, produzir e accionar tudo isto
e Francisco Sá Carneiro foi.
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Agindo como um homem de pensamento e pensando como
um homem de acção, foi muitas vezes inspirado pela premonição
com que previu ou captou os eventos para neles depois intervir por
antecipação. Levou para a política um carisma indefinível e o gozo
do risco. Porque desconcertava, seduziu, incomodou e dividiu. Ia
semeando adeptos, fazendo incondicionais, desesperando detractores.Tinha a vontade e a convicção dessa vontade, foi popular porque
foi capaz de ser impopular, seguido porque dividia, amado porque
repudiava. E foi contra que venceu. Insisto: uma atitude portadora
da matriz de uma «diferença» traduzida no valor da iniciativa, na
liberdade individual, no primado da pessoa, na noção de valorização do cidadão, que até hoje se mantém impressa na idiossincrasia
do partido.
Um dia disse-me que fosse a sua casa pelas sete da tarde. Era
então primeiro-ministro e eu espantei-me: «Às sete?» «Procuro estar
sempre em casa a essa hora, não dispenso o meu chá ao fim da
tarde.» Praticava a civilização e as boas maneiras, possuía um humor
fino, sabia o que era um bom vinho, escolher um charuto, comprar
um quadro.
Gostava da vida e gostava de falar dela, mesmo que à beira de
todas as guerras, no auge de todas as batalhas, ou mesmo quando as
tarefas se tornavam «impossíveis».
Voltaram — ele e a sua Aliança Democrática — a ganhar com
maioria absoluta em Outubro de 80 mas Francisco Sá Carneiro
sabia que não chegava. Era preciso ainda vencer Eanes, ou melhor,
era sobretudo preciso derrotar o então presidente da República,
que ele abominava. Também acompanhei isso a par e passo, na corrida das eleições presidenciais do ano de 80: no Norte e no Sul, em
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Lisboa e fora dela, nos Açores, na Madeira, nos ecrãs da televisão.
Francisco Sá Carneiro tinha o olhar febril e a ansiedade da corrida
contra o tempo, contra os interesses instalados, contra os militares,
contra o que estava. Era urgente, era o último combate. Se o seu
candidato (o general Soares Carneiro) perdesse, ele, ia-se embora.
Ouvi-lhe dizer isso mais que uma vez nas últimas semanas da campanha eleitoral, quando o ar quase se tornara irrespirável e a tensão política atingira o seu clímax. Como quando o encontrei, uma
noite, no Buçaco, onde jantava antes de um comício em Coimbra:
«Eu vou-me embora...»
No dia 1 de Dezembro vi-o intervir num comício em Évora,
antes disso estivera com ele em Viseu, no dia 3 encontrei-o em
S. Bento, no gabinete onde oficiava como primeiro-ministro de
Portugal. Disse-lhe que ele tinha um «mau candidato», respondeu-me que seria «um excelente presidente» e eu escrevi isso mesmo,
no Expresso dessa semana. Mas no final da conversa, subitamente,
ouvi-o ainda anunciar-me, sem pré-aviso, que afinal «amanhã vou
ao Porto... sim, é preciso ir ao Porto...»
No dia seguinte, trocou Setúbal pelo Porto e a vida pela morte.
Não terá havido porventura encontro mais verosímil. A última
porta e derradeira saída de cena para este homem a quem a morte
transformara, antes do tempo. Mas morre-se sempre antes de tempo,
a vida em destino.
A-dos-Negros, 14 de Agosto de 2010
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AGRADECIMENTO
Este livro não poderia ter sido escrito sem a inestimável contribuição dos testemunhos daqueles que durante toda uma vida conviveram com Francisco Sá Carneiro: Maria Francisco Lumbrales
Sá Carneiro; Ricardo, Ana Maria e Maria Joana Sá Carneiro; Isabel Nunes de Matos Sá Carneiro; Francisco, Isabel, Teresa, José e
Pedro Sá Carneiro. Que todos eles encontrem aqui a expressão da
minha mais sentida gratidão. Foram igualmente muito importantes
os diálogos travados com personalidades que seguiram de perto Sá
Carneiro e que acompanharam o seu percurso humano e político:
D. António Ferreira Gomes, Bispo do Porto; Adelino de Palma Carlos; António de Spínola; André Gonçalves Pereira; António Barreto;
Almeida Bruno; Antero Leite Pereira de Seabra; António Alçada
Baptista; António Capucho; António Leite de Castro; Amândio
de Azevedo; António e Maria João Sande Lemos; Álvaro Barreto;
Augusto de Carvalho; Barbosa de Melo; Conceição Monteiro; Carlos Macedo; Carlos Azeredo; Carlos Castro Fernandes; Eurico de
Melo; frei Mateus; frei Bento Domingues; Francisco Pinto Balsemão; Francisco Sousa Tavares; Fernando Lopes (Restaurante Tavares); Glória de Matos; Helena Roseta; Helena Vaz da Silva; Joaquim
Pinto Machado; Joaquim Magalhães Mota; José Miguel Júdice; José
Luís Nunes; João Morais Leitão; José Blanc; João David Nunes; José
Manuel dos Santos; Jorge Sá Borges; Lucienne Abecassis; Luís Beiroco; Mário Soares; Mário Pinto; Miguel Veiga; Manuel Brito; Marcelo Rebelo de Sousa; Maria das Dores Cardoso; Manuela Calheiros;
Montalvão Machado; Margarida Patrício Gouveia; Natália Correia;
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Publicações D. Quixote; Rui e Maria Fernanda Machete; Rui de
Carvalho; Rui Vilar; Rui Brito e Cunha; Salles Lane; Vasco Abecassis; Vasco Vieira de Almeida; Vital Moreira; Vítor Constâncio.
Sua Excelência o presidente da República, general Ramalho Eanes,
aceitou enviar um texto, respondendo à minha solicitação nesse
sentido.
Agradeço ainda a colaboração de Luísa de Castro, directora dos
Serviços de Documentação do Partido Social-Democrata; de José
Mário Costa que pacientemente reviu estas 240 páginas e de Madalena Paiva Raposo, que dedicadamente me ajudou a dactilografá-las.
Enfim, agradeço aos meus amigos, Eduardo Prado Coelho, José
Miguel Júdice, Jaime Nogueira Pinto e Marcelo Rebelo de Sousa
o enorme favor que me fizeram ao aceitar serem os primeiros críticos e leitores deste livro.
A todos, o meu sincero obrigado.
Maria João Avillez
Lisboa, Setembro-Dezembro de 1981
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INTRODUÇÃO
Este livro não é de modo nenhum, uma biografia exaustiva de
Francisco Sá Carneiro. Escrito ainda sobre o fogo e as cinzas de
um desaparecimento próximo, a própria força das coisas impõe a
ausência do grande juiz de sentimentos e valores que é o tempo, ou,
por outras palavras, de perspectiva histórica. É antes, com limitações
e virtudes, tão só um primeiro retrato. Retrato do homem lentamente esboçado através da memória das memórias, dos que amaram, acompanharam, conheceram ou hostilizaram o personagem;
primeiro retrato susceptível de ângulos mais baços ou vivos, de tons
mais agressivos ou esmorecidos, de linhas mais firmes ou ténues, um
primeiro retrato-fresco, intimista, polícromo, mas creio apesar de
tudo vivo, sentido, humano.
Feito a partir do que subsiste quando se desaparece, é o retrato
de um homem, misto de pensamento e de acção, fraqueza e força,
dúvida e vontade, matéria e espírito. Mas também do político que
foi, agressivo, frontal, inflexível muitas vezes por imperativo de vitória e sobrevivência.
Quando iniciei este trabalho tive a consciência dos problemas
que se me colocavam, dos riscos da obra, das insatisfações que iria
provocar – a começar pela minha –, da busca desesperada do personagem, através das palavras alheias, ora comovidas ora mistificadoras,
todas de certa forma iludidas porque condicionais de sentimentos
fortes e emoções recentes, da angústia, em suma, que sempre provoca essa viagem ao fundo das coisas.
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Por isso este retrato não podia ter mistificação, favor ou devoção no seu traçar, do mesmo modo que o biógrafo deve arrancar da
perspectiva do personagem quaisquer sentimentos que obscureçam,
dominem ou alterem a narrativa.
Por isso também é esta a história de um homem comum, que as
circunstâncias aqui e ali engrandecem, para tudo acabar num epílogo a que o desfecho dá a dimensão do trágico.
«La mort transforme la vie en destin», dizia André Malraux. Mas
há que recusar a tentação de reinventar um homem vivo e que
viveu, redescobrindo-lhe os estigmas da predestinação no quotidiano da infância, da juventude ou da maturidade, e aceitar o desafio de, atento e humilde, voltado para o fio dos dias e caminho do
personagem, tomar conta dele nessa perspectiva quase sagrada que
é a humanidade de cada homem.
Maria João Avillez
Lisboa, Setembro-Dezembro de 1981
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