CURSO ORDEM JURÍDICA E MINISTÉRIO PÚBLICO
O POSICIONAMENTO CONSTITUCIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO ENTRE
OS “PODERES” DO ESTADO NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE 1988
Aluno: FRANKE JOSÉ SOARES ROSA
BRASÍLIA
2009
2
FRANKE JOSÉ SOARES ROSA
O POSICIONAMENTO CONSTITUCIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO ENTRE
OS “PODERES” DO ESTADO NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE 1988
Monografia apresentada à Fundação Escola
Superior do Ministério Público do Distrito
Federal e Territórios, sob a orientação do
Professor Paulo Gustavo Gonet Branco,
como requisito parcial para a conclusão do
Curso de Pós-Graduação lato sensu Ordem
Jurídica e Ministério Público.
BRASÍLIA
2009
3
RESUMO
A Constituição da República de 1988 tratou o Ministério Público com riqueza inédita, o
que acirrou no Brasil o debate a respeito da natureza jurídica do Ministério Público:
enquanto alguns o consideram um órgão ligado ora ao Poder Executivo, ora ao
Judiciário, outros tantos defendem constituir ele um “Quarto Poder” do Estado, ao lado
daqueles explicitados na Constituição. O presente estudo visa analisar, com rigor
científico, o posicionamento constitucional do Ministério Público entre os “Poderes” do
Estado a partir da Constituição da República de 1988, inclusive o Ministério Público
que atua junto ao Tribunal de Contas da União e, por simetria, os que oficiam perante os
Tribunais de Contas dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
Palavras-chave: Monografia; Direito Constitucional; Ministério Público; Natureza
Jurídica; Poderes do Estado; Funções do Estado; Quarto Poder.
4
SUMÁRIO
Introdução .................................................................................................................................. 6
CAPÍTULO I – Viver em Sociedade: Função e Poder Político ..............................................11
1) Sociedades Políticas ..................................................................................................................... 11
2) Por que o homem vive em sociedade? ........................................................................................ 12
3) Função e Poder Políticos: Conceito, Surgimento e Desenvolvimento HistóricoErro! Indicador não definido.
3.1) O Poder Político nas Sociedades Remotas.............................................. Erro! Indicador não definido.
3.2) O Poder Político com o Surgimento do Estado Moderno ....................... Erro! Indicador não definido.
4) Exercício das Funções do Estado ............................................................................................... 22
Capítulo II – Da Separação Dos Poderes ................................................................................25
1) Diferença entre Distinção de Funções do Poder Político e Separação de Poderes ................ 25
2) Elementos Fundamentais da Separação de Poderes.......................Erro! Indicador não definido.
2.1) Critérios de distinção de Funções do Estado ........................................................................................ 29
3) A Teoria da Separação dos Poderes de Montesquieu............................................................... 33
3.1) O Contexto Histórico da Teoria de Montesquieu ................................................................................. 34
3.2) Montesquieu e a Tripartição dos Poderes em Sistema de Freios e Contrapesos ................................... 36
4) Poder Constituinte como Pressuposto da Teoria da Separação Dos Poderes ........................ 40
5) Sistema de Freios e Contrapesos: apenas uma das formas de Limitação do Poder .............. 41
6) O Princípio da Separação dos Poderes na Constituição Federal de 1988: Poder
Político e Poder Constituinte........................................................................................................... 43
6.1) As Cláusulas Parâmetros do Princípio da Separação dos Poderes ........................................................ 44
6.1.1) A Independência e a Harmonia entre os Poderes................................. Erro! Indicador não definido.
6.1.2) A Cláusula da Indelegabilidade ......................................................................................................... 48
6.1.3) A Cláusula da Inacumulabilidade de Funções ................................... 4Erro! Indicador não definido.
6.2) Poder Legislativo .................................................................................. 5Erro! Indicador não definido.
6.2.1) A Atividade Legislativa ................................................................................................................ 51
6.2.2) A Atividade Fiscalizatória (Função Executiva) ............................ 5Erro! Indicador não definido.
6.3) Poder Executivo .................................................................................................................................... 56
6.4) Poder Judiciário .................................................................................................................................... 61
6.4.1) Princípio do Amplo Acesso ao Judiciário ..................................................................................... 63
6.4.2) Princípios da Imparcialidade e Inércia .......................................................................................... 67
6.5) Princípio da Separação dos Poderes como Cláusula Pétrea .................................................................. 69
Capítulo III – Do Ministério Público.......................................................................................70
1) Conceito ........................................................................................................................................ 70
2) Histórico ....................................................................................................................................... 71
2.1) Origens Remotas e Próximas do Ministério Público ............................................................................ 71
2.2) As Origens do Ministério Público Brasileiro e o seu Posicionamento Constitucional ......................... 73
3) Ministério Público na Constituição de 1988 .............................................................................. 76
3.1) Ministério Público: Instituição Permanente e Essencial à Função Jurisdicional do Estado
(CF/88, Art. 127, caput, 1ª parte) ................................................................................................................ 77
3.2) O Ministério Público e a Defesa da Ordem Jurídica, do Regime Democrático e dos Interesses
Sociais e Individuais Indisponíveis (CF/88, Art. 127, Caput, 2ª Parte) ....................................................... 79
3.2.1) A Defesa da Ordem Jurídica ......................................................................................................... 79
3.2.2) A Defesa do Regime Democrático................................................................................................ 81
3.2.3) Defesa dos Interesses Sociais e Individuais Indisponíveis ............................................................ 82
3.2.4) O Interesse Público Motivador da autação do Ministério Público: órgão agente e
interveniente ............................................................................................................................................ 85
3.3) Princípios Institucionais do Ministério Público (CF/88, Art. 127, § 1º) ............................................... 86
5
3.3.1) Princípio da Unidade..................................................................................................................... 86
3.3.2) Princípio da Indivisibilidade ......................................................... 8Erro! Indicador não definido.
3.3.3) Princípio da Independência Funcional .......................................................................................... 88
3.3.4) Princípio do Promotor Natural ...................................................................................................... 89
3.4) Garantias e Vedações do Ministério Público ...................................................................................... 100
3.4.1) Garantias da Instituição: Autonomia Funcional, Administrativa e Financeira (CF/88, Art.
127, §§ 2º e 3º) ...................................................................................................................................... 100
3.4.2) Garantias dos Membros: Vitaliciedade, Inamovibilidade e Irredutibilidade de Subsídio
(CF/88, Art. 129, § 5º, I) ....................................................................................................................... 103
3.4.3) Das Vedações (CF/88, Art. 128, § 5º, II) .................................................................................... 105
3.5) As Funções Institucionais do Ministério Público ............................................................................... 105
3.6) Do Ministério Público que atua junto ao Tribunal de Contas ............................................................. 108
3.7) O Ministério Público e os Elementos Fundamentais da Separação de Poderes11Erro! Indicador não definido.
3.7.1) O Ministério Público possui Especialização Funcional? 11Erro! Indicador não definido.
3.7.2) O Ministério Público possui Independência Orgânica? 118
Conclusão........................................................................................... Erro! Indicador não definido.
Referências Bibliográficas ................................................................ Erro! Indicador não definido.
6
INTRODUÇÃO
Algumas das funções até pouco tempo exercidas pelo Ministério Público se
identificam, em certa medida, com as que eram atribuídas a antigos funcionários e
magistrados, sendo alguns deles, por isso mesmo, freqüentemente apontados como a
origem remota do Ministério Público.1
Prevalece, entretanto, o entendimento segundo o qual o Ministério Público – ao
menos nos moldes mais próximos do que o conhecemos hoje - teria surgido na França.
Quanto ao Ministério Público brasileiro, a sua origem direta é lusitana e as
principais fontes citadas a respeito são as Ordenações Manuelinas e Filipinas2, estas
últimas com período de vigência até maior no Brasil do que em Portugal.
Em 1609, quando foi criada a Relação da Bahia, a função de Promotor de Justiça
era atribuída ao Procurador da Coroa e da Fazenda, somente surgindo a
institucionalização do Ministério Público brasileiro – e ainda assim de forma bastante
incipiente - com advento do Decreto n. 848/1890 (que organizou a Justiça Federal) e do
Decreto n. 1.030/1890 (que organizou a Justiça do Distrito Federal).
O fato é que, a partir de então, o Ministério Público ganhou cada vez mais
importância3: em que pese a Constituição Imperial de 1824 sequer o mencionar e a
Constituição da República de 1891 se restringir à forma de escolha do Procurador-Geral
da República (art. 58, § 2º)4, a institucionalização do Ministério Público foi
constitucionalmente reconhecida já em 1934, até que, entremeio a outras disciplinas
constitucionais, sobreviesse a Constituição da República de 1988 – hoje em vigor -, que
o define como uma “instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado,
incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses
sociais e individuais indisponíveis” (art. 127, caput).
Conforme asseverou o Ministro Sepúlveda Pertence, do Supremo Tribunal
Federal, a Constituição de 1988 tratou o Ministério Público com riqueza inédita, “seja
sob o prisma da organização e da autonomia e independência da instituição em relação
1
MAZZILLI, Hugo Nigro, Regime Jurídico do Ministério Público. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 2001,
p. 42 e 50.
2 MAZZILLI, Hugo Nigro, op. cit., p. 47
3 MAZZILLI, Hugo Nigro, op. cit., pp. 55-57.
4 Idem, ibidem.
7
aos Poderes do Estado, seja sob o do estatuto básico das garantias e das atribuições de
seus órgãos de atuação”5, de modo que, se consideradas as constituições anteriores,
nenhuma instituição do Estado saíra tão fortalecida e prestigiada.
Na Constituição de 1988 também houve a preocupação em transferir para outros
órgãos estatais uma função tradicionalmente atribuída ao Ministério Público, qual seja,
a defesa dos interesses secundários do Estado.
Nesse contexto, chegou-se a acirrar no Brasil o debate a respeito da natureza
jurídica do Ministério Público: enquanto alguns o consideram um órgão ligado ora ao
Poder Executivo, ora ao Judiciário, outros tantos defendem constituir ele um “Quarto
Poder” do Estado, ao lado daqueles explicitados na Constituição da República.6
Levantaram-se vozes recordando Alfredo Valadão, que em momento anterior
chegara a afirmar que, “se Montesquieu tivesse escrito hoje o Espírito das Leis, por
certo não seria tríplice, mas quádrupla, a Divisão dos Poderes”.7
O presente estudo visa justamente analisar, com rigor científico, o
posicionamento constitucional do Ministério Público entre os “Poderes” do Estado a
partir da Constituição da República de 1988.
Cumpre ressaltar que, além do Ministério Público comum, a presente pesquisa
tem como objeto o Ministério Público que atua junto ao Tribunal de Contas da União
(art. 73, § 2º, I, da Constituição da República) e, por simetria, os que oficiam perante os
Tribunais de Contas dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.8
Justifica-se a pesquisa, uma vez que, embora a partir da Constituição da
República de 1988 tenha surgido um novo Ministério Público brasileiro que, de um
lado, rompe a sua tradição de defesa dos interesses secundários do Estado, e, de outro,
5
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Revista Trimestral de Jurisprudência, v. 147, janeiro de 1994, p.
129;
6 CF/88. “Art. 2º. São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo
e o Judiciário”.
7 BRASIL. Tribunal de Justiça e Tribunal de Alçada de São Paulo. Revista dos Tribunais, v. 225, ano 43,
julho de 1954, pp. 38-39.
8
Conforme será abordado mais adiante, embora constitua instituição própria, de feição constitucional,
este Ministério Público especial está ligado ao respectivo Tribunal de Contas onde atuam seus membros,
de tal forma que, a exemplo de muitas argüições de inconstitucionalidades propostas na Suprema Corte
brasileira, é inválida a designação de membros de quaisquer Ministérios Públicos comuns para atuarem
junto a Tribunais de Contas (cf., entre outros, o julgamento da Medida Cautelar na Ação Direta de
Inconstitucionalidade nº 2.068/MG, Relator Min. MARCO AURÉLIO, julgado em 15/12/1999 e
publicado no Diário de Justiça de 25/02/2000).
8
adquire um acréscimo significativo de poderes e garantias necessárias para a
concretização da parcela substancial das funções políticas que lhe foram incumbidas,
poucos trabalhos doutrinários se preocuparam em analisar especificamente se o
Ministério Público poderia ser considerado efetivamente um “Quarto Poder” do
Estado.
Talvez seja intuitivo que, a rigor, cuida-se de uma questão de pouco relevo
prático, mas parece inegável a sua utilidade científica, a começar pela circunstância de
que há uma forte ligação desse Ministério Público com a vitória das idéias iluministas
encampadas pela Revolução Francesa, entre as quais a defesa de um sistema de freios e
contrapesos.
No Brasil, notadamente a partir da Constituição de 1988, o Ministério Público
surge como um dos atores fundamentais do sistema de freio e contrapesos adotado,
reunindo parcela tão significativa da função política que, passados mais de vinte anos,
os embates sobre os limites de seu poder de atuação ainda permanecem candentes.
Daí que, ainda hoje se arrastem nos Tribunais, sobretudo na Suprema Corte,
diversos processos nos quais se discutem questões basilares sobre o Ministério Público,
de que é exemplo mais expressivo a questão quanto aos seus poderes de investigação
criminal.
De fato, questões dessa natureza tendem a ser pacificadas somente com o passar
do tempo, até porque um Estado Democrático de Direito não é algo que simplesmente
se proclama, mas algo que se constrói paulatinamente.
O que não se pode por em dúvida é que, nesse processo contínuo de
democratização, o Ministério Público tem exercido um papel de iniludível importância,
e os estudos sobre o posicionamento constitucional do Ministério Público entre os
“Poderes” do Estado somente tende a contribuir positivamente.
O que se se propõe é estudar a idéia central da separação funcional do Poder
Político e, com base em um dos principais critérios doutrinariamente apresentados,
verificar se a Constituição da República vigente, ao dar um tratamento sui generis ao
Ministério Público comum e ao Ministério Público especial, a) os erigiram à categoria
de um “Quarto Poder”; b) os subordinaram a algum dos Poderes do Estado; c) apenas
os vincularam a algum deles; ou, ainda, d) se os desvincularam de qualquer um dos
Poderes do Estado.
9
Do debate acerca do tema proposto, concernente ao posicionamento
constitucional do Ministério Público, emerge a vexata questio que constitui problema
principal dessa pesquisa: a partir da Constituição da República de 1988 o Ministério
Público pode ser considerado um “Quarto Poder” do Estado, ao lado dos “Poderes”
Executivo, Legislativo e Judiciário?
As seguintes hipóteses relativas a esta questão podem ser visualizadas:
1) Se independência orgânica e especialização funcional são elementos
fundamentais do Poder, então o Ministério Público comum e o Ministério
Público especial constituem um Quarto Poder do Estado;
2) Se a natureza jurídica da atividade do Ministério Público comum é
executiva, então ele pertence ao Poder Executivo;
3) Se a natureza jurídica da atividade do Ministério Público especial, cujos
membros atuam perante o Tribunal de Contas (CF/88, art. 130) é executiva,
então ele pertence ao Poder Executivo;
4) Se o Ministério Público comum é instituição permanente e indispensável à
função jurisdicional do Estado (CF/88, Art. 127, caput), então a supressão ou
alteração das funções e garantias ministeriais fere o Princípio da Separação
dos Poderes;
5) Se a supressão ou alteração substancial das funções constitucionais do
Ministério Público comum fere o Princípio da Separação de Poderes, então
essas funções e garantias constituem cláusulas pétreas;
6) Se o Ministério Público comum possui independência orgânica, então a
questão de seu posicionamento constitucional é meramente teórica, de
poucos efeitos dogmáticos-jurídicos;
7) Se o Ministério Público especial estabelece vínculos de subordinação com o
Tribunal de Contas onde oficiam seus membros, então ele se vincula à
respectiva Corte de Contas;
8) Se o Tribunal de Contas pertence ao Legislativo, então o Ministério Público
especial também faz parte do Poder Legislativo;
9) Se existe Tribunal de Contas Municipais, então existe o Ministério Público
especial municipal;
Para testar essas hipóteses, a metodologia empregada será a pesquisa legal,
doutrinária e jurisprudencial.
A análise legal - pautada nos critérios hermenêuticas - dará enfoque à
Constitucional da República de 1988, sem se descuidar da análise, sempre que
necessária, da legislação infraconstitucional pertinente.
10
A pesquisa doutrinária se primará pela consulta direta aos textos, evitando-se,
tanto quanto possível, as chamadas “citações indiretas”. Para tanto, recorrer-se-á não só
aos principais clássicos da literatura política e jurídica que tratam do tema, como aos
textos modernos, sem se descuidar dos aspectos históricos pertinentes a cada tópico.9
Assevere-se, por fim, que o trabalho será estruturado em três capítulos: o
primeiro versará sobre a Função e Poder Políticos, cujos conceitos são a base desta
pesquisa; o segundo capítulo tratará da Separação de Poderes, buscando os elementos
fundamentais que qualificam um órgão ou conjunto de órgãos como “Poder do Estado”;
no terceiro e último capítulo será analisado o Ministério Público comum, notadamente o
seu regime jurídico básico e a feição institucional do Ministério Público especial,
dando-se ênfase às disposições constitucionais em vigor, bem como a interpretação
destas pelo Supremo Tribunal Federal.
9
Nas ciências sociais de um modo geral, e no Direito de um modo particular, o estudo dos aspectos
históricos possui uma importância significativa, seja porque o Direito tem campo de observação limitado
aos fenômenos espontâneos, seja porque essa postura auxilia sobremaneira a compreensão do assunto.
José Carlos Moreira Alves, Ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal, ao discorrer sobre a
utilidade do estudo atual do direito romano, enquanto instrumento de educação jurídica, nos trás a
seguinte lição, válida para todo estudante que pretende aprofundar-se no estudo das ciências sociais e, por
conseguinte, no do Direito: “Nas ciências sociais, ao contrário do que ocorre nas físicas, o estudioso não
pode provocar fenômenos para estudar as suas conseqüências. É obvio que não se pratica um crime nem
se celebra um contrato apenas para se lhe examinarem os efeitos. Portanto, quem se dedica às ciências
sociais tem o seu campo de observação restrito aos fenômenos espontâneos, e o estudo destes, na
atualidade, se completa com o dos ocorridos no passado. É por isso que, se o químico, para bem exercer
sua profissão, não necessita de conhecer a histórica da química, o mesmo não sucede com o jurista”
(ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano. Vol. 1: História do Direito Romano – Instituições de
Direito Romano, parte geral e especial: direito das coisas. 3ª edição. Rio de Janeiro: Forense, p. 14).
11
CAPÍTULO I
VIVER EM SOCIEDADE:
FUNÇÃO E PODER POLÍTICOS
1) SOCIEDADES POLÍTICAS
Num sentido bem amplo, ou seja, sem distinção quanto aos seus integrantes ou
suas finalidades, entende-se por sociedade todo “agrupamento de seres que vivem em
estado gregário”10.
Interessa-nos, entretanto, considerado o objetivo específico da presente pesquisa,
o conceito - bem mais restrito - do que se entende por sociedades políticas, que consiste
no agrupamento de seres humanos para fins gerais11.
DALMO DE ABREU DALLARI, levando em conta este aspecto finalístico, sustenta
que o traço característico dos agrupamentos humanos que os qualifica como sociedades
é a realização de atividades ordenadas que, submetidas a um poder, busca um fim
próprio. DALLARI, após afirmar que esta finalidade social, globalmente considerada, é o
bem comum, tece as seguintes considerações:
“Em linguagem mais direta, e considerando as respectivas finalidades,
podemos distinguir duas espécies de sociedades, que são: a)
sociedades de fins particulares, quando têm finalidade definida,
voluntariamente escolhidas por seus membros (...) e b) sociedades de
fins gerais, cujo objetivo, indefinido e genérico, é criar as condições
necessárias para que os indivíduos e as demais sociedades que nela se
integram consigam atingir seus fins particulares (...)
As sociedades de fins gerais são comumente denominadas sociedades
políticas, exatamente porque não se prendem a um objetivo
10
AURÉLIO, Buarque de Holanda Ferreira. Dicionário Aurélio Eletrônico. Versão 2.0. Autor do
software Márcio Ellery Girão Barroso. São Paulo: Fronteira, 1997
11
Ficam excluídas desse conceito, por exemplo, as sociedades compostas de animais irracionais, bem
como as sociedades de pessoas com fins determinados, como a sociedade comercial.
12
determinado e não se restringem a setores limitados de atividades
humanas, buscando, em lugar disso, integrar todas as atividades
sociais que ocorrem no seu âmbito. (...)
Entre as sociedades políticas, a que atinge um círculo mais restrito de
pessoas é a família, que é um fenômeno universal. Além dela existem
ou existiriam muitas espécies de sociedades políticas, localizadas no
tempo e no espaço, como as tribos e clãs. Mas a sociedade política de
maior importância, por sua capacidade de influir e condicionar, bem
12
como por sua amplitude, é o Estado (...)” .
Acrescente-se que, embora este ainda seja um conceito relativamente amplo,
sempre que aqui se falar em sociedade, estas compreenderão, como gênero, todas as
sociedades políticas, cujas espécies são as mais variadas formas já existentes de
associações humanas de fins gerais.
2) POR QUE O HOMEM VIVE EM SOCIEDADE?
Há uma razão específica que teria levado o homem a viver em sociedade?
Sem embargo dos que sustentam que o motivo pelo qual o homem passou a
viver em sociedade se perdeu em suas origens13, destacam-se duas correntes que
procuraram enfrentar a questão, que há milhares de anos intriga a todos: a) Teoria do
Impulso Associativo Natural (corrente dominante) e b) Teoria Contratualista .
A Teoria do Impulso Associativo Natural possui como principais defensores
ARISTÓTELES, CÍCERO, SANTO TOMÁS DE AQUINO e RANELLETTI, que sustentam que a
sociedade é uma necessidade natural, ou seja, uma condição essencial de vida14.
De fato, o autor de A Política foi quem inicialmente sustentou que a
sociabilidade é qualidade imanente do homem (zoom politikon). Em suas palavras, o
homem é “um animal cívico, mais social do que as abelhas e os outros animais que
12
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 18ª ed., São Paulo: Saraiva, 1994,
pp. 39-41
13
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 22ª edição. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 3.
14
FRIEDE, Reis. Curso de Teoria Geral do Estado. Teoria Constitucional e Relações Internacionais. São
Paulo: Forense Universitária, 2000, p. 2
13
vivem juntos”, de tal modo que, “aquele que não precisa dos outros homens, ou não
pode resolver-se a ficar com eles, ou é um deus, ou um bruto”15.
Para ARISTÓTELES as qualidades e características humanas somente surgem
quando o homem vive em sociedade, pois é se vendo diante de seu semelhante que ele
passa a ter consciência de sua qualidade humana.
Nesse sentido aparecem em Roma (séc. I a. C) as idéias de CÍCERO e, na idade
medieval, as de SÃO TOMÁS DE AQUINO16.
Aliás, vale ressaltar que SÃO TOMÁS
DE
AQUINO visualizava apenas três casos
em que o homem poderia viver isolado dos demais: a) caso da natureza excelsa
(excellentia naturae), ou seja, o do indivíduo dotado de natureza divina, vivendo em
comunhão com a própria divindade, como Jesus em seu retiro no deserto; b) caso de
natureza doentia (corruptio naturae) doenças que impediriam o convívio social, tais
como as esquizofrênicas; e c) caso da má sorte (mala fortuna), ou seja, de acidentes,
como, por exemplo, um naufrágio ou queda de uma aeronave.17
Modernamente, a doutrina de ORESTE RANELLETTI sustenta que há uma
necessidade natural que conduz o homem à vida gregária, ao lecionar que:
“(...) só na convivência e com a cooperação dos semelhantes o
homem pode beneficiar-se das energias, dos conhecimentos, da
produção e da experiência dos outros, acumulados através de
gerações, obtendo assim os meios necessários para que possa atingir
os fins de sua existência, desenvolvendo todo o seu potencial de
aperfeiçoamento, no campo intelectual, moral e técnico”.18
Vale mencionar, a título exemplificativo, as teorias matriarcal e patriarcal,
espécies da Teoria Familiar e baseadas na Teoria do Impulso Natural, que defendem
qual teria sido a primeira espécie de formação social.
A teoria matriarcal sustenta que o primeiro estágio da evolução social teria sido
a horda, comunidade extremamente rudimentar, caracterizada pelo nomadismo, pela
15
ARISTÓTELES. A Política. Tradução de Roberto Leal Ferreira. 2ª edição. São Paulo: Martins Fontes,
1998, p. 05.
16
FRIEDE, Reis. Curso de Teoria Geral do Estado. Teoria Constitucional e Relações Internacionais. São
Paulo: Forense Universitária, 2000, p. 2.
17
AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica, I, XCVI, 4 apud ACQUAVIVA, Marcus Cládio, op. cit., p.
1301.
18
RANELLETTI, ORESTE. Instituzioni di Diritto Pubblico, apud FRIEDE, Reis, op. cit., p. 3.
14
“promiscuidade sexual” e pela ausência de comando institucionalizado, onde o
reconhecimento de vínculos de parentesco constituiria uma fase muitíssimo posterior ao
seu aparecimento, sendo principal conotação de tais vínculos a filiação materna, uterina,
enfim (mater semper certa est)19.
Para os adeptos da teoria patriarcal, a seu turno, a célula social primeira teria
sido a família, grupamento cujos componentes são aparentados pelo sangue e cuja
autoridade máxima é confiada a um chefe varão. A própria origem do Estado estaria na
união de diversas famílias, após sucessivas fases de transformação: gens – tribos –
nação - Estado20.
Assim também pensa FRIEDE, para quem a identidade entre duas pessoas fez
com que nascesse um “liame evolutivo natural, no qual a Sociedade, como agrupamento
humano, deixa de auferir esta condição básica para traduzir agrupamentos mais
complexos, numa escala natural: Sociedade Simples, Sociedade Complexa, Nação e
Estado”21.
Ainda nas lições desse autor, a identidade natural que compele o homem a
aproximar-se de outros é, num primeiro momento, de vínculos comuns, tais como a
identidade racial (independe de uma mínima convivência) e, num segundo momento, já
estabelecida uma certa convivência, identidades lingüísticas, religiosas (de crenças)
etc22.
Portanto, para a Teoria do Impulso Natural, o homem possui como característica
ou qualidade imanente a sociabilidade, que o compele à formação de vínculos sociais.
A Teoria Contratualista, por sua vez, sustenta que são fatores provocados e
externos ao homem que o levam a viver em sociedade, ou seja, os vínculos sociais não
surgiram por um impulso natural. Possui como principais defensores PLATÃO, THOMAS
HOMAS MOORE, TOMMASO CAMPANELLA, THOMAS HOBBES e ROUSSEAU23. DARCY
19
ACQUAVIVA, Marcus Cláudio. Dicionário Jurídico Brasileiro Acquaviva. 7ª edição. São Paulo:
Jurídica Brasileira, 1995, p.1107.
20
Idem, ibidem. ARISTÓTELES, de forma semelhante à teoria patriarcal, reconhece a família como
principal sociedade natural, sem, contudo, a qualificar como a primeira delas. ARISTÓTELES. A
Política, op. cit., pp. 3/4.
21
FRIEDE, Reis, op. cit., p. 14.
22
FRIEDE, Reis, op. cit., p. 4.
23
FRIEDE, Reis, op. cit., p. 3
15
AZAMBUJA acrescenta ainda os nomes de SPINOSA, GROTIUS, PUFFENDORF, TOMASIUS e
LOCKE24.
Veja-se, por exemplo, THOMAS HOBBES, para quem o homem, em seu estado
natural, não pode viver em sociedade. Segundo seu pensamento, o homem é lobo do
homem, sendo o contrato social a única forma de possibilitar a vida em sociedade. Cabe
ao Estado, de um lado, a tarefa de evitar a morte violenta de seus membros e, a estes, de
outro, se submeterem ao poder absoluto e despótico do Estado. Assim, entende ele que
o homem é um ser anti-social e que vive em grupo apenas por necessidade, ou seja, a
sociabilidade seria um fator extrínseco e impositivo.25
Nesta mesma linha contratualista, AZAMBUJA leciona que para LOCKE o contrato
baseava-se, diversamente, no consentimento de todos, que desejavam criar um órgão
para fazer justiça e manter a paz, enquanto para TOMASIUS a causa do contrato é o amor
nacional. Já para ROUSSEAU, o contrato deve ter sido geral, unânime e baseado na
igualdade dos homens, de tal forma que a “associação defenda e proteja com toda a
força comum a pessoa e os bens de cada associado e pela qual cada um, unindo-se a
todos, não obedeça, no entanto, senão a si mesmo e permaneça livre como antes”26.
Assim, a resposta para qual teria sido o motivo que levou o homem a viver em
sociedade depende da teoria que se adote. De qualquer forma, seja considerando esse
motivo como uma característica humana que o impulsiona naturalmente ao convívio
social (teoria do impulso natural), seja entendendo que a vida em sociedade é
determinada por fatores exógenos (teoria contratualista), para esse estudo importa
especialmente a constatação histórica do homem viver em sociedade desde quando se
tem notícia, por motivos que, de fato, constituem interesses comuns a todos e a cada um
em particular27.
24
AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. 36ª ed., São Paulo: Globo, 1997, p. 99
Thomas Hobbes (1588-1679) defendia que o homem é um ser anti-social por natureza e dizia que “o
homem é lobo do homem” (homo homini lupus). A vida social somente se dava por exclusiva
necessidade e requeria um aparato gigantesco para que a ordem fosse imposta: o Estado, que denominava
“Leviatã”, palavra bíblica referente a um monstro mitológico que habitava o rio Nilo e que devorava as
populações ribeirinhas. (ACQUAVIVA, Marcus Cláudio, op. cit., p. 1108).
26
AZAMBUJA, Darcy, op. cit., pp. 99 e 100
27
A este respeito também nos trás uma lição ARISTÓTELES, para quem a razão de vivermos juntos,
mesmo que não se tratasse de uma necessidade, estaria no interesse comum de, unidos, vivermos melhor.
Para ele, este é o nosso fim principal, comum a todos e a cada um em particular (ARISTÓTELES, op. cit.,
p. 53).
25
16
3)
FUNÇÃO
E
PODER POLÍTICOS: CONCEITO, SURGIMENTO
E
DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO
Função política é o conjunto de atividades necessárias para a condução da vida
social, sendo que essas atividades, de modo geral, diversificaram-se à medida que as
sociedades tornaram-se cada vez mais complexas.
Já o poder político, conforme lição de CELSO RIBEIRO BASTOS, é a autoridade
necessária em qualquer organização ou sociedade para tornar possível realizar os fins
sociais exigidos.28
Como se vê, função e poder políticos são faces de uma mesma moeda, uma vez
que, para o cumprimento da função política é imprescindível, em contrapartida, o poder
político, que é a autoridade capaz de interferir nas relações sociais.
Em outras palavras, as sociedades políticas possuem fins gerais que se traduzem,
de uma maneira global e moderna, na realização do bem comum, que se busca alcançar
por meio de um conjunto de atividades (função política), que somente podem ser
desempenhadas se existente uma autoridade capaz de interferir, de modo decisivo, nas
relações sociais (poder político). Eis, inclusive, a distinção entre finalidade, função
política e poder político.
Daí também se pode extrair que é a partir do momento em que se formam os
primeiros vínculos sociais que se diz que surgem função e poder políticos, pois desde
então será necessária a condução daquela espécie de sociedade que se formou29.
28
BASTOS, Celso Ribeiro, op. cit., p. 14. Para HOBBES, conforme exemplo anteriormente citado, a
função política do Estado era evitar a morte violenta e, para tanto, gozava de uma autoridade absoluta.
29
Se função e poder políticos surgem quando aparecem os vínculos sociais, caso se considere, por
exemplo, que estes vínculos já existiam para os adeptos da teoria matriarcal ou patriarcal, desde então
existirão a função e poder políticos. O ponto de toque da questão é saber que a função e poder políticos
surgem concomitantemente com os vínculos sociais, seja entendendo que estes vínculos foram
determinados por um impulso natural ou por fatores externos, seja adotando-se as espécies de teoria
familiar ou não.
17
Cumpre asseverar que o poder político, embora de característica instrumental,
nem sempre foi assim compreendido ou legitimamente invocado por quem o detinha.
Aliás, sob o aspecto do desenvolvimento histórico do poder político, parece
necessário divisar as sociedades em pelo menos dois momentos: as sociedades remotas
e o surgimento do Estado Moderno.
É o que se fará adiante, em brevíssimas linhas.
3.1) O PODER POLÍTICO NAS SOCIEDADES REMOTAS
O poder político nas sociedades remotas, num primeiro momento, era exercido
transitoriamente através da imposição ou escolha de um líder, um chefe que se
destacasse de alguma forma para exercer a autoridade na condução da vida social.
Inicialmente, era líder aquele que possuísse qualidades úteis ao grupo social, tal
como a força, habilidade, inteligência, experiência etc., especialmente pelo fato de, nos
tempos remotos, o modo de sobrevivência ser bastante rudimentar.
Se em certo momento histórico esse líder possuía o poder de direção do grupo
social em caráter transitório, numa fase posterior, aquele que detinha o poder político
passou a consolidá-lo. Conforme leciona ACQUAVIVA, “quando [o chefe] morresse, sua
posição seria imediatamente ocupada por outro, institucionalizando-se o poder após a
sua individualização, com a aquiescência expressa ou tácita do grupo social”30.
Destarte, a função política sempre se manifestou de alguma forma no meio
social, sem que, contudo, nas sociedades mais remotas, o poder político necessário para
exercer esta função fosse institucionalizado31. Num momento posterior o líder passou a
consolidar o exercício da função política e o grupo social passou a reconhecer o seu
poder político correlato, quando, aí sim, este foi institucionalizado.
Luiz Roberto Barroso sintetiza:
30
31
ACQUAVIVA, Marcus Cládio, op. cit., p. 1106.
Este é o caso, por exemplo, daqueles que adotam a Teoria Matriarcal.
18
No princípio era a força. Cada um por si. Depois vieram a família, as
tribos, a sociedade primitiva. Os mitos e os deuses – múltiplos,
ameaçadores, vingativos. Os líderes religiosos tornam-se chefes
absolutos. Antiguidade profunda, pré-bíblica, época de sacrifícios
humanos, guerras, perseguições, escravidão. Na noite dos tempos,
acendem-se as primeiras luzes: surgem as leis, inicialmente morais,
depois jurídicas. Regras de conduta que reprimem os instintos, a
barbárie, disciplinam as relações pessoais e, claro, protegem a
propriedade. Tem início o processo civilizatório. Uma aventura
errante, longa, inacabada. Uma história sem fim.32
3.2) O PODER POLÍTICO COM O SURGIMENTO DO ESTADO MODERNO
O que se denomina Estado Moderno, todavia, surge num dado momento desse
processo civilizatório sem fim, quando o poder político institucionalizado, necessário
para o exercício da função política, ganha uma característica peculiar num dado
território: a de soberania.
A doutrina, como sói de acontecer, também não é uníssona quanto a acepção do
termo Estado, principalmente pelo fato de surgirem correntes em vários campos do
conhecimento que tentaram defini-lo. Sobrelevam importância, todavia, os aspectos
políticos, administrativos e jurídicos, que FRIEDE condensa e integra ao conceito de
Estado, para defini-lo como “a organização político-administrativo-jurídica do grupo
social que ocupa um território fixo, possui um povo e está submetido a uma
soberania”33.
Assim, apegando-se aos seus elementos, pode-se dizer que surge o Estado, na
acepção moderna, no momento em que um povo, num território seu, passa a ter um
poder político soberano.
32
BARROSO, Luis Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais
e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 3.
33
FRIEDE, Reis, op. cit., pp. 8 e 9.
19
Com efeito, as formas de organização social anteriores a este período - tal como
as polis gregas, o Império Romano, as unidades de poder da Idade Média espalhadas
pela Europa - chegaram a desenvolver, com certa densidade, algumas instituições
políticas e idéias que ainda hoje presentes, mas não constituíam o que se entende por
Estado Moderno, já que, embora institucionalizadas, o poder político não era soberano,
não se admitindo, nalguns casos, a ingerência do Poder Político nas relações
interpessoais.
A expressão Estado Moderno, portanto, é utilizada para diferenciar de outras
formas de organizações sociais do ocidente existentes antes do século XVI. A este
respeito cabe uma observação de GONZALEZ CASANOVA:
“(...) O Estado, portanto, é uma formação social histórica, organizada
como unidade política, que tem traços estruturais característicos e que
se vai constituindo a partir da sociedade européia ocidental dos
séculos XIII e XIV. Falar, pois, de Estado Moderno é uma
redundância, já que, por definição, o Estado é a forma de organização
política da modernidade, se por ela entendermos a época histórica que
se inicia no pré-Renascimento”.34
Por isso que, quando se falar em Estado Moderno, quer se expressar uma
modalidade específica de organização social, cujo traço característico é a concentração
do poder político soberano.
Visualiza-se, assim, um marco histórico que divide as sociedades em antes e
depois da concentração soberana do poder político. Se o poder político sempre existiu
como necessidade premente para o exercício da função política, mesmo que, nas
sociedades remotas, ainda fosse difundido, sua crescente autonomia foi surgindo com
progressivas centralizações, até se tornar soberano em um dado território, dando origem
ao que se denomina Estado Moderno.
MIGUEL REALE resume este pensamento ao dizer que a história do Estado
Moderno é, de forma especial, uma história de integrações crescentes e de progressivas
reduções à unidade. Para este autor o Estado Moderno nasceu quando um povo, com
poder que, pela força e pelo direito, se organizou para a sua independência e de seu
território, surgindo a soberania como expressão de uma nova unidade cultural,
indicando a forma especial que o Poder assume quando um povo alcança um grau de
34
CASANOVA, Gonzalez. Teoria del estado e derecho constitucional, apud BASTOS, Celso Ribeiro. op.
cit., p. 10.
20
integração correspondente ao Estado Nacional. E finaliza dizendo que soberania
caracterizava o Estado Moderno, como a autarquia havia caracterizado a polis e a
civitas, e a autonomia havia sido o elemento distintivo das comunas medievais.35
Luiz Roberto Barroso condensa em breves linhas todo um período a partir do
século V, especificamente da queda do Império Romano, foram surgindo diversas
formas de organização social, até o surgimento do Estado moderno, com o seu traço
característico da soberania, que lhe permitiu se afirmar, inclusive, sobre o feudalismo, a
Igreja e o Império romano-germânico, verbis:
Nos séculos imediatamente posteriores à queda do Império Romano,
em 476, a Antiguidade Clássica defrontou-se com três sucessores: o
Império Bizantino, continuação reduzida do Império Romano, com
imperador e direito romanos; as tribos germânicas invasoras, que se
impuseram sobre a cristandade latina; e o mundo árabe do Islã, que se
expandiu a partir da Ásia, via África do Norte. Pelo milênio seguinte à
derrota de Roma, os povos da Europa integravam uma grande
multiplicidade de principados locais autônomos. Os únicos poderes
que invocaram autoridade mais ampla eram a Igreja Católica e, a
partir do século X, o Sagrado Império Romano-germânico. A
atomização do mando político marcou o período feudal, no qual as
relações de poder se estabeleciam entre o dono da terra e seus
vassalos, restando autoridade mínima para o rei, duques e condes. Já
pela alta Idade Média e por conta de fatores diversos – que incluem a
reação à anarquia da pluralidade de poderes e a revitalização do
comércio -, começa esboçar-se o processo de concentração do poder
que levaria à formação dos Estados nacionais como organização
política superadora dos modelos muito amplos e difusos (papados,
império) e dos muito reduzidos e paroquiais (tribos, feudos).
O Estado moderno surge no início do século XVI, ao final da Idade
Média, sobre as ruínas do feudalismo. Nasce absolutista, por
circunstância e necessidade, com seus monarcas ungidos por direito
divino. O poder secular liberta-se progressivamente do poder
religioso, mas sem lhe desprezar o potencial de legitimação. Soberania
35
REALE, Miguel. Teoria do Direito e do Estado. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 2000, pp. 42 a 44.
21
é o conceito da hora, concebida como absoluta e indivisível, atributo
essencial do poder estatal. Dela derivam as idéias de supremacia
interna e independência externa, essenciais à afirmação do Estado
nacional sobre os senhores feudais, no plano doméstico, e sobre a
Igreja e o Império (romano-germânico), no plano internacional. Com
Jean Bodin e Hobbes, a soberania tem seu centro de gravidade no
monarca. Com Locke e a Revolução Inglesa, ela se transfere para o
Parlamento. Com Rousessau e as Revoluções Francesa e Americana,
o poder soberano passa nominalmente para o povo, uma abstração
aristocrático-burguesa que, com o tempo, iria democratizar-se. 36
Cumpre, entretanto, fazer uma observação: o fato de existir o poder político
soberano, antes de excluir, pressupõe a existência de outros poderes sociais
subordinados, tais como o poder econômico, o poder religioso, o poder sindical, o poder
familiar, entre outros.37
A este respeito, vale transcrever as seguintes lições de JOSÉ AFONSO DA SILVA:
“(...) o poder político é superior a todos os outros poderes sociais, os
quais reconhece, rege e domina, visando ordenar as relações entre
esses grupos e os indivíduos entre si reciprocamente, de maneira a
manter o mínimo de ordem e estimular um máximo de progresso à
vista do bem comum. Essa superioridade do poder político caracteriza
a soberania do Estado (...), que implica, a um tempo, independência
em confronto com todos os poderes exteriores à sociedade estatal
(soberania externa) e supremacia sobre todos os poderes sociais
interiores à mesma sociedade estatal (soberania interna)”.38
Em suma, da noção antes expendida de poder político, se acresce, com o
surgimento do Estado Moderno, o traço de soberania, que o qualifica como a potência
ou força capaz de conduzir a vida social, sobrepondo-se a qualquer outra manifestação
de poder, seja pela coação, seja pelo respeito dos membros da sociedade. Assim que
36
BARROSO, Luis Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais
e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009, pp. 8/10.
37
BASTOS afirma que “o poder político não é outro senão aquele exercido no Estado e pelo Estado. Há
inegavelmente algumas notas individualizadoras do poder estatal. A que chama mais atenção é a
supremacia deste poder do Estado sobre todos os demais que se encontram no seu âmbito jurídico. A
criação do Estado não implica a eliminação desses outros poderes sociais: o poder econômico, o poder
religioso, o poder sindical etc. Todos eles continuam vivos na organização política. Acontece, entretanto,
que esses poderes não podem exercer a coerção máxima, vale dizer, a invocação da força física por
autoridade própria. Eles terão, sempre, de chamar em seu socorro o Estado. Nessa medida são poderes
subordinados” (BASTOS, Celso Ribeiro. op. cit., p. 14).
38
SILVA, José Afonso da, op. cit., p. 111.
22
MAQUIAVEL, o primeiro a indicar a essência do Estado Moderno39, apontava duas
opções ao príncipe: ou se conduz pelo amor ou pelo temor.40
Ressalte-se, por fim, que, nos Estados democráticos, o poder político somente é
legítimo quando invocado em benefício do povo.
4) EXERCÍCIO DAS FUNÇÕES DO ESTADO
Da clássica lição de ARISTÓTELES, para quem “o governo é o exercício do poder
supremo do Estado”41, cabe reiterar a observação de que a razão de ser do poder político
está na própria necessidade de se exercer a função política. Por isso, enquanto o poder
político é potência, governar é ação, exercício da função política42, tudo em busca
daqueles fins gerais que qualificam o agrupamento de pessoas como sociedades.
Mas através de quem se exercerá as funções do Estado?
A resposta a esta questão é dada por PAULO CÉZAR PINHEIRO CARNEIRO, para
quem “(...) as funções do Estado são exercidas através de seus órgãos, que são os
39
Apesar de não dar propriamente uma definição à palavra Estado, MAQUIAVEL foi o primeiro a
compendia-la, demonstrando sua essência. Diz este renomado autor no intróito de O Príncipe: “Todos os
Estados, todos os governos que tiveram e têm autoridades sobre os Homens, foram e são ou repúblicas ou
principados” (grifo nosso) MAQUIAVEL. MACHIAVELLI, Nícoló Di Bernardo Dei. O Príncipe.
Tradução de Roberto Grassi. 12ª edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988, p. 5.
40
MAQUIAVEL, que viveu longe do espírito democrático de nossos dias, indaga se, para o príncipe
manter unidos e leais seus súditos, “(...) é melhor ser amado que temido ou o contrário. A resposta [diz
Maquiavel] é de que seria necessário ser uma coisa e outra; mas, como é difícil reuni-las, em tendo que
faltar uma das duas é muito mais seguro ser temido do que amado. Isso porque dos homens pode-se dizer,
geralmente, que são ingratos, volúveis, simuladores, tementes do perigo, ambiciosos de ganho; e,
enquanto lhes fizeres bem, são todos teus, oferecem-te o próprio sangue, os bens, a vida, os filhos, desde
que, como se disse acima, a necessidade esteja longe de ti; quando esta se avizinha, porém, revoltam-se
(...) e os homens têm menos escrúpulo em ofender a alguém que se faça amar do que a quem se faça
temer (...) [o príncipe] deve apenas empenhar-se em fugir ao ódio (...)”. MAQUIAVEL.
MACHIAVELLI, Nícoló Di Bernardo Dei, op. cit., pp. 95/98.
41
ARISTÓTELES, op. cit., p. 105.
42
ACQUAVIVA sustenta que “(..) O poder é potência, o governo é ação. Quem exerce ativa o poder,
governa, enfim. Os governantes são a encarnação do poder. A própria etimologia da palavra governo (do
latim: conduzir, dirigir, administrar) transmite-nos esta idéia” (ACQUAVIVA, Marcus Cládio, op. cit., p.
1106).
23
instrumentos dos quais o Estado se vale para este fim” e que “funcionam como
verdadeiros centros de competência para o desempenho de suas funções estatais”.43
Dito de outra forma, o órgão estatal exerce em nome do Estado uma parcela da
função política, denominada, em sentido amplo, competência (atribuição)44, de tal forma
que, a rigor, quem está agindo é o próprio Estado.
Entretanto, o Estado e os órgãos que o compõem não possuem vida própria, são,
por si sós, inanimados, ou seja, quem lhes dá vida são as pessoas (agentes). Eis o
motivo pelo qual PAULO CEZAR PINHEIRO CARNEIRO alerta para a importância em
distinguir “o órgão do cargo, e este do agente que o ocupa”.45
Essa distinção também é feita por HELY LOPES MEIRELLES, verbis:
“(...) ÓRGÃOS PÚBLICOS são centros de competência instituídos para
o desempenho de funções estatais, através de seus agentes, cuja
atuação é imputada à pessoa jurídica a que pertencem. São unidades
de ação com atribuições específicas na organização estatal. (...) para
a eficiente realização de suas funções cada órgão é investido de
determinada competência, redistribuída entre seus cargos, com a
correspondente parcela de poder necessária ao exercício funcional de
seus agentes (...) assim, os órgãos do Estado são o próprio Estado
compartimentado em centros de competência, destinados ao melhor
desempenho das funções estatais. Por sua vez, a vontade psíquica do
agente (pessoa física) expressa a vontade do órgão, que é a vontade do
Estado, do Governo e da Administração (...) AGENTES PÚBLICOS são
todas as pessoas físicas incumbidas, definitiva ou transitoriamente, do
exercício de alguma função estatal (...) CARGOS (...) são apenas os
lugares criados no órgão para serem providos por agentes que
exercerão as suas funções na forma legal. O cargo é lotado no órgão e
o agente é investido no cargo”.46 (destaques nossos)
Portanto, o Estado, responsável pela função política geral, se manifesta através
de seus órgãos, responsáveis por parcelas dessa função política. Os cargos são ocupados
43
CARNEIRO, Paulo Cezar Carneiro. O Ministério Público no Processo Civil e Penal. Promotor Natural
Atribuição e Conflito. 6ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 4
44
ACQUAVIVA define competência, em sentido estrito, como sendo “o alcance da jurisdição de um
magistrado. É o âmbito de seu poder de dizer o direito. Por isso, um juiz competente para causas
trabalhistas poderá não ser competente para questões penais, não porque ele não conheça direito penal,
mas porque a lei estabelece que o juiz não pode invadir a competência, o raio de ação de outro”
(ACQUAVIVA, Marcus Cláudio, op. cit., p. 342). Tecnicamente, portanto, já que o termo “competência”,
nesse contexto, ficou reservado ao Judiciário, fala-se que o Ministério Público possui atribuição.
45
CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro, op. cit., p. 5.
46
MEIRELLES, Helly Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 26ª edição. São Paulo: Malheiros, 2001,
p. 62-71.
24
por pessoas, denominadas agentes públicos, que, quando agem, são os próprios órgãos
e, em última análise, o próprio Estado quem está agindo.
25
CAPÍTULO II
DA SEPARAÇÃO DOS PODERES
1) DIFERENÇA
ENTRE
DISTINÇÃO
DE
FUNÇÕES
DO
PODER POLÍTICO
E
SEPARAÇÃO DE PODERES
Primeiramente, deve-se assinalar que, exclusivamente sob o aspecto técnicojurídico, não seria correto utilizar o termo “separação de poderes”.
De fato, o que se pode distinguir e separar são as categorias de funções do Poder
Político, uma vez que, com o surgimento do Estado Moderno, o Poder Político passou a
ser compreendido com as características da unidade, da soberania e da conseqüente
indivisibilidade.47
De outro lado, deve-se deixar bem clara uma diferença elementar, sob pena de
comprometimento da busca pela resposta ao problema proposto no presente estudo: não
se pode confundir distinção de funções do poder político com o que comumente se
denomina separação de poderes.
A este propósito, alerta JOSÉ AFONSO DA SILVA que:
“Cumpre, em primeiro lugar, não confundir distinção de funções do
poder com divisão ou separação de poderes, embora entre ambas haja
uma conexão necessária. A distinção de funções constitui
especialização de tarefas governamentais à vista de sua natureza, sem
considerar os órgãos que a exercem; quer dizer que existe sempre
distinção de funções, quer haja órgãos especializados para cumprir
cada uma delas, quer estejam concentradas num órgão apenas. A
divisão [ou separação] de poderes consiste em confiar cada uma das
funções governamentais (legislativa, executiva e jurisdicional) a
órgãos diferentes, que tomam os nomes das respectivas funções,
menos o Judiciário (órgão ou poder Legislativo, órgão ou poder
47
Assim, importante a advertência de CELSO RIBEIRO BASTOS para quem “(...) qualquer que seja a
forma ou conteúdo dos atos do Estado, eles são sempre fruto de um mesmo poder. Daí ser incorreto
afirmar a tripartição de ‘poderes’ estatais, a tomar essa expressão ao pé da letra. É que o poder é sempre
um só, qualquer que seja a forma por ele assumida. Todas as manifestações de vontade emanadas em
nome do Estado reportam-se sempre a um querer único, que é próprio das organizações políticas
estatais”( BASTOS, Celso Ribeiro, op. cit., p. 53). Aqui, contudo, ao se falar em separação de “poderes”,
leia-se, indistintamente, separação de “funções”.
26
Executivo e órgão ou poder Judiciário). Se as funções forem exercidas
por um órgão apenas, tem-se concentração de poderes”.48
Distinguir as funções, portanto, é visualizar categorias de atividades que
guardam entre si traços de uniformidade, não importando a qual órgão está incumbido o
seu exercício. Separar as funções é uma tarefa que vai além, consistente em atribuir
cada uma das categorias identificadas a um órgão independente ou a um grupo de
órgãos que, mesmo que subordinados entre si, sejam independentes em relação aos
demais.
Quem primeiro fez esta distinção de funções foi ARISTÓTELES, ao reconhecer
que a atividade estatal é suscetível - tendo em vista as diferenças que possui - de ser
dividida em três categorias, agrupando, cada qual, aqueles atos do Estado que
apresentam, entre si, traços de uniformidade.49
É o que também defende MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, ao
afirma que ARISTÓTELES apenas distinguiu em três funções do Estado, quais sejam:
a) deliberante (consistente na tomada de decisões fundamentais), executiva (que
consistia na aplicação pelos magistrados das decisões tomadas pela função deliberante)
e judiciária (consistente em fazer justiça), mas “sem cuidar de sua separação, sem
sugerir, ainda que de longe, a atribuição de cada uma delas a órgão independente e
especializado”.50
Em outras palavras, no exercício da função política, existem atividades que
podem ser identificas de acordo com algumas características que lhes são peculiares,
como, por exemplo, as atividades consistentes em julgar os conflitos ou criar leis:
separar funções, nestes casos, implica dizer quem será incumbido de julgar e quem terá
competência para legislar. Em princípio esta separação de poderes é rígida, muito
embora, histórica e geograficamente, sofra um temperamento cada vez maior.51
48
SILVA, José Afonso da, op. cit., p. 112.
ARISTÓTELES. A Política. Tradução de Roberto Leal Ferreira. 2ª edição. São Paulo: Martins Fontes,
1998, p. 127/145.
50
FERREIRA FILHO, Manuel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 26ª edição. São Paulo:
Saraiva, 1999, p. 132.
51
A este respeito aduz JOSÉ AFONSO DA SILVA que “(...) hoje, o princípio [da Separação de Poderes]
não configura mais aquela rigidez de outrora. A ampliação das atividades do Estado contemporâneo
impôs nova visão da teoria da separação de poderes e novas formas de relacionamento entre os órgãos
legislativo e executivo e destes com o judiciário, tanto que atualmente se prefere falar em colaboração de
49
27
2) ELEMENTOS FUNDAMENTAIS DA SEPARAÇÃO DE PODERES
Compreendido que distinguir funções é visualizar as várias categorias de
atividades exercidas e que separar funções significa dizer quem exercerá aquelas
categorias de funções, o passo seguinte é identificar os elementos fundamentais para
que se entenda configurada a separação de poderes.
Sobre esta questão, JOSÉ AFONSO DA SILVA, com a hodierna propriedade, tece as
seguintes considerações:
“(...) A divisão [ou separação] de poderes fundamenta-se, pois, em
dois elementos: (a) especialização funcional, significando que cada
órgão é especializado no exercício de uma função; assim, às
assembléias (Congresso, Câmara, Parlamento) se atribui a função
Legislativa; ao Executivo, a função executiva; ao Judiciário, a função
jurisdicional; (b) independência orgânica, significando que, além da
especialização funcional, é necessário que cada órgão seja
efetivamente independente dos outros, o que postula ausência de
meios de subordinação. Trata-se, pois, como se vê, de uma forma de
organização jurídica das manifestações do Poder”.52
Ou seja, somente se pode falar em separação de poderes quando se encontram,
concomitantemente, dois elementos fundamentais: a especialização funcional e a
independência orgânica.
Portanto, o primeiro passo para se saber quantos são os “poderes” ou funções
estatais é individualizar o objeto, ou seja, considerar uma dada sociedade no tempo e no
espaço. Feito isso, devem ser identificadas quantas categorias de atos de uma mesma
natureza podem ser visualizadas nesta sociedade. Isso por uma questão lógica: não será
possível separar mais funções do que existe. Com efeito, se em determinada sociedade
há apenas três categorias de funções (função executiva, legislativa e jurisdicional, por
exemplo), como separa-las em quatro?53
poderes, que é a característica do parlamentarismo, em que o governo depende da confiança do
Parlamento (Câmara dos Deputados), quanto, no presidencialismo, desenvolveram-se as técnicas da
independência orgânica e harmonias dos poderes” (SILVA, José Afonso da, op. cit., pág. 113).
52
SILVA, José Afonso da., op. cit., p. 113.
53
Repita-se, distinguir funções é pressuposto inarredável para a posterior separação de funções.
28
Uma vez feita essa distinção de funções, o próximo passo será verificar se: a) as
categorias de funções estatais encontradas são exercidas por apenas um órgão - caso em
que, conforme alerta MANOEL GONÇALVES FERREIRA
FILHO,
ocorrerá “unidade de
exercício do poder, ou sua concentração”54; ou b), se essas funções são exercidas por
órgãos distintos e independentes.
Nessa última hipótese – exercício de funções por órgãos diferentes e
independentes – pode-se falar em separação total ou parcial de poderes.
Ocorrerá separação total quando cada categoria de funções é exercida
tipicamente por um órgão independente ou a um grupo de órgãos, mesmo que
subordinados entre si, mas independentes em relação aos demais. Ou seja, deve-se
verificar se em relação ao órgão há pelo menos dois elementos fundamentais, quais
sejam: especialização em relação à função que lhe foi incumbida e a independência
deste órgão.
Assim, suponha-se que numa dada sociedade foram distinguidas as funções “A”,
“B” e “C”, distribuídas aos órgãos “1”, “2” e “3”, respectivamente. Nesse caso, cada
órgão exercerá uma função específica: “1-A”, “2-B” e “3-C”. Essa é a separação total de
funções.
Tem-se separação parcial de poderes, por sua vez, em duas hipóteses:
a) quando, feita a distinção de poderes, descobre-se que algum órgão acumule
mais de uma categoria de funções, mesmo que se trate de órgãos
independentes.55 Ex.: funções “A”, “B” e “C” exercidas pelos órgãos “1” e
“2”, da seguinte forma: “A” e “B” pelo órgão “1” (“1-AB”) e função “C”
para o órgão “2” (“2-C”); ou
b) quando entre os órgãos há relação de subordinação. Assim, mesmo que as
funções “A”, “B” e “C”, sejam distribuídas aos órgãos “1”, “2” e “3”,
respectivamente, mas entre os órgãos exista subordinação (não sejam
independentes). Ex.: “1-A” subordinado ao órgão “2-B” e, “3-C”, não
subordinado aos demais. Neste caso também haverá apenas dois “poderes”,
54
FERREIRA FILHO, Manuel Gonçalves, op. cit., p. 129
Se quando todas as funções são exercidas por um órgão há concentração total de poderes, quando
apenas algumas forem exercidas por determinado órgão, ocorrerá concentração parcial de funções.
55
29
sendo que os órgãos “1-A” e “2-B” compõem um dos “Poderes” e o órgão
“3-C”, o outro.
Para efeito de “separação de poderes”, portanto, sempre que existir relação de
subordinação entre órgãos, ambos serão considerados pertencentes ao mesmo “Poder”.
Por outro lado, mesmo que sejam independentes, mas exerçam tipicamente a
mesma categoria de funções, também comporão um mesmo “Poder”. Assim, se o órgão
“A” possui função típica cuja natureza é a mesma de outro órgão “B”, entre os dois não
há especialização funcional e, deste modo, não há separação delas.
Insta acrescentar, por fim, que na hipótese de faltarem a um determinado órgão
ou conjunto de órgãos os dois elementos, ou seja, não possuírem especialização
funcional e não possuírem independência orgânica, prevalecerá o vínculo de
subordinação para fins de se determinar a qual Poder ele pertence.
2.1) Critérios de Distinção de Funções do Estado.
A respeito dos critérios de distinção das funções do Estado, colhe-se da fina
pena de Celso Antônio Bandeira de Mello:
Os critérios até hoje apresentados para caracterizar as ditas funções do
Estado, em última instância, podem ser reduzidos, fundamentalmente,
a apenas dois:
A) um critério ‘orgânico’ ou ‘subjetivo’, que se propõe a identificar a
função através de quem a produz e B) um critério ‘objetivo’ que toma
em conta a atividade, vale dizer, um dado objeto (não um sujeito).
Esse segundo critério, de seu turno, divide-se em dois:
a) um critério (objetivo) material ou substancial, que busca
reconhecer a função a partir de elementos intrínsecos a ela, isto é, que
se radiquem em sua própria natural tipologia. Os que defendem tal
critério (objetivo) material usualmente afirmam que a atividade
característica da função legislativa se tipifica pela expedição de atos
gerais e abstratos; a função administrativa por ser ‘prática’, ou então
por ser ‘concreta’, ou por visar de modo ‘direto e imediato’ a
realização da utilidade pública, e a atividade jurisdicional por consistir
na solução de controvérsias jurídicas
b) um critério (objetivo) formal, que se apega essencialmente em
características ‘de direito’, portanto, em atributos especialmente
deduzíveis do tratamento normativo que lhes corresponda,
independentemente da similitude material que estas ou aquelas
atividades possam apresentar entre si. Por este critério, o próprio da
30
função legislativa seria não apenas a generalidade e abstração, pois
sua especialidade adviria de possuir o predicado de inovar
inicialmente na ordem jurídica, com fundamento tão só na
Constituição; o próprio da função administrativa seria, conforme nos
parece, a de se desenvolver mediante comandos ‘infralegais’ e
excepcionalmente ‘infraconstitucionais’, expedidos na intimidade de
uma estrutura hierárquica; o próprio da função jurisdicional seria
resolver controvérsias com a força jurídica da definitividade.56
Celso Antônio entende que o critério orgânico não subsiste a uma análise crítica,
já que, como não há exercício exclusivo de atividades, “jamais se poderia depreender,
com segurança, se uma atividade é legislativa, administrativa ou jurisdicional pelo só
fato de provir do corpo Legislativo, Executivo ou Judiciário”.57
De outro lado, afirma que também não se pode “sufragar o critério objetivo
material, pois, em Direito, uma coisa é o que é por força da qualificação que o próprio
Direito lhe atribuiu, ou seja, pelo regime que lhe outorga e não por alguma causa
intrínseca, substancialmente residente na essência do objeto”58, concluindo que “o
critério adequado para identificar as funções do Estado é o critério formal, ou seja,
aquele que se prende a características impregnadas pelo próprio Direito à função tal ou
qual”59,assinalando, ainda, que:
Assim, função legislativa é a função que o Estado, e somente ele,
exerce por via de normas gerais, normalmente abstratas, que inovam
inicialmente na ordem jurídica, isto é, que se fundam diretamente e
imediatamente na Constituição.
Função jurisdicional é a função que o Estado, e somente ele, exerce
por via de decisões que resolvem controvérsias com força de ‘coisa
julgada’, atributo este que corresponde à decisão proferida em última
instância pelo Judiciário e que é predicado desfrutado por qualquer
sentença ou acórdão contra o qual não tenha havido tempestivo
recurso.
Função administrativa é a função que o Estado, ou quem lhe faça as
vezes, exerce na intimidade de uma estrutura e regime hierárquicos e
que no sistema constitucional brasileiro se caracteriza pelo fato de ser
desempenhada
mediante
comportamentos
infralegais
ou,
excepcionalmente, infraconstitucionais, submissos todos a controle de
60
legalidade pelo Poder Judiciário.
56
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 21ª edição. São Paulo:
Malheiros, 2006, pp. 32-33.
57
MELLO, Celso Antônio Bandeira de, op. cit., p. 34.
58
MELLO, Celso Antônio Bandeira de, op. cit., p. 34-35.
59
MELLO, Celso Antônio Bandeira de, op. cit., p. 35.
60
MELLO, Celso Antônio Bandeira de, op. cit., pp. 35-36.
31
Menciona, por fim, que há atividades de cunho político ou de governo, que não
se enquadram precisamente em nenhuma das clássicas três funções do Estado, verbis:
Assim, a iniciativa de leis pelo Chefe do Poder Executivo, a sanção, o
veto, a dissolução dos parlamentos nos regimes parlamentaristas e
convocação de eleições gerais, ou a distinção de altas autoridades por
crime de responsabilidade (impeachment) no presidencialismo, a
declaração de estado de sítio (e no Brasil também o estado de defesa),
a decretação de calamidade pública, a declaração de guerra são atos
jurídicos que manifestamente não se encaixam na função jurisdicional.
Também não se enquadram na função legislativa, como é visível, até
por serem atos concretos.
Outrossim, não se afeiçoam à função executiva nem de um ponto de
vista material, isto é, baseado na índole de tais atos, nem de um ponto
de vista formal.
Dela diferem sob o pondo de vista material, porque é fácil perceber-se
que a função administrativa, ao contrário dos atos citados, volta-se,
conforme a caracterização que lhe deram os autores adeptos deste
critério, para a gestão concreta, prática, direta, imediata e, portanto, de
certo modo, rotineira dos assuntos da Sociedade, os quais, bem por
isto, se acomodam muito confortavelmente dentro de um quadro legal
pré-existente. In casu, diversamente, estão em pauta atos de superior
gestão da via estatal ou de enfraquecimento de contingências extremas
que pressupõem, acima de tudo, decisões eminentemente políticas.
Diferem igualmente da função administrativa do ponto de vista
formal, que é o que interessa, por não estarem em pauta
comportamentos infralegais ou infraconstitucionais expedidos na
intimidade de uma relação hierárquica, suscetíveis de revisão quanto à
legitimidade.
Tais atos, ao nosso ver, integram uma função que se poderia
apropriadamente chamar de função ‘função política’ ou de ‘governo’,
desde que se tenha a cautela de dissociar completamente tal
nomenclatura das conseqüência que, na Europa, se atribuem aos atos
dessarte designados. É que, em vários países europeus, sustenta-se que
os atos políticos ou de governo são infensos a controle jurisdicional,
entendimento este verdadeiramente inaceitável e que, como bem
observou o eminente Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, é
incompatível com o Estado de Direito, constituindo-se em lamentável
61
resquício do absolutismo monárquico.
O critério aqui utilizado, proposto por José Afonso da Silva, não é apenas de
distinção de funções do Estado, este, como visto, destinado exclusivamente à
identificação dessas funções, segundo critérios científicos que, como visto, sequer
consegue confortar satisfatoriamente toda a pleura de atividades estatais.
Por certo, não será infalível, muito menos deve ser tomado como verdadeiro
dogma, o critério segundo o qual a independência orgânica e especialização funcional
61
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. op. cit., pp. 36-37.
32
constituem elementos necessários e indissociáveis para que se considere existente um
“poder” do Estado.
Ocorre que, se se pretende estabelecer diferenças entre distinção e separação de
funções estatais, deve-se exigir algo mais do que a mera identificação das categorias de
funções do Estado.
Essa identificação pode ser feita por quaisquer dos critérios tão bem explanados
por Celso Antônio Bandeira de Mello, nenhum deles, obviamente, imune a críticas
severas, embora realmente o critério objetivo-formal seja o mais preciso.
Ocorre que, tendo em vista o problema proposto no presente estudo, é necessário
um critério que permita avançar, analisando como a Constituição da República reparte
as funções estatais entre os órgãos do Estado.
Há que se partir da análise das funções tradicionais e do modo como elas foram
repartidas para formarem o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, que constituem,
inquestionavelmente, “Poderes” do Estado.
Nesse contexto, e considerando que cada qual exerce funções típicas
preponderantes que possuem características próprias, e, de outro lado, que o fazem com
independência, o critério que exige, para a qualificação do Ministério Público brasileiro
como um outro “Poder” do Estado, a presença de especialização funcional (exercício de
uma função típica preponderante com características próprias), conjuntamente com a
independência orgânica, parece ser o que tem maiores condições de refletir, sob o
aspecto jurídico-político, a sua verdadeira realidade institucional.
3) A TEORIA DA SEPARAÇÃO DOS PODERES DE MONTESQUIEU
Em sua obra, o Espírito das Leis62, o barão de Montesquieu63 formulou a teoria
que, segundo Paulo Bonavides64, revolucionou a ciência política, fazendo com que os
62
MONTESQUIEU. SECONDAT, Charles-Louis de. O Espírito das Leis. Tradução por Cristina
Murachco. São Paulo: Martins Fontes, 1993, pp. 169/202.
33
teóricos do liberalismo a transladassem com entusiasmo para as suas Constituições,
transformando-a em símbolo aferidor da liberdade nas organizações do poder político.
Certo, MONTESQUIEU não foi o criador da Teoria ou Princípio da Separação
dos Poderes, mas apenas quem lhe deu um caráter científico65 e sistematizado66, pois
conforme adverte JOSÉ AFONSO DA SILVA, “o princípio da separação de poderes já
se encontra sugerido em ARISTÓTELES, JOHN LOCKE e ROUSSEAU”, em suas
respectivas obras A Política, Ensayo sobre el gobierno civil e Du contrat social.67
Estas observações demonstram que ARISTÓTELES (para alguns, PLATÃO68),
plantou a semente que, regada pelas idéias de LOCKE e ROUSSEAU, germinaria em O
Espírito Das Leis uma das principais contribuições ideológicas e intelectuais à
Revolução Francesa e que influenciaria dali por diante quase todas as constituições do
Mundo69.
63
O barão de Montesquieu chamava-se Charles-Louis de Secondat. Nasceu no ano de 1.689 no castelo de
La Brède, perto de Bordéus, na França. Em 1.705 ingressou na Universidade de Bordéus, onde estudou
Direito. Formou-se em 1.708 e partiu para Paris com o objetivo de completar sua instrução jurídica. As
duas principais obras de Montesquieu foram Cartas Persas e O Espírito das Leis, publicadas
respectivamente em 1.721 e 1.748. Esta última em especial, pois revolucionou a ciência política com a
doutrina da “Tríplice Separação dos Poderes”. (MONTESQUIEU. SECONDAT, Charles-Louis de, O
Espírito das Leis. Tradução por Cristina Murachco. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. XLIII a XLV).
64
BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. 3ª edição, 2ª tiragem. São Paulo: Malheiros Editores, 1999, p.
157.
65
Ressalte-se que tem sido travado um longo debate a respeito da existência ou não de cientificidade no
Princípio da Separação dos Poderes, pelo menos nos moldes defendidos por Montesquieu. A este respeito,
conferir: FERREIRA FILHO, Manuel Gonçalves, op. cit., p. 132
66
De fato, assinala FLÁVIA VIVEIROS DE CASTRO que “Montesquieu não foi o inventor da doutrina
e do princípio da separação dos poderes (...), no entanto, a versão pelo mesmo desenvolvida é inovatória
em relação às anteriores”, destacando, ainda, que “as raízes históricas remotas da Princípio da Separação
dos Poderes aparecem como tema recorrente do pensamento ocidental desde a Antiguidade Clássica, na
idéia de constituição mista, cuja concepção prevalente é aquela do equilíbrio de forças sócio-políticas
diversas. Para ela, quem desenvolveu essa idéia foi ARISTÓTELES (embora alguns pensadores
defendam tenha sido inicialmente elaborada por Platão) que, ao estudar as diferentes formas de governo,
concluiu que o poder político, ao invés de estar nas mãos de uma única parcela constitutiva da sociedade é
comum a todas. Esclarece ainda que “na visão de Aristóteles acerca da constituição mista, pode-se
observar a idéia base que estará associada à doutrina da separação de poderes em sua vertente sóciopolítica, qual seja a do equilíbrio ou balanceamento das classes sociais através de suas participação (sic)
no exercício do poder político, viável mediante o acesso à orgânica constitucional”. Segundo esta mesma
autora, as raízes históricas próximas encontram-se nas doutrinas contratualistas de JOHN LOCKE e
ROUSSEAU” (CASTRO, Flávia Viveiros de. Os Princípios da Constituição de 1988. O Princípio da
Separação dos Poderes. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2001, pp. 139-145).
67
SILVA, José Afonso da, op. cit., p. 111.
68
BASSI, F. Il Princípio de la Separazione dei Poter”, Rivista Trimestrale di Diritto Pubblico, 1965 apud
CASTRO, Flávia Viveiros de, op. cit., p.139.
69
PAULO BONAVIDES, a respeito da influência da obra de MONTESQUIEU nas constituições, assim
relatou: “Na Constituição americana sua presença o rodeia do prestígio que domina depois os documentos
constitucionais de todo o século XIX. Entra nas cartas francesas da Restauração e da Revolução Liberal
de 1814 e 1830, respectivamente, como entrará também nas constituições da Alemanha, após haver tido
34
Antes, contudo, de se adentrar na Teoria de MONTESQUIEU propriamente dita,
mister se faz uma passagem, mesmo que breve, pelo contexto histórico em que ela
surgiu. Este cuidado, somado ao que já foi dito sobre o poder político, servirá de auxílio
à uma escorreita compreensão do assunto.
3.1) O CONTEXTO HISTÓRICO DA TEORIA DE MONTESQUIEU
Embora MONTESQUIEU tenha afirmado no prefácio de O Espírito das Leis que se
aquela obra tivesse sucesso devê-lo-ia muito à majestade de seu assunto70, alguns
indicativos demonstram que o contexto histórico em que suas idéias surgiram contribuiu
decisivamente neste sentido.
Com efeito, o estudo das várias contribuições de historiadores e juristas que se
dedicam ao tema convergem sobre alguns pontos do processo que vai da decadência do
feudalismo até o surgimento do que se denominaria Terceiro Estado71, momento em
que surgiu a Teoria da Tripartição dos Poderes de MONTESQUIEU.
Sabe-se que o feudalismo, mesmo depois de iniciado o seu processo de
decadência, foi um obstáculo aos interesses burgueses na expansão do comércio e
conseqüente fortalecimento do seu poder econômico.
De fato, como a burguesia poderia fazer comércio livre pelos feudos se, além das
dificuldades encontradas pela própria disposição territorial destes, em cada qual, o
senhor feudal colocava óbices?
Uma aliança com a monarquia foi uma maneira encontrada pela burguesia para
acabar com os feudos e, por conseguinte, comercializar com maior liberdade.
acolhimento em constituições quais as da Bélgica, Holanda, Espanha, Áustria, Itália, Dinamarca e
Noruega. Faça por toda a Europa seu passeio triunfal, solenizando a reforma das instituições”.
(BONAVIDES, Paulo, op. cit., p. 157)
70
MONTESQUIEU. SECONDAT, Charles-Louis de, op. cit., p. 7
71
ANDERSON DE MENEZES assim aduz sobre a expressão “Terceiro Estado”: “Pelo medievo e pela
era moderna, encontram-se o emprego da palavra Estado para designar as classes do reino. São os três
estados: 1) clero, 2) nobreza e 3) povo, os quais na França se chamavam ‘Estados Gerais’, na Inglaterra
‘Parlamento”, na Alemanha ‘Dieta’ e na Espanha e Portugal ‘Corte do Reino’”. (MENEZES, Anderson
de. Teoria Geral do Estado. 7ª edição, Rio de Janeiro: Forense, 1995, pp. 41-43).
35
Foi um pacto. A monarquia, conhecedora do inevitável crescimento do poder
econômico da burguesia e de olho na preservação de suas regalias, aliou-se à burguesia
que, com a colaboração do monarca, viabilizava a comercialização pelos feudos.
Se, de um lado, a burguesia se agigantava cada vez mais e dominava o poder
econômico, inclusive se aliando à monarquia, esta, por sua vez, concentrava cada vez
mais em suas mãos o domínio do poder político.
Essa situação fez despertar os verdadeiros anseios da “classe emergente”: deter
não apenas o poder econômico, mas também o poder político, outrora disseminado, em
parte substancial, pelos feudos, e, depois, concentrando-se paulatinamente com o rei,
mas, em qualquer dos casos, sem que dele os burgueses pudessem desfrutar
diretamente.
De fato, até então a burguesia era oprimida politicamente, apesar de seu
incontestável poder econômico. Mas somente uma revolução, não só de armas, mas
principalmente cultural, poderia dar à burguesia o poder de condução da vida social. E
não era qualquer revolução. Se os valores do povo não fossem transformados conforme
os interesses burgueses, jamais seria possível legitimar o “novo poder político” que se
desejava implantar.
PAULO BONAVIDES, assim resume:
“A burguesia sempre se sentiu politicamente oprimida e politicamente
espoliada debaixo da monarquia absoluta. Os monarcas de direito
divino governavam com a aristocracia territorial e o clero, numa
sociedade regida por privilégios (...). A fim de alforriar-se
politicamente, isto é, a fim de resolver a contradição entre o poder
econômico auferido e a sujeição política a que ficara reduzida é que a
burguesia conspirou, se fez revolucionária, empunhou armas e se
volveu contra a realeza absoluta, até promover-lhe a queda fragorosa,
mediante atos de ferocidade e violência, quais foram os episódios
marcados no calendário de sangue da Revolução de 1789”.72
Ainda nas palavras de BONAVIDES, “(...) o pensamento de liberdade no século
XVIII foi o protesto da consciência social abafada por muitos séculos de opressão e
aviltamento da condição humana”.73
72
73
BONAVIDES, Paulo, op. cit., pp. 67 e 68.
BONAVIDES, Paulo, op. cit., p. 162.
36
Para provocar uma revolução cultural, conforme pretendia a burguesia, nada
melhor que a bandeira pela liberdade levantada por MONTESQUIEU, reivindicando o fim
das regalias do clero e nobreza.
As idéias de MONTESQUIEU foram tão úteis à burguesia que somente quando
efetivamente se concretizaram, inserindo-se nas constituições após a queda de cada
trono, tornou-se lícito dizer que, historicamente, surgiu o Terceiro Estado, como
detentor do poder econômico e político74.
O Espírito das Leis, portanto, não fez sucesso simplesmente pela majestade do
assunto, mas também por ser uma obra oportuna e conveniente aos ideais liberalistas.
Em apertada síntese, é neste contexto histórico que a teoria de MONTESQUIEU
ganha espaço, encaixando-se como uma luva aos ideais revolucionários do liberalismo,
uma revolução de armas e livros.75
3.2) MONTESQUIEU
E A
TRIPARTIÇÃO
DOS
PODERES
EM
SISTEMA
DE
FREIOS E CONTRAPESOS
Pelas próprias características do Estado Moderno, as categorias de atos estatais
tornaram-se mais perceptíveis, o que não escapou da arguta observação de
Montesquieu, o qual chegou
74
assinalar que “os antigos, que não conheciam a
A este respeito anota PAULO BONAVIDES que “(...) de todas essas reflexões acerca do
comportamento burguês que afiançou ao terceiro estado o poder político, sobreleva de imediato a
conclusão válida desta verdade histórica: onde quer que se inaugure no Ocidente o momento de limitação
constitucional da autoridade, daí por diante se há de contar licitamente a formação do Estado burguês,
liberal-democrático (...) desde que haja um poder limitado nos termos da Constituição, escrita ou
costumeira, sufragada pelo povo ou outorgada pelo príncipe, aí, sobre as bases do sistema representativo,
principia então a idade de hegemonia do terceiro estado (...) cada trono que ruísse ou cada príncipe que
jurasse uma Constituição, aí entrava pelas mãos da História o poder político do terceiro estado”. (grifo no
original) (BONAVIDES, Paulo, op. cit., pp. 75 e 76)
75
PAULO BONAVIDES aduz que “a Revolução da burguesia em armas servira apenas de epílogo militar
à revolução intelectual que dantes lavrara nas consciências, arrastando em seu cortejo à nova ordem os
melhores espíritos de França, aliciando ao sufrágio de suas teses o escol das inteligências que fizeram do
século XVIII o século filosófico e político por excelência, o século das luzes, do reexame crítico da
autoridade, da contestação religiosa, do dissídio entre a razão e o passado. Politicamente, deitava a
burguesia raízes de apoio na aliança com fidalgos da mais alta e esclarecida linhagem, aquela de onde
saiu Montesquieu com o Espírito das Leis, Mirabeau com a sua oratória sediciosa, o abade Sièys com o
elogio histórico do terceiro estado e a teoria do poder constituinte e Felippe Égalité com o seu fatal,
entregando ao cadafalso a cabeça do rei de França, o desventurado Luís XVI” (BONAVIDES, Paulo, op.
cit., p. 68).
37
distribuição dos três poderes no governo de um só, não podiam ter uma idéia clara da
monarquia” 76.
Mais do que isso, o barão de MONTESQUIEU percebeu que a concentração de
todas as categorias de atos estatais e o correspondente apossamento do poder político
soberano, nos moldes existentes nalgumas monarquias absolutas, feria a liberdade
política dos cidadãos.
No capítulo de O Espírito das Leis denominado Idéia Geral, dizia
Montesquieu77: “Eu distingo as leis que formam a liberdade política em sua relação com
a constituição daquelas que a formam em sua relação com o cidadão”78.
Montesquieu tomou uma concepção filosófica (exercício da vontade, fazer o que
se quer) e uma concepção política de liberdade, essa se subdividindo em relação ao
cidadão (segurança ou opinião que se tem de segurança) e em relação à constituição
(formada por certa distribuição das funções políticas)79.
A grande perspicácia daquele pensador francês talvez tenha sido perceber que os
conceitos de liberdade política se completam.
Nesse sentido e interpretando uma passagem de O Espírito das Leis80, anota
Bonavides que o regime de “separação de poderes” complementa de tal modo aquela
concepção de liberdade política do cidadão (segurança ou juízo que cada homem faz
sobre a sua segurança), que Montesquieu assinala, categoricamente, dever o governo
organizar-se, segundo tais preceitos, de tal modo que nenhum cidadão possa temer o
outro cidadão81.
76
MONTESQUIEU. SECONDAT, Charles-Louis de, op cit., p. 172.
Cujo título é: “DAS LEIS QUE FORAM A LIBERDADE POLÍTICA EM SUA RELAÇÃO COM A
CONSTITUIÇÃO”.
78
MONTESQUIEU. SECONDAT, Charles-Louis de, op cit., p. 167.
79
MONTESQUIEU. SECONDAT, Charles-Louis de, op. cit., p. 203.
80
A passagem da obra de Montesquieu que Bonavides interpreta é a seguinte: “A liberdade política, em
um cidadão, é essa tranqüilidade de espírito que provém da opinião que cada um tem sobre a sua
segurança; e para que se tenha essa liberdade é preciso que o governo seja tal que um cidadão não possa
temer outro cidadão” (MONTESQUIEU. SECONDAT, Charles-Louis de, op. cit., p. 172).
81
BONAVIDES, Paulo, op. cit., p 159.
77
38
Em outras palavras, Montesquieu sustentou que o cidadão só é livre,
politicamente, quando é obrigado a fazer apenas o que a lei estabelece82. Mas, de nada
adiantaria isso, se não houvesse instrumentos que impedissem o abuso do poder.
A solução proposta consistiu na autolimitação do poder pela sua própria
disposição, de forma tal que se resguarde a liberdade política em relação ao cidadão, ou,
nas palavras de Montesquieu “(...) que ninguém seja obrigado a fazer as coisas a que a
lei não obriga e a não fazer aquelas que a lei permite”.83
Esclareceu Montesquieu:
“(...) Quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura,
o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não existe
liberdade; porque se pode temer que o mesmo monarca ou o mesmo
senado crie leis tirânicas para executá-las tiranicamente.
Tampouco existe liberdade se o poder de julgar não for separado do
poder legislativo e do executivo. Se estivesse unido ao poder
legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria
arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse unido ao poder
executivo, o juiz poderia ser a força de um opressor.
Tudo estaria perdido se o mesmo homem, ou o mesmo corpo dos
principais, ou dos nobres, ou do povo exercesse os três poderes: o de
fazer as leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os
crimes ou as querelas entre os particulares (...). [E complementa
dizendo que] os príncipes que quiseram tornar-se despóticos sempre
começaram por reunir em sua pessoa todas as magistraturas”.84
Assim, sob o fundamento de um necessário autocontrole do poder, a
Teoria de MONTESQUIEU não é senão um sistema tripartido de freios e contrapesos,
assim disposto: a) poder legislativo; b) poder executivo das coisas que dependem do
direito das gentes; e c) poder executivo daquelas que dependem do direito civil. Como
esclarece o seu autor, a este último denomina-se poder de julgar e ao anterior
simplesmente poder executivo do Estado.85
82
São exemplos consagrados constitucionalmente os princípios da legalidade e da reserva legal, que, sob
o aspecto jurídico-político, dão aquela segurança ou certo juízo a respeito dela. O Princípio da Reserva
Legal, também chamado por alguns de Princípio da Legalidade, é tão importante, que não só foi
disciplinado pelo Código Penal Brasileiro em seu art. 1º, como também consagrado no art. 5º, inciso
XXXIX, da atual Constituição Federal como direito fundamental. Em ambos dispositivos há o mesmo
texto: “Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal”. O
dispositivo contém, na verdade, dois princípios: o da Reserva Legal e o da Anterioridade da Lei. Assim, o
primeiro seria “não há crime sem lei que o defina, não há pena sem cominação legal”, ao passo que o
Princípio da Anterioridade da Lei corresponde aos termos “anterior” e “prévia”, que, positivados da
maneira que foram, transmitem a velha máxima “nullum crimem nulla poena sine praevia lege”.
83
MONTESQUIEU. SECONDAT, Charles-Louis de, op cit., pp. 169 e 170.
84
MONTESQUIEU. SECONDAT, Charles-Louis de, op cit., pp. 172 e 173.
85
MONTESQUIEU. SECONDAT, Charles-Louis de, op cit., pp. 171 e 172.
39
Aos olhos desavisados esse sistema parece ser simples, mas talvez ainda hoje
seja uma das questões mais delicadas nas cortes constitucionais dos Estados que o
adotaram.86
Tanto melhor que seja assim, pois se o que se propõe é uma limitação de
poderes, que as questões sejam resolvidas por quem deverá dar a palavra final, ou seja,
o Judiciário, o que, aliás, antes de por em xeque o sistema de separação de poderes,
confirma que ele está em pleno funcionamento.
Um outro aspecto importante que há de ser ressaltado é que, à época de sua
formulação por Montesquieu, os obstáculos para a implementação de um sistema de
freios e contrapesos eram bem maiores, já que, para tanto, sequer havia um arcabouço
teórico-jurídico consolidado.
Tornou-se indispensável o acolhimento ou a formulação de outras teorias, que
em seu conjunto serviriam de substrato de algo muito maior: o Constitucionalismo, que,
conforme leciona Luis Roberto Barroso, “significa, em essência, limitação do poder e
supremacia da lei (Estado de direito, rule of the law, Rechtsstaat)”87.
Dentre esse verdadeiro plexo de teorias, uma delas é a do poder constituinte, que
permite, de um lado, sustentar o discurso de que o Poder Político emana do povo,
ficando nele latente a possibilidade de, a qualquer momento, fazer uma nova
86
A este respeito MARIA LÚCIA DE PAULA OLIVEIRA leciona que, no Brasil, “(...) dentre as várias
decisões do Supremo Tribunal Federal que invocam como fundamento o princípio da separação dos
poderes, temos as que cuidam do processo legislativo estadual e de sua estrita submissão ao modelo
federal (PETMC nº 494-RJ, julgada em 27/02/1992; ADI nº 805/RS, julgada em 17/12/1998; ADI nº
774/RS, julgada em 10/12/1998 e ainda ADI nº 98/MT, julgada em 7/8/1997). Também a vedação de
delegação legislativa em matéria de reserva absoluta de lei (ADIMC nº 1.296/PE, julgada em
14/0/6/1995, ADIMC nº 1296/PE, julgada em 14/06/1995). Ao reverso, vedando a intromissão do
Legislativo em competências do Executivo, o RE nº 170.204/SP, cujo relator foi o Min. Marco Aurélio e
ainda a ADIMC nº 1.703/SC, julgada em 27/11/1997. O maior número de decisões judiciais (...) é aquele
que questiona a utilizado de medidas provisórias (dentre as quais, ADIMC nº 1.204/DF, julgada em
15/2/1995; ADIMC nº 1.207/DF, julgada em 15/2/1995, ADIMC nº 1.1214/DF, julgada em 15/2/1995,
ADIMC nº 1.215/DF, julgada em 15/2/1995, ADIMC nº 1.216/DF, julgada em 15/2/1995, ADIMC nº
293/DF, julgada em 6/6/1990). Envolvendo o Poder Judiciário, temos significativos acórdãos que cuidam
da aplicação da Súmula nº 339 do Supremo Tribunal Federal, que proíbe a extensão de vantagens
pecuniárias a servidores pelo Poder Judiciário (RMS nº 21.662/DF, julgada em 5/4/1994; AGRAC nº
185.106/RJ, julgada em 8/4/1997). O AGRAC nº 138.344/DF, julgada em 2/8/1994 não acolheu
postulação de extensão de benefícios isencionais tributários via poder judiciário. Há ainda acórdãos
discutindo a legalidade da intromissão do Poder Judiciário na análise do trâmite de processo
administrativo disciplinar (MS nº 20.999/DF, julgada em 21/3/1990; bem como na correção de prova em
concurso público (AGRAC nº 171.342/RJ, julgado em 12/03/1996)”. OLIVEIRA, Maria Lúcia de Paula.
Os Princípios da Constituição de 1988. Princípio da Separação dos Poderes e Jurisdição Constitucional:
A Experiência Brasileira. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2001, pp. 164 e 165.
87
BARROSO, Luis Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos
fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 5.
40
Constituição, e, de outro, abrigar idéias aparentemente antagônicas, quais sejam, de um
poder político uno e soberano que, ao mesmo tempo, se separa entre órgãos
interdependentes e harmônicos entre si.
Eis, inclusive, a importância do estudo do poder constituinte sob o aspecto ora
em foco, pois ele, ao que parece, configura verdadeiro pressuposto lógico da Teoria da
Separação dos Poderes, conforme destacado adiante.
4) PODER CONSTITUINTE
COMO
PRESSUPOSTO LÓGICO
DA
TEORIA
DA
SEPARAÇÃO DOS PODERES
A matéria primeira que uma Constituição visa disciplinar é o Poder. Deve a
Constituição dizer, por exemplo, quem é o titular do poder, quem o exerce e de que
forma, quais os seus limites. Estes são verdadeiros preceitos fundamentais em qualquer
Constituição.
Se ao Estado coube a satisfação do bem comum, entendido este como os anseios
legítimos de determinada sociedade num dado momento histórico, e se, para cumprir tão
complexa função política, goza de um poder político soberano, como fundamentar a
separação das funções estatais e a conseqüente divisão dos poderes que lhes são
correlatos sem dissolver a característica da unidade desse poder soberano?
A forma encontrada foi criar poderes constituídos, também subordinados ao
poder político soberano. Em outras palavras, somente o poder político soberano,
ilimitado e inalienável, poderia disciplinar o próprio poder, através de uma constituição.
Isso permite que coexistam categorias de funções estatais com as respectivas
doses de autoridade, subordinados ao poder que os constituiu, mas que continua, ipso
facto, uno e soberano.
Se para o exercício de cada categoria de funções é necessária certa medida de
poder, este é apenas poder constituído, subordinado ao poder político soberano, que o
41
constituiu. Ou seja, a rigor, a autoridade é do poder político, manifestado sobre a veste
de Poder Constituinte.
JORGE REINALDO VANOSSI, nesta linha de raciocínio e com base nos
ensinamentos de SIEYÈS, afirma que a função do Poder Constituinte está justamente na
viabilização do Princípio da Separação dos Poderes defendida por MONTESQUIEU. No
dizer de VANOSSI,
“(...) na noção que a partir do Abade Sieyès tem-se difundido, é
evidente que o mais importante é o descobrimento da função do Poder
Constituinte. Este conceito aparece nos momentos em que o
Racionalismo e os começos do Constitucionalismo impõem a idéia da
Separação dos Poderes. Era óbvio que não podia haver uma
distribuição do Poder sem a pressuposição da existência de um poder
superior, que praticasse essa distribuição, isto é: para poder falar de
diversos poderes, das diversas funções do poder que estavam
repartidas e distribuídas, havia-se que supor a existência prévia, lógica
e cronologicamente falando, de um poder supremo que realizasse essa
repartição, que levasse a cabo essa distribuição; portanto, a noção do
Poder Constituinte aparece como algo absolutamente necessário para
poder compreender-se o tema da distribuição do Poder”.88
Assim aparece a noção de Poder Constituinte como pressuposto lógico para a
Teoria da Separação dos Poderes89, compondo ambas um projeto maior: o
Constitucionalismo, que, como visto, condensa as idéias de supremacia da lei e
limitação do poder.
5)
SISTEMA
DE FREIOS E CONTRAPESOS: APENAS UMA DAS FORMAS DE
LIMITAÇÃO DO PODER
Não há, obviamente, um modelo universal de separação de poderes, que varia de
Estado para Estado.
88
VANOSSI, Jorge Reinaldo. Revista de Direito Constitucional, 1:12-3, apud BASTOS, Celso Ribeiro,
op. cit., pp. 23 e 24.
89
Por outro lado, se a autolimitação do poder pelo sistema de separação dos poderes mostrou-se
instrumento de concretização dos ideais burgueses, tanto que somente quando ocorreu sua efetiva
implementação pode ser considerado nascido o Terceiro Estado, natural e necessária a exigência da
inclusão da “separação dos poderes” como elemento de qualquer constituição, nos moldes do art. 16 da
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, que dispõe que qualquer sociedade em que
não esteja assegurada a garantia dos direitos, nem estabelecida a separação dos poderes não tem
Constituição.
42
Esses variados modelos de separação de poderes, tão diversificados quanto são os
Estados que os adotam, estruturam-se ao lado de outras formas de autolimitação do
Poder, como, por exemplo – anota Manoel Gonçalves Ferreira Filho90 - a circunscrição
do campo de ação do Estado relativamente às liberdades públicas negativas91.
Na verdade, na esteira dos ensinamentos sempre didáticos de Luis Roberto
Barroso, em um Estado constitucional o sistema de freios e contrapesos constitui apenas
uma das formas de limitação do poder, que são de três ordens.
Leciona Barroso, verbis:
“Em um Estado constitucional existem três ordens de limitação do
poder. Em primeiro lugar, as limitações materiais: há valores básicos e
direitos fundamentais que hão de ser preservados, como a dignidade
da pessoa humana, a justiça, a solidariedade e os direitos à liberdade
de religião, de expressão, de associação. Em segundo lugar, há uma
específica estrutura orgânica exigível: as funções de legislar,
administrar e julgar devem ser atribuídas a órgãos distintos e
independentes,
mas
que,
ao
mesmo
tempo,
se
controlem
reciprocamente (cheks and balances). Por fim, há as limitações
processuais: os órgãos do poder devem agir não apenas com
fundamento na lei, mas também observando o devido processo legal,
que congrega regras tanto de caráter procedimental (contraditório,
ampla defesa, inviolabilidade do domicílio, vedação de provas obtidas
por meios ilícitos) como de natureza substancial (racionalidade,
razoabilidade-proporcionalidade, inteligibilidade). Na maior parte dos
90
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 26ª edição. São Paulo:
Saraiva, 1999, p. 130.
91
Lecionou o eminente Ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal: “Enquanto os direitos de
primeira geração (direitos civis e políticos) - que compreendem as liberdades clássicas, negativas ou
formais - realçam o princípio da liberdade e os direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e
culturais) - que se identifica com as liberdades positivas, reais ou concretas - acentuam o princípio da
igualdade, os direitos de terceira geração, que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos
genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um
momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos,
caracterizados, enquanto valores fundamentais indisponíveis, pela nota de uma essencial
inexauribilidade” (Mandado de Segurança n. 22.164, Rel. Ministro Celso de Mello, julgado pelo Plenário
em 30.10.2005, e publicado no DJ de 17.11.1995).
43
Estados ocidentais instituíram-se, ainda, mecanismos de controle de
constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público.”92
Cabe agora analisar, especificamente, o sistema de separação de poderes adotado
pela Constituição da República de 1998.
6) O PRINCÍPIO
DA
SEPARAÇÃO
DOS
PODERES
NA
CONSTITUIÇÃO
DA
REPÚBLICA DE 1988: PODER POLÍTICO E PODER CONSTITUINTE
Do que até aqui foi visto, constata-se que a noção de Poder Constituinte é apenas
uma forma de manifestação do próprio poder político, eis que esse é uno, soberano e
indivisível. Isso ocorre de tal forma que, a rigor, o poder político está se
autolimitando.93
No caso específico da Constituição da República de 1988, decidiu-se pela
adoção da já clássica fórmula de autolimitação do poder de MONTESQUIEU, embora não
mais com a rigidez de outrora e, para tanto, preservou-se a noção de Poder Constituinte.
Na visão de VANOSSI, de outra forma não poderia ser, pois, segundo ele,
“(...) se considerarmos que no Estado Constitucional, democrático,
social, contemporâneo, é necessário manter a distribuição do Poder,
embora com outros alcances, com outras características, mas mantê-la,
é evidente que também temos que conservar o conceito de Poder
Constituinte, de tal forma que, a partir do funcionamento deste, poderse-á entender a divisão do Poder”.94
92
BARROSO, Luis Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos
fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 5.
93
A Constituição Federal vigente, em seu Artigo 1º, parágrafo único, assim dispõe: “Todo poder emana
do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.
A expressão “nos termos desta Constituição” quer significar que a interpretação deste dispositivo deve ser
feita sistematicamente, especialmente porque a própria Constituição irá delimitar a forma de exercício do
poder, especialmente nos artigos 14; 27, § 4º; 29, XIII; 60, §4º, II e 61, § 2º, além é claro das normas
regulamentadoras infraconstitucionais, como por exemplo a Lei 9.709/98, que regulamenta o art. 14 da
CF/88.
94
VANOSSI, Jorge Reinaldo. Revista de Direito Constitucional, 1:12-3, apud BASTOS, Celso Ribeiro,
op. cit., pp. 23 e 24.
44
Assim, se para viabilizar as idéias de MONTESQUIEU foi necessário implementar
a noção de Poder Constituinte, para preserva-las, embora de forma mais temperada,
conservou-se também os conceitos de Poderes Constituinte e Constituídos.
6.1) AS CLÁUSULAS PARÂMETROS DO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS
PODERES
Segundo ANNA CÂNDIDA DA CUNHA FERRAS, nas constituições presidencialistas,
tal como a Constituição Federal de 1988, três cláusulas-parâmetros usualmente
informam a aplicação do princípio da separação dos poderes, quais sejam:
a) a da “independência e a harmonia” entre os poderes;
b) a da “indelegabilidade de poderes”95; e
c) a da “inacumulabilidade” de funções de poderes distintos”96.
Consideram-se cláusulas-parâmetros para a aplicação do princípio da separação
dos poderes aquelas em que figuram como condição necessária para consecução da
idéia-fim do princípio, de tal forma que a ausência de uma delas não permite que a
separação de poderes alcance seu objetivo.
A doutrina contemporânea reconhece uma atenuação crescente dessas cláusulas,
cujas leituras devem considerar as peculiaridades de cada sistema jurídico.
6.1.1) A Independência e a Harmonia entre os Poderes
No presidencialismo, predomina o princípio da divisão dos Poderes, que devem
ser independentes e harmônicos entre si, enquanto no parlamentarismo o sistema de
governo baseia-se na colaboração entre os Poderes Executivo e Legislativo.97
95
Defende-se, sob determinado enfoque, que essa cláusula não continua sendo cláusulas-parâmetro do
princípio da separação dos poderes, conforme será visto ao se tratar dela especificamente.
96
FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Conflito Entre Poderes: O Poder Congressual de sustar atos
normativos do Poder Executivo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994, pp. 14/15
45
Assim, no presidencialismo, o Presidente da República exerce as funções de
Chefe de Estado e Chefe de Governo, com mandato fixo e não dependendo da confiança
do Poder Legislativo para sua investidura ou exercício do cargo, nem o Legislativo pode
ser dissolvido pelo Executivo.
O mesmo não ocorre no parlamentarismo, que ao invés de uma separação dos
poderes, de forma independente e harmônica, opera o sistema de colaboração de
poderes, onde o Poder Executivo divide-se na figura do Chefe de Estado (Presidente da
República ou Monarca) e Chefe de Governo (Primeiro Ministro ou Conselho de
Ministros).
O Primeiro Ministro só permanece no cargo se o Parlamento nele confiar, caso
contrário será ele exonerado, formando-se um novo governo, já que os membros do
Governo não possuem mandato, mas apenas investidura por confiança.
A recíproca tem sua dose de verdade, pois se o Governo também perder a
confiança no Parlamento, possível será a dissolução da Câmara dos Deputados, situação
que provocará eleições extraordinárias para a formação de outro Parlamento que lhe dê
sustentação.98
Assim, é a forma que se inter-relacionam os poderes que caracterizará o regime
de governo, dos quais se destacam o parlamentarismo e presidencialismo.99
O Brasil, que optou pelo sistema presidencialista de Governo, inseriu a cláusulaparâmetro da “Independência e harmonia” dos poderes de forma expressa no art. 2º da
Constituição Federal de 1988, in verbis: “Art. 2º. São Poderes da União, independentes
e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”.
ANNA CÂNDIDA
DA
CUNHA FERRAZ considera que, nas constituições
presidencialistas, a cláusula parâmetro por excelência para a aplicação do princípio da
separação de poderes é a da “independência e harmonia”. No dizer dessa autora, cujas
palavras valem ser transcritas, essa cláusula significa que
97
SILVA, José Afonso da., op. cit., p. 113
ALEXANDRINO, Marcelo e PAULO, Vicente. Direito Administrativo para Concursos. Série provas e
concursos. Rio de Janeiro: Impetus, 2002, p. 15
99
FERREIRA FILHO, Manuel Gonçalves, op. cit., p. 130
98
46
“(...) no desdobramento constitucional do esquema de poderes, haverá
um mínimo e um máximo de independência de cada órgão de poder,
sob pena de se desfigurar a separação, e haverá, também, um número
mínimo e máximo de instrumentos que favoreçam o exercício
harmônico dos poderes, sob pena de, inexistindo limites, um poder se
sobrepor ao outro poder, ao invés de, entre eles, se formar uma
atuação “de concerto.
Destarte, quaisquer exceções ao parâmetro do princípio formalmente
consagrado em uma Constituição, consubstanciado na ‘cláusula de
independência e harmonia’ dos poderes, só se justificam se voltadas,
sempre, para o fim originalmente visado pelo princípio de separar para
limitar.
Por isso mesmo, enquanto se mantiver o princípio da separação de
poderes como base do esquema de organização de poderes num estado
determinado, impõe-se manter a delimitação de zonas de atuação
independente e harmônica dos poderes políticos. A flexibilização da
regra-parâmetro, fato indisputável no direito constitucional
contemporâneo, encontra, pois, limites na idéia-fim do princípio:
limitação do poder. De outro lado, a interferência de um poder sobre
outro somente será admissível, em tese, quando vise a realizar a idéiafim, seja para impedir abusos de poder, seja para propiciar real
harmonia no relacionamento entre os poderes, seja ainda para garantir
as liberdades e assegurar o pleno exercício das funções próprias. A
interferência jamais poderá, ainda que de modo disfarçado, ter por
objetivo a dominação de um poder sobre o outro poder”.100
Por outro lado, embora já se tenha defendido que as funções do Estado deveriam
ser rigorosamente separadas, JOSE AFONSO
DA
SILVA adverte que o Princípio da
Separação dos Poderes não configura mais aquela rigidez de outrora, tendo em vista a
ampliação das atividades do Estado contemporâneo e o surgimento de novas formas de
relacionamento entre os órgãos legislativo e executivo e destes com o judiciário.101
A respeito dessas mudanças que atenuam o Princípio da Separação dos Poderes,
MARCELO ALEXANDRINO e VICENTE PAULO assim lecionam:
“(...) no Brasil, não há exclusividade no exercício das funções pelos
Poderes, vale dizer, não há uma rígida, absoluta, divisão de Poderes,
mas sim preponderância na realização dessa ou daquela função.
Assim, embora os Poderes tenham suas funções precípuas (funções
típicas), a própria Constituição autoriza que também desempenhem
funções que normalmente pertenceriam a Poder diverso (funções
atípicas). São as chamadas ‘ressalvas (ou exceções) ao princípio da
102
separação dos Poderes.”
100
FERRAZ, Anna Cândida da Cunha, op. cit., p.14
SILVA, José Afonso da, op. cit., p. 113.
102
ALEXANDRINO, Marcelo e PAULO, Vicente, op. cit., p. 14
101
47
ANNA CÂNDIA DA CUNHA FERRAZ colaciona importante contribuição, ao afirmar
que as ressalvas ao Princípio da Separação dos Poderes devem ser sempre “razoáveis” e
conectadas ao fim da perseguido, eis que,
“(...) Se se quiser manter o princípio da separação de poderes,
com vistas a se perseguir a idéia-fim que o gerou, é preciso, pois, ter
em mente que a ampliação desmesurada e inconseqüente de exceções
à cláusula-parâmetro [da independência e harmonia] vai tornando
cada vez mais tênues as linhas da separação dos poderes, esvaziando
cada vez mais o seu conteúdo, tornando ‘quase’ meramente nominal o
princípio e, por conseqüência, gerando ‘quase’ uma confusão de
poderes, que vai distante da formulação clássica do Barão de La
Bréde, propugnadora de ‘poderes separados’, ‘moderados’ e
103
‘institucionalizados”.
O critério de preponderância ocorre justamente para possibilitar que um poder
não se sobreponha ao outro, pois não existe “exclusividade em cada um dos poderes na
prática dos atos que lhe são típicos”.104
Destarte, embora a função típica do Poder Legislativo seja legislar, ele exerce
função atípica jurisdicional quando, por exemplo, o Senado Federal processa e julga o
Presidente da República ou os Ministros do Supremo Tribunal Federal nos crimes de
responsabilidade (CF, art. 52, I e II) e função atípica executiva quando trata da
organização de seus serviços e de seu pessoal (CF, arts. 51, IV e 52, XIII).
O Poder Judiciário, a seu turno, possui como atividade típica a jurisdicional, mas
excepcionalmente, tanto legisla, como por exemplo, ao elaborar os regimentos internos
dos Tribunais (CF, art. 96, I, “a”), quanto pratica atos de natureza executiva, ao
organizar os serviços e seu pessoal (CF, art. 96, I, “a”, “b”, “c”).
O
mesmo
se
diga
em
relação
ao
Poder
Executivo,
que
exerce
preponderantemente a função executiva e, de forma atípica, a função legislativa,
quando, por exemplo, edita medidas provisórias (CF, art. 62) e leis delegadas (CF, art.
68) e julga, nos chamados contenciosos administrativos.
Portanto, a separação de funções, nos moldes determinados pela Constituição
Federal de 1988, não é absoluta. O Poder Legislativo exerce tipicamente a função
legislativa, o Poder Judiciário a função jurisdicional e o Poder Executivo a função
103
104
FERRAZ, Anna Cândida da Cunha, op. cit.,p. 15
CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro, op. cit., p. 03.
48
executiva, mas não com exclusividade, de modo que a função típica de um Poder é
função atípica de outro.
Esse modelo, embora não tão rígido como o proposto por MONTESQUIEU, é uma
exigência do Estado Contemporâneo e, se bem dosado, ao invés de prejudicar, auxilia a
eficiente aplicação de freios e contrapesos sem que se engesse a atividade estatal.
Ademais, a leitura da cláusula-parâmetro da “independência e harmonia” já está
sendo feita como “interdependência e harmonia” das funções do poder político,
tornando-se relativa a especialização inerente à “separação”.105
6.1.2) A Cláusula da Indelegabilidade
Num primeiro momento, na forma propugnada por MONTESQUIEU, não se
permitia que ocorresse delegação de funções estatais. Por isso a não-delegação de
funções constituía verdadeira cláusula-parâmetro do princípio da separação dos poderes.
Todavia, até mesmo para que não ocorresse uma estagnação da atividade estatal,
houve temperamento gradativo dessa cláusula, até que se culminasse na possibilidade de
delegação.
Em razão disso, tem-se sustentado que a indelegabilidade não mais constitui
cláusula-parâmetro do princípio da separação dos poderes, pois, ao se admitir a
delegação, permite-se, em certa medida, uma concentração de funções, o que iria de
encontro com a lógica do princípio da separação dos poderes.
ANNA CÂNDIDA DA CUNHA FERRAZ, nesse sentido, aduz que
“Durante longo tempo, a cláusula vedatória da delegação de poderes,
‘the non-delegation power’, inscrita ou não nos textos constitucionais,
foi, também, considerada cláusula-parâmetro da aplicação do
princípio da separação de poderes. Delegar funções próprias, na visão
clássica do princípio, era ferir de morte a ‘separação’ de poderes.
Todavia, ao longo da evolução dos tempos, (...) a delegação cuja
vedação que vinha sendo, por primeiro, atenuada, é, posteriormente,
amplamente admitida, de tal sorte que não constitui cláusula-
105
FERREIRA FILHO, Manuel Gonçalves, op. cit., p. 133.
49
parâmetro para a aplicação do princípio da separação dos poderes,
mesmo nos sistemas presidencialistas”.106
Mas, sob um certo aspecto, pode-se admitir que a não-delegação continua sendo
cláusula-parâmetro do princípio da separação dos poderes, qual seja, o de que, se por
um lado é permitida a delegação, de outro, essa delegação só é permitida nas hipóteses,
condições e limites da delegação, já que, se é a Constituição que separa os Poderes,
somente ela pode disciplinar a delegação.107
De fato, se a separação de funções constitui, inclusive, cláusula pétrea da
Constituição (CF/88, Art. 60, § 4º, III), não se pode negar que existem óbices
instransponíveis para a delegação de funções separadas constitucionalmente, quais
sejam: a) vedação constitucional e b) disciplina das hipóteses de delegação possíveis,
inclusive quanto à forma de atuação do poder delegado.
Em suma, as únicas delegações possíveis são as constitucionalmente previstas,
nas condições e limites estabelecidos, sendo que, nas demais hipóteses, o Constituinte
considerou indelegável a função e essa vedação constitui, sob esse ponto de vista, uma
cláusula-parâmetro do princípio da separação dos poderes.
6.1.3) A Cláusula da Inacumulabilidade de Funções
Acumular funções é o caminho oposto ao da sua separação, por isso, se duas ou
mais funções forem atribuídas ao mesmo órgão, ocorrerá concentração de poderes e não
separação deles.
Em outras palavras, a acumulação de funções típicas contrapõe-se à idéia-fim de
sua separação. Ou seja, cria a concentração de funções, que ficam subordinadas a um
106
FERRAZ, Anna Cândida da Cunha, op. cit., p. 16
Anna Cândida. da Cunha Ferraz corrobora com esse entendimento, ao sustentar que “(...) Atualmente,
a regra da não delegação de poderes se curva apenas a dois limites: de um lado, a impossibilidade de
abdicação do poder ou competência originária constitucionalmente atribuída a determinado poder; de
outro, o estabelecimento de condições e limites claros para a atuação do poder delegado. Assim, somente
sob essa ótica renovada se pode admitir a não-delegação como cláusula-parâmetro, mesmo nos sistemas
presidencialistas” (FERRAZ, Anna Cândida da Cunha, op. cit., p. 17).
107
50
mesmo comando e, por conseguinte, atinge inclusive a cláusula da ‘independência’ dos
poderes.
Na visão de ANNA CÂNDIDA DA CUNHA FERRAZ,
“A regra da ‘inacumulabilidade’ de funções de poderes diferentes
também sempre foi tida como regra-parâmetro dos sistemas
presidencialistas. De certo modo tem a característica de cláusulaparâmetro de segundo grau, daí porque se destina a assegurar a
concretização da cláusula essencial da ‘independência’, que pressupõe
a não subordinação recíproca entre os exercentes de cada poder. Com
esta finalidade, ainda é de observância necessária, vez que a sua
eliminação ou atenuação se revela extremamente perigosa para a
independência entre os poderes. Assim, se a delegação, dentro de
limites, não supera a idéia-fim da independência entre os poderes, não
ofende ao fim último da “separação” de poderes e pode até favorecer a
harmonia entre os órgãos do poder, a acumulação de funções é muito
mais propícia a desfazer, de fato, os lindes da separação e a conduzir a
uma nominal ‘confusão de poderes’, embora também, em certa
medida, possa servir à harmonização ou mesmo coordenação nas
relações recíprocas dos poderes”.108
Acrescente-se que, a exemplo da indelegabilidade, somente é possível acumular
funções nos termos estabelecidos constitucionalmente, já que apenas o Poder
Constituinte originário pode valorar e decidir em que medida essa acumulação
harmoniza os poderes.
A opção do Legislador Constituinte brasileiro foi possibilitar a acumulação de
funções atribuindo uma função típica e algumas funções atípicas, conforme a noção
antes expendida ao se estudar a cláusula-parâmetro da “independência e harmonia”.
6.2) PODER LEGISLATIVO
A atividade típica do Poder Legislativo, como o seu próprio nome indica, é a
legiferante, exercida ao lado das funções atípicas judiciária (cujo exemplo mais comum
é o julgamento pelo Senado Federal do Presidente da República ou dos Ministros do
Supremo Tribunal Federal nos crimes de responsabilidade - CF, art. 52, I e II) e
executiva (quando, por exemplo, trata da organização de seus serviços e de seu pessoal CF, arts. 51, IV e 52, XIII).
108
Idem, ibidem.
51
Suas atividades principais são, sem dúvidas, ligadas ao processo legislativo, ao
lado, é claro, da atividade fiscalizatória, conforme se segue.
6.2.1) A Atividade Legislativa
A função legislativa constitue, em essência, a elaboração de normas gerais e
abstratas, incluindo-se as emendas constitucionais.
No dizer de ANTÔNIo CARLOS DE ARAÚJO CINTRA, ADA PELLEGRINI GRINOVER e
CÂNDIDO R. DINAMARCO, uma das ordens de atividades que o Estado se vale para
regular as relações intersubjetivas é a legislação, com a qual se
“(...) estabelece as normas que, segundo a consciência dominante,
devem reger as mais variadas relações, dizendo o que é lícito e o que é
ilícito, atribuindo direitos, poderes, faculdades, obrigações; são
normas de caráter genérico e abstrato, ditadas aprioristicamente, sem
destinação particular a nenhuma pessoa e a nenhuma situação
concreta; são verdadeiros tipos, ou modelos de conduta (desejada ou
reprovada), acompanhados ordinariamente dos efeitos que seguirão a
109
ocorrência de fatos que se adaptem às previsões”.
O Poder Legislativo, para cumprir a parcela da função pública que lhe foi
incumbido, cria vários instrumentos para proteger os bens da vida, que, uma vez
disciplinados, tornam-se bens jurídicos. Esta instrumentalização forma o chamado
Direito Objetivo110.
109
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini e DINAMARCO, Cândido R..
Teoria Geral do Processo. 15ª edição. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 38. Ressalte-se ainda que, a cada
momento histórico o Direito teve um comportamento diferente, até mesmo porque o valor-norma-fato que
compreende este objeto de estudo se vê fundido intensivamente na sociedade. É o que Miguel Reale
denomina “fenômeno histórico-cultural” (REALE, Miguel. Introdução ao Estudo do Direito. 23ª edição.
São Paulo: Saraiva, 1996, p. 62).
110
Apenas para que se tenha uma noção bem definida da instrumentalização do Direito Objetivo, tome-se,
a título exemplificativo, as normas penais incriminadoras. Com efeito, quando determinada sociedade cria
uma norma incriminadora dizendo, por exemplo, que “é proibido matar alguém”, equivale dizer que,
naquele momento, para a convivência pacífica ou pelo menos tolerável entre seus membros, mister será
repugnar o homicídio através de sanções penais. A Lei Penal lida com a liberdade das pessoas e por isso a
Função Legislativa se vale de uma técnica legislativa toda especial, não utilizando expressões tais como
“é proibido matar”, mas sim a descrição de uma conduta. Quando alguém pratica uma conduta idêntica à
prevista anteriormente na Lei Penal, incide ele na pena correspondente, porque contrariou uma norma
implícita na Lei. A Lei torna-se assim um verdadeiro veículo da norma. Um instrumento adequado e
impreterível utilizado para inserir determinada norma no Ordenamento Jurídico. Exemplificando, há
várias figuras típicas do homicídio. A forma simples é “matar alguém” (art. 121, caput, CP), uma das
formas privilegiadas é “matar alguém (...) sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta
provocação da vítima” (art. 121, §1º, CP), bem como existem formas qualificadas, como p. ex., “matar
52
Assim se traduz a clássica lição de HANS KELSEN, para quem “(...) as normas
jurídicas conferem a determinados fatos o caráter de atos jurídicos (ou antijurídicos)”111,
no sentido de que é o Legislador, ao valorar positiva ou negativamente um fato, quem
irá qualifica-lo de lícito ou ilícito, bem como o “grau” dessa ilicitude, ou seja, se ilícito
cível, administrativo ou penal.
Desta forma, alguns bens são mais e, outros, menos relevantes para a sociedade,
de modo que aqueles precisam do instrumento “crime”, capaz, ao menos em tese, de
defende-los112. Já os bens menos relevantes não necessitam de instrumentos
criminalizantes, bastando, por exemplo, uma mera proteção cível.
Nada impede - antes recomenda - que o Direito Objetivo, ao invés de uma
sanção penal, atribua uma sanção premial, de modo que os membros da sociedade,
visando o benefício legal, passem a agir conforme o interesse da Lei.
De fato, além das condutas consideras ilícitas, o Legislador valora positivamente
outras tantas (condutas lícitas), seja lhes concedendo uma sanção premial, tal como um
alguém (...) por motivo fútil” (art. 121, § 2º, II, CP). Cada uma delas corresponde uma sanção penal
diferenciada. Note-se que são “narradas” condutas e suas respectivas sanções, onde implicitamente consta
uma norma proibitiva que diz: “é proibido matar”. Estas são normas abstratas e que de modo geral
disciplinam as condutas de todos, dentro dos parâmetros estabelecidos pelo Princípio da Reserva Legal. A
medida provisória, emanada pela Função Executiva, embora tenha força de lei, não pode criar crimes ou
cominar sanções, pois à Função Legislativa, e somente a ela, incumbe legislar sobre Direito Penal, caso
contrário haveria inconstitucionalidade de tais dispositivos emanados de fonte diversa. Assim, somente a
fonte formal imediata pode definir o crime e fixar a pena cabível. Acrescente-se, ainda, que compete
privativamente à União legislar sobre Direito Penal, podendo os Estados, desde que autorizados por lei
complementar, legislar sobre questões específicas (art.22, I e parágrafo único). Mas, para que ninguém
seja punido arbitrariamente, não basta que exista expressamente o preceito legal e que atinja somente a
fatos futuros, é necessário, como visto, uma técnica legislativa própria para que diminua imperfeições
entre a tutela do direito de liberdade do cidadão e o poder punitivo do Estado, exigindo uma adequação
precisa do fato para que este se torne típico. Quando um sujeito, com capacidade penal absoluta, pratica
uma conduta ilícita prevista em Lei, ferindo a norma que lhe é implícita, nasce o jus puniendi do Estado.
Mas, como é inconcebível a liberdade onde o poder é absoluto, o Princípio da Reserva Legal veio para
limitar esse direito de punir pertencente ao Estado. Tal poder punitivo, que outrora era absoluto, passou
para apenas uma faculdade jurídica de punir, onde o Direito está disciplinando a ação estatal. Isso se dá
porque a Função Legislativa obedece a um processo legislativo cujas bases são estabelecidas
constitucionalmente, de acordo com a natureza da relação que se quer disciplinar. No caso das normas
penais, essas bases são muito mais rígidas, tendo em vista o seu conteúdo. Vale destacar, entretanto, que,
em essência, não há diferença entre normas penais e não-penais, no sentido em que ambas são produtos
da Função Legislativa. O que ocorre é uma diferenciação de competência e técnica legislativa.
111
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. 6ª edição. São Paulo:
Martins Fontes, 2000, p. 5
112 Vê-se, assim, que o “crime” nada mais é do que uma das modalidades de ilícito criada pela Função
Legislativa, cuja finalidade é proteger bens relevantes e que “convive” concomitantemente ao lado de
outras formas de ilícitos.
53
desconto, um benefício, um parcelamento ou dilação no prazo de cumprimento da
obrigação etc., seja não lhes imputando qualquer sanção.113
A atividade legislativa consiste, portanto, na elaboração do Direito Objetivo,
sendo que, na esfera federal está ela incumbida ao Congresso Nacional, composto pela
Câmara dos Deputados114 e pelo Senado Federal115 (art. 44 da CF/88).
O Poder Legislativo Estadual é exercido pela Assembléia Legislativa, que, no
Distrito Federal, chama-se Câmara Legislativa. Já o Poder Legislativo Municipal é
exercido pela Câmara dos Vereadores, na forma do art. 29, inciso IV, da CF/88. Ambos
possuem sistema unicameral.
As questões a serem objeto de votação serão deliberadas, necessitando-se, no
mínimo, a presença da maioria absoluta dos membros da casa legislativa para que se
inicie a votação (art. 47 da CF/88).116
6.2.2) A Atividade Fiscalizatória (Função Executiva)
Afora sua função legiferante, o Poder Legislativo exerce, além de uma ampla
atividade fiscalizatória de todos os poderes, o controle político do Poder Executivo.117
113 No sentir de KELSEN, “(...) com o termo ‘norma’ se quer significar que algo deve ser ou acontecer,
especialmente que um homem se deve conduzir de determinada maneira. É esse o sentido que possuem
determinados atos humanos que intencionalmente se dirigem à conduta de outrem. Dizemos que
intencionalmente se dirigem à conduta de outrem não só quando em conformidade com o seu sentido,
prescrevem (comandam) essa conduta, mas também quando permitem e, especialmente, quando conferem
o poder de a realizar, isto é, quando a outrem é atribuído um determinado poder, especialmente o poder de
ele próprio estabelecer normas”. Idem, ibidem.
114
A Câmara dos Deputados é formada por representantes do povo, eleitos à base proporcional da
população de cada unidade da Federação (Estados e Distrito Federal), por mandatos de 4 (quatro) anos, na
forma do art. 45 do Diploma Constitucional.
115
O Senado Federal, por sua vez, representa os Estados e o Distrito Federal, com participação equânime,
possuindo cada qual 3 (três) senadores, com 2 (dois) suplentes e mandato de 8 (oito) anos (art. 46 da
CF/88).
116
Em regra, as deliberações, uma vez aprovadas, são submetidas à sanção do Presidente da República,
embora nalgumas matérias não se exija essa sanção, pois são de competência exclusiva do Congresso, da
Câmara ou do Senado (arts. 49, 51 e 52 da CF).
117
Segundo Alexandre de Moraes, “As funções típicas do Poder Legislativo são legislar e fiscalizar,
tendo ambas o mesmo grau de importância e merecedoras de maior detalhamento. Dessa forma, se por
um lado a Constituição prevê regras de processo legislativo, para que o Congresso Nacional elabore as
normas jurídicas, de outro, determina que a ele compete a fiscalização contábil, financeira, orçamentária,
operacional e patrimonial do Poder Executivo (CF, art. 70). As funções atípicas constituem-se em
54
A atividade fiscalizatória é bastante ampla. Todas as pessoas, físicas ou
jurídicas, públicas ou privadas, que utilizam, arrecadam, guardam, gerenciam ou
administram dinheiro, bens e valores públicos, ou que, em nome de órgão público,
assuma obrigação de natureza pecuniária, estão sujeitas à prestação e tomada de contas
pelo controle externo e pelo sistema de controle interno de cada Poder118.
O controle externo é realizado pelo Poder Legislativo, com o auxílio do Tribunal
de Contas, que constitui órgão de apoio dos Poderes da República e que auxilia o Poder
Legislativo na realização do controle externo da gestão do patrimônio público,
possuindo seus membros as mesmas garantias de independência que o constituinte
reservou aos membros do Judiciário.
Ressalte-se, todavia, que conforme disciplina contida no art. 49, inciso IX da
CF/88, no caso do Presidente da República, o julgamento das contas é ato privativo do
Congresso Nacional, competindo ao Tribunal de Contas da União tão-somente a
elaboração de parecer prévio.
No exercício de suas atribuições, o Tribunal de Contas da União pode apreciar,
através do controle incidental, a constitucionalidade das leis e dos atos normativos do
Poder Público, (verbete nº 347 da Súmula do Supremo Tribunal Federal).
O controle externo dos recursos públicos do Estado é feito pelas Assembléias
Legislativas com o auxílio dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal.
É vedada a criação de tribunais, conselhos ou órgãos de contas municipais (art.
31, § 4.º, da CF), mas os Tribunais de Contas Municipais existentes antes da
Constituição Federal de 1988 foram mantidos (art. 31, § 1.º, da CF) e auxiliam as
respectivas Câmaras Municipais no controle externo das contas públicas.
administrar e julgar. A primeira ocorre exemplificativamente, quando o Legislativo dispõe sobre sua
organização e operacionalidade interna, provimento de cargos, promoções de seus servidores; enquanto a
segunda ocorrerá, por exemplo, no processo e julgamento do Presidente da República por crime de
responsabilidade. No exercício de suas funções, os membros do Poder Legislativo estão resguardados por
um protetivo rol de prerrogativas e imunidades; bem como por algumas incompatibilidades (...)”.
(MORAES, Alexandre de, op. cit., p. 375).
118
MORAES, Alexandre de, op. cit. p. 383
55
Onde, todavia, não há esses tribunais, o controle é feito pela Câmara de
Vereadores, com o auxílio dos Tribunais de Contas Estaduais da respectiva unidade da
federação, ou, no caso específico do Distrito Federal, do TCDFT.
Para auxiliar as atividades legislativas o Congresso Nacional e suas casas
possuem comissões permanentes e temporárias, na forma do art. 58 da Constituição
Federal.
Também há previsão de comissões parlamentares de inquérito (CPIs), com
poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos nos
regimentos das respectivas Casas. As CPIs são criadas por prazo certo e com objeto de
investigação específico.119
O professor ALEXANDRE DE MORAES observa, contudo, que
“(...) a necessidade de criação das comissões com objeto específico,
não impede a apuração de fatos conexos ao principal, ou ainda, de
outros fatos, inicialmente desconhecidos, que surgirem durante a
investigação, bastando, para que isso ocorra, que haja um aditamento
120
do objeto inicial da CPI”.
As atividades desenvolvidas pelas Comissões Parlamentares de Inquérito, bem
como as atividades fiscalizatórias, que recebem o auxílio do Tribunal de Contas, não
possuem natureza legislativa, mas sim executiva.
Insta noticiar, ainda, que o art. 130 da Constituição Federal indica a existência
de membros do Ministério Público junto aos Tribunais de Contas. A doutrina diverge
quanto a se esses membros comporiam um Ministério Público próprio ou se estariam
119
CF/88. “Art. 58. O Congresso Nacional e suas Casas terão comissões permanentes e temporárias,
constituídas na forma e com as atribuições previstas no respectivo regimento ou no ato de que resultar sua
criação. § 1º. Na Constituição das Mesas e de cada Comissão, é assegurada, tanto quanto possível, a
representação proporcional dos partidos ou dos blocos parlamentares que participam da respectiva Casa. §
2º. Às comissões, em razão da matéria de sua competência, cabe: I - discutir e votar projeto de lei que
dispensar, na forma do regimento, a competência do Plenário, salvo se houver recurso de um décimo dos
membros da Casa; II - realizar audiências públicas com entidades da sociedade civil; III - convocar
Ministros de Estado para prestar informações sobre assuntos inerentes a suas atribuições; IV - receber
petições, reclamações, representações ou queixas de qualquer pessoa contra atos ou omissões das
autoridades ou entidades públicas; V - solicitar depoimento de qualquer autoridade ou cidadão; VI apreciar programas de obras, planos nacionais, regionais e setoriais de desenvolvimento e sobre eles
emitir parecer. § 3º. As comissões parlamentares de inquérito, que terão poderes de investigação próprios
das autoridades judiciais, além de outros previstos no regimento das respectivas Casas, serão criadas pela
Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em conjunto ou separadamente, mediante requerimento de
um terço de seus membros, para a apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo suas conclusões,
se for o caso, encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal
dos infratores.
120
MORAES, Alexandre de, op. cit., p. 384.
56
incluídos nos diversos Ministérios Públicos previstos no art. 128 da CF/88, ponto que,
no momento, basta apenas noticiar, eis que será abordado especificamente no “Capítulo
III”.
6.3) PODER EXECUTIVO
O Poder Executivo compreende, de um lado, o governo e, de outro, a
administração. Por função governamental, em sentido estrito, entende-se as atividades
de condução política da sociedade e, por função administrativa, a responsabilidade pela
execução das leis e decisões judiciais.
No sistema presidencialista, o Presidente da República acumula as funções de
Chefe de Estado, representando-o interna e externamente, e Chefe de Governo,
realizando a condução política da sociedade. As atribuições do Presidente da República
são enumeradas no art. 84 da Constituição Federal vigente.121
No exercício de seus atos o Presidente da República pode ser responsabilizado,
conforme estabelece o art. 85 da Carta Política.122
Além do auxílio dos ministérios, conta ainda o Presidente da República com
órgãos superiores de consulta, quais sejam, o Conselho da República e o Conselho de
Defesa Nacional, ambos com composição e competência definidos nos artigos 89 e ss.
da CF/88.
Os Estados e Distrito Federal possuem como chefe do Poder Executivo os
Governadores. Os Municípios, por sua vez, são chefiados pelos Prefeitos.
121
São de interesse específico para este estudo os seguintes incisos: “Art. 84 - Compete privativamente ao
Presidente da República: (...) XIV - nomear, após aprovação pelo Senado Federal, os Ministros do
Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores, os Governadores de Territórios, o ProcuradorGeral da República, o presidente e os diretores do Banco Central e outros servidores, quando determinado
em lei; (...) Parágrafo único - O Presidente da República poderá delegar as atribuições mencionadas nos
incisos VI, XII e XXV, primeira parte, aos Ministros de Estado, ao Procurador-Geral da República ou ao
Advogado-Geral da União, que observarão os limites traçados nas respectivas delegações”. (destaques
nossos)
122
Para esta pesquisa possui maior relevo: “Art. 85 - São crimes de responsabilidade os atos do Presidente
da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra: (...); II - o livre
exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais
das unidades da Federação; (...)”.
57
Relativamente à natureza jurídica da atividade pública, diz HELY LOPES
MEIRELLES ser ela “(...) um múnus público para quem a exerce, isto é, a de um encargo
de defesa, conservação e aprimoramento dos bens, serviços e interesses da
coletividade”.123
Por múnus público se entende “o que procede de autoridade pública ou da lei, e
obriga o indivíduo a certos encargos em benefício da coletividade ou da ordem
social”.124
Em outras palavras, pode-se definir a atividade executiva como sendo a aquela
que dá concreção às leis, guiada sempre pela supremacia e indisponibilidade do
interesse público.
Para CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO,
“(...) na verdade, o interesse púbico, o interesse do todo, do conjunto
social, nada mais é que a dimensão pública dos interesses individuais,
ou seja, dos interesses de cada indivíduo enquanto partícipe da
Sociedade (entificada juridicamente no Estado, nisto se abrigando
também o depósito intertemporal desses mesmos interesses,vale dizer,
já agora, encarados eles em sua continuidade histórica, tendo em vista
125
a sucessividade das gerações de seus nacionais”.
Assim, o interesse público não se confunde nem com os interesses dos ocupantes
dos cargos públicos, nem com os interesses secundários dos órgãos estatais.
A função executiva, neste contexto, é a parcela da função política responsável
pela atuação das leis de ofício, cujo fim é o interesse público e, para tanto, quem a
exerce, goza de poderes necessários para executar atividades que visem alcança-lo.
CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO anota ainda que
“(..) existe função quando alguém está investido do dever de satisfazer
dadas finalidades em prol do interesse de outrem, necessitando, para
tanto, manejar os poderes requeridos para supri-las. Logo, tais poderes
são instrumentais ao alcance das sobreditas finalidades. Sem eles, o
sujeito investido na função não teria como desincumbir-se do dever
posto a seu cargo. Donde, quem os titulariza maneja, na verdade,
‘deveres-poderes’, no interesse público.
123
MEIRELLES, Hely Lopes, op. cit., p. 80
AURÉLIO, Buarque de Holanda Ferreira. Dicionário Aurélio Eletrônico. Versão 2.0. Autor do
software Márcio Ellery Girão Barroso. São Paulo: Fronteira, 1997 (Editores, Carlos Augusto Lacerda e
Paulo Geiger).
125
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 13ª edição. São Paulo:
Malheiros, p. 58.
124
58
(...) Assim, ditos poderes são irrogados, única e exclusivamente, para
propiciar o cumprimento do dever a que estão jungidos; ou seja: são
conferidos como meios impostergáveis ao preenchimento da
126
finalidade que o exercente de função deverá suprir”.
Desta forma, a atividade executiva guia-se pelo interesse público indisponível,
pré-determinado na Constituição e nas leis. Daí a clássica lição de HELY LOPES
MEIRELLES ao dizer que “(..) na Administração Pública não há liberdade nem vontade
pessoal. Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na
Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza”.127
Sob um aspecto mais técnico, correto afirmar que, no cumprimento da atividade
executiva, o exercício de seu poder correlato deve ser visto mais como um dever-poder,
sendo que este dever-poder será válido apenas “na extensão e intensidade proporcionais
ao que seja irrecusavelmente requerido para o atendimento do escopo legal a que estão
vinculados”.128
Sabe-se que, a rigor, toda conduta de governantes e governados num Estado
Democrático de Direito deve ser pautada no Ordenamento Jurídico. Os próprios
“Poderes Constituídos” encontram sua fonte de validade na Constituição e esta, por sua
vez, só é legítima quando em consonância com a vontade do Poder Político soberano,
que se encontra latente no povo, de tal forma que até os Poderes Legislativo e
Judiciário, ao exercerem sua atividade, também estão cumprindo leis.
Assim, numa noção bem ampla, toda a atividade estatal busca a satisfação do
interesse público.
Tenha-se em mente, porém, que algumas atividades identificam-se com certas
categorias de atos, como, por exemplo, a de solucionar conflitos (atribuída ao
Judiciário) ou a de criar normas gerais e abstratas (prevalente no Legislativo) ou, por
fim, cumprir e lutar pela atuação de ofício das “leis” no interesse público, tal como a
Função Executiva.
126
MELLO, Celso Antônio Bandeira de, op. cit., pp. 32 e 69.
MEIRELLES, Hely Lopes, op cit., p. 82.
128
MELLO, Celso Antônio Bandeira de, op. cit., p. 70
127
59
MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO aponta como pressupostos básicos da
organização administrativa a distribuição de competências e a hierarquia nos diversos
órgãos, cargos e funções, para que assim exista harmonia e unidade de direção.129
A distribuição de competências, na esfera do Poder Executivo, é a atribuição de
atividades de natureza executiva aos órgãos que o compõe. Neste contexto, os órgãos
nada mais são do que as unidades abstratas que sintetizam esses vários círculos de
atribuições do Estado.130
No dizer de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA
DE
MELLO, os órgãos classificam-se,
quanto às funções que exercem, em
“a) ativos, que são os que expressam decisões estatais para o
cumprimento dos fins da pessoa jurídica;
b) de controle, que são os prepostos a fiscalizar e controlar a atividade
de outros órgãos ou agentes; e
c) consultivos, que são os de aconselhamento e elucidação (pareceres)
para que sejam tomadas as providências pertinentes pelos órgãos
ativos”.131
Além dessa distribuição de competências, o outro elemento que a doutrina
coloca como indispensável para que exista harmonia e unidade de direção na
organização administrativa é a hierarquia.
Celso ANTÔNIO BANDEIRA
DE
MELLO define hierarquia como sendo “(...) o
vínculo de autoridade que une órgãos e agentes, através de escalões sucessivos, numa
relação de autoridade, de superior a inferior, de hierarquia a subalterno”.132
Embora pareça existir um pensamento tradicional a respeito da hierarquia como
característica do Poder Executivo, o fato é que há vários sentidos em que o termo pode
ser empregado.133
129
PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di. Direito Administrativo. 12ª edição. São Paulo: Atlas, 2000, p. 93.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de, op. cit., p. 106
131
MELLO, Celso Antônio Bandeira de, op. cit., p. 107.
132
MELLO, Celso Antônio Bandeira de, op. cit, p. 116
133
Pietro, citando Renato Alessi, assinala três sentidos que podem ser empregados à expressão
“hierarquia”, um técnico-político e os outros dois jurídicos, verbis: “(...) a) sob o primeiro aspecto
[técnico-político], a hierarquia é um princípio, um critério de organização administrativa, em decorrência
do qual um órgão se situa em plano de superioridade com respeito a outros que, por sua vez, se situam na
mesma posição em relação a outros mais, e assim por diante, dando lugar a uma característica pirâmide;
em seu ápice encontram-se o Chefe do Poder Executivo, de onde emanam as diretrizes para os órgãos
inferiores; estes, por sua vez, fornecem os elementos e preparam as decisões dos órgãos superiores; b) sob
130
60
Por outro lado, a hierarquia comporta exceções, seja pela natureza da atividade
desempenhada (tal como a consultiva, em que são incompatíveis com uma determinação
de comportamento), seja pela própria atribuição legal de uma competência a ser
exercida com exclusividade por um órgão executivo.134
Essas exceções ocorrem a tal ponto de se defender que a hierarquia não constitui
elemento fundamental e sempre indissociável da atividade executiva, conclusão que não
fugirá às ferrenhas críticas de autores de escol, como o próprio Celso Antônio Bandeira
de Mello, mas que encontra apoio em outros renomados juristas.
O Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, do Supremo Tribunal Federal, corrobora com
este entendimento, ao advertir que há “um preconceito de unipessoalidade e
verticalidade hierárquica do poder Executivo, que o Estado moderno não conhece mais
e que está desmentido pelos fatos”.135
Com efeito, não há na Constituição Federal vigente qualquer impossibilidade de
se ver o Poder Executivo composto de órgãos que sejam independentes, desde que, é
claro, exerçam atividades tipicamente executivas.
Estas observações são importantes para este estudo, eis que constituem inclusive
um dos fundamentos teóricos utilizados para se incluir o Ministério Público como
instituição pertencente ao Poder Executivo, ponto que será analisado no momento
adequado.
o segundo aspecto (agora jurídico), a hierarquia corresponde a um ordenamento hierárquico definido por
lei e que implica diversidade de funções atribuídas a cada órgão; essa distribuição de competências pode
ser mais ou menos rígida, podendo ser concorrente ou exclusiva; dependendo da maior ou menor rigidez,
os órgãos superiores terão maior ou menor possibilidade de controle sobre os subordinados; c) sob o
terceiro aspecto (ainda jurídico), a hierarquia corresponde a uma relação pessoal, obrigatória, de natureza
pública, que se estabelece entre os titulares de órgãos hierarquicamente ordenados; é uma relação de
coordenação e de subordinação do inferior frente ao superior, implicando um poder de dar ordens e
correlato dever de obediência. Vale dizer que ordenamento hierárquico é fixado pela lei e que desse
ordenamento resulta uma relação de coordenação e subordinação, que implica os já referidos poderes da
Administração (...) Daí sua definição de hierarquia como ‘vínculo que coordena e subordina uns aos
outros os órgãos do Poder Executivo, graduando a autoridade de cada um’” (PIETRO, Maria Sylvia
Zanella Di, op. cit. pp. 92/93).
134
PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di Pietro, op. cit., p. 92
135
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Revista Trimestral de Jurisprudência, v. 147, janeiro de 1994, p.
133;
61
6.4) PODER JUDICIÁRIO
Quando foi analisada a Função Legislativa, constatou-se que ela é responsável
pela elaboração de normas gerais e abstratas que disciplinam as condutas dos membros
da sociedade, estabelecendo-se o que se denomina Direito Objetivo.
Tomando-se como exemplo as normas penais, imagine-se um sujeito culpável
que tiver praticado uma conduta idêntica á prevista como crime pelo Direito Penal
Objetivo, sem que exista qualquer excludente da ilicitude.
In casu, o Estado terá o direito de punir o infrator se, ao tempo da prática de
determinada conduta, seja ela considerada delituosa. Contudo, assim não procederá sem
antes levar sua pretensão punitiva para apreciação jurisdicional136, em face do princípio
nulla poena sine judicio.137
Com efeito, quando alguém comete uma conduta idêntica à tipificada na Lei
Penal, ele fere a norma implícita no Direito Penal Objetivo, fazendo nascer o Direito
Subjetivo do Estado de punir o infrator: o direito de punir passa do plano abstrato para o
concreto.
Os fatos narrados na denúncia ofertada pelo Representante do Ministério
Público, ou na queixa, nos casos de ação penal privada ou subsidiária da pública, são o
início de uma tese, que constitui a acusação.
O advogado de defesa formula a antítese e, o juiz togado, de forma equânime e
de acordo com a sua persuasão racional, redige a síntese, que deverá corresponder ao
que mais se aproxima da verdade.138
136
Modernamente a Jurisdição é a função estatal destinada a resolver os conflitos sociais através do
devido processo legal e buscando a pacificação com justiça através de decisões tomadas para cada caso
concreto por juízes naturais, em juízos ou tribunais previamente fixados, competentes para julgarem as
ações levadas a sua apreciação.
137
A este respeito, Antônio C. de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido R. Dinamarco
anotam que os preceitos penais “(...) de acordo com o princípio nulla poena sine judicio só podem ser
atuados por meio do processo. O processo penal é indispensável para a solução da controvérsia que se
estabelece entre acusador e acusdo, ou seja, entre a pretensão punitiva e a liberdade”. (CINTRA, Antônio
Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini e DINAMARCO, Cândido R., op. cit., p. 339).
138
No Processo Penal impera o Princípio da Verdade Real. O Juiz aprecia livremente as provas carreadas
aos autos, bem como pode solicitar a produção de outras se necessário, atribuindo-lhes o valor de acordo
62
Mesmo os Juízes leigos, que compõem o Conselho de Sentença no Tribunal do
Júri139, formulam uma síntese.
Da mesma forma, quando se pratica uma conduta que a Lei atribui algum
benefício, nascerá o direito subjetivo de requerer esse benefício.
Suponha-se, assim, que uma Lei específica conceda uma isenção tributária,
desde que o contribuinte cumpra algumas condições. Esta norma se dirigirá a todos os
contribuintes que se encontrem na mesma situação jurídica, de tal forma que, enquanto
ninguém cumprir com todas as condições estabelecidas em Lei, não terão direito ao
benefício.
Por outro lado, se um, alguns ou todos os contribuintes cumprirem
concretamente as condições legais, nascerá o direito subjetivo em relação ao benefício,
que, se não concedido espontaneamente, possibilitará o acesso ao Judiciário para que
atue a vontade da Lei.
Ou seja, nem sempre o Direito Objetivo é cumprido espontaneamente,
estabelecendo-se um conflito, que, se levado ao Judiciário, poderá ser por esse dirimido.
Se não existisse a função jurisdicional haveria uma série de conflitos que
tornariam a vida social insustentável, motivo pelo qual o Estado assume o dever de
promover a pacificação social.
Conforme sintetiza ANTÔNIo CARLOS
DE
ARAÚJO CINTRA, ADA PELLEGRINI
GRINOVER e CÂNDIDO R. DINAMARCO,
“(...) O poder estatal, hoje, abrange a capacidade de dirimir os
conflitos que envolvem as pessoas (inclusive o próprio Estado),
decidindo sobre as pretensões apresentadas e impondo as decisões.
com o seu convencimento. Todavia, deverá motivar a sentença, explicitar as razões de sua decisão. O réu
tem o direito de se defender, pois, sem a “antítese”, ele será cerceado do seu direito de ampla defesa,
desequilibrando os “pratos da balança” que forçosamente penderão para o lado da acusação, o que
constitui um tratamento desigual. Nestes moldes nunca se chegará à verdade dos fatos. Afinal, A defesa,
“lato sensu”, é a resistência à pretensão punitiva e, processualmente, encontra-se em paridade com a
acusação. Assim, tanto poderá objetivar a absolvição do réu, como também um abrandamento da pena, já
que o réu tem o direito de ser condenado na exata medida cabível no caso concreto. Mais injusto do que
atribuir ao réu uma pena menor do que realmente merece é coloca-lo no cárcere por tempo superior ao
que a “justiça” impõe.
139
Estes juízes são membros da sociedade e – argumenta-se -, a conhece melhor do que o juiz togado. Os
jurados não se prendem às provas trazidas ao processo, decidem unicamente de acordo com a consciência
de cada um, através de votação de quesitos.
63
O que distingue a jurisdição das demais funções do Estado
(legislação, administração) é precisamente, em primeiro plano, a
finalidade pacificadora com que o Estado a exerce.
(...) A pacificação é o escopo magno da jurisdição (...). É um escopo
social, uma vez que se relaciona com o resultado do exercício da
jurisdição perante a sociedade e sobre a vida gregária dos seus
membros e felicidade pessoal de cada um (...).
Afirma-se que o objetivo-síntese do Estado contemporâneo é o bemcomum e, quando se passa ao estudo da jurisdição, é lícito dizer que a
projeção particularizada do bem comum nessa área é a pacificação
com justiça”.140
Embora existam outras formas de composição dos conflitos, sempre passível de
análise pelo Judiciário (CF/88, Art. 5º, inc. XXXV), a atividade jurisdicional configura
função indissociável da vida em sociedade, falando-se, inclusive, numa “quase absoluta
exclusividade estatal no exercício dela”.141
Alguns princípios basilares norteiam a atividade jurisdicional, dos quais
destacam-se os Princípios do Amplo Acesso ao Judiciário, da Imparcialidade e da
Inércia, por serem diretamente relacionados com o objetivo do presente estudo.
6.4.1) Princípio do Amplo Acesso ao Judiciário
Para um efetivo acesso à Justiça, não basta a mera possibilidade de se requerer a
tutela estatal. Mais do que isso é necessário a existência de instrumentos que
proporcionem o maior número de pessoas demandando sem que, neste intento, a
atividade jurisdicional deixe de ser prestada com qualidade.
140
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini e DINAMARCO, Cândido R., op.
cit., pp. 24/25
141
Conforme anota Antônio Cintra, Ada Pellegrini e Cândido R. Dinamarco, “o extraordinário
fortalecimento do Estado, ao qual se aliou a consciência da sua essencial função pacificadora, conduziu
(...) à afirmação da quase absoluta exclusividade estatal no exercício dela”, muito embora seja cada vez
maior a utilização de meios alternativos de pacificação social, idéia que foi gradativamente ganhando
corpo, já que “se o que importa é pacificar, torna-se irrelevante que a pacificação venha por obra do
Estado ou por outros meios, desde que eficientes”. Dentre esses meios, destacam-se a autotutela, a
autocomposição e a arbitragem, que, nos casos legais, não constituem ultraje ao monopólio estatal.
(CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini e DINAMARCO, Cândido R., op.
cit., pp. 25-29).
64
Na prática, é uma realidade incontestável que muito ainda precisa ser feito nesse
sentido. Todavia, também é inegável que houve um significativo avanço, em especial
em razão do movimento pela coletivização do processo.
Gregório Assagra de Almeida observa que, num primeiro momento, prevalecia
no direito processual uma fase sincretista ou privatista - em que havia uma confusão
metodológica entre direito material e processual, sendo este estudado sob a óptica do
direito privado e considerado um mero apêndice do direito material -, até que, em 1868,
Oskar von Bulow apresentou um trabalho doutrinário que revolucionaria o direito
processual, no qual demonstrou, de forma sistematizada, que a relação jurídica
processual era independente da relação jurídica material. Surgia, assim, a fase
autonomista do direito processual, também denominada fase conceitual, tendo em vista
o desenvolvimento do direito processual a partir de conceitos elementares, como o de
ação, processo e jurisdição142.
Assinala o referido autor que, embora nessa fase tenha havido um importante
desenvolvimento científico do direito processual, não havia preocupação com questões
relativas ao acesso e à efetividade da justiça, verbis:
“(...) Na fase autonomista, também conhecida como fase do
procedimento científico, os pobres e a coletividade massificada, essa
na sua condição de titular dos direitos ou interesses transindividuais,
ficavam fora da preocupação e dos estudos dos processualistas.
Contudo, com a intensificação da conflituosidade social, a morosidade
da justiça, as altas custas judiciais e outras questões sociais relativas
ao acesso à justiça passaram a ser objeto de preocupação dos juristas,
o que tem início especialmente a partir das décadas de 60 e 70 do
Século XX.
Com isso, tornou-se necessária a revisitação do direito processual.
Surge, assim, uma nova fase metodológica, denominada de
instrumentalista. É essa a fase atual do direito processual, também
conhecida como fase do direito processual de resultados, ou de fase da
efetividade do processo, ou fase do acesso à justiça.”143
Complementa o referido autor, enfatizando que na fase instrumentalista o direito
processual passa a ser concebido como meio, como instrumento de realização de justiça
por intermédio dos escopos da jurisdição144.
142
ALMEIDA, Gregório Assagra de. Manual das Ações Constitucionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2007,
pp.5-6;
143
ALMEIDA, Gregório Assagra de. Manual das Ações Constitucionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2007,
p. 6.
144
Idem, Idem.
65
De fato, ANTÔNIo CARLOS
DE
ARAÚJO CINTRA, ADA PELLEGRINI GRINOVER e
CÂNDIDO R. DINAMARCO destacam que, para que o Judiciário realize plenamente sua
missão social de eliminar conflitos e fazer justiça, é preciso ater-se aos seus escopos
sociais, políticos e jurídicos, bem como superar os óbices que ameaçam a boa qualidade
desta prestação, quais sejam:
“(...) a) admissão ao processo, eliminado dificuldades econômicas
(art. 5º, inc. LXXIV) e abrindo campo para a defesa de direitos
difusos e coletivos (através de instrumentos, como p. ex., a Lei da
Ação Civil Pública, que permite ao Ministério Público e às
associações pleitear judicialmente em prol dos interesses supraindividuais ou o mandado de segurança coletivo) ; b) o modo-de-ser
do processo, observando-se o devido processo legal e contraditório; c)
a justiça das decisões, onde o juiz deve pautar-se pelo critério de
justiça, seja apreciando a prova, enquadrando os fatos adequadamente,
interpretando os textos de direito positivo, optando-se pelo resultado
mais justo diante duplo sentido interpretativo; d) utilidade das
decisões, dando tudo aquilo e somente aquilo que se tem direito
obter”.145
De outro lado, foi nessa fase instrumentalista do direito processual que surgem
as chamadas ondas renovatórias do acesso à justiça, assim sintetizadas por Gregório
Assagra:
“A primeira onda renovatória do acesso à justiça é conhecida como
gratuidade da justiça aos pobres; esse primeiro movimento pelo acesso
à justiça não foi suficiente, especialmente por tratar o pobre como
indivíduo e esquecer da coletividade (direitos massificados).
A segunda onda renovatória do acesso à justiça, que aqui nos interessa
particularmente, é conhecida como representação em juízo dos
interesses difusos e tem início no final da década de 1960 e início da
década de 1970 nos Estados Unidos e na Europa (França, Suécia,
etc.). A segunda onda é conhecida também como movimento mundial
pela coletivização do processo.
Entretanto, as duas primeiras ondas renovatórias do acesso à justiça
não foram suficientes, o que fez surgir uma terceira onda denominada
de um novo enfoque sobre o acesso à justiça.
Essa terceira onda renovatória do acesso à justiça possui três
dimensões:
A primeira dimensão é abrangente das ondas renovatórias anteriores,
mais vai além.
145
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini e DINAMARCO, Cândido R., op.
cit., pp. 35/35.
66
Pela segunda dimensão, o acesso à justiça passa a ser visto por
intermédio de um novo método de pensamento – como direito ao
acesso a uma ordem jurídica justa, o que passa a ser objeto de
indagação da filosofia do direito e da teoria geral do direito, de sorte
que não há sentido em se falar em direito sem efetividade.
Em uma terceira dimensão, esse novo enfoque sobre o aceso à justiça
(terceira onda renovatória do acesso à justiça) propõe um amplo e
moderno programa de reformas do sistema processual, que se
viabilizaria por intermédio: a) da criação de meios alternativos de
solução de conflitos (substitutivos e equivalentes jurisdicionais), tais
como alguns já implantados no Brasil (arbitragem, a tomada pelos
órgãos públicos legitimados às ações coletivas do compromisso de
ajustamento de conduta às exigências legais, etc.); b) a implantação de
tutelas diferenciadas (podemos citar no Brasil, a antecipação dos
efeitos da tutela jurisdicional final pretendida; os juizados especiais; o
procedimento monitório, etc.); c) as reformas pontuais no sistema
processual, a fim de torna-lo mais ágil, eficiente e justo. (...)”.146
Realmente, surgem cada vez mais instrumentos processuais que ampliam o
acesso à prestação jurisdicional, tais como a Ação Popular, o chamado Mandado de
Injunção Coletivo, a Ação Direta de Inconstitucionalidade, a Ação Declaratória de
Constitucionalidade, a Ação de Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental,
entre outros.
Já se pode perceber que o amplo acesso ao Judiciário é algo mais que a simples
enunciação de que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou
ameaça a direito” (CF, art. 5º, inc. XXXV), ou que haverá a prestação de “assistência
jurídica integral e gratuita aos que provarem insuficiência de recursos” (CF, art. 5º, inc.
LXXIV).
Exige-se, além disso, instrumentos jurídicos eficientes, notadamente os que
possibilitem, em uma única decisão, alcançar, com qualidade, um grande número de
pessoas.
O Ministério Público exerce importante papel para que se efetive esses
instrumentos, principalmente em relação aos direitos sociais e individuais indisponíveis,
que são de controle jurisdicional indispensável147, e na defesa da constitucionalidade das
normas.
146
ALMEIDA, Gregório Assagra de. Manual das Ações Constitucionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2007,
p. 8;
147
“As pretensões necessariamente sujeitas a exame judicial para que possam ser satisfeitas são aquelas
que se referem a direitos e interesses regidos por normas de extrema indisponibilidade, como as penais e
aquelas não-penais trazidas como exemplo (esp., direito de família). É a indisponibilidade desses direitos,
sobretudo o de liberdade, que conduz a ordem jurídica a ditar, quanto a eles, regra do indispensável
67
6.4.2) Princípios da Imparcialidade e Inércia
Quanto aos Princípios da Imparcialidade e da Inércia, aproveita-se a
oportunidade para que se dê um enfoque social, antes mesmo dos aspectos positivistas.
Com efeito, o fato da República Federativa do Brasil constituir-se em Estado
Democrático de Direito, propugnador da aplicação do Princípio da Igualdade, conduz o
Judiciário, enquanto responsável pela pacificação social, a uma postura cada vez mais
condizente com esses princípios.
Se a igualdade consagrada constitucionalmente revela-se no tratamento
equânime entre os iguais e, diferenciado - na medida dessa desigualdade -, com relação
àqueles que se encontram em situações jurídicas diversas, então deve o Judiciário
pautar-se por esses critérios ao julgar as causas que lhes são afetas, sob pena de ser
tornar parcial.
Com efeito, se o Estado, representado pelo Magistrado, tratar igualmente
pessoas cujas diferenças devem ser consideradas, caminhará em sentido oposto à
imparcialidade.
Por isso, para que se assegure a imparcialidade do juiz são estabelecidas
constitucionalmente garantias e vedações (CF/88, art. 95), proibindo-se, ainda, os
chamados juízos e tribunais de exceção (art. 5º, XXXVII), tudo para que o Estado-juiz
haja com imparcialidade na solução das causas que lhe são submetidas.148
O Supremo Tribunal Federal reconheceu não só o Princípio do Juiz Natural
como o do Promotor Natural, que caminham juntos para a consecução do Princípio da
Imparcialidade.149
controle jurisdicional” (CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini e
DINAMARCO, Cândido R., op. cit., p. 31).
148
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini e DINAMARCO, Cândido R., op.
cit., p. 52.
149
Aliás, o Ministério Público, enquanto defensor da Ordem Jurídica, do Regime Democrático e dos
direitos sociais e individuais indisponíveis, também deve colaborar para uma real imparcialidade, não
atuando apenas como um fiscal da lei, mas como um fiscal das leis democráticas.
68
A razão de ser do Princípio da Inércia é a própria necessidade de imparcialidade
do Judiciário, traduzidos nos brocardos ne procedat judex ex officio (não procederá o
juiz de ofício) e nemo judex sine actore (o juiz não julga sem provocação da parte).150
Nem por isso, autoriza-se a ilação de que o Princípio da Inércia seja absoluto,
pois, nos casos previstos em Lei permite-se a iniciativa do Judiciário. Cite-se, como
exemplo:
a) a execução trabalhista iniciada por ato do Juiz (art. 878 da Consolidação das
Leis do Trabalho);
b) a execução penal instaurada de ofício, com a expedição de guia para o
cumprimento da pena (art. 105 da Lei de Execução Penal); e
c) A concessão, de ofício, de Ordem de Habeas Corpus (art. 654 do CPP);
Ademais, uma vez instaurado o processo e desde que a Lei assim permita, cabe
ao Juiz, tanto na esfera cível como penal fazer com que o processo marche até que se dê
definitivamente a tutela pleiteada. É o chamado impulso oficial.
Destarte, na esfera cível, o Juiz poderá determinar de ofício as provas
necessárias à instrução do processo (art. 130 do CPC, de forma semelhante dispõe os
arts. 765 da CLT) e, em qualquer fase processual, inspecionar pessoas ou coisas, a fim
de se esclarecer sobre fato que interesse à decisão da causa (art. 440 do CPC).
De outra forma não é no processo penal, onde se acentua a busca pela verdade
real e, para tanto, também se encontram normas que permitem certa postura ativa do
Judiciário, embora cada vez mais mitigada em nome do princípio acusatório.
A inércia do Judiciário, pois, ocorre apenas na medida necessária para cumprir
sua função de pacificar com justiça, sendo que, nos casos e formas legais, exige-se uma
atuação positiva do Magistrado.
Portanto, a imparcialidade do Juiz se concretiza apenas quando, ao decidir, ele
leva em conta os Princípios da Isonomia e do Estado Democrático, cumprindo assim sua
missão de pacificar com justiça.
150
O Código de Processo Civil, em seu artigo 2º, estabelece que “nenhum juiz prestará a tutela
jurisdicional senão quando a parte ou interessado a requerer, nos casos e forma legais”.
69
6.5) PRINCÍPIO
DA
SEPARAÇÃO
DOS
PODERES
COMO
CLÁUSULA
PÉTREA
Dispõe o art. 60, § 4º, III da Constituição Federal vigente que “não será objeto
de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir (...) a separação dos Poderes”.
Na lição de MARCUS CLÁUDIO ACQUAVIVA, entende-se por cláusula pétrea o
“(...) dispositivo constitucional imutável, não podendo ser alterado nem mesmo pro via
de Emenda Constitucional. O objetivo do legislador, neste caso, é o de impedir
inovações temerárias em assuntos cruciais para a cidadania ou o próprio Estado”.151
Isto significa que o Princípio da Separação dos Poderes constitui valor fundante
do próprio Estado e somente uma nova Constituição poderá suprimi-lo, ou seja,
qualquer Lei, ou mesmo uma Emenda Constitucional, que direta ou indiretamente se
proponha a abolir a separação dos Poderes, será inconstitucional.
Assinale-se que, no Brasil, prevalece o entendimento de que as cláusulas pétreas,
“além de assegurarem a imutabilidade de certos valores, além de preservarem a
identidade do projeto do constituinte originário, participam, elas próprias, como tais,
também da essência inalterável desse projeto”152.
151
ACQUAVIVA, Marcus Cláudio, op. cit., p. 322
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso
de Direito Constitucional. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 218.
152
70
CAPÍTULO III
DO MINISTÉRIO PÚBLICO
1) CONCEITO
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 127, caput, define o Ministério
Público como “instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado,
incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses
sociais e individuais indisponíveis”.
Esse conceito é repetido nos artigos iniciais da Lei Complementar Federa nº.
75/93 e da Lei nº. 8.625/93.
O Ministério Público abrange o Ministério Público da União (que compreende o
Ministério Público Federal, o Ministério Público do Trabalho, o Ministério Público
Militar e o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios) e os Ministérios
Públicos dos Estados (CR/88, art. 128), que possuem funções descritas, em rol
exemplificativo, no próprio Texto Constitucional (art. 129).
A chefia do Ministério Público da União cabe ao Procurador-Geral da
República, membro da carreira, com idade superior a 35 (trinta e cinco) anos, nomeado
pelo Presidente da República após autorização da maioria absoluta do Senado, com
mandato de dois anos, admitida a recondução (CF/88, art. 128 e § 1º).
O Procurador-Geral da República não é demissível ad nutum, ou seja, antes de
terminado seu mandato só poderá ser exonerado por iniciativa do Presidente da
República se houver autorização da maioria absoluta do Senado Federal, nos termos dos
artigos 158, § 2º, e 54, XI da Constituição da República em vigor.
A chefia dos Ministérios Públicos dos Estados e do Distrito Federal, por sua vez,
cabe ao Procurador-Geral, nomeado pelo Governador, conforme a lista tríplice
71
formulada pela própria Instituição, dentre integrantes do quadro, para mandato de dois
anos, permitida uma recondução (CF/88, art. 128, § 3º).
A destituição do Procurador-Geral nos Estados e no Distrito Federal pode ser
feita pela deliberação da maioria absoluta do Poder Legislativo da respectiva unidade da
Federação, na forma da lei complementar (CF/88, art. 128, § 4º).
Há ainda, ao lado do Ministério Público comum, outro Especial, cujos membros
oficiam junto aos Tribunais de Contas (CF/88, art. 130).
Neste “Capítulo III”, após a conceituação e o histórico do Ministério Público
(com ênfase em seu posicionamento entre os Poderes do Estado nas Constituições
anteriores à de 1988), serão analisados principalmente os elementos essenciais da Seção
destinada ao Ministério Público na Constituição Federal de 1988.
2) HISTÓRICO
2.1) ORIGENS REMOTAS E PRÓXIMAS DO MINISTÉRIO PÚBLICO
A doutrina diverge quanto às raízes remotas do Ministério Público, das quais
destacam-se: a) há mais de quatro mil anos, no magiaí, funcionário real no Egito; b) na
Antiguidade clássica; c) na Idade Média; d) no vindex religionis do direito canônico; e)
nos procurateurs ou procureurs du roi do velho direito francês; e f) em Pávia ou
Piemonte. 153
Conforme já assinalado na introdução do presente estudo, costuma-se afirmar
que a origem próxima do Ministério Público está na França, mencionando-se, como
fonte normativa primeira, a Ordenança de 25 de março de 1302, de Felipe IV, o Belo,
rei da França, que tratava dos procuradores do rei, embora parte da doutrina diga são os
153
MAZZILLI, Hugo Nigro, Regime Jurídico do Ministério Público. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 2001,
p. 42
72
textos napoleônicos que instituíram o Ministério Público que a França veio a conhecer
na atualidade.154
Na visão de FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO, o que teria levado muitos
autores a se inclinarem a admitir sua procedência francesa, foi porque ali a Instituição se
apresentou pela primeira vez com caráter de continuidade.155
Todavia, o Ministério Público, tal como o conhecemos hoje, é realidade recente,
sendo que, embora possa ser identificada em alguns funcionários e magistrados antigos
uma ou outra das atribuições que ora são conferidas ao Ministério Público, o fato é que
essas atribuições foram se ajuntando paulatinamente nas mãos desta Instituição, até
ganhar a feição atual.156
TOURINHO FILHO alerta que somente no século XVI a Instituição chegou a um
maior desenvolvimento, com as Ordonnances, que culminaria “por conseguir, no ano
revolucionário de 1792, as garantias da inamovibilidade e independência em face ao
Poder Executivo, se bem que elas durassem pouco tempo”.157
Sob um foco mais específico para esta pesquisa, PAULO SALVADOR FRONTINI
relaciona a origem próxima do Ministério Público com o Princípio da Separação dos
Poderes, em sistema de freios e contrapesos, apontando como origem da instituição a
vitória das idéias iluministas, consagradas na Revolução Francesa. Segundo este autor,
“(...) O Estado, que era até então totalitário e arbitrário, viu-se forçado
a submeter-se à lei, principalmente à mais graduada delas, a
Constituição. Foi nesse momento, também, que os cidadãos,
escarmentados da prepotência do Estado absolutista, sujeitando todos
os súditos aos caprichos do monarca (L’Etat c’est moi...), impuseram
o princípio da separação dos poderes, inspirado na célere fórmula de
Montesquieu. Instituía-se o sistema de freios e contrapesos: quem
legisla, não administra, nem julga; quem administra, não legisla,
nem julga; quem julga, não administra nem legisla; e como quem
julga manifesta-se por último, não pode julgar de ofício; há que
ser provocado pelo interessado. Aqui estão as raízes do Ministério
Público! O Ministério Público é filho da Democracia clássica e do
Estado de Direito! Vê-se por aí, quão grandes são as afinidades do
154
A influência francesa foi tanta que foram ali que surgiram as expressões Parquet (assoalho) e
magistrature débout (magistratura de pé, que se contrapõe à magistrature assise, seu seja, magistratura
sentada), hodiernamente utilizadas. (MAZZILLI, Hugo Nigro, op. cit., pp. 43-45)
155
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 20ª edição, vol. 2, São Paulo: Saraiva, p.
334.
156
MAZZILLI, Hugo Nigro, op. cit., p. 50.
157
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa, op. cit., p. 335
73
Ministério Público com expressivas figuras do Estado de Direito: as
garantias individuais; a proteção jurisdicional dos direitos do cidadão;
a instrução contraditória e a plenitude de defesa, dentre outros”.158
(destaques nossos)
Daí se extrai um dos motivos que culminaram na atribuição ao Ministério
Público da defesa da Ordem Jurídica, do Regime Democrático e dos interesses sociais e
individuais indisponíveis (CF/88, art. 127, caput).
2.2) AS ORIGENS
DO
MINISTÉRIO PÚBLICO BRASILEIRO
E O SEU
POSICIONAMENTO CONSTITUCIONAL
Também já se assinalou que o Ministério Público brasileiro possui origem
lusitana e as principais fontes mencionadas são as Ordenações Manuelinas de 1514 cujos títulos XI e XII do Livro I, cuidavam, respectivamente, “Do Procurador dos
Nossos Feitos” e do “Prometor da Justiça da Casa da Sopricaçam” – e as Ordenações
Filipinas de 1603, que trataram da instituição de modo ainda mais detalhado.159
Em 1609, quando foi criada a Relação da Bahia, a função de Promotor de Justiça
era atribuída ao procurador da Coroa e da Fazenda, mas ainda de modo não
institucionalizado, situação que perdurou até o surgimento do Decreto n. 848, de 11 de
outubro de 1890 (que organizou a Justiça Federal) e o Decreto n. 1.030, de 14 de
novembro de 1890 (que organizou a Justiça do Distrito Federal), quando então se diz
que ocorreu, em sede infraconstitucional, sua institucionalização.160
MAZZILLI afirmar que a partir de então o Ministério Público foi ganhando cada
vez mais importância, muito embora a Constituição Imperial de 1824 sequer tivesse
mencionado o Ministério Púbico e a Constituição da República de 1891 se referisse
apenas ao Procurador-Geral da República, determinando que sua escolha seria feita
dentre membros do Supremo Tribunal Federal (art. 58, § 2º).161
158
FRONTINI, Paulo Salvador. Ministério Público, Estado e Constituição apud MAZZILLI, Hugo Nigro,
op. cit.,p. 51.
159
MAZZILLI, Hugo Nigro, op. cit., p. 47
160
MAZZILLI, Hugo Nigro, op. cit., pp. 55-57.
161
Idem, ibidem.
74
A Constituição de 1934 foi a primeira a reconhecer o Ministério Público como
Instituição, ao discipliná-lo no Título I (Da organização Federal), Capítulo VI (Dos
órgãos de cooperação nas actividades governamentais), Seção I (Do Ministério
Público).
Em seu art. 95, norma de eficácia limitada, previu os Ministérios Públicos na
União, no Distrito Federal e Territórios, e nos Estados. Determinou ainda que o Chefe
do Ministério Público Federal nos juízos comuns era o Procurador Geral da República,
nomeado pelo Presidente da República, com aprovação do Senado Federal, mas
demissível ad nutum.
A Constituição Federal de 1937 referiu-se à Instituição em breves passagens, no
título reservado ao Poder Judiciário. O Procurador-Geral da República continuou sendo
de livre nomeação e demissão pelo Presidente da República, contudo, sem a necessidade
de aprovação do Senado Federal, prevendo-se ainda a participação dos membros do
Ministério Público nos Tribunais Superiores pelo quinto constitucional.
A Carta Política de 1946, com alterações pela Emenda Constitucional nº 16, de
26.11.1965, situou o Ministério Público em título específico (Título II - Do Ministério
Público), sem ligá-lo expressamente a nenhum dos Poderes do Estado.
Quanto à nomeação do Procurador-Geral inovou apenas ao voltar a exigência de
aprovação pelo Senado. Já em relação ao “quinto constitucional”, foi prevista para a
Justiça Estadual (art. 124, V), reservando-se vagas, para a composição na esfera federal,
apenas no Tribunal Federal de Recursos (art. 103).
O ingresso na carreira se dava por concurso público, possuindo os membros
estabilidade e inamovibilidade (art. 127), garantias que deveriam ser seguidas pelos
Ministérios Públicos estaduais (art. 128).
A União era representada em juízo pelos Procuradores da República e, nas
comarcas do interior, pelos membros do Ministério Público estadual, desde que
existente previsão legal nesse sentido.
A Constituição Federal de 1967, sem que se alterasse significativamente a
disciplina dada pela Constituição de 1946, deslocou novamente o Ministério Público
75
para o capítulo reservado ao Poder Judiciário, colocando-o no Capítulo VIII (Do Poder
Judiciário), Seção IX (Do Ministério Público).
A Emenda Constitucional nº 1 de 1969 alterou novamente o posicionamento
constitucional do Ministério entre os Poderes do Estado, colocando-o no “Capítulo VIII
(Do Poder Executivo), Seção VII (Do Ministério Público)”.162
A Constituição Federal de 1988 tratou do Ministério Público em capítulo
especial (Seção I - Do Ministério Público”, do Capítulo IV - Das Funções Essenciais à
Justiça, do Título IV - Da Organização dos Poderes), sem vincula-lo expressamente a
nenhum dos poderes declarados em seu art. 2º (Legislativo, Executivo e Judiciário).
No quadro abaixo se encontra resumida a colocação tópica do Ministério Público
entre os Poderes do Estado.
Sem nenhuma referência à Instituição do
•
Ministério Público
Constituições Federais de 1824 e de
1981 (esta última referia-se apenas ao
Procurador-Geral da República, que
teria funções definidas em lei).
Sem colocação tópica do Ministério Público
entre os Poderes do Estado
•
Constituição Federal de 1946;
•
Constituição
Federal
de
1934
(posicionado no “Título I - Da
Organização Federal, Capítulo VI Dos
órgãos
actividades
de
cooperação
governamentaes
das
(sic)”,
Secção I – Do Ministério Público”163 e
•
Constituição Federal de 1988 no
“Título IV - Da Organização dos
Poderes), Capítulo IV - Das Funções
162
Assim, retornou ao Poder Executivo, mas a disciplina do Ministério Público necessitava de lei
complementar relativamente às normas gerais dos Ministérios Públicos estaduais, o que foi feito com o
advento da Lei Complementar nº 40, de 14.12.1981.
163
Apesar de não ter ocorrido uma colocação tópica do Ministério Público expressamente entre os
Poderes Executivo, Legislativo ou Judiciário, sua disposição como Órgão de Cooperação das Atividades
Governamentais, no título que trata da organização federal, está implicitamente colocando-o no Poder
Executivo. Tanto é assim que, ao se referirem à Emenda Constitucional nº 1 de 1969, a doutrina fala em
retorno “à área do Poder Executivo” (Cf. CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários à Constituição
Brasileira de 1988. Vol. VI. 2ª edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993, p. 3294)
76
Essenciais à Justiça), Seção I
- Do
Ministério Público”.
Com referências à Instituição do Ministério
•
Constituição Federal de 1937.
•
Constituição Federal de 1967.
•
Constituições Federal 1967, com
Público no Título do Poder Judiciário, mas
sem capítulo ou seção específicos
Colocou o Ministério Público no Capítulo que
trata do Poder Judiciário, com seção específica
Expressamente
no
capítulo
Executivo, com seção específica
do
Poder
alteração dada pela Emenda nº 1/1969.
3) MINISTÉRIO PÚBLICO NA CONSTITUIÇÃO DE 1988
Para JOSÉ PAULO SEPÚLVEDA PERTENCE, Ministro aposentado do Supremo
Tribunal Federal, o Constituinte de 1988 tratou com riqueza inédita o Ministério
Público, de forma nunca dantes vista no Brasil ou alhures, tanto em termos de
abrangência como densidade normativa, sendo que, considerando-se as constituições
anteriores, nenhuma instituição do Estado saíra tão fortalecida e prestigiada.164
Todavia, como bem ressalta este mesmo jurista, a disciplina constitucional do
Ministério Público foi apenas um “esboço” ou “esquema” de seu regime jurídico. Em
suas palavras,
“(...) Da abrangência temática ou da pretensão sistemática da vigente
seção constitucional do Ministério Público, contudo, não é dado
extrair a ilusão da completeza de um estatuto normativo cerrado, do
qual se pudesse extrair, por mera subsunção lógica, a solução, pelo
menos, de todas as questões fundamentais da sua organização,
independentemente da mediação, que ela própria cometeu à instância
da decisão política do legislador complementar. O que se tem na
Constituição é um esboço do Ministério Público. Esboço, repita-se, de
extensão e densidade normativa e pretensões sistemáticas inéditas.
164
Segundo PERTENCE, essa riqueza inédita se deu “(...) seja sob o prisma da organização e da
autonomia e independência da instituição em relação aos Poderes do Estado, seja sob o do estatuto básico
das garantias e das atribuições de seus órgãos de atuação” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Revista
Trimestral de Jurisprudência, v. 147, janeiro de 1994, p. 129).
77
Mas é um esquema: não um código, um contexto de regulação
completa da instituição (...)”.165
De fato, o regime jurídico básico do Ministério Público é composto também pela
Lei Complementar federal nº 75, de 20 de maio de 1993 (LOMPU), pela Lei Federal nº.
8.625, de 12 de fevereiro de 1993 (LONMP) e pelas legislações específicas dos
Ministérios Públicos dos Estados, em que pese aqui, pelo tema proposto, ser dado
enfoque ao Texto Constitucional em vigor, especialmente à Seção destinada ao
Ministério Público.
3.1) MINISTÉRIO PÚBLICO: INSTITUIÇÃO PERMANENTE E ESSENCIAL À
FUNÇÃO JURISDICIONAL
DO
ESTADO (CF/88, ART. 127,
CAPUT,
1ª
PARTE)
Ao Ministério Público coube parcela significativa da função política166, de tal
forma que o Constituinte o conceituou como “instituição permanente, essencial à função
jurisdicional do Estado” (CF/88, art. 127, caput).
Para JOSÉ CRETELLA JR., quando a Constituição conceitua o Ministério Público
como “instituição permanente”, quer significá-lo como “(...) organismo que, criado,
entra no mundo jurídico para o desenvolvimento ininterrupto das funções, que lhe
condicionaram o nascimento”.167
E, quando afirma ser o Ministério Público Instituição “essencial à função
jurisdicional do Estado”, quer se expressar que, ausente o Ministério Público,
prejudicada estará a atividade jurisdicional.
165
Idem, ibidem.
PAULO CÉZAR PINHEIRO CARNEIRO aduz que “(...) esta macroatribuição do Ministério Público
se operacionaliza, do ponto de vista do exercício da atividade processual, nos vários ramos do direito, ora
atuando como parte da relação jurídico-processual (órgão agente), ora como fiscal da lei (órgão
interveniente). O exercício das chamas funções típicas como substituto processual ou representante legal
da parte (advogado), deixou de integrar o rol de atribuições do Ministério Público, em face da expressa
vedação constitucional no art. 129, IX, (da Constituição de 1988)”. (CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro,
op. cit., p. 7)
167
CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários à Constituição Brasileira de 1988. Vol. VI. 2ª edição. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 1993, p. 3.295.
166
78
Isso se dá, por um lado, porque o Judiciário, em regra, é inerte, necessitando da
provocação do interessado para prestar a tutela jurisdicional e, de outro, porque ao
Ministério Público foi incumbida a defesa de interesses que, pela sua natureza, não
podem prescindir de uma proteção Estatal.
Suponha-se, por exemplo, que não existisse um órgão público para defender os
direitos difusos. Nesse caso, esses direitos, por não pertencerem a um indivíduo isolado,
mas a toda a sociedade, poderiam ser livremente violados. Aqueles que ferissem direitos
difusos estariam livres de qualquer responsabilidade, pois, se o Judiciário, para ser
imparcial, precisa ser inerte, a ausência de um órgão apto a provoca-lo impediria o
exercício da atividade jurisdicional.
Sob esse prisma poder-se-ia dizer que, como quem julga, geralmente, não se
manifesta de ofício, a expressão “indispensável à função jurisdicional” já seria
suficiente para qualificar o Ministério Público como “instituição permanente”.
Insta ressaltar que as funções ministeriais não se restringem a oficiar junto aos
órgãos jurisdicionais, nem ele atua em todos os feitos levados à apreciação do
Judiciário, mas apenas em relação àqueles que a Constituição e as Leis
infraconstitucionais estabelecem e desde que compatíveis com sua finalidade (CF/88,
Art. 129, IX).168
A iniciativa ou a intervenção do Ministério Público em juízo, portanto, que lhe
dá a característica de essencial à prestação jurisdicional, ocorre relativamente à defesa
dos interesses sociais e individuais indisponíveis e quando de alguma forma sua atuação
for conveniente à defesa do interesse público, o que inclui os direitos individuais
homogêneos, onde não há propriamente indisponibilidade de interesses.169
168
HUGO NIGRO MAZZILLI ensina que a “referencia a ser ‘essencial à função jurisdicional do Estado’
vem feita no art. 127 da Constituição, e já se achava presente no art. 1º da Lei Complementar n. 40/81,
bem como constava do art. 308 do Anteprojeto Afonso Arinos, mas não deixa de ser duplamente
incorreta: diz menos do que deveria (o Ministério Público tem inúmeras funções exercidas
independentemente da prestação jurisdicional, como na fiscalização de fundações e prisões, nas
habilitações de casamento, na homologação de acordos extrajudiciais, na direção de inquérito civil, no
atendimento ao público, nas funções de ombudsman), e, ao mesmo tempo, paradoxalmente, diz mais do
que deveria (pois o Ministério Público não oficia em todos os feitos submetidos à prestação jurisdicional,
e sim, normalmente, apenas naqueles em que haja algum interesse indisponível, ou, pelo menos,
transindividual, de caráter social, ligado à qualidade de uma das partes ou à natureza da lide)”
(MAZZILLI, Hugo Nigro, op. cit., p. 146).
169
Idem, ibidem.
79
3.2) O MINISTÉRIO PÚBLICO
REGIME DEMOCRÁTICO
E A
E DOS
DEFESA
DA
ORDEM JURÍDICA,
INTERESSES SOCIAIS
E
DO
INDIVIDUAIS
INDISPONÍVEIS (CF/88, ART. 127, CAPUT, 2ª PARTE)
Incumbe ao Ministério Público, por expressa determinação constitucional, a
defesa da Ordem Jurídica, do Regime Democrático e dos Interesses Sociais e
Individuais Indisponíveis.
É vasta a doutrina que trata dessas incumbências constitucionais, destacando às
minúcias as formas que o Ministério Público atua, não só como órgão agente, mas
também como órgão interveniente (fiscal da lei).
Aqui, todavia, será dado um enfoque eminentemente teleológico, buscando a
essência da atividade ministerial, pois é a partir dela que se pode auferir se o Ministério
Público possui especialização funcional, que, juntamente com a autonomia ou
independência orgânica, constituem elementos indissociáveis do “Poder”.
3.2.1) A Defesa da Ordem Jurídica
À luz do preceituado no art. 129, IX, da Constituição Federal, o Ministério
Público somente pode exercer atividades condizentes com sua finalidade, de modo que
não lhe cabe a defesa de toda e qualquer norma jurídica, como parece indicar a
expressão “defesa da ordem jurídica”, contida no caput do art. 127 da Constituição da
República de 1988.
Após aduzir que o Ministério Público, com o advento da Constituição Federal de
1988, não pode ser visto mais como um mero fiscal da lei, sob o aspecto formal ou
exterior do direito positivo, o Ministro CELSO DE MELLO, do Supremo Tribunal
Federal, busca extrair da atuação do Ministério Público a essência do que se entende por
“DEFESA DO REGIME DEMOCRÁTICO”, a que lhe foi incumbida, in verbis:
80
“(...) Pretende-se, agora, investir o Ministério Público de um poder de
verificação e de tutela sobre a legitimidade ética e política da própria
norma de direito.
(...) A essencialidade dessa posição político-jurídica do Ministério
Público assume tamanho relevo que ele, deixando de ser fiscal de
qualquer lei, converte-se no guardião da ordem jurídica cujos
fundamentos repousam na vontade soberana do Povo.
O Ministério Público deixa, pois, de fiscalizar a lei pela lei, num inútil
exercício de mero legalismo. Requer-se dele, agora, que avalie,
criticamente, o conteúdo da norma jurídica, aferindo-lhe as virtudes
intrínsecas, para, assim, neutralizar o absolutismo formal de regras
legais, muitas vezes divorciadas dos valores, idéias e concepções
vigentes na comunidade, em dado momento histórico-cultural. Não
mais se pode, assim, exigir do Ministério Público um comportamento
institucional que traduza, em face da ordem jurídica estabelecida, uma
postura de neutralidade axiológica (...)”170
Assim, a lei, ou melhor, o Direito, não pode ser visto apenas sob o aspecto
legalista.
Conforme afirma CARLOS MAXIMILIANO, com a promulgação, a lei separa-se do
Legislador, ganha vida própria, podendo ser mais sábia do que o Legislador, pois
abrange hipóteses que este não previu. Em suas palavras, “a letra perdura, e a vida
continua”, de tal forma que, sendo a ação do tempo irresistível, não respeita a
estagnação aparente dos Códigos. Daí a necessidade de se adaptar o Direito às
sucessivas mudanças sociais, até mesmo para que se preserve a validade da norma.171
O membro do Ministério Público também deve interpretar o Direito buscando
dar à norma seu sentido mais útil, extraindo dela seu sentido democrático.
Se, sob determinado prisma, a Lei (Direito) é mais sábia que o Legislador, sob
outro, o próprio intérprete é mais sábio que a Lei.
CARLOS MAXIMILIANO diz que
“(...) os juízes, oriundos do povo, devem ficar ao lado dele, e ter
inteligência e coração atentos aos seus interesses e necessidades. A
atividade dos pretórios não é meramente intelectual e abstrata; deve
ter um cunho prático e humano; revelar a existência de bons
sentimentos, tato, conhecimento exato das realidades duras da vida.
Em resumo: é o magistrado, em escala reduzida, um sociólogo em
170
HABEAS CORPUS nº. 67.759/RJ, Pleno, Rel. Ministro Celso de Mello, sessão plenária de 06.08.92,
acórdão publicado no Diário de Justiça de 01.07.1993, Ementário nº. 1710-01, conforme RTJ 150/123
171
SANTOS, Carlos Maximiliano Pereira dos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 19ª edição. Rio de
Janeiro: Forense, 2001, pp. 18-25.
81
ação, um moralista em exercício; pois a ele incumbe vigiar pela
observância das normas reguladoras da coexistência humana, prevenir
e punir as transgressões das mesmas”.172
Buscar o sentido axiológico da norma jurídica significa imprimir-lhe os valores
sociais que lhe dão legitimidade, pois, conforme lição de LOURIVAL VILANOVA “(...) se
a norma é dever-ser, é dever-ser de algo”.173
Sendo essa a vontade real da Ordem Jurídica, cabe ao Ministério Público assim
defende-la, lutando para que o Judiciário aplique as normas imprimindo-lhes seu
verdadeiro conteúdo axiológico, até mesmo porque, essa missão constitucional constitui
parcela da própria razão de ser do Ministério Público, defensor não só da legalidade,
mas da própria legitimidade do Direito.174
3.2.2) A Defesa do Regime Democrático
A “defesa do regime democrático”, consubstanciada na Lei Fundamental, não
deixa de ser um dos aspectos da defesa da Ordem Jurídica, mas agora sob o enfoque da
manutenção do Poder Político nas “mãos do povo” e em seu benefício.
Portanto, ultrapassa a simples defesa das normas que regem a participação do
povo na condução da vida social e da vigilância para que não se instaure outro tipo de
Regime. Traduz-se em fazer com que o Ministério Público dê às normas o seu sentido e
alcance democrático, de acordo com os princípios e valores sociais.
Nas palavras de CELSO DE MELLO,
“(...) Mais importante, agora, torna-se o próprio conteúdo da lei, cujos
elementos intrínsecos não podem divorciar-se dos fatos sociais e do
quadro histórico em que a norma jurídica se formou.
O Estado democrático, gerador de uma ordem jurídica fundada no
consentimento dos governados – que se exterioriza pela livre e
permanente penetração da sua vontade no processo decisório nacional
172
SANTOS, Carlos Maximiliano Pereira dos, op. cit., p. 51
LOURIVAL, Vilanova. Sobre o Conceito de Direito apud COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso
de direito tributário brasileiro: comentários à Constituição e ao Código tributário nacional, artigo por
artigo. Rio de Janiero: Forense, 1999, p. 11.
174
A este respeito, conferir: FERREIRA FILHO, Manuel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional.
26ª edição. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 268.
173
82
– deve ser entendido como aquele cujas bases repousam na soberania
popular, na divisão funcional do Poder, no respeito e na garantia das
liberdades públicas, e no pluralismo de expressão e de organização
política.
A legalidade assim posta, veiculadora das justas aspirações e dos
objetivos maiores perseguidos pelo corpo social, qualifica-se como
democrática, passível, em conseqüência, da tutela institucional do
Ministério Público.
Este, pois, deixa de ser um servo incondicional de qualquer
legalidade, para converter-se num órgão que indague das origens da
norma e lhe perquira o conteúdo, valendo-se, para tanto, de critérios
axiológicos que lhe permitam aferir dos elementos que qualificam a
175
regra jurídica como essencialmente democrática”.
Isso significa que, pertencendo o Poder Político ao povo, é em favor desse que
deve revestir o Direito, pois somente assim a Lei se transformará em algo válido e útil
para a sociedade e não dos interesses dos próprios governantes.
Destarte, deve o Ministério Público atuar tendo em vista que o Estado de Direito,
para traduzir-se num verdadeiro Estado Democrático de Direito, requer não só que
exista um governo de Leis, mas de Leis que se convertam em benefício da sociedade e
não de uma minoria. “Por isso se diz, na conformidade da máxima oriunda do Direito
inglês, que no Estado de Direito requer-se o governo das leis, e não dos homens; impera
o rule of law, not of mam”.176
3.2.3)
Defesa
dos
Interesses
Sociais
e
Individuais
Indisponíveis
Inicialmente, deve-se fazer uma observação: a atividade do Ministério Público,
que deve ser pautar pelo interesse público, exige dele que, o quanto possível, se evite
uma demanda judicial.
Isso demonstra que se deve suplantar o sentido técnico do termo “interesse”,
para vê-lo não só ligado à atividade processual, pois esta há de ser exercida em caráter
subsidiário.
175
HABEAS CORPUS nº. 67.759/RJ, Pleno, Rel. Ministro Celso de Mello, sessão plenária de 06.08.92,
acórdão publicado no Diário de Justiça de 01.07.1993, Ementário nº. 1710-01.
176
MELLO, Celso Antônio Bandeira de, op. cit., p. 72
83
Com efeito, o Ministério Público exerce várias atividades extraprocessuais e
somente quando estritamente necessário ou nos casos expressos em lei deve provocar a
atuação jurisdicional.
De qualquer modo, para evitar ou para solucionar os conflitos de interesses, seja
na esfera judicial ou extrajudicial, torna-se imperativa a compreensão dos termos
interesses indisponíveis, tanto os individuais, como os metaindividuais.
Interesses indisponíveis, como o próprio nome diz, são aqueles de que a pessoa
não pode livremente dispor e, quando relativamente ao interesse de uma determinada
pessoa, denomina-se individual.
A tutela dos interesses metaindividuais (ou transindividuais), a seu turno, é
gênero do qual os interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos são espécies.
Interesses difusos são aqueles interesses de natureza indivisível, que sejam
titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstância de fato (Código de Defesa
do Consumidor - CDC, art. art. 81, parágrafo único, I).
Já os interesses coletivos são os interesses indivisíveis, de que sejam titular
grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma
relação jurídica base (CDC, art. 81, parágrafo único, II).
Os interesses individuais homogêneos, por sua vez, são aqueles interesses
divisíveis, decorrentes de origem comum, possuindo titulares determináveis e ligados
por circunstância fática (CDC, art. 81, parágrafo único, III).
Para a defesa desses interesses dispõe o Ministério Público de legitimidade para
interpor a Ação Civil Pública (CF/88, art. 129, III e Lei nº 7.347 de 1985, art. 5º), ou
atuar como órgão interveniente (Lei nº 7.347 de 1985, art. 5º, § 1º ).
Parte da doutrina, porém, restringe a atividade ministerial quanto aos interesses
individuais homogêneos, que, de acordo com esse entendimento, somente poderiam ser
84
defendidos pelo Ministério Público no caso de serem socialmente relevantes, pois, a
rigor, são apenas interesses individuais, mas que a Lei possibilita a tutela coletiva.
Cabe assinalar que as várias espécies de interesses podem ser atingidos numa
mesma situação, como, por exemplo, ao se lançar produtos tóxicos num rio. Nesse caso,
em relação ao meio ambiente, o interesse é de toda a coletividade (difuso), mas,
eventualmente, poderá prejudicar a atividade pesqueira ou agrícola (interesse individual
homogêneo), ou uma cooperativa de pescadores ou agricultores (interesse coletivo), ou
ainda alguém que tenha adoecido por ter bebido da água contaminada (interesse
individual).
Modernamente, em especial pela consagração dos direitos de terceira geração,
tais como o do meio ambiente, da probidade administrativa, da paz social e etc., a
atuação do Ministério Público se faz cada vez mais necessária.
Para CELSO RIBEIRO BASTOS, a razão de ser do Ministério Público está na
necessidade de ativar o Poder Judiciário, em relação às situações em que este
permaneceria inerte, ou porque o interessado é a própria coletividade, ou porque os
interesses pertencem a indivíduos que deles não podem dispor, sendo que, em quaisquer
dessas hipóteses, imprescindível a atuação de um órgão público para cuidar desses
interesses.177
O que ocorre é que, mesmo em relação aos direitos individuais indisponíveis, há
um interesse público subjacente.
É o que se observa do art. 82 do Código de Processo Civil, que estabelece as
hipóteses de intervenção do Ministério Público, todas elas ligadas, direta ou
indiretamente ao interesse público, verbis:
“Art. 82. Compete ao Ministério Público intervir: I – nas causas em
que há interesses de incapazes; II – nas causas concernentes ao estado
da pessoa, pátrio poder, tutela, curatela, interdição, casamento,
declaração de ausência e disposição de última vontade; III – em todas
as demais causas em que há interesse público evidenciado pela
natureza da lide ou qualidade da parte”.
Destarte, em relação aos interesses sociais ou individuais indisponíveis, a
atuação do Ministério Público é indispensável, a uma, porque em relação a eles há um
177
BASTOS, Celso Ribeiro de, op. cit., p. 428
85
evidente interesse público, a duas, porque nesses casos o Judiciário permaneceria inerte,
se não existisse um órgão público que por eles zelasse.
3.2.4) O Interesse Público Motivador da Atuação do
Ministério Público: órgão agente e interveniente
Conforme já afirmado, a atuação do Ministério Público pauta-se sempre no
interesse público, o que se dá seja quando atua como órgão agente ou interveniente, seja
quando busca defender os interesses transindividuais ou individuais indisponíveis, de
que se tratou no tópico anterior.
É certo que, quando oficia na qualidade de órgão agente, fica o Ministério
Público vinculado ao interesse que justificou a sua atuação, pouco importando se figura
como representante ou substituto processual do titular do direito material. 178
Questão mais intrincada refere-se à sua atuação como órgão interveniente, ponto
em que, nas palavras de Hugo Nigro Mazzilli, reina a polêmica.179
O mesmo autor propõe uma solução bastante razoável, em que faz duas
distinções, a primeira delas entre a intervenção pela natureza da relação jurídica
(objetivamente considerada) e a intervenção fundada nas condições particulares de um
dos titulares dessa relação
Quanto à intervenção pela natureza da relação jurídica, Mazzilli aduz que o
Ministério Público manifesta-se sem qualquer vinculação ao interesse das partes, ou
seja, como “fiscal imparcial da lei”. Menciona, por exemplo, as questões de estado da
pessoa, em que “a intervenção ministerial dá-se para fiscalizar o interesse,
imparcialmente considerado, de atuar normas de ordem pública”180.
Já nos casos em que essa atuação liga-se à defesa de um interesse público
relacionado “com condições particulares de um dos titulares dessa relação,
178 MAZZILLI, Hugo Nigro. A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo. 20ª edição. São Paulo: Saraiva,
2007, p. 93;
179
MAZZILLI, Hugo Nigro, op. cit., pp. 91.
180 MAZZILLI, Hugo Nigro, op. cit., pp. 91-92.
86
pessoalmente considerado”, estaria o Ministério Público vinculado ao interesse que
justificou a sua intervenção, sendo o caso, por exemplo, da intervenção “no interesse do
incapaz”.181
Outra distinção feita refere-se ao poder-dever de opinar, acionar ou recorrer.
A propósito, Mazzilli assevera que, “se tem liberdade para opinar, porque para
tanto basta a legitimidade que a lei lhe confere para intervir, já para acionar ou recorrer
é mister que o Ministério Público tenha interesse na propositura da ação ou na reforça
do ato atacado”. Em outras palavras, “ele só pode agir ou recorrer em defesa do
interesse que legitimou sua ação ou intervenção no feito”.182
3.3) PRINCÍPIOS INSTITUCIONAIS
DO
MINISTÉRIO PÚBLICO (CF/88,
ART. 127, § 1º)
Afora os princípios infraconstitucionais, tais como o do exercício da ação penal,
da irrecusabilidade e da irresponsabilidade, a Constituição Federal consagra
explicitamente os princípios institucionais da unidade, indivisibilidade, independência
funcional (Artigo 127, § 1º) e, implicitamente – embora a respeito haja grande polêmica
-, o princípio do promotor natural.
3.3.1) Princípio da Unidade
O princípio da unidade significa que os membros do Ministério Público
compõem um mesmo organismo, sob a direção única do Procurador-Geral. ALEXANDRE
DE
MORAES ressalta que “(...) só existe unidade dentro de cada Ministério Público,
inexistindo entre o Ministério Público Federal e os dos Estados, nem entre o de um
Estado e o de outro, nem entre os diversos ramos do Ministério Público da União”.183
181 MAZZILLI, Hugo Nigro, op. cit., pp. 91-92.
182
MAZZILLI, Hugo Nigro, op. cit., p. 93.
183
MORAES, Alexandre de, op. cit., p. 495.
87
Para NESTOR SAMPAIO PENTEADO FILHO, o princípio da unidade é aquele “(...)
segundo o qual os membros do Ministério Público fazem parte de um todo orgânico
dentro de sua esfera de atribuições”.184
Todavia, alerta PAULO CEZAR PINHEIRO CARNEIRO, que se a atuação do
Ministério Público se desvia dos limites legais, nem por isso deixará de ser o Ministério
Público que está atuando, muito embora possa ser questionado eventual vício do ato,
pois
“(...) a unidade do Ministério Público não significa que qualquer de
seus membros poderá praticar qualquer ato em nome da instituição,
mas sim, sendo um só organismo, os seus membros “presentam” (não
representam) a instituição sempre que atuarem, mas a legalidade de
seus atos encontra limites no âmbito da divisão de atribuições e
185
demais princípios e garantias impostas pela lei”.
Daí resulta que quando um membro do Ministério Público atua, quem na
realidade está atuando é o próprio Ministério Público, sendo que “(...) é a lei que
delimita o âmbito de abrangência para atuação do órgão, bem como os limites de
atribuição do cargo no qual o agente pode, legalmente, exercer suas funções”.186
3.3.2) Princípio da Indivisibilidade
Segundo o princípio da indivisibilidade, a Lei pode autorizar que um membro do
Ministério Público atue no lugar de outro e, por outro lado, que exceto os casos
especificados em Lei, proibida estará a delegação de funções.
O princípio da indivisibilidade está intimamente ligado ao princípio da unidade,
pois enquanto o primeiro acentua a possibilidade - mesmo que somente nas hipóteses
legais - de existirem membros atuando no lugar de outros, o princípio da unidade estatui
que, quando um membro atua, é o próprio Ministério Público quem está atuando.
Ressalte-se, por fim, que mesmo as hipóteses legais de substituição necessitam
“a) que haja permissão legal para a substituição; b) que o ato decorra de autoridade com
184
FILHO, Nestor Sampaio Penteado. Manual de Direito Constitucional. Campinas-SP: Milennium,
2002, p. 214
185
Idem, ibidem.
186
CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro, op. cit., pp. 41 e 42.
88
atribuição para este fim; c) que a substituição se dê para a prática de atos
compreendidos no âmbito da atribuição do membro substituído”.187
3.3.3) Princípio da Independência Funcional
O princípio da independência funcional talvez seja o mais importante princípio
institucional do Ministério Público, pois, ao lado da garantia da inamovibilidade,
configura a base de um outro princípio que se estudará adiante, do promotor natural.
O princípio da independência funcional significa que o membro do Ministério
Público tem o direito de oficiar conforme sua consciência e a lei, gozando, portanto, de
liberdade para atuar sem sofrer quaisquer tipos de pressões.
Nem por isso, em virtude da unidade do Ministério Público, se impede que o
chefe da Instituição dirima conflitos de atribuições, reveja o pedido de arquivamento de
inquérito policial (Código de Processo Penal, art. 28), delegue funções de execução,
entre outras funções. Conforme leciona JOSÉ JESUS CAZETTA JÚNIOR,
“(...) em verdade, a independência funcional é um sério limite à
Administração, porque, em princípio, esta não pode ditar aos
membros da Instituição o modo, o momento, o conteúdo ou a
qualidade do ato funcional – o que praticamente elimina a idéia de
hierarquia. Nada impede, porém, que a lei estabeleça o método
para a expressão da vontade do Ministério Público, atribuindo
poderes, sucessivamente, a distintos órgãos, em caráter meramente
eventual (como se dá com o contingente exercício, pelo ProcuradorGeral de Justiça, da função prevista no art. 28 do CPP) ou ordinário (o
que ocorre na atividade revisão, pelo Conselho Superior, dos
arquivamentos de inquéritos civis). Em outras palavras: tal como no
Poder Judiciário, a independência institucional parece compatível com
o poder de derrogação interna corporis ou com a duplicidade de
pronunciamentos sobre o mesmo objeto (v.g., reexame necessário).
Em tais hipóteses prevalece o último pronunciamento da própria
Instituição, porque se trata de técnica especial para a formação da
vontade institucional, que nesses casos é enunciada pelo órgão de
segunda instância, sem que isto traduz, porém, uma relação
propriamente hierárquica”.188 (destaques nossos)
187
188
CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro, op. cit., p. 43
CAZETTA JÚNIOR, José Jesus, op. cit., p. 39
89
A questão deve ser vista num contexto sistêmico, pois, em razão da
independência funcional, quando houver, por exemplo, conflito de atribuições a ser
solucionado pelo Conselho Superior, não apenas este pode, de acordo com a lei e a
consciência de seus integrantes, decidir qual promotor deve atuar, como também o
promotor que for “designado” pelo Conselho Superior exercerá sua função de execução
com plena independência funcional.
Em outras palavras, o Conselho Superior, com base na Lei, poderá até decidir
qual promotor deverá atuar num determinado processo, todavia, não terá poder
hierárquico para determinar a forma como o promotor deve atuar.
Aliás, é nesse sentido que PAULO CEZAR CARNEIRO afirma ser essa
independência ilimitada, não estando o membro do Ministério Público “sujeito sequer às
recomendações do Conselho Superior do Ministério Público para o desempenho de suas
funções, ainda naqueles casos em que se mostre conveniente a atuação uniforme (arts.
10, XII, 15, X, 17, IV, e 20, todos da Lei Complementar nº 8.625/93)”.189
Frise-se, porém, que dizer que o princípio da independência funcional é
ilimitado não é de todo correto, pois, pela sua própria conceituação, encontra limites
legais e na própria consciência do membro do Ministério Público.
Desta forma, a única hierarquia interna existente no âmbito do próprio
Ministério Público é a administrativa, eis que, tendo em vista a independência
funcional, não se pode cogitar em hierarquia no sentido funcional.190
3.3.4) Princípio do Promotor Natural
O Princípio do Promotor Natural propugna, de um lado, que toda pessoa que
estiver no pólo da relação processual tem direito à atuação de um membro do Ministério
Público devidamente constituído e atuando no feito de acordo com os critérios legais, e
189
190
CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro, op. cit., pp. 44/45
MAZZILLI, Hugo Nigro, op. cit., p. 155
90
de outro, que se assegure aos membros do Ministério Público oficiarem nos processos
compreendidos no âmbito de suas atribuições.191
Este princípio “objetiva conferir efetividade a dois postulados fundamentais:
um, o da independência funcional, e outro, o da inamovibilidade dos membros da
instituição”.192
A efetividade que se confere à conjugação dos postulados da independência
funcional e inamovibilidade dos membros alcança inclusive a vedação de designações
casuísticas, permitindo uma atuação do membro do Ministério Público pautada
exclusivamente na lei e na sua consciência, livre de pressões e interesses particulares,
proibindo-se a existência dos chamados promotores de exceção e promotores “ad hoc”.
Um dos precursores do tema, em sede doutrinária, é HUGO NIGRO MAZZILLI, que
em 1976 posicionava-se contra os chamados promotores de encomenda, “escolhidos
livremente pelo procurador-geral de Justiça, que discricionariamente os designava e
afastava”.193
Todavia, provocou um intenso debate o fato de o Princípio do Promotor Natural
nunca ter sido expressamente previsto nas Constituições brasileiras, a ponto de se
questionar até mesmo a sua existência.
A questão foi enfrentada pela primeira vez no Supremo Tribunal Federal, em um
voto do Ministro ANTÔNIO NEDER no Habeas Corpus 48.728, no qual Sua Excelência
reconheceu a previsão implícita do princípio, ainda na vigência da Constituição Federal
de 1967, com a redação dada pela Emenda nº 1, de 1969, verbis:
“(...) o art. 153, § 15, da Constituição, texto da Emenda nº 1, expressa
que não haverá tribunais de exceção; ora, se é proibido o tribunal de
exceção, vedado é o juiz de exceção; se é defeso instituir juízo de
exceção, impedido é conceber-se o acusador de exceção, pois não se
compreende que nossa Constituição proíba o juiz de exceção e admita
o acusador de exceção, isto é, conceda e, ao mesmo tempo, subtraia
uma garantia”.194.
191
CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro, op. cit., pp. 47 e 53
HABEAS CORPUS nº. 67.759/RJ, Pleno, Rel. Ministro Celso de Mello, sessão plenária de 06.08.92,
acórdão publicado no Diário de Justiça de 01.07.1993, Ementário nº. 1710-01.
193
MAZZILLI, Hugo Nigro, op. cit., p. 157.
194
RTJ 63/315.
192
91
Após a Constituição de 1998, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do
Habeas Corpus nº. 67.759, enfrentou a questão quanto a existência do Princípio do
Promotor Natural.
É esta a ementa do julgado:
“(...) O postulado do Promotor Natural, que se revela imanente ao
sistema constitucional brasileiro, repele, a partir da vedação de
designações casuísticas efetuadas pela Chefia da Instituição, a figura
do acusador de exceção. Esse princípio consagra uma garantia de
ordem jurídica, destinada tanto a proteger o membro do Ministério
Público, na medida em que lhe assegura o exercício pleno e
independente do seu ofício, quanto a tutelar a própria coletividade, a
quem se reconhece o direito de ver atuando, em quaisquer causas,
apenas o Promotor cuja intervenção se justifique a partir de critérios
abstratos e pré-determinados, estabelecidos em lei.
A matriz constitucional desse princípio assenta-se nas cláusulas da
independência funcional e da inamovibilidade dos membros da
Instituição. O postulado do Promotor Natural limita, por isso mesmo,
o poder do Procurador-Geral que, embora expressão visível da
unidade institucional, não deve exercer a Chefia do Ministério Público
de modo hegemônico e incontrastrável (sic).
Posição dos Ministros CELSO DE MELLO (Relator), SEPÚLVEDA
PERTENCE, MARCO AURÉLIO e CARLOS VELLOSO. Divergência,
apenas, quanto à aplicabilidade imediata do princípio do Promotor
Natural: necessidade da ‘interpositio legislatoris’ para efeito de
atuação do princípio
[eficácia limitada] (MINISTRO CELSO DE MELLO); incidência do
postulado, independentemente de intermediação legislativa [eficácia
plena] (Ministros SEPÚLVEDA PERTENCE, MARCO AURÉLIO e CARLOS
VELLOSO).
Reconhecimento da possibilidade de instituição do princípio do
Promotor Natural mediante lei [inexistência, explícita ou implícita do
princípio no Ordenamento Jurídico] (Ministro SYDNEY SANCHES).
Posição de expressa rejeição à existência desse princípio consignada
nos votos dos Ministros PAULO BROSSARD, OCTAVIO GALLOTTI,
NÉRI DA SILVEIRA e MOREIRA ALVES”195
Conforme assinalado na ementa do julgado, explicitaram-se 4 (quatro)
entendimentos: o primeira, dos Ministros Sepúlveda Pertence, Marco Aurélio e Carlos
Velloso, no sentido de que o princípio do promotor natural decorre da Constituição e
constitui norma de eficácia plena; o segunda, do Ministro Celso de Mello, entendendo
que o princípio está previsto na Constituição, mas enquanto norma de eficácia limitada;
o terceiro, dos Ministros Paulo Brosard, Octávio Gallotti, Néri da Silveira e Moreira
Alves, simplesmente afirmando que não há previsão constitucional do princípio do
promotor natural, quer implícita, quer explicitamente, não se manifestando,
195
HABEAS CORPUS nº. 67.759/RJ, Pleno, Rel. Ministro Celso de Mello, sessão plenária de 06.08.92,
acórdão publicado no Diário de Justiça de 01.07.1993, Ementário nº. 1710-01.
92
expressamente, sobre a possibilidade de emenda constitucional ou lei infraconstitucional
superveniente estabelecer o referido princípio; o quarto e último entendimento foi o do
Ministro Sydney Sanches, também no sentido de que o princípio não está previsto nem
na Constituição, nem em normas infraconstitucionais, mas com uma ressalva expressa,
ou seja, de não haver óbice algum a que a legislação infraconstitucional e, por maiores
razões, uma emenda constitucional passasse a prever o princípio.
Foram, portanto, 4 (quatro) Ministros reconhecendo a existência do princípio na
Constituição - embora o Ministro Celso de Mello a tenha considerado norma de
aplicabilidade limitada – e 5 negando a existência do princípio.
Apenas para que se tenha uma noção do qual polêmica é a questão, vale
transcrever, inicialmente, parte do voto do Ministro PAULO BROSSARD, um dos que
defenderem não existir o princípio do promotor natural. Disse Sua Excelência no
julgamento mencionado HC 67.759:
“(...) Preliminarmente, peço vênia para divergir dos que vêem na
inamovibilidade dos membros do Ministério Público a base do
princípio do “promotor natural”. Vejo na inamovibilidade uma
garantia funcional, cuja finalidade é proteger, no caso específico, o
pleno exercício das elevadas funções dos membros do Ministério
Público, contra desmandos de autoridades que lhes sejam superiores.
É a garantia funcional do Promotor Público de permanecer no lugar
para o qual foi designado, impedindo sua remoção ex offício, salvo
motivo de interesse público.
Tanto é que a Constituição Federal dispõe no artigo 128, parágrafo 5º,
que a lei orgânica do Ministério Público deve observar, relativamente
a seus membros:
I – as seguintes garantias: (...)
b) inamovibilidade, salvo por motivo de interesse público, mediante
decisão do órgão colegiado competente do Ministério Público, por
voto de dois terços de seus membros, assegurada a ampla defesa.
A inamovibilidade é garantia outorgada aos membros do Ministério
Público, que objetiva evitar a sua remoção ou transferência
discricionária ou arbitrária; é uma garantia, hoje constitucional, que
visa ao agente público e não aos administrados ou jurisdicionados,
não obstante traga reflexos a estes.
Tanto isso é verdade que, mesmo na hipótese de inamovibilidade por
motivo de interesse público, permitida pela norma constitucional,
deve-se assegurar ao Promotor Público e somente a ele a ampla defesa
dessa sua garantia funcional.
Ademais, assentar o princípio do ‘Promotor natural’ (sic) na garantia
da inamovibilidade, resultaria em sustentar também em relação à
Defensoria Pública o princípio do ‘Defensor Público Natural’, já que
93
o parágrafo único do artigo 134 da Constituição assegura, também, a
esses funcionários a garantia da inamovibilidade.
No que diz respeito ao, também invocado, princípio da independência
funcional do Ministério Público, é de se observar que ele é
assegurado, no parágrafo 1º, do art. 127, da Constituição Federal, à
instituição do Ministério Público, tanto é que a norma constitucional
ao assim conceitua-lo, como princípio institucional, objetiva precípua
e fundamentalmente estabelecer sua autonomia em relação aos
Poderes do Estado e não exclui a hierarquia e a disciplina.
É claro que da independência funcional da instituição decorre a de
seus membros; é uma garantia funcional que deflui da institucional”.
Segundo este entendimento, o sentido e alcance da garantia da inamovibilidade
não permitiriam utilizá-lo como elemento formador do Princípio do Promotor Natural.
Ou seja, a inamovibilidade consistiria apenas numa garantia funcional do promotor de
justiça, permitindo-o que permaneça na Promotoria a que foi designado e impedindo sua
remoção, salvo por motivo de interesse público.
Essa não é a linha que segue a corrente defendida, por exemplo, pelo Min.
CELSO
DE
MELLO, que vê a inamovibilidade, numa interpretação sistemática e
teleológica, como garantia do membro, da instituição e da sociedade.
A doutrina tende a acompanhar o Min. CELSO
DE
MELLO, até mesmo pela
natureza da função atribuída ao Ministério Público. Assim o faz PAULO CEZAR
PINHEIRO CARNEIRO, para quem “essa garantia social e individual permite ao Ministério
Público cumprir, livre de pressões e influências, a sua missão constitucional de defesa
da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais
indisponíveis”.196
O ponto de toque, portanto, que divisou o entendimento em correntes
antagônicas, especialmente no Supremo Tribunal Federal, está no sentido e alcance da
garantia da inamovibilidade. Aqueles que a veem num sentido amplo, acabam por
concluir que não é ela garantia apenas do membro do Ministério Público de não ser
transferido ou removido do local onde atua, mas também da Instituição e da própria
sociedade, para que não haja indicações casuísticas.
196
CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro, op. cit., p. 48. Igualmente, Mazzilli afirma que “a verdadeira
inamovibilidade dos membros do Ministério Público não teria sentido se dissesse respeito apenas à
impossiblidade de se remover o promotor de Justiça de seu cargo: era mister assegurar ao titular do cargo
o direito ao exercício das respectivas funções” (MAZZILLI, Hugo Nigro, op. cit., p. 158).
94
Para o Ministro SYDNEY SANCHES, por sua vez, não há consagração explícita ou
implícita do Princípio do Promotor Natural pela Constituição Federal de 1988, embora
essa, enquanto Lei Fundamental que dá validade a todo Ordenamento Jurídico, não
impossibilite a instituição de referido princípio pela Lei Orgânica do Ministério Público,
ou, por maiores razões, até mesmo por emenda constitucional.
Para ele, a Constituição Federal de 1988 não contém explícito, nem implícito, o
princípio do Promotor Natural, bem como não resulta ele, necessariamente, dos
princípios da independência funcional e da inamovibilidade dos membros do Ministério
Público”. No mais, acompanhou o entendimento esposado por PAULO BROSSARD.
É importante destacar que esse julgamento (HC 67.759), embora importante,
sobretudo pela riqueza dos debates, não tem, com a devida vênia, como ser invocado
para afirmar a inexistência, hoje, do princípio do promotor natural.
Basta ver que, se a composição da Suprema Corte fosse a mesma e os Ministros
mantivessem o seu entendimento, o voto do Ministro Sydney Sanches, que havia se
somado aos votos dos Ministros que negavam a existência do princípio, agora se
alinharia, ainda que na conformidade do voto médio, aos dos Ministros Sepúlveda
Pertence, Marco Aurélio, Carlos Velloso e Celso de Mello.
É que, à época do julgamento do Habeas Corpus nº 67.759, ainda não estava em
vigor a Lei nº. 8.625 de 12.02.1993, que proibiu designações arbitrárias em seu art. 10,
IX, e, f e g197, sobrevindo, assim, a interposição legislativa requerida pelo Ministro
197 “Art. 10 - Compete ao Procurador-Geral de Justiça: (...) IX - designar membros do Ministério Público
para: (...) e) acompanhar inquérito policial ou diligência investigatória, devendo recair a escolha sobre o
membro do Ministério Público com atribuição para, em tese, oficiar no feito, segundo as regras ordinárias
de distribuição de serviços; f) assegurar a continuidade dos serviços, em caso de vacância, afastamento
temporário, ausência, impedimento ou suspeição de titular de cargo, ou com consentimento deste; g) por
ato excepcional e fundamentado, exercer as funções processuais afetas a outro membro da instituição,
submetendo sua decisão previamente ao Conselho Superior do Ministério Público”. Os casos de
designações previstos nesse artigo fundamentam-se no interesse público, de forma tal que o membro da
Instituição não atue senão na forma da lei e de acordo com sua consciência. A esse respeito Alexandre de
Moraes assim se pronuncia: “O próprio art. 10 da Lei Orgânica Nacional do Ministério Público afasta
qualquer possibilidade de designações arbitrárias, prevendo somente competir, excepcionalmente, ao
Procurador-Geral a designação de membro do Ministério Público para acompanhar inquérito policial ou
diligência investigatória, devendo, porém, recair a escolha sobre o membro do Ministério Público com
atribuição para, em tese, oficiar no feito, segundo as regras ordinárias de distribuição dos serviços, para
assegurar a continuidade dos serviços, em caso de vacância, afastamento temporário, ausência,
impedimento ou suspeição de titular de cargo, ou com consentimento deste, para, por ato excepcional e
fundamentado, exercer as funções processuais afetas a outro membro da Instituição, submetendo sua
decisão previamente ao Conselho Superior do Ministério Público. Observe-se, ainda, a expressa proibição
95
Celso de Mello para a plena eficácia do princípio, regramento infraconstitucional este,
ademais, que o Ministro Sydney Sanches enunciou como suficiente para a consagração
do princípio do promotor natural: assim, a ordem seria concedida, por cinco votos a
quatro.
Faça-se o registro, ainda, que, quando iniciado o julgamento do Habeas Corpus
67.759, em 28 de junho de 1990, faziam parte do Supremo Tribunal Federal os
Ministros Aldir Passarinho e Célio Borja. Todavia, em razão dos sucessivos pedidos de
vista, o julgamento terminou apenas na Sessão Plenária de 6 de agosto de 1992, quando
então estes dois Ministros já estavam aposentados, ou seja, não tiveram eles a
oportunidade de proferirem os seus votos sobre a matéria. Os Ministros Ilmar Galvão e
Francisco Rezek, que assumiram as cadeiras antes ocupadas pelos Ministros Aldir
Passarinho e Célio Borja também não puderam votar, pois, à época do início do
julgamento não integravam a Corte.
Tanto é assim que, analisando o Habeas Corpus nº HC 69.599 (Relator Ministro
Sepúlveda Pertence, julgado em 30/06/1993, DJ 27.8.1993), o Pleno do Supremo
Tribunal deixou bem claro que se deveria divisar a situação jurídica das denúncias
anteriores ou posteriores à Lei nº. 8.625/93, que havia entrado em vigor recentemente.
É esta a ementa do julgado:
“EMENTA I. Ministério Público: legitimidade "ad processum" para o
oferecimento da denuncia de Promotor designado previamente para
compor grupo especial de acompanhamento de investigações e
promoção da ação penal relativas a determinados crimes 1. Sendo a
denuncia anterior a L. 8.625/93 - segundo a maioria do STF, firmada
no HC 67.759 (vencido, no ponto o relator) - não se poderia opor-lhe a
validade o chamado princípio do Promotor Natural, pois, a falta de
legislação que se reputou necessária a sua eficácia, estaria em pleno
vigor o art, 7., V, LC 40/81, que conferia ao Procurador-Geral amplo
poder de substituição para, "mesmo no curso do processo, designar
outro membro do Ministério Público para prosseguir na ação penal,
dando-lhe orientação que for cabível no caso concreto". 2. De
qualquer modo, ainda para os que, como o relator, opuseram
temperamento a recepção integral da legislação anterior, a
Constituição vigente não veda a designação, no Ministério Público, de
grupos especializados por matéria, na medida em que a atribuição aos
constitucional de nomeação de membro do Ministério Público ad hoc, pois, nos termos do art. 291, § 2º,
da Constituição Federal, as funções do Ministério Público só podem ser exercidas por integrantes da
carreira” (MORAES, Alexandre de, op. cit., p. 497).
96
seus componentes da condução dos processos respectivos implica a
previa subtração deles da esfera de atuação do Promotor
genericamente incumbido de atuar perante determinado juízo. II.
Competência: prevenção: exigência de distribuição: incompetência,
porem, que, sendo relativa, ficou sanada pela preclusão. 1. O art. 83
C.Pr.Pen há de ser entendido em conjugação com o art. 75, parág.
único: só se pode cogitar de prevenção da competência, quando a
decisão, que a determinaria, tenha sido precedida de distribuição: não
previnem a competência decisões de juiz de plantão, nem as
facultadas, em caso de urgência, a qualquer dos juizes criminais do
foro. 2. A jurisprudência do STF e sta consolidada no sentido de que e
relativa, no processo penal, não só a competência territorial de foro,
mas também a firmada por prevenção (precedentes): donde, a falta de
exceção tempestivamente oposta, o convalescimento, pela preclusão,
da incompetência do juiz que equivocadamente se entendeu
prevento”.
No mesmo sentido decidiu a Primeira Turma do Supremo Tribunal no
Agravo Regimental no Agravo de Instrumento nº. 169.169, Relator Ministro Ilmar
Galvão (julgado em 10.10.1995, DJ 1º.12.1995):
“EMENTA: PROCESSO PENAL. ACÓRDÃO CONFIRMATORIO
DE SENTENÇA DE PRONUNCIA IMPUGNADA POR FALTA DE
FUNDAMENTAÇÃO E POR VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DO
PROMOTOR NATURAL. Recurso extraordinário fundado em
afronta aos arts. 5., XXXV e LV; 93, IX; 127, par. 1.; 128, par. 5., I, a,
b e c; e 129, I A IX. (...) Processo instaurado antes do advento da Lei
n. 8.625/93, em relação ao qual não tem aplicação o princípio do
Promotor Natural. Precedente do STF (...) HC 69.599 (...). Agravo
regimental improvido”.
Entretanto, a existência de precedentes nesse sentido não impediu que surgissem
julgados amparando-se no Habeas Corpus nº 67.759, mas sem se ater às peculiaridades
desse julgamento.
Mencione-se, por exemplo, o julgamento realizado pela Segunda Turma do
Supremo Tribunal em 17.6.2008, do Habeas Corpus nº 90.277, de que foi Relatora a
Ministra Ellen Gracie (DJe 31.7.2008), cuja ementa tem o seguinte teor:
“DIREITO PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS.
PRINCÍPIO DO PROMOTOR NATURAL. INEXISTÊNCIA
(PRECEDENTES). AÇÃO PENAL ORIGINÁRIA NO STJ.
INQUÉRITO JUDICIAL DO TRF. DENEGAÇÃO.
1. Trata-se de habeas corpus impetrado contra julgamento da Corte
Especial do Superior Tribunal de Justiça que recebeu denúncia contra
o paciente como incurso nas sanções do art. 333, do Código Penal.
2. Tese de nulidade do procedimento que tramitou perante o TRF da
3ª Região sob o fundamento da violação do princípio do promotor
natural, o que representaria. 3. O STF não reconhece o postulado do
97
promotor natural como inerente ao direito brasileiro (HC 67.759,
Pleno, DJ 01.07.1993): "Posição dos Ministros CELSO DE MELLO
(Relator), SEPÚLVEDA PERTENCE, MARCO AURÉLIO e
CARLOS VELLOSO: Divergência, apenas, quanto à aplicabilidade
imediata do princípio do Promotor Natural: necessidade de
"interpositio legislatoris" para efeito de atuação do princípio (Ministro
CELSO DE MELLO); incidência do postulado, independentemente de
intermediação legislativa (Ministros SEPÚLVEDA PERTENCE,
MARCO AURÉLIO e CARLOS VELLOSO). - Reconhecimento da
possibilidade de instituição de princípio do Promotor Natural
mediante lei (Ministro SIDNEY SANCHES). - Posição de expressa
rejeição à existência desse princípio consignada nos votos dos
Ministros PAULO BROSSARD, OCTAVIO GALLOTTI, NÉRI DA
SILVEIRA e MOREIRA ALVES". 4. Tal orientação foi mais
recentemente confirmada no HC n° 84.468/ES (rel. Min. Cezar
Peluso, 1ª Turma, DJ 20.02.2006). Não há que se cogitar da existência
do princípio do promotor natural no ordenamento jurídico brasileiro.
5. Ainda que não fosse por tal fundamento, todo procedimento, desde
a sua origem até a instauração da ação penal perante o Superior
Tribunal de Justiça, ocorreu de forma transparente e com integral
observância dos critérios previamente impostos de distribuição de
processos na Procuradoria Regional da República da 3ª Região, não
havendo qualquer tipo de manipulação ou burla na distribuição
processual de modo a que se conduzisse, propositadamente, a este ou
àquele membro do Ministério Público o feito em questão, em
flagrante e inaceitável desrespeito ao princípio do devido processo
legal
6. Deixou-se de adotar o critério numérico (referente ao finais dos
algarismos lançados segundo a ordem de entrada dos feitos na
Procuradoria Regional) para se considerar a ordem de entrada das
representações junto ao Núcleo do Órgão Especial (NOE) em
correspondência à ordem de ingresso dos Procuradores no referido
Núcleo.
7. Na estreita via do habeas corpus, os impetrantes não conseguiram
demonstrar a existência de qualquer vício ou mácula na atribuição do
procedimento inquisitorial que tramitou perante o TRF da 3ª Região
às Procuradoras Regionais da República.
8. Não houve, portanto, designação casuística, ou criação de
"acusador de exceção".
9. Habeas corpus denegado”.
No referido julgamento, embora tenha sido unânime, estavam presentes à Sessão
apenas a Relatora e os Ministros Cezar Peluso e Eros Grau (ausentes os Ministros
Joaquim Barbosa e Celso de Mello).
E, embora a ementa do julgado deixe a impressão de que teria sido enfrentada a
questão quanto ao princípio do promotor natural, não se deve perder de vista que o votocondutor do julgado, da lavra da eminente Relatora Ministra Ellen Gracie, apresentou
um fundamento independente, no sentido de que, “ainda que eventualmente fosse
admitida a existência do princípio do promotor natural no direito brasileiro”, naquele
98
caso ele não teria aplicação, de modo que o fato de o julgamento ter sido unânime não
significa, necessariamente, que os demais Ministros se comprometeram com a tese de
inexistência daquele princípio: eles simplesmente não enfrentaram a questão.
Note-se que foi invocado o Habeas Corpus nº 67.759, sem qualquer análise
sobre a superveniência da Lei nº. 6.825/93, o que, ressalte-se mais uma vez, seria
imprescindível.
De outro lado, afirmou-se, ainda, que o entendimento firmado no Habeas
Corpus nº 67.759 teria sido confirmada pela Primeira Turma no julgamento do Habeas
Corpus nº 84.468, de relator Ministro Cezar Peluso (DJ 20.2.2006).
A leitura da ementa do HC 84.468 (Relator Ministro Cezar Peluso, Primeira
Turma, julgado em 07/02/2006, DJe 28.6.2007) é suficiente para perceber que, na
verdade, a questão decidida foi relativa à possibilidade de o Procurador-Geral da
República delegar a propositura de ação penal a Subprocurador-Geral da República, não
se tendo afirmado, em momento algum, que o princípio do promotor natural não
existiria.
Confira-se a ementado do julgado:
“EMENTAS: 1. MINISTÉRIO PÚBLICO. Federal. Procurador-Geral
da República. Atuação perante o Superior Tribunal de Justiça. Ação
penal originária contra magistrado. Propositura. Delegação a
Subprocurador-Geral da República. Admissibilidade. Caso que não é
de afastamento de membro competente do Ministério Público.
Inexistência de ofensa ao princípio do promotor natural. Precedente.
Preliminar repelida. Inteligência do art. 48 da LC nº 75/93. Pode o
Procurador-Geral da República delegar a competência de que trata o
art. 48, II, da Lei Complementar nº 75, de 1993, a SubprocuradorGeral pré-designado para atuar perante o Superior Tribunal de Justiça.
2. AÇÃO PENAL. Originária. Denúncia contra magistrado. Inépcia
caracterizada. Fato atípico. Imputação de crime de falsidade
ideológica, em concurso material e de pessoas. Descrição substancial
de aceitação indevida de prevenção. Fato contrariado pela própria
narrativa da denúncia, segundo a qual a prevenção foi reconhecida
pelo órgão distribuidor, embora com erro provocado por expediente
do subscritor de agravos de instrumentos, que o induziu mediante
distribuição e subseqüente desistência de múltiplos recursos.
Inexistência de descrição doutros fatos capazes de corresponder ao
tipo do art. 299, cc. arts. 69 e 29, todos do CPC. Trancamento da ação
penal em relação ao paciente. HC concedido para esse fim. É inepta a
denúncia que, imputando ao magistrado denunciado a prática do delito
previsto no art. 299 do Código Penal, não o acusa de omissão de
99
declaração devida, nem inserção de declaração falsa ou diversa da que
deveria ser escrita, senão de aceitação de prevenção processual que,
alegadamente inexistente, foi reconhecida pelo órgão distribuidor. 3.
MAGISTRADO. Ação penal. Denúncia. Recebimento. Afastamento
do exercício da função jurisdicional. Trancamento da ação por inépcia
da denúncia. Cassação da decisão que determinou o afastamento. HC
concedido também para esse fim. Extinto, por inépcia da denúncia, o
processo da ação penal contra magistrado, perde fundamento e
eficácia a decisão que, ao receber aquela, o afastou do exercício da
judicatura”.
O referido precedente, antes de negar, na verdade tende a confirmar a existência
do princípio do promotor natural, uma vez que, se não existisse esse princípio, a
discussão quanto a possibilidade de delegação perderia relevo.
Com efeito, somente se permite a delegação porque se parte da premissa
segundo a qual o Procurador-Geral da República, nesse caso, é o promotor natural da
causa.
De tudo, conclui-se que o Supremo Tribunal Federal não pacificou o seu
entendimento a respeito da existência do princípio do promotor natural.
O julgamento do Habeas Corpus nº 67.759, ademais, parece ter se tornado uma
incógnita para o próprio Supremo Tribunal Federal, que ora afirma que naquele
precedente fora reconhecido o princípio do promotor natural, ora afirma tese em sentido
diametralmente oposto (conferir, entre outros: HC 68.966, Relator Ministro Paulo
Brossard, Redator para o acórdão Ministro Francisco Resek, Segunda Turma, julgado
em 27/10/1992, DJ 07.5.1993; HC 70.290, Relator Ministro Sepúlveda Pertence,
Tribunal Pleno, julgado em 30.6/.993, DJ 13.6.1997; HC 71.429, Relator Ministro Celso
de Mello, Primeira Turma, julgado em 25.10.994; HC 74.052, Relator Ministro Marco
Aurélio, Segunda Turma, julgado em 20.8.1996, DJ 13.12.1996; HC 92.885, Relatora
Ministra Cármen Lúcia, Primeira Turma, julgado em 29.4.2008, DJe 19.6.2008; HC
77.723, Relator Ministro Néri da Silveira, Segunda Turma, julgado em 15.9.1998, DJ
15.12.2000; RHC 80.476, Relator Ministro Sydney Sanches, Primeira Turma, julgado
em 07.11.2000, DJ 16.2.2001; HC 81.998, Relator Ministro Sepúlveda Pertence,
Primeira Turma, julgado em 04.6.2002, DJ 28.06.2002).
Apesar disso, fica o registro de que o posicionamento dominante da doutrina
reconhece não só a existência do Princípio do Promotor Natural, como também que este
configura garantia das partes, dos membros do Ministério Público e da própria
sociedade e que esse reconhecimento, como assinalado, implica várias conseqüências
jurídicas.
100
3.4) GARANTIAS E VEDAÇÕES DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Para que o Ministério Público desempenhe suas atividades com uma efetiva
imparcialidade, livre de quaisquer pressões, até mesmo do próprio Estado, também são
asseguradas, além dos princípios já analisados, garantias tanto para a Instituição como
para os membros e, de outra face, vedadas algumas atividades.
3.4.1) Garantias da Instituição: Autonomia Funcional,
Administrativa e Financeira (CF/88, Art. 127, §§ 2º e 3º)
A Constituição Federal vigente assegurou expressamente ao Ministério Público
autonomia funcional e administrativa (CF/88, art. 127, § 2º), tendo o art. 3º da Lei
Orgânica Nacional do Ministério Público (Lei nº. 8.625/93)) acrescentado a autonomia
financeira.
A autonomia funcional é a capacidade que possui o Ministério Público de
exercer as funções norteadas única e exclusivamente naquilo que a Lei consagra como
interesse público e com base na consciência de cada membro. É, no dizer de FERNANDO
DA COSTA TOURINHO FILHO,
“a capacidade para atos de autogoverno”.198
Já a autonomia administrativa, ainda nas palavras de TOURINHO FILHO, “é a
capacidade para a solução de problemas administrativos internos (concessão de férias,
licenças, aposentadorias, designações, nomeações de funcionários, entre outras
atividades), sem a burocrática vinculação a Ministérios e Secretarias de Estado”.199
Compreende, por exemplo, a possibilidade de propor a criação e extinção de
seus cargos e serviços auxiliares, a política remuneratória e os planos de carreira.
198
199
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa, op. cit., p. 357
Idem, ibidem.
101
Conforme informado no início desse tópico, a Constituição Federal vigente não
consagrou expressamente a autonomia financeira do Ministério Público, o que leva
parte da doutrina a reconhecer apenas a autonomia orçamentária da Instituição.
Segundo MAZZILLI, isso não quer dizer que o Ministério Público não a possua,
eis que a autonomia financeira é, segundo seu entendimento, decorrência do próprio
“sistema (CF, arts. 127, §§ 2 e §, 168 e 169), tendo sido garantidas as conseqüências
dela decorrentes, bem como a infra-estrutura indispensável para assegurá-la”.200
Argumenta-se ainda que se não existisse autonomia financeira, sequer seria
possível falar em autonomia funcional e administrativa.
Ademais, a Constituição Federal, em seu art. 127, § 3º, diz que o Ministério
Público “elaborará sua proposta orçamentária dentro dos limites estabelecidos na lei de
diretrizes orçamentárias”, sendo que tal regra pressupõe participação na proposta global.
Ademais, conforme lição do Min. CELSO
orçamentária a de caráter financeiro.
DE
MELLO, está incluída na autonomia
201
De qualquer forma, as autonomias funcional, administrativa e financeira do
Ministério Público da União foram contempladas nos arts. 23 e 23 Lei Complementar nº
75/93202, o mesmo sucedendo com os Ministérios Públicos estaduais, nos arts. 3º e 4º da
Lei Orgânica Nacional do Ministério Público dos Estados.203
200
MAZZILLI, Hugo Nigro, op. cit., p 199
STF – Pleno – ADI nº. 798-1/DF – Rel. Min. Celso de Mello, publicado no Diario da Justiça, Seção I,
19 dezembro 1994
202
“Art. 22. Ao Ministério Público da União é assegurada autonomia funcional, administrativa e
financeira, cabendo-lhe: I - propor ao Poder Legislativo a criação e extinção de seus cargos e serviços
auxiliares, bem como a fixação dos vencimentos de seus membros e servidores; II - prover os cargos de
suas carreiras e dos serviços auxiliares; III - organizar os serviços auxiliares; IV - praticar atos próprios de
gestão. Art. 23. O Ministério Público da União elaborará sua proposta orçamentária dentro dos limites da
lei de diretrizes orçamentárias. § 1º Os recursos correspondentes às suas dotações orçamentárias,
compreendidos os créditos suplementares e especiais, ser-lhe-ão entregues até o dia vinte de cada mês. §
2º A fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial do Ministério Público da
União será exercida pelo Congresso Nacional, mediante controle externo, com o auxílio do Tribunal de
Contas da União, segundo o disposto no Título IV, Capítulo I, Seção IX, da Constituição Federal, e por
sistema próprio de controle interno. § 3º As contas referentes ao exercício anterior serão prestadas,
anualmente, dentro de sessenta dias da abertura da sessão legislativa do Congresso Nacional.”
203
“Art. 3º Ao Ministério Público é assegurada autonomia funcional, administrativa e financeira,
cabendo-lhe, especialmente: I - praticar atos próprios de gestão; II - praticar atos e decidir sobre a
situação funcional e administrativa do pessoal, ativo e inativo, da carreira e dos serviços auxiliares,
organizados em quadros próprios; III - elaborar suas folhas de pagamento e expedir os competentes
demonstrativos; IV - adquirir bens e contratar serviços, efetuando a respectiva contabilização; V - propor
ao Poder Legislativo a criação e a extinção de cargos, bem como a fixação e o reajuste dos vencimentos
201
102
A título meramente exemplificativo, mencione-se a Ação Direta de
Inconstitucionalidade nº. 2.831, proposta pela Associação dos Magistrados Brasileiros AMB, na qual foram questionados vários dispositivos da Lei Complementar nº 106/03,
do Estado do Rio de Janeiro, que instituiu a organização e o Estatuto do Ministério
Público local.
Um dos dispositivos questionados da lei foi o seu artigo 2º, caput, que assegura
autonomia funcional, administrativa e financeira ao Ministério Público do Rio de
Janeiro.
A AMB alegou que o MP integra o Poder Executivo e, como tal, só dispõe de
autonomia administrativa e funcional, uma vez que, segundo a Constituição Federal, a
autonomia financeira é privativa dos Poderes do Estado.
O Ministro Ilmar Galvão, no exercício da Presidência do Supremo Tribunal
Federal e ad referendum do Plenário, não concedeu o pedido de liminar relativamente
ao art. 2º, caput, que assegura autonomia financeira ao Ministério Público fluminense,
reconhecendo que não há sequer plausibilidade jurídica na afirmação de o Ministério
Público não possui autonomia financeira, sendo a decisão, nesse ponto, posteriormente
referendada pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal.204
Argumenta a doutrina ainda que o Ministério Público, para que bem exerça suas
funções, há que ser um órgão independente, por isso, mesmo que se considere ele
de seus membros; VI - propor ao Poder Legislativo a criação e a extinção dos cargos de seus serviços
auxiliares, bem como a fixação e o reajuste dos vencimentos de seus servidores; VII - prover os cargos
iniciais da carreira e dos serviços auxiliares, bem como nos casos de remoção, promoção e demais formas
de provimento derivado; VIII - editar atos de aposentadoria, exoneração e outros que importem em
vacância de cargos e carreira e dos serviços auxiliares, bem como os de disponibilidade de membros do
Ministério Público e de seus servidores; IX - organizar suas secretarias e os serviços auxiliares das
Procuradorias e Promotorias de Justiça; X - compor os seus órgãos de administração; XI - elaborar seus
regimentos internos; XII - exercer outras competências dela decorrentes. Parágrafo único As decisões do
Ministério Público fundadas em sua autonomia funcional, administrativa e financeira, obedecidas as
formalidades legais, têm eficácia plena e executoriedade imediata, ressalvada a competência
constitucional do Poder Judiciário e do Tribunal de Contas. Art. 4º O Ministério Público elaborará sua
proposta orçamentária dentro dos limites estabelecidos na Lei de Diretrizes Orçamentárias,
encaminhando-a diretamente ao Governador do Estado, que a submeterá ao Poder Legislativo. § 1º Os
recursos correspondentes às suas dotações orçamentárias próprias e globais, compreendidos os créditos
suplementares e especiais, ser-lhe-ão entregues até o dia vinte de cada mês, sem vinculação a qualquer
tipo de despesa. § 2º A fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial do
Ministério Público, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação de dotações e recursos
próprios e renúncia de receitas, será exercida pelo Poder Legislativo, mediante controle externo e pelo
sistema de controle interno estabelecido na Lei Orgânica.”
204
Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.831, Medida Cautelar, Relator Ministro Maurício Corrêa,
Tribunal Pleno, julgado em 11/03/2004, DJ 28-05-2004.
103
vinculado a alguns dos Poderes, é indispensável assegurar-lhe uma relação apenas de
cooperação, jamais de subordinação.
Além disso, sob o aspecto prático, milita a favor do Ministério Público a
presunção de constitucionalidade das normas infraconstitucionais que lhe concederam
autonomia financeira.
Mesmo a competência privativa dada ao Presidente da República para o envio da
Lei de Diretrizes Orçamentárias ao Congresso Nacional (CF/88, art. 84, XXIII) não
abrange a possibilidade de alteração da proposta orçamentária que lhe é dirigida.
Se fosse permitido ao Chefe do Executivo alterar as propostas orçamentárias – o
que se diz apenas para argumentar-, jamais se poderia falar em autonomia financeira
nem mesmo em relação ao Judiciário, que possui texto expresso concedendo-a (CF/88,
art. 99, caput). A autonomia financeira, nessa hipótese, pertenceria de fato apenas ao
Executivo, o que, à evidência, fere incisivamente o Princípio da Separação dos Poderes.
Portanto, não só a autonomia funcional e administrativa, mas também a
financeira, constituem condições necessárias para o exercício das funções ministeriais,
já que se lhe exige, para tanto, uma real independência orgânica.
3.4.2) Garantias dos Membros: Vitaliciedade, Inamovibilidade
e Irredutibilidade de Subsídio (CF/88, Art. 129, § 5º, I)
O art. 129, §§ 1º, 2º e 3º da Constituição Federal asseguram que as funções
ministeriais só poderão ser exercidas por integrantes da carreira, cujo ingresso far-se-á
mediante concurso público de provas e títulos, assegurada a participação da OAB em
sua realização e com observância da ordem de classificação para as nomeações.
Uma vez tendo ingressado na carreira, na forma acima descrita, e tendo exercido
suas funções por dois anos, não poderá perder o cargo, senão por sentença judicial
transitada em julgado. Esta é a garantia da vitaliciedade.
104
FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO afirma que a sentença judicial transitada
em julgado capaz de gerar a perda do cargo é a proferida em ação civil própria, na
forma da Lei Orgânica, em casos tais como a prática de crime incompatível com o
exercício do cargo, exercício da advocacia ou abandono do cargo por prazo superior a
30 dias corridos. Alerta ainda que a vitaliciedade não significa perpetuidade, pois se
aplica também quanto aos membros do Ministério Público a regra da aposentadoria
compulsória aos 70 anos.205
Outra garantia assegurada é a da irredutibilidade de subsídio, nos termos da
CF/88, art. 128, § 5º, I, c, c/c arts. 39, § 4º; 37, X e XI; 150, II; 153, III e 153, § 2º, I.
Por fim, assegura-se a garantia da inamovibilidade. Esta garantia já foi
comentada quando se tratou do Princípio do Promotor Natural, onde ficou assentado
que constitui ela garantia não só do membro do Ministério Público de que não será
transferido ou removido para outro local em que esteja atuando como titular, exceto por
motivo de interesse público e mediante decisão de dois terços dos membros do órgão
colegiado competente do Ministério Público, assegurada ampla defesa, mas também
garantia das partes no processo e de toda a sociedade, de que o membro da Instituição,
ao atuar num determino feito, o faz única e exclusivamente por critérios legais.
O art. 130 da CF/88 estende esses direitos aos membros do Ministério Público
especial que oficiam junto aos Tribunais de Contas. Ou seja, deverão ser garantidas a
forma de ingresso e as garantias da vitaliciedade, da irredutibilidade de subsídio e da
inamovibilidade, nos mesmos termos assegurados aos membros do Ministério Público
comum.
Essas garantias protegem diretamente o exercício da atividade funcional206,
propiciando ao membro o que dele se requer, ou seja, uma atuação independente e
norteada pelo interesse público.
205
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa, op. cit., pp. 335/336
CAZETTA JÚNIOR, José Jesus. Funções Institucionais do Ministério Público. A Independência
Funcional dos Membros do Ministério Público e a sua Tríplice Garantia Constitucional. São Paulo:
Saraiva, 2001;
206
105
3.4.3) Das Vedações (CF/88, Art. 128, § 5º, II)
A Constituição Federal vigente, em seu artigo 128, § 5º, II, impõem as seguintes
vedações aos membros do Ministério Público, inclusive do Ministério Público especial
que atua junto aos Tribunais de Contas (CF/88, art.130): a) receber, a qualquer título e
sob qualquer pretexto, honorários, percentagens ou custas processuais; b) exercer a
advocacia; c) participar de sociedade comercial, na forma da lei; d) exercer, ainda que
em disponibilidade, qualquer outra função pública, salvo uma de magistério; e) exercer
atividade político-partidária, salvo exceções previstas na lei.
Essas vedações constituem um complemento das garantias da Instituição e dos
membros, para que se tenha efetivamente um órgão apto a exercer com independência e
imparcialidade suas atividades.
3.5) AS FUNÇÕES INSTITUCIONAIS DO MINISTÉRIO PÚBLICO
O artigo 129 estabelece, em sede constitucional e em rol exemplificativo, quais
são as funções institucionais do Ministério Público.
Dentre essas funções institucionais, destaca-se a promoção privativa da ação
penal pública (CF/88, Art 129, I). Isso significa que, seja a ação penal pública
condicionada ou incondicionada, caberá ao Ministério Público oferecer a denúncia.
Isso não quer dizer que seja ele obrigado a pedir uma condenação, visão que até
hoje vulgarmente se tem do Promotor. A Constituição vigente inclusive mudou a
nomenclatura de Promotor Público para Promotor de Justiça.
Se num determinado caso se perceber que o réu é inocente ou milita ao seu favor
alguma exclusão da punibilidade, deve o Ministério Público, para que efetivamente se
promova a Justiça, pedir a absolvição do réu ou que se aplique o benefício legal. Afinal
de contas, não é do interesse público a condenação de um inocente, ou que alguém fique
preso por tempo superior ao que de fato merece.
106
O que se exige do Promotor de Justiça é que, existindo indícios suficientes que
tornem viável uma condenação, ofereça a ação penal pública, eis que essa é uma
iniciativa privativa e indisponível.
A única exceção em que se admite o exercício do direito de ação pelo particular,
relativamente à questão que necessitaria de ação penal pública, é a prevista no art. 5º,
LIX da Constituição Federal, que admite ação privada nos crimes de ação pública, se
esta não for intentada no prazo legal.
Note-se que, mesmo nessa hipótese, o que se exercitará é a ação penal privada,
que substituirá a pública e que somente será admitida em caso de inércia do Ministério
Público.
Esta inércia não significa a negativa de ofertar denúncia, mas sim que nenhuma
providência foi tomada pelo Ministério Público, apesar de ter a obrigação de agir.
Assim, caso seja requerido o arquivamento, não caberá ação privada substitutiva da
pública.
Ademais, mesmo proposta esta, caberá ao Ministério Público aditar a queixa,
repudia-la e oferecer denúncia substitutiva, intervir em todos os termos do processo,
fornecer elementos de prova, interpor recurso e, a todo tempo, no caso de negligência
do querelante, retomar a ação como parte principal (CPP, art. 29).
Sempre que presentes os requisitos legais, o Ministério Público tem obrigação
de denunciar, ou seja, impera o princípio da indisponibilidade, uma vez que há interesse
público na apuração e punição do fato delituoso.
Outra função institucional atribuída constitucionalmente ao Ministério Público e
o zelo pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública
aos direitos assegurados na Constituição Federal, promovendo as medidas necessárias a
sua garantia (CF/88, Art. 129, II).
Não só para zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos, mas para todas as
atividades que lhe incumbe, poderá o Ministério Público se valer dos instrumentos de
que possui, tal como requisitar diligências investigatórias e instaurar de inquérito
policial, indicando os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais (CF/88,
107
art. 129, VIII), denunciar, fazer acordos com validade de título judicial, e, na forma da
lei complementar, expedir notificações nos procedimentos administrativos de sua
competência, requisitando informações e documentos para instruí-los (CF/88, art. 129,
VI) e etc.
Também cabe ao Ministério Público a promoção do inquérito civil e da ação
civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de
outros interesses difusos e coletivos (CF/88, art. 129, III).
A
expressão
“e
de
outros
interesses
difusos
e
coletivos”
amplia
significativamente o alcance da Ação Civil Pública. Alguns exemplos que podem
ilustrar a amplitude desta ação, tais como: a - ação de dissolução de sociedade civil que
promove atividades ilícitas ou imorais (Código de Processo Civil de 1939, art. 670, ex
vi do art. 1.218, VII, do atual estatuto processual civil); b – ação para superveniente
decretação de inelegibilidade (Código Eleitoral, art. 237) ; c – instauração de dissídio
coletivo, sempre que ocorrer suspensão do trabalho (CLT, art. 856 e arts. 23 e 11 da Lei
nº 4.330/64); d – ação de responsabilidade civil por danos ao meio ambiente (Lei nº
6.938/82, art. 14, § 1º) e etc.
O Ministério Público também deve propor ação de inconstitucionalidade ou
representação para fins de intervenção da União e dos Estados, nos casos previstos na
Constituição Federal (art. 129, IV).
Esta, aliás, configura uma das principais funções institucionais, pois se lhe cabe
a defesa da Ordem Jurídica, com maior razão da Constituição Federal e Estadual.
Embora pouco falada, a defesa judicial dos direitos e interesses das populações
indígenas também é função ministerial (CF/88, art. 129, V).
Não se trata de defesa do “índio”, individualmente considerado, mas sim das
populações indígenas, tal como a preservação das áreas que lhes são destinas, o respeito
a cultura indígena (CF/88, art. 125, § 1º), e etc..
108
Os índios, suas comunidades e organizações também possuem legitimidade para
ingressarem em juízo em defesa de seus direitos e interesses, cabendo ao Ministério
Público intervir em todos os atos do processo (CF/88, art. 232).207
Outra atribuição ministerial é o controle externo da atividade policial, que requer
disciplina por lei complementar (CF/88, art. 129, VII).
Afora esses casos específicos, existem outras tantas atividades que a Lei pode
lhe conferir, desde que compatíveis com sua finalidade (CF/88, art. 129, IX).
3.6) DO MINISTÉRIO PÚBLICO
QUE ATUA JUNTO AO
TRIBUNAL
DE
CONTAS
Oportuno ressaltar a existência de um Ministério Público que atua junto ao
Tribunal de Contas da União (art. 73, § 2.º, I, da CF), regido por lei ordinária de
iniciativa do próprio Tribunal de Contas da União e não por lei complementar de
iniciativa do Procurador Geral da República, embora seus membros (inclusive um
procurador geral próprio) estejam sujeitos aos mesmos direitos, vedações e forma de
investidura impostos aos demais integrantes do Ministério Público em geral (art. 130 da
CF).
Em decisão proferida na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 798-1/DF, cujo
Relator foi o Min. CELSO DE MELLO, a Excelsa Corte entendeu, à unanimidade, que o
Ministério Público que atua junto ao Tribunal de Contas da União é Instituição que não
integra o Ministério Público da União, entendendo ainda ser lícita a vinculação
administrativa desse Ministério Público ao próprio Tribunal de Contas da União, verbis:
“(...) O Ministério Público que atua perante o TCU qualifica-se como
órgão de extração constitucional, eis que a sua existência jurídica
resulta de expressa previsão normativa constante da Carta Política
(art. 73, § 2º, I e art. 130), sendo indiferente, para efeito de sua
configuração jurídico-constitucional, a circunstância de não constar do
rol taxativo inscrito no art. 128, I, da Constituição Federal, que define
a estrutura orgânica do Ministério Público da União. O Ministério
207
O “Título VIII – Da Ordem Social”, “Capítulo VIII – Dos Índios”, da Constituição vigente, assegura
aos índios uma série de direitos, sem excluir outros tantos consagrados infraconstitucionalmente.
109
Público junto ao TCU não dispõe de fisionomia institucional própria
e, não obstante as expressivas garantias de ordem subjetiva
concedidas aos seus Procuradores pela própria Constituição (art. 130),
encontra-se consolidado na intimidade estrutural dessa Corte de
Contas, que se acha investida – até mesmo em função do poder de
autogoverno que lhe confere a Carta Política (art. 73, caput, in fine) –
da prerrogativa de fazer instaurar o processo legislativo concernente à
sua organização, à sua estruturação interna, à definição do seu quadro
208
de pessoal e à criação dos cargos respectivos”
Assim, o Supremo Tribunal Federal reconheceu o poder de auto-organização do
Tribunal de Contas da União e a constitucionalidade da Lei n. 8.443/92, que dispõe
sobre a sua organização e composição.
Pela importância do tema, bem como pela forma didática em que foi exposto,
vale transcrever as palavras do Min. CELSO DE MELLO proferidas no voto-condutor do
julgamento da ADI nº. 789-1/DF, que sintetiza as questões a respeito da natureza
jurídica do Ministério Público que atua junto ao Tribunal de Contas da União:
“(...) a matéria é controvertida na doutrina, que se divide entre aqueles
que vêem no Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União
uma instituição autônoma, independente do Ministério Público
federal (Jorge Ulisses Jacoby Fernandes, “Ministério Público junto
aos Tribunais de Contas”, in Caderno de Direito e Justiça do Correio
Braziliense, exemplar de 14/09/92), e aqueles, como Hugo Nigro
Mazzilli (“O Ministério Público no Tribunal de Contas” in RT
650/40), que o consideram órgão integrante do Ministério Público da
União.
(...) o Ministério Público junto ao TCU, desde os primórdios da
República, quando ainda se ensaiava o seu processo de
institucionalização no direito positivo brasileiro, revelou-se peça
essencial no desempenho das atividades fiscalizadoras e de controle
atribuídas a essa alta Corte de Contas
(...) a mera previsão constitucional da existência de um
Ministério Público especial junto ao Tribunal de Contas não basta,
contudo, para conferir-lhe as mesmas prerrogativas jurídicas que
inerem, no plano institucional, ao Ministério Público da União e dos
Estados-membros.
Tenho para mim que concorre para esse entendimento o
próprio conteúdo da norma inscrita no art. 130 da Constituição, que
assim dispõe:
‘Aos membros do Ministério Público junto aos Tribunais de
Contas aplicam-se as disposições desta Seção pertinentes a
direitos, vedações e forma de investidura.’
O exame desse preceito normativo permite nele divisar, desde logo, a
existência de cláusulas de garantia de ordem meramente subjetiva,
desprovidas de conteúdo orgânico-institucional, e vocacionadas, no
âmbito de sua destinação tutelar, a proteger os integrantes do
208
STF – Pleno – ADI nº. 798-1/DF – Rel. Min. Celso de Mello, publicado no Diario da Justiça, Seção I,
19 dezembro 1994.
110
Ministério Público – e a estes, somente – no relevante desempenho de
suas funções junto aos Tribunais de Contas.
Essas garantias, na realidade, visam a conferir, no âmbito das relações
que se estabelecem entre esses agentes estatais e a instituição perante
a qual atuam, um estatuto jurídico especial destinado a assegurar a
independência (CF, art. 128, § 5º, I), a preservar a imparcialidade (CF,
art. 128, § II) e a conferir vantagens específicas de carreira (CF, art.
129, §§ 3º e 4 º) em favor dos membros do Ministério Público junto
aos Tribunais de Contas, impondo-lhes, para efeito de ingresso nessa
instituição, a prévia aprovação em concurso público de provas e
títulos, com a necessária participação da OAB.
Tendo presente o conteúdo normativo desse preceito constitucional,
torna-se bastante evidente que não se pode com fundamento nele,
sustentar que o Ministério Público junto aos Tribunais de Contas
configure, não obstante a sua indiscutível realidade constitucional, um
organismo revestido de perfil constitucional próprio, dotado de plena
autonomia jurídica e investido das mesmas garantias de ordem
subjetiva que foram outorgadas pela ordem constitucional ao
Ministério Público da União e dos Estados-membros.
Refiro-me, no contexto das garantias institucionais reconhecidas ao
Ministério Público comum, à autonomia administrativa (CF, art. 127,
§ 2º, 1ª parte), à autonomia orçamentária, nesta incluída a de caráter
financeiro (CF, art. 127, § 3º) e à prerrogativa de fazer iniciar, por
direito próprio, o processo de formação das leis concernentes tanto à
criação e à extinção de seus cargos e serviços auxiliares (CF, art. 127,
§ 2º, 2ª parte) quanto à definição de sua estrutura organizacional, de
suas atribuições e do seu próprio estatuto jurídico (CF, art. 128, § 5º).
(...) Não obstante o elevado grau de autonomia funcional conferido
aos membros desse Ministério Público especial, torna-se imperioso
reconhecer que essa circunstância, por si só, não se revela suficiente
para identificar, nesse órgão estatal, o atributo da autonomia
institucional, nos termos, na extensão e com o conteúdo que a
Constituição outorgou ao Ministério Público comum.
Sendo assim, considero que o Ministério Público especial de que trata
a Lei n. 8.443/92 (...) integra a própria organização administrativa do
Tribunal de Contas da União, ainda que privilegiado pro regime
jurídico especial, sob pena de qualificar-se, na medida em que é
totalmente alheio à estruturação orgânica do Ministério Público da
União, como corpo destituído de qualquer referência ou vinculação de
ordem institucional.
(...) A Constituição da República, ao não estender a esse Ministério
Público especial a prerrogativa de iniciar o processo de formação das
leis (CF, art. 61, caput) – e achando-se ele estruturado,
administrativamente, na ambiência do TCU – permitiu que essa Corte
de Contas, no desempenho autônomo dos seus poderes, viesse a
incluí-lo na proposição legislativa concernente à sua própria
organização e estruturação internas.
Entendo, na realidade, Sr. Presidente, que o preceito consubstanciado
no art. 130 da Constituição reflete uma solução de compromisso
adotada pelo legislador constituinte brasileiro que, tendo presente um
quadro de alternativas institucionais (outorga ao Ministério Público
comum das funções de atuação perante os Tribunais de Contas ou
criação de um Ministério Público especial autônomo para atuar junto
às Cortes de Contas), optou, claramente, a meu juízo, por uma posição
intermediária, consistente na atribuição, a agentes estatais
111
qualificados, de um status jurídico especial, ensejando-lhes, com o
reconhecimento das já mencionadas garantias de ordem meramente
subjetiva, a possibilidade de atuação funcional independente, sem que
essa peculiaridade, contudo, importasse em correspondente outorga de
autonomia institucional ao órgão a que pertencem.
Considero, pois, que a norma constitucional em questão só tem por
destinatários os agentes públicos nela referidos. Trata-se, como já
pude salientar, de norma de extensão cuja natureza permite nela
vislumbrar, tão-somente, um instrumento pelo qual o Estado buscou
conferir, a quem ordinariamente não as possuía, as garantias
próprias dos membros do Ministério Público da União e dos Estadosmembros.
Estivesse esse Ministério Público incorporado ao próprio Ministério
Público da União, tornar-se-ia de todo dispensável a utilização, pelo
legislador constituinte, da norma de extensão mencionada, eis que os
membros dessa instituição, precisamente por já se acharem a ela
vinculados, titularizariam, por direito próprio, sem necessidade de
expresso comando constitucional, as diversas situações subjetivas de
vantagem que se revelam inerentes aos integrantes do Ministério
Público comum, por efeito do que já dispõe a própria Constituição.
Na realidade, com essa norma de extensão inscrita no art. 130 da
Carta Política, pretendeu o legislador constituinte atribuir a quem dele
normalmente não seria destinatário o complexo de normas pertinentes
aos direitos e vedações peculiares aos membros do Ministério Público
da União e dos Estados e referentes, ainda, à forma de investidura no
cargo exercido.
Disso tudo, Senhor Presidente, parece evidente que o legislador
constituinte, ao referir-se, no art. 130 da Carta Política, aos membros
do Ministério Público junto aos tribunais de Contas, quis, na
realidade, disvinculá-los do âmbito do Ministério Público comum,
razão pela qual – como pude enfatizar – não se justifica o
entendimento, meramente adstrito à literalidade do texto
constitucional, de que a falta de referência a esse Ministério Público
especial no art. 128 da Constituição teria o sentido de sumária recusa
normativa de sua própria existência.
O próprio conteúdo da regra inscrita no art. 130 da Constituição
configura diretriz nitidamente indicativa de que o Ministério Público
especial junto ao TCU não compõe o Ministério Público da União,
pois, a não ser por um dispensável exercício de superfetação
constitucional, nada justificaria a extensão ordenada pela norma em
causa.
Daí, os fundamentos em que se apoiou o voto do em. Min. Sepúlveda
Pertence, Relator, que, ao indeferi medida liminar na ADIN 263-RO,
observou:
‘(...) se compusessem o quadro do próprio Ministério Público
comum, não seria necessário prescrevesse o art. 130 CF, ao fim
das disposições alusivas à instituição, que ‘aos membros do
Ministério Público junto aos Tribunais de Contas aplicam-se as
disposições desta seção pertinentes a direitos, vedações e forma
de investidura’’
(...) Com efeito, o preceito constitucional mencionado [relativamente
aos membros desse Ministério Público especial] (...) distinguindo-os
dentro do universo do funcionalismo público, atribuiu-lhes os
predicamentos da vitaliciedade, da inamovibilidade e da
irredutibilidade de vencimentos.
112
(...) Ainda que designado sob esse nomen juris – Ministério Público
junto ao Tribunal de Contas da União -, é preciso enfatizar que os
membros que o compõem vinculam-se à estrutura administrativa
dessa Corte de Contas e qualificam-se, embora submetidos a um
especial regime jurídico, como servidores integrantes do próprio
Quadro de Pessoal desse Tribunal, não obstante haja autores – como
Carlos Ayres Britto – que sustentem a vinculação desse Ministério
Público especial à estrutura constitucional do Poder Legislativo (RDP
69/324).
(...) Na realidade, as prescrições constantes do art. 127, § 2º, da
Constituição – que só dizem respeito ao Ministério Público referido
no art. 128 do texto constitucional (...)
A cláusula veiculadora da exigência de lei complementar, que se acha
consubstanciada no art. 128, § 5º, da Constituição, tem a sua
aplicabilidade limitada, no plano federal, ao universo dos diversos
Ministérios Públicos que compõem o Ministério Público da União. A
condição institucional que qualifica o Ministério Público especial que
oficia perante o Tribunal de Contas da União revela-se, contudo (...)
fator de sua exclusão do âmbito da estrutura organizacional do
Ministério Público da União (...)”209 (grifos no original).
A
Suprema
Corte,
no
julgamento
liminar
da
Ação
Direta
de
Inconstitucionalidade nº 1545-1/SE e com fundamento no Princípio da Simetria,
também se posicionou no sentido de que o modelo federal do Ministério Público que
atua junto ao Tribunal de Contas da União deverá ser seguido pelos Estados-Membros,
em relação aos seus respectivos Tribunais de Contas.210
Na inicial desse julgamento, argumentou-se que há uma necessária simetria
entre a composição do Tribunal de Contas da União e a dos Tribunais de Contas dos
Estados, nos termos do art. 75 da Constituição Federal. Invocou-se, igualmente, o art.
130, também da Carta Política, que prevê, segundo o requerente, “necessária existência
de um Ministério Público especializado perante aquele órgão não jurisdicional, diverso
do Ministério Público comum”.211
Esses argumentos foram aceitos, ficando assentado, à unanimidade, que, nos
termos da Ação Direta nº 789, não pode o Ministério Público estadual comum absorver
as funções correlatas exercidas perante o Tribunal de Contas.
209
STF – Pleno – ADI nº. 798-1/DF – Rel. Min. Celso de Mello, publicado no Diario da Justiça, Seção I,
19 dezembro 1994
210
STF – Pleno – ADI nº. 1545-1/SE – Rel. Min. Octávio Gallotti, publicado no Diario da Justiça, Seção
I, de 24.10.1997
211
Idem, ibidem.
113
ALEXANDRE DE MORAES não concorda com a aplicação do modelo federal para
os Tribunais de Contas dos Estados, ao afirmar:
“(...) Discordamos do posicionamento adotado pelo Supremo Tribunal
Federal, em sede liminar, em relação aos Ministérios Públicos que
devem atuar junto aos Tribunais de Contas Estaduais, uma vez que a
Constituição Federal somente consagra em nível estadual um único
Ministério Público, uno e indivisível, e, diferentemente do previsto no
art. 73, § 2º, I, da CF em relação ao Tribunal de Contas da União, a
Carta Maior não faz menção à existência de um Ministério Público
junto aos Tribunais de Contas dos Estados.
Dessa forma, cada um dos Estados-membros, no exercício de seu
poder constituinte derivado decorrente – caracterizador da existência,
autonomia e manutenção de uma Federação – deverá estabelecer em
sua Constituição Estadual a configuração jurídico institucional do
Ministério Público que atuará perante o Tribunal de Contas do Estado
e do Município, quando existir”.212
Para esse autor, portanto, a exemplo do decidido pelo Supremo Tribunal Federal
relativamente à esfera federal, o Ministério Público que atua junto ao Tribunal de
Contas da União não possui qualquer vínculo com o Ministério Público da União, sendo
que sua configuração jurídico-institucional o indica como órgão ligado ao próprio
Tribunal de Contas da União.
Entretanto, relativamente à observância do Princípio da Simetria, entende
MORAES que, por ausência de previsão constitucional, o modelo federal não tem
necessariamente que ser seguido pelos Estados, de tal forma que seria lícito reconhecer
a possibilidade do “Estado-membro disciplinar em sua Constituição estadual qual
Ministério Público atuará perante o Tribunal de Contas do Estado”.213
Em suma, para o Supremo Tribunal Federal, os membros do Ministério Público
que atuam junto aos Tribunais de Contas da União, dos Estados e dos Municípios,
apesar de possuírem os mesmos direitos, vedações e forma de investidura dos membros
dos Ministérios Públicos comuns, previstos no art. 128 da CF/88, a estes não
pertencem.214
212
MORAES, Alexandre de, op. cit., p. 517
Idem, ibidem.
214
Daí a relevância da argüição de inconstitucionalidade proposta pelo Procurador-Geral da República, na
ADI 1545-1/SE, que questionou o art. 26 da Lei Complementar sergipana nº 4-90, que implicava o
funcionamento, junto ao Tribunal de Contas, de órgão do Ministério Público comum, bem como,
especificamente quanto a forma de investidura, perante o art. 37, II, também da Carta da República, do
art. 83 daquele diploma sergipano, que autorizava a transposição, para cargos de Procurador de Justiça, os
213
114
Ademais, embora constitua instituição própria, de feição constitucional, este
Ministério Público especial está ligado ao respectivo Tribunal de Contas onde atuam
seus
membros,
de
tal
forma
que,
a
exemplo
de
muitas
argüições
de
inconstitucionalidades propostas na Suprema Corte, é inválida a designação de
membros de quaisquer Ministérios Públicos comuns para atuarem junto a Tribunais de
Contas.215
3.7) O MINISTÉRIO PÚBLICO
E OS
ELEMENTOS FUNDAMENTAIS
DA
SEPARAÇÃO DE PODERES
No “Capítulo II” desta monografia, foi visto que há dois elementos fundamentais
que caracterizam a separação de poderes, quais sejam, a especialização funcional e a
independência orgânica.
ocupantes dos de Procurador da Fazenda Pública junto ao Tribunal de Contas. STF – Pleno – ADI nº.
1545-1/SE – Rel. Min. Octávio Gallotti, publicado no Diario da Justiça, Seção I, de 24.10.1997
215 ADIMC nº 2068/MG, Relator Min. MARCO AURÉLIO, julgado em 15/12/1999 pelo Tribunal
Pleno, publicado no Diário de Justiça de 25/02/2000, onde assentou: “Ementa. MINISTÉRIO PÚBLICO TRIBUNAL DE CONTAS. A teor do disposto no artigo 130 da Constituição Federal, o Ministério
Público junto ao Tribunal de Contas consubstancia quadro diverso do Ministério Público comum. Daí a
suspensão, no artigo 124 da Constituição do Estado de Minas Gerais - no que preceitua que "o Ministério
Público junto ao Tribunal de Contas e do Tribunal de Justiça Militar será exercido por Procurador de
Justiça integrante do Ministério Público Estadual" - da expressão "... junto ao Tribunal de Contas e ...",
isso ante a relevância do pedido formulado, bem como em face do precedente revelado na apreciação de
medida acauteladora na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.545/SE, relatada pelo Ministro Octavio
Gallotti, com acórdão publicado no Diário da Justiça de 24 de outubro de 1997. Votação: Unânime”;
ADIMC Nº 2378/GO, Relator Min. MAURÍCIO CORRÊA, julgado em 22/03/2001 pelo Tribunal Pleno,
publicado no DJ de 05.04.2002, que assim decidiu: “EMENTA: MINISTÉRIO PÚBLICO JUNTO AO
TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DE GOIÁS. EC Nº 23/98. INCONSTITUCIONALIDADE. 1.
Esta Corte já firmou orientação no sentido de que o Ministério Público que atua junto aos Tribunais de
Contas não dispõe de fisionomia institucional própria (ADI 789, CELSO DE MELLO, DJ de 19.12.94).
2. As expressões contidas no ato legislativo estadual que estendem ao Ministério Público junto ao
Tribunal de Contas do Estado as prerrogativas do Ministério Público comum, sobretudo as relativas "à
autonomia administrativa e financeira, à escolha, nomeação e destituição de seu titular e à iniciativa de
sua lei de organização" são inconstitucionais, visto que incompatíveis com a regra do artigo 130 da
Constituição Federal. 3. Disposição reintroduzida na Constituição do Estado de Goiás pela EC nº 23, de 9
de dezembro de 1998, malgrado o seu teor já houvesse sido declarado inconstitucional pelo STF (ADIMC
1.858, Ilmar Galvão, j. na Sessão de 16.12.98). Medida cautelar deferida. Votação por maioria, vencido o
Min. Marco Aurélio; No mesmo sentido: ADI 1791 MC/PE, Relator(a) Min. SYDNEY SANCHES,
julgado em 23/04/1998 pelo Tribunal Pleno e Publicado no DJ de 11.09; ADI 1791/PE, Min. SYDNEY
SANCHES, julgado em 23.11.2000 pelo Tribunal Pleno e publicado no DJ de 23.02.2001; ADI 160/TO,
Relator Min. OCTAVIO GALLOTTI, julgado em 23/04/1998 pelo Tribunal Pleno e publicado no DJ de
20.11.1998
115
Como, segundo esse critério, a ausência de quaisquer desses elementos impede
que se qualifique o Ministério Público como um Poder do Estado, necessário se faz
verificar a natureza das funções desempenhadas tanto pelo Ministério Público comum,
quanto pelo Ministério Público especial (CF/88, art. 130), bem como se esses órgãos
são efetivamente “independentes dos outros, o que postula ausência de meios de
subordinação”.216
3.7.1) O Ministério Público possui Especialização Funcional?
Pela lição antes expendida por JOSÉ AFONSO
DA
SILVA, verificou-se que a
especialização funcional significa que cada órgão é especializado no exercício de uma
função.217
Hoje, bem longe da fórmula defendida por MONTESQUIEU, que propugnava uma
divisão rígida das funções estatais, utiliza-se o critério de preponderância.
Assim, para se verificar se o Ministério Público possui especialização no
exercício de suas funções, deve-se analisar, num primeiro momento, se suas funções
institucionais típicas possuem natureza diversa da que desempenha outro “Poder”.
Ao assim proceder, o que se constata é que não só suas funções institucionais,
como de resto todas as que se ligam à sua finalidade de defesa da Ordem Jurídica, do
Regime Democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, possuem,
tipicamente, natureza executiva, à semelhança das atividades desenvolvidas pelo Poder
Executivo.
De fato, a natureza executiva da atividade desenvolvida pelo Ministério Público
está sobejamente caracterizada. Podem ser citadas, por exemplo, as atividades descritas
na Lei de Execuções Penais218, especialmente em seus arts. 67 e 68219, no Estatuto da
216
SILVA, José Afonso da., op. cit., p. 113.
SILVA, José Afonso da., op. cit., p. 113.
218
MESQUITA JÚNIOR, Sídio Rosa de Mesquita. Manual de Execução Penal. 2ª edição. São Paulo:
Atlas, 2002, p.141 e 142.
219
Lei 7.210/84. “Art. 67. O Ministério Público fiscalizará a execução da pena e da medida de segurança,
oficiando no processo executivo e nos incidentes da execução. Art. 68. Imcumbe, ainda, ao Ministério
Público. I – fiscalizar a regularidade formal das guias de reconhimento e de internamento; II – requerer:
217
116
Criança e do Adolescente (art. 126, 129, 148, 153, 160, 162, 167, 174, 175, 179, 181,
182, 194, 201 e ss., entre outros tantos) ou na Lei de Improbidade Administrativa (Lei
8.429/92, arts. 15, 16, 17, 22 e etc.).
Nem mesmo a supressão da representação judicial e a consultoria jurídica de
entidades públicas (CF/88, art. 129, IX) alteram essa natureza, pois, em essência,
embora não esteja defendendo interesses das entidades públicas, pratica atos da mesma
natureza quando, por exemplo, realiza a defesa judicial das populações indígenas,
propõe ação de inconstitucionalidade ou promove a Ação Civil Pública.
No dizer de JOSÉ CRETELLA JR., o membro do Ministério Público, ao propor a
ação penal pública, por exemplo, “ordena, postula, litiga, promove, impetra”, pois é ele
o titular do direito de agir.220
O ponto de toque da questão é não fazer confusão entre a atividade
desempenhada pelo Ministério Público com a finalidade que se quer alcançar com essa
atividade.
Com efeito, a atividade praticada em juízo (ao se propor uma ação, oferecer
alegações, requisitar provas, defender interesses, contestar, recorrer e etc.) possui a
mesma natureza tanto quando se tem por fim defender o meio ambiente, as populações
indígenas, a probidade administrativa, quando se visa a defesa de interesses das
entidades públicas.
A atividade é a mesma, o que se altera é apenas a finalidade, que no primeiro
caso é a defesa do interesse difuso e, no segundo, da entidade pública especificamente.
Ou seja, será proposta uma ação ou oferecida uma resposta (contestação, reconvenção,
exceção), serão feitas alegações, haverá produção de provas... enfim, serão
desempenhadas atividades processuais, seja na defesa do meio ambiente ou das
populações indígenas, seja quando se está defendendo interesses de entidades públicas.
a) todas as providências necessárias ao desenvolvimento do processo executivo; b) a instauração dos
incidentes de excesso ou desvio de execução; c) a aplicação de medida de segurança, bem como a
substituição da pena por medida de segurança; d) a revogação da medida de segurança; e) a conversão de
penas, a progressão ou regressão nos regimes e a revogação da suspensão condicional da pena e do
livramento condicional; f) a internação, a desinternação e o restabelecimento da situação anterior; III –
interpor recursos de decisões proferidas pela autoridade judiciária, durante execução. Parágrafo único. O
órgão do Ministério Público visitará mensalmente os estabelecimentos penais, registrando a sua presença
em livro próprio.”
220
CRETELLA JR., José, op. cit., p. 3320
117
Aliás, ao se defender as entidades públicas, a rigor, defende-se, mesmo que
indiretamente, o interesse público, de tal forma que, neste caso específico, até mesmo
sob o aspecto da finalidade do ato, há uma certa semelhança quanto à natureza.
Acentua-se ainda mais a natureza executiva quando se trata das atividades
extraprocessuais do Ministério Público, tanto que a Constituição fala, em uma dessas
atividades, em expedição de notificações em “procedimentos administrativos” (CF/88,
art. 129, VI).
Mais do que isso, a própria descrição da atividade de “expedir notificações”,
“requisitar informações e documentos”, “exercer controle externo”, “requisitar
diligências”, “requisitar instauração de inquérito”, “promover a ação”, “promover o
inquérito”, “zelar”, “defender judicialmente” e etc., constantes do art. 129 da
Constituição Federal, bem indicam a natureza de quem está praticando atos executórios.
Ressalte-se a dicção ainda mais incisiva do art. 257 do Código de Processo
Penal, ao se dizer que o Ministério Público promoverá e fiscalizará a execução da lei.
A doutrina, em sua grande maioria, reconhece a natureza executiva das
atividades típicas do Ministério Público.
Veja-se a respeito MANUEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, ao dizer que, se for
correto, como parece ser, o conceito clássico de Ministério Público, como órgão
incumbido da defesa do interesse geral em que sejam cumpridas as leis, ressalta à vista
que sua função se insere entre as do Poder Executivo.221
As atividades básicas do Ministério Público consistem, portanto, em cumprir e
fazer cumprir as leis, norteadas pelo interesse público de que não pode dispor, à
exemplo do que ocorre com toda atividade administrativa222, sendo que essas funções
possuem nítida natureza executiva e que, de resto, não lhe confere especialização
funcional.
Com relação ao Ministério Público especial, também suas atividades são de
natureza executiva, pois ao auxiliar as atividades fiscalizadoras e de controle atribuídas
221
222
FERREIRA FILHO, Manuel Gonçalves, op. cit., p. 268.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de, op. cit., p. 27.
118
ao Tribunal de Contas, também postula, requer, apresenta provas, investiga, dar
pareceres, entre outras atividades semelhantes.223
3.7.2) O Ministério Público possui Independência Orgânica?
A independência orgânica, para efeitos de divisão das funções do Poder Político,
consiste na ausência de subordinação de um órgão em relação ao outro.
Conforme analisado nos itens anteriores, constatou-se que o Ministério Público
comum (de que são espécies os constantes no art. 128 da CF/88), norteia suas atividades
de acordo com os princípios institucionais da unidade, indivisibilidade, independência
funcional e do promotor natural, possui ainda, enquanto Instituição, autonomias
funcional, administrativa e financeira (CF/88, art. 127, § 2º e 3º; Lei Complementar nº
75/93, arts. 22 e 23; Lei Orgânica Nacional do Ministério Público dos Estados, arts. 3º e
4º).
Por outro lado, assegurou-se aos membros do Ministério Público as garantias da
vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídio.
Todos esses princípios e garantias demonstram de modo inequívoco que a
Constituição conferiu independência orgânica ao Ministério Público comum.
Isso significa que não está ele subordinado a nenhum outro órgão.
Aliás, a Constituição Federal vigente, em seu art. 85, II, realça essa
independência orgânica, ao prever como crime de responsabilidade do Presidente da
República os atos que atentem contra o Ministério Público, in verbis:
“CF/88. Art. 85. São crimes de responsabilidade os atos do Presidente
da República que atentem contra a Constituição Federal e,
especialmente, contra: (...) II – o livre exercício do Poder Legislativo,
do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes
constitucionais das unidades da Federação.”
223
STF – Pleno, ADI nº 798-1/DF – Rel. Min. Celso de Mello, publicado no Diário de Justiça, Seção I, de
19 de dezembro de 1994.
119
Ao colocar o Ministério Público ao lado dos Poderes do Estado, alguns autores
consideram que esse seria um fundamento para sustentar que o Ministério Público seria
um “Quarto Poder”.
Para outros, todavia, o que ocorre é justamente o contrário, no sentido de que
quando a Constituição Federal se refere ao Legislativo e ao Judiciário (ou até às
unidades da Federação), utiliza expressamente os termos “Poder” ou “Poderes”, exceto
em relação ao Ministério Público, o que indicaria não ser ele Poder do Estado, pois, se
fosse essa a vontade Constituição, o teria qualificado de Poder Ministerial ou algo
semelhante.224
Acontece o fato de ser o Ministério Público órgão independente, não o exime de
sujeitar-se ao crivo do Judiciário, em caso de ilegalidades. O que não se permite é uma
ingerência por parte do Poder Executivo.
Daí o Texto Constitucional expressamente indicar que os atos do Presidente da
República que atentem contra o
Ministério Público constituem crime de
responsabilidade.
No dizer de JOSÉ JESUS CAZETTA JÚNIOR, a autonomia da Instituição e
independência funcional de seus membros impõem certos limites externos ao controle
hierárquico, ou seja, óbices a que seja feito um controle externo, que se manifestam de
tal forma que chegam a
“(...) eliminar a ingerência do Poder Executivo na administração e no
funcionamento do Ministério Público, ao qual – além da ampla
liberdade para determinar, concretamente, o modo e a intensidade de
sua atuação em procedimentos e processos – competem,
privativamente, os poderes infralegais para os atos próprios de
expediente e gestão, notadamente do patrimônio estatal destinado ao
seu uso, incumbindo-lhe ainda, com exclusividade, as decisões
administrativas a respeito dos integrantes de seus quadros.
Aliás, em clara demonstração da importância que atribui à autonomia
da Instituição, a Constituição Federal considera crime de
224
Nota-se que a Constituição não previu, no artigo sob comento, que constitui crime de responsabilidade
os atos contra o Poder Executivo e, se assim não fez, foi porque o Presidente da República, enquanto
chefe do Poder Executivo, encontra-se no mais alto grau de hierarquia desse Poder.
120
responsabilidade qualquer ato do Presidente da República que atente
contra o livre exercício do Ministério Público (art. 85, II)”.225
Conforme estudado quando se tratou em específico da independência funcional
da Instituição, esta elimina qualquer ingerência na atividade ministerial, seja no âmbito
do próprio órgão, seja externamente.
A independência financeira ou, na visão de alguns, independência orçamentária,
permite que o Ministério Público tenha recursos sem que precise de “favores” de
nenhum Poder, estando apenas sujeito ao controle externo exercido pelo Tribunal de
Contas, o que de resto acontece com toda pessoa física ou jurídica que participa de
relação em que envolva verbas públicas.
Assim, está devidamente caracterizada a independência ou autonomia orgânica
do Ministério Público comum, justamente porque acumula, conjuntamente, a
autonomias funcional, administrativa e financeira, que, uma vez efetivadas, eliminam
qualquer possibilidade de subordinação.
Já em relação ao Ministério Publico especial, cujos membros atuam perante ao
Tribunal de Contas da União, a questão já se põe de modo diferente.
Com efeito, nos termos da decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI nº 7981/DF226, já se firmou que faz ele parte da estrutura do Tribunal de Contas, “cabendo a
este a prerrogativa de instaurar o processo legislativo concernente à sua organização, à
sua estruturação interna, à definição de seu quadro de pessoal e à criação dos cargos
respectivos” (CF/88, art. 73, caput, c/c art. 96).227
Decidiu-se, ainda, que as garantias descritas no art. 130 da Constituição Federal
tratam-se apenas de garantias de “ordem meramente subjetiva, desprovidas de conteúdo
orgânico-institucional, e vocacionadas, no âmbito de sua destinação tutelar, a proteger
225
CAZETTA JÚNIOR, José Jesus. Funções Institucionais do Ministério Público. A Independência
Funcional dos Membros do Ministério Público e a sua Tríplice Garantia Constitucional. São Paulo:
Saraiva, 2001, pp. .37 e 38;
226
Conferir o tópico destinado ao Ministério Público da União, onde consta boa parte do voto-condutor
do referido acórdão.
227
STF – Pleno, ADI nº 798-1/DF – Rel. Min. Celso de Mello, publicado no Diário de Justiça, Seção I, de
19 de dezembro de 1994.
121
os integrantes do Ministério Público – e a estes, somente – no relevante desempenho de
suas funções junto ao Tribunal de Contas”.228
Se ao Ministério Público comum reconheceu-se a autonomia administrativa,
orçamentária, nesta incluída a de caráter financeiro e a prerrogativa de fazer iniciar, por
direito próprio, o processo de formação das leis, relativo tanto à criação e à extinção de
seus cargos e serviços auxiliares (CF/88, art. 127, § 2º, 2ª parte), como à definição de
sua estrutura organizacional, de suas atribuições e do seu próprio estatuto jurídico
(CF/88, art. 128, § 5º), o mesmo não ocorreu em relação ao Ministério Público especial,
que teve apenas a garantia da autonomia funcional conferida aos seus membros (CF/88,
art. 130).229
Por esses motivos, o Supremo Tribunal Federal decidiu, à unanimidade, que as
garantias de ordem subjetivas dadas aos membros do Ministério Público especial se
revelam insuficientes para identificar neste o atributo de autonomia institucional, nos
termos, na extensão e com o conteúdo que a Constituição outorgou ao Ministério
Público comum. Firmou entendimento ainda no sentido de que o Ministério Público
especial vincula-se à estrutura administrativa da Corte de Contas e os seus membros
integram o próprio Quadro de Pessoal desse Tribunal.230
De fato, essas características não o apontam como órgão efetivamente
independente, mas sim subordinado, administrativa e financeiramente, ao Tribunal de
Constas da União.
Constata-se que o Ministério Público especial, diferentemente do Ministério
Público comum, não possui independência orgânica, muito embora seus membros
gozem de autonomia funcional.
228
Idem, ibidem.
Idem, ibidem.
230
Idem, ibidem.
229
122
123
CONCLUSÃO
Os fins da sociedade, de uma maneira global e moderna, se traduzem na
realização do bem comum. A função política é o conjunto de atividades que, ao menos
em tese, conduzem-na a este objetivo e requer, para seu exercício, um poder político
correlato, que é a potência ou força capaz de interferir nas relações sociais.
Com o surgimento do Estado Moderno o poder político tornou-se uno e
soberano, ou seja, capaz de sobrepor-se a todos poderes sociais.
MONTESQUIEU observou que, nos moldes das monarquias absolutas, a
concentração do poder político feria a liberdade do cidadão e propôs um sistema rígido
de distinção e separação das funções do Estado, atribuindo a órgãos diferentes
categorias de funções que guardavam entre si traços de uniformidade.
Suas idéias foram absorvidas pelos ideais revolucionários e integraram quase
todas constituições ocidentais.
Com o passar do tempo, abandonou-se gradativamente a fórmula rígida de
distinção e separação das funções estatais e passou-se a um critério de preponderância
no exercício delas. Identificou-se, todavia, como elementos indissociáveis da separação
de poderes, a especialização funcional e a independência orgânica.
Com o advento da Constituição Federal vigente, o Ministério Público ganhou
disciplina jamais vista no Mundo, fazendo com que alguns autores defendessem ser ele
um quarto Poder do Estado, notadamente pelo seu relevante papel na defesa da Ordem
Jurídica, do Regime Democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis
(CF/88, art. 127, caput).
Daí se propor como problema principal dessa pesquisa qual seria a natureza
jurídica do Ministério Público. Para tanto, foram testadas as seguintes hipóteses:
01) Se independência orgânica e especialização funcional são elementos
fundamentais do Poder, então o Ministério Público comum e o Ministério
Público especial constituem um Quarto Poder do Estado;
124
02) Se a natureza jurídica da atividade do Ministério Público comum é executiva,
então ele pertence ao Poder Executivo;
03) Se a natureza jurídica da atividade do Ministério Público especial, cujos
membros atuam perante o Tribunal de Contas (CF/88, art. 130) é executiva,
então ele pertence ao Poder Executivo;
04) Se o Ministério Público comum é instituição permanente e indispensável à
função jurisdicional do Estado (CF/88, Art. 127, caput), então a supressão ou
alteração das funções e garantias ministeriais fere o Princípio da Separação dos
Poderes;
05) Se a supressão ou alteração das funções constitucionais do Ministério Público
comum fere o Princípio da Separação de Poderes, então essas funções e
garantias constituem cláusulas pétreas;
06) Se o Ministério Público comum possui independência orgânica, então a questão
de seu posicionamento constitucional é meramente teórica, de poucos efeitos
dogmáticos-jurídicos;
07) Se o Ministério Público especial estabelece vínculos de subordinação com o
Tribunal de Contas onde oficiam seus membros, então ele se vincula à
respectiva Corte de Contas;
08) Se o Tribunal de Contas pertence ao Legislativo, então o Ministério Público
especial também faz parte do Poder Legislativo;
09) Se existe Tribunal de Contas Municipais, então existe o Ministério Público
especial municipal;
A hipótese nº 1 revelou-se falsa.231
Constatou-se que para que se considere um órgão ou conjunto de órgãos como
Poder do Estado, necessário se faz a conjugação de dois elementos: especialização
funcional e independência orgânica.
Sendo assim, o Ministério Público comum (pela ausência de especialização
funcional), e o Ministério Público especial (por faltar a especialização funcional e a
independência orgânica) não constituem um quarto Poder do Estado.
231
Hipótese nº 1. “Se independência orgânica e especialização funcional são elementos fundamentais do
Poder, então o Ministério Público comum e o Ministério Público especial constituem um Quarto Poder do
Estado”.
125
Faltou ao Ministério Público comum (CF/88, art. 127, caput) o elemento
especialização funcional já que a natureza das funções típicas desempenhadas por estes
órgãos são nitidamente executivas.
Parte da doutrina confunde a natureza da função desenvolvida pelo Ministério
Público com a sua finalidade e, por isso, qualificam o Ministério Público comum como
órgão vinculado à Justiça.232
Todavia, nem mesmo a supressão da representação judicial e a consultoria
jurídica de entidades públicas (CF/88, art. 129, IX) alteram a natureza executiva de suas
atividades, pois, em essência, embora não esteja defendendo interesses das entidades
públicas, pratica atos da mesma natureza quando, por exemplo, realiza a defesa judicial
das populações indígenas, propõe Ação de Inconstitucionalidade, promove a Ação Civil
Pública, dentre outras atividades por ele diuturnamente exercidas.
Suas atividades são de promoção e fiscalização da execução da lei (Código de
Processo Penal, art. 257), buscando sempre atingir e proteger o interesse público, de que
não pode dispor. Aliás, a busca do interesse público e a sua indisponibilidade são
verdadeiros axiomas da atividade executiva.
Outra não é a sorte em relação às suas atividades extraprocessuais, que são
basicamente de fiscalização, investigação, requisição de provas, expedição de
notificações e etc..
Em relação ao Ministério Público especial, faltou não só a especialização como
também a independência orgânica.
A ausência de especialização funcional está caracterizada pela natureza
executiva de suas atividades, ao emitir pareceres, provocar o Tribunal de Contas,
praticar investigações, enfim, auxiliar as atividades fiscalizadoras e de controle
atribuídas ao Tribunal de Contas.
232
Um dos que defendem pertencer o Ministério Público à Justiça é José Cretella Jr. (Cf. CRETELLA
JÚNIOR, José. Comentários à Constituição Brasileira de 1988. Vol. VI. 2ª edição. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1993, p. 3295 e ss.)
126
Falta-lhe,
por
sua vez,
independência orgânica,
porque subordina-se
administrativa e financeiramente à respectiva Corte de Contas onde atuam seus
membros.
De fato, há inclusive decisão do Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de
Inconstitucionalidade nº 798-1/DF, onde se firmou entendimento no sentido de que o
Ministério Público especial compõe a própria estrutura do Tribunal de Contas, cabendo
a este a prerrogativa de instaurar o processo legislativo concernente à sua organização, à
sua estruturação interna, à definição de seu quadro de pessoal e à criação dos cargos
respectivos” (CF/88, art. 73, caput, c/c art. 96).233
A Constituição Federal, em seu art. 130, conferiu aos membros do Ministério
Público que oficiam junto aos Tribunais de Contas – e não à Instituição – os direitos,
vedações e forma de investidura dada aos membros do Ministério Público comum.
Constata-se que essas garantias são de ordem meramente subjetiva, desprovidas
de conteúdo orgânico-institucional, e que existem apenas para o desempenho de suas
relevantes funções junto ao Tribunal de Contas.234
Assim, se ao Ministério Público comum reconheceu-se a autonomia
administrativa, funcional e orçamentária, nesta incluída a de caráter financeiro - o que
elimina qualquer vínculo de subordinação -, o mesmo não ocorreu em relação ao
Ministério Público especial, que teve apenas a garantia da autonomia funcional
conferida aos seus membros.235
Por esses motivos, o Supremo Tribunal Federal decidiu, à unanimidade, que as
garantias de ordem subjetivas dadas aos membros do Ministério Público especial se
revelam insuficientes para identificar neste o atributo de autonomia institucional, nos
termos, na extensão e com o conteúdo que a Constituição outorgou ao Ministério
Público comum. Firmou entendimento ainda no sentido de que o Ministério Público
233
STF – Pleno, ADI nº 798-1/DF – Rel. Min. Celso de Mello, publicado no Diário de Justiça, Seção I, de
19 de dezembro de 1994.
234
Idem, ibidem.
235
Idem, ibidem.
127
especial vincula-se à estrutura administrativa da Corte de Contas e os seus membros
integram o próprio Quadro de Pessoal desse Tribunal.236
Tudo isso cria um vínculo de subordinação organizacional, que o faz pertencer
ao “Poder” a que está vinculado.
Desta forma, o Ministério Público comum (por faltar-lhe o elemento da
especialização funcional), e o Ministério Público especial (pela ausência dos elementos
da especialização funcional e da independência orgânica) não constituem um quarto
Poder do Estado, mostrando-se falsa a primeira hipótese.
Acrescente-se, por fim, que, mesmo que se tome por base o critério objetivoformal para a distinção de funções do Estado, ou seja, considerando-se – na linha dos
ensinamentos de Celso Antônio Bandeira de Mello - o tratamento jurídico
correspondente, independentemente da similitude material que estas ou aquelas
atividades possam apresentar entre si, nota-se que o Ministério Público não desenvolve
atividade legislativa, pois não lhe dado inovar na ordem jurídica, nem judiciária, uma
vez que esta se traduz na resolução de controvérsias com a forma jurídica da
definitividade.
A hipótese nº 2 mostrou-se verdadeira.237
De fato, em relação ao Ministério Público comum, por ser um órgão
independente e praticar atividades típicas de natureza executiva, faz com que, de acordo
com o critério-base aqui utilizado, esteja ele ligado ao Poder Executivo, uma vez que
não se pode tomar como uma verdade apodídica a afirmação tradicional de que, sempre
e em qualquer situação, seus órgãos estão hierarquicamente estruturados.
Relembrando a lição do Ministro Sepúlveda Pertence, há “um preconceito de
unipessoalidade e verticalidade hierárquica do poder Executivo, que o Estado moderno
não conhece mais e que está desmentido pelos fatos”.238
236
Idem, ibidem.
Hipótese nº 2. “Se a natureza jurídica da atividade do Ministério Público comum é executiva, então
ele pertence ao Poder Executivo”.
237
128
Vale ressaltar: o Ministério Público comum se vincula, mas não se subordina ao
Poder Executivo.
A hipótese nº 3, por sua vez, apresentou-se falsa.239
Isso porque em relação ao Ministério Público especial, enquanto Instituição,
falta-lhe independência orgânica, ou seja, subordina-se, em muitos aspectos, ao Tribunal
de Contas.
O vínculo de subordinação o coloca como órgão do Poder a que está vinculado
aquela Corte, ou seja, ao Legislativo.
Logo, o Ministério Público especial pertence ao Poder Legislativo e não ao
Executivo.
A hipótese nº 4 verificou-se verdadeira.240
Efetivamente, se não existisse um órgão apto, tal como o Ministério Público
comum, que desempenhasse suas funções livre de quaisquer influências, provocando o
Judiciário nas questões em que este restaria inerte, haveria uma quebra do Princípio da
Separação dos Poderes.
É que muitas das funções são privativas do Ministério Público e outras, tal como
a defesa da Ordem Jurídica, do Regime Democrático e dos interesses sociais e
individuais indisponíveis, necessitam de um órgão efetivamente independente para
defende-los.
238
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Revista Trimestral de Jurisprudência, v. 147, janeiro de 1994, p.
133;
239
Hipótese nº 3. “Se a natureza jurídica da atividade do Ministério Público especial, cujos membros
atuam perante o Tribunal de Contas (CF/88, art. 130) é executiva, então ele pertence ao Poder
Executivo”.
240
Hipótese nº 4. “Se o Ministério Público comum é instituição permanente e indispensável à função
jurisdicional do Estado (CF/88, Art. 127, caput), então a supressão ou alteração das funções e garantias
ministeriais fere o Princípio da Separação dos Poderes”.
129
Ora, se o Judiciário, para ser imparcial, necessita ser inerte, então em relação a
essas categorias de interesses, se ausente a provocação pelo Ministério Público, estaria
impossibilitada uma efetiva proteção jurisdicional.
É que suas funções estão intimamente ligadas ao funcionamento do sistema de
freios e contrapesos. Se fosse suprimidas do Ministério Público, por exemplo, a defesa
dos interesses sociais e individuais indisponíveis, quem, pelo regime atual, zelaria por
eles? E a ação penal pública?
Mesmo que se atribuíssem suas funções a outro órgão haveria quebra do
Princípio da Separação dos Poderes, pois, à evidência, somente um órgão independente
e nos moldes do Ministério Público comum, poderá cumprir, de modo efetivo, as
funções institucionais que lhe foram atribuídas.
Em outras palavras, sendo o Judiciário em muitos pontos inerte, conferir as
funções hoje atribuídas ao Ministério Público a um órgão que não tenha capacidade de
defendê-las com eficiência significaria, a rigor, negar aqueles próprios direitos.
Não é por menos que se consagra expressamente que o Ministério Público é
Instituição permanente e indispensável à função jurisdicional (CF/88, art. 127, caput),
pois suas funções e garantias, pela sistemática constitucional vigente, são elementos
inexoráveis da separação funcional.
Ao altera-las ou suprimi-las, portanto, fere-se o Princípio da Separação dos
Poderes.
A hipótese nº 5 também se mostrou verdadeira.241
De fato, dispõe o art. 60, § 4º, III da Constituição Federal vigente que “não será
objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir (...) a separação dos
Poderes”.
241
Hipótese nº 5. “Se a supressão ou alteração substancial das funções constitucionais do Ministério
Público comum fere o Princípio da Separação de Poderes, então essas funções e garantias constituem
cláusulas pétreas”.
130
Conforme leciona ALEXANDRE
DE
MORAES, retirar do Ministério Público as
funções que lhe foram atribuídas ou mesmo as garantias para o bom exercício destas
funções diminui a efetividades das liberdades públicas, o que seria o mesmo que abolilas parcialmente, já que “alteraria a fiscalização do regime democrático e dos direitos e
garantias fundamentais, repercutindo na Separação de Poderes, sendo, pois, de flagrante
inconstitucionalidade”.242
Como se vê, esta hipótese, que está intimamente ligada à anterior, verifica-se
verdadeira, na medida em que é expressamente vedado qualquer medida normativa
tendente a abolir a separação de Poderes.
O importante, entretanto, é deixar bem claro que o que se veda é somente uma
supressão ou alteração substancial das funções, ou até mesmo das garantias do
Ministério Público.
Simples alterações, que não chegam a afetar o núcleo essencial das funções e
garantias do Ministério Público são, em tese, admissíveis.
Constatou-se que a hipótese nº 6 também é verdadeira.243
O que se constatou é que o fato do Ministério Público comum possuir
independência orgânica é o que mais importa. Esta, aliás, é a lição do Min. SEPÚLVEDA
PERTENCE, ao dizer que
“(...) garantida efetivamente a sua independência (...), a colocação
constitucional do Ministério Público é secundária, de interesse quase
meramente teórico. A essa visão do problema, buscou entender, e
atendeu em grande parte, a Constituição vigente: deixou à especulação
doutrinária a ponderação sobre a natureza material das suas funções
institucionais, mas se esforçou de dotar a instituição de garantias
inéditas de autonomia administrativa e de independência funcional,
seja a do organismo, globalmente considerado, seja a dos seus
membros, individualmente. Nesse contexto constitucional, situar o
Ministério Público, a partir de suas funções, como componente do
Poder Executivo – como é a minha opinião pessoal -, é conclusão que
242
MORAES, Alexandre de, op. cit., p. 514
Hipótese nº 6. “Se o Ministério Público comum possui independência orgânica, então a questão de seu
posicionamento constitucional é meramente teórica, de poucos efeitos dogmáticos-jurídicos”.
243
131
muito pouco tem a ver com o reconhecimento de poderes
administrativos do Presidente da República sobre a instituição”.244
Portanto, dizer que o Ministério Público comum é um quarto Poder do Estado
em nada o beneficiará, pois, cientificamente, o que lhe resta para isso é a especialização
funcional, sendo que, se lhe fosse dado praticar atos de natureza diversa da executiva,
sem que se alterasse o seu regime jurídico, isso não importaria em relevantes
conseqüências jurídicas.
Em outras palavras, sendo o Ministério Público órgão independente, que
diferença faria se praticasse atos de natureza diversa da executiva?
Parece ser uma questão muito mais de caráter subjetivo que propriamente
científica qualificar o Ministério Público comum como “quarto Poder”.
Constatou-se como verdadeira a hipótese nº 7.245
O Ministério Público especial estabelece uma relação de subordinação ao
Tribunal de Contas onde oficiam seus membros246.
Isso se dá porque, nos termos do “Capítulo II, item 2” desta monografia, ocorre,
no caso, uma espécie de separação parcial de poderes. Conforme ali estudado, para
efeito de separação de poderes, quando entre órgãos há relação de subordinação, eles
compõem o mesmo Poder.
Logo, o Ministério Público especial vincula-se ao mesmo Poder que pertencer o
Tribunal de Contas.
A hipótese nº 8 restou verdadeira.247
244
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Revista Trimestral de Jurisprudência, v. 147, janeiro de 1994, p.
134;
245
Hipótese 7º “Se o Ministério Público especial estabelece vínculos de subordinação com o Tribunal de
Contas onde oficiam seus membros, então ele se vincula à respectiva Corte de Contas”.
246
ver conclusões a respeito das hipóteses “1” e “2”.
247
Hipótese nº 8. “Se o Tribunal de Contas pertence ao Legislativo, então o Ministério Público especial
também faz parte do Poder Legislativo”.
132
O Tribunal de Contas, apesar do nome, não é órgão do Poder Judiciário, mas sim
órgão auxiliar do controle externo realizado pelo Poder Legislativo.248
O Ministério Público especial, Instituição vinculada ao Tribunal de Contas e, em
muitos aspectos, a ele subordinado, pertencendo assim, ao Poder Legislativo.
A hipótese nº 9, por fim, verificou-se verdadeira.249
Conforme visto no “Capítulo III, item 3.6”, no julgamento liminar da Ação
Direta de Inconstitucionalidade nº 1545-1/SE, o Supremo Tribunal Federal decidiu que
se deve aplicar o modelo federal do Ministério Público que atua junto ao Tribunal de
Contas da União aos respectivos Tribunais de Contas estaduais.
Embora não constituísse objeto desta Ação Direta de Inconstitucionalidade a
questão relativa à aplicação do Princípio da Simetria aos Tribunais de Contas
Municipais, impõem a estes sua aplicação.
Com efeito, o art. 130 da Constituição Federal, ao dizer que membros do
Ministério Público que atuam perante o Tribunal de Contas possuem as mesmas
garantias concedidas aos Membros do Ministério Público comum, não excluiu os
Tribunais de Contas Municipais que foram mantidos pela Constituição vigente (CF/88,
art. 31, § 1º).
Por outro lado, se os Membros do Ministério Público comum não podem oficiar
junto às Cortes de Contas (ADI 798-1/DF) e, como os membros do Ministério Público
especial estadual compõem o quadro do respectivo Tribunal de Contas onde oficiam, só
resta ao Tribunal de Contas do Município compor em seu próprio quadro um Ministério
Público Especial Municipal.
Destarte, este Ministério Público Especial Municipal vincula-se à Câmara de
Vereadores e, portanto, ao Legislativo Municipal.
248
Conferir o “Capítulo II, item 5.2.2”
Hipótese nº 9. “Se existe Tribunal de Contas Municipais, então existe o Ministério Público especial
municipal”.
249
133
Diante de tudo que foi estudado, pode-se concluir que a natureza jurídica do
Ministério Público comum é a de um órgão do Estado, vinculado, mas não subordinado
ao Poder Executivo.
Já
o
Ministério
Público
Especial
subordina-se,
em
vários
aspectos
(administrativo e financeiro), à respectiva Corte de Contas da unidade da federação
onde oficiam seus membros o que, por via de conseqüência, o insere ao Legislativo.
O fato de o Ministério Público não constituir um “quarto Poder do Estado”,
todavia, em nada o desmerece, pois o que importa é o seu regime jurídico, que o
assegura amplas garantias para que bem cumpra suas funções.
Ressalte-se, entretanto, que independência não significa irresponsabilidade, pois
sendo a atividade pública delineada pelo Direito, não só poderá haver um controle
interno, como também um controle externo, notadamente pelo Judiciário, para que se
estabeleça efetivamente um governo das Leis e não dos homens.
Conclui-se, de outro lado, que o Ministério Público reuniu parcela significativa
da função política, a tal ponto que, passados mais de vinte anos da Constituição de
1988, ele próprio ainda está se redescobrindo.
Como é da natureza das coisas, algumas questões essenciais somente tendem a
ser solucionadas com o passar do tempo, até porque um Estado Democrático de Direito
não é algo que simplesmente se proclama, mas algo que se constrói paulatinamente.
O que não se pode por em dúvida é que, nesse processo contínuo de
democratização, o Ministério Público tem exercido um papel de iniludível importância.
134
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CURSO ORDEM JURÍDICA E MINISTÉRIO PÚBLICO O