O NATAL EM QUE PAPAI VOLTOU PRA CASA
de Nemo Sombra
2
Desejo que você não tenha medo da vida,
tenha medo de não vivê-la. Não há céu
sem tempestades, nem caminhos sem
acidentes. Só é digno do pódio quem usa
as derrotas para alcançá-la. Só é digno
da sabedoria quem usa as lágrimas para
irrigá-las. Os frágeis usam a força; os fortes,
a inteligência. Seja um sonhador, mas una
seus sonhos com disciplina, pois sonhos
sem disciplina produzem pessoas frustradas.
Seja um debatedor de idéias. Lute pelo que
você ama.
AUGUSTO CURY in SER FAMÍLIA - ANO II Nº 13
3
Naqueles tempos a gente morava em Bonsucesso e vovô, quando vinha visitar a
gente, descia do ônibus em frente a escola das Pioneiras Sociais, voltava um pouquinho e ia
subindo a rua Olga com aquele sorriso bem grande debaixo do bigodão branco que resistira
a tudo, até mesmo quando aqueles homens vieram e levaram meu pai. Naqueles tempos
apenas meu avô visitava a gente, pois depois que meu pai se foi com aqueles homens,
ninguém aparecia lá em casa como antes e até os vizinhos mais chegados nos evitavam na
rua, no Xepinha e até na porta da escola, como se tivéssemos doença ruim. E era ele que
não permitia que meu dia continuasse parado naquele dia em que meu pai se foi com
aqueles homens e não mais voltou. Era ele quando subia a rua Olga assobiando a Canção
do Expedicionário - é, gente, meu avô lutou na guerra, lá na Itália, e falava disso de vez em
quando. Falava mas não gostava...
Guerra não tem graça nenhuma, transforma a gente em animal!
Falava e quando sorria, dava pra ver o que ele chamava de "seu sorriso italiano",
uma dentadura feita pelos americanos depois que ele e um monte de amigos perderam todos
os dentes na guerra. Culpa do frio que fazia, informava. Mesmo depois da guerra, sempre
que fazia frio, o vô tremia todo. Odiava até chuvinha. Amava o sol. De lembrança gostosa
daqueles tempos, apenas "seu sorriso italiano" e as brincadeiras nojentas que fazia com ele
quando eu ameaçava entristecer, pensando no meu pai.
Ah, ele não deixava.
Quando meu pai vem me ver?
A pergunta feria. Machucava. Doía demais.
Não em mim. Eu pensava em meu pai, sentia sua ausência, os livros empilhados e
4
abandonados onde ele os deixou quando os homens chegaram e o levaram sem dizer muita
coisa. Eu andava pela casa perseguindo seus passos e esparramando-me na cadeira onde ele
gostava de sentar para ler seus livros, corrigir as provas dos alunos, cochilar como meu vô,
depois do almoço de domingo, barriga forrada de macarrão e o ar sorridente de quem estava
em paz, uma paz profunda, indescritível diante de qualquer palavra. Os retratos na parede.
A rede. O jaleco ainda sujo de giz que ele tirou antes de ir embora com aqueles homens que
voltam de vez em quando e fazem minha mãe ficar nervosa e quando eles vão embora,
chorar.
Eu também fazia minha mãe chorar quando perguntava.
Mas o que eu podia fazer se queria saber e ninguém me dizia?
Não queria que minha mãe chorasse. Não entendia por que ela chorava. Ela não
falava. Só chorava. De dia. De tarde. De noite, principalmente de noite, quando as cigarras
ficavam alimentando a certeza de que teríamos um dia quente, sol forte, logo que a manhã
chegasse e eu ficasse olhando com curiosidade para seus grandes olhos vermelhos e
inchados, para o cansaço de seu rosto que não dormia e só fazia se esforçar para fingir que
não sofria como eu sabia que sofria. Nessas horas, eu desconversava. Falava alguma
bobagem - e eu era bom nisso quando queria ou quando pretendia fingir o que eu
certamente via. E se meu vô estava por lá, ele também vendo as lágrimas, eu me agarrava a
ele e juntos marchávamos pela Dona Isabel até a Praça das Nações. Nem eu e muito menos
ele dizíamos qualquer coisa. O silêncio entre nós era um grande tagarela e falávamos por
meio dele e dos vários olhares que trocávamos.
Na praça, ficávamos vendo o trem passar abarrotado de gente e os velhos ônibus
fumaçando sabe-se lá para onde. Espichássemos o pescoço um pouco mais e ainda dava
5
para ver os fios dos ônibus elétricos da CTC passando na rua Uranos faiscando e
assustando. O silêncio só acabava no Cine Melo, logo depois de um dos filmes do Giuliano
Gemma de quem meu vô era fã dos mais devotados (sabe que ele sabia quantos tiros ele
dera durante O Dólar Furado? E, ele viu tantas vezes que se deu ao luxo de contar, acredita,
acredita?). Mas a gente falava do filme e só bem depois, chegando em casa, que falávamos
das lágrimas da mamãe ou da ausência do pai.
Muitas vezes eu ficava tão encafifado com aquelas lágrimas de minha mãe que
juntava com o sumiço do meu pai e queria saber se uma coisa tinha a ver com a outra e por
que ele não voltava e nessas horas eu preferia que meu avô me falasse das coisas da vida,
pois meu avô não me achava um bobo nem me tratava como bobo ou mesmo pensava que
eu era um idiota. Meu avô não contava historinha nem ficava mentindo com convicção para
parecer verdade. Meu avô não disse que ele foi dar aulas num lugar distante, lá para as
bandas de Samarcanda (quando eu era criança adorava ouvir esse nome. Era bonito e
parecia tão distante que meu cérebro ia fantasiando sem parar para tudo quanto era lado e
criava mundos inacreditavelmente fantásticos. Smarcanda. E eu nem colocava um "k"
como brasileiro bobo que enche nome de "k", "w" e "y" sabe-se lá por que e para complicar
a vida dos coitados lá do cartório). Também não disse que ele saiu de férias, ficou doente
de um mal especialmente contagioso e perigoso ou que ele era um agente secreto (sua
identidade secreta, sabe como é que é, não?) numa missão arriscadíssima em meio a
agentes internacionais malvados com olhos puxados e unhas grandes que pensavam em
destruir o mundo. Não, meu pai não era o grande defensor dos frascos e comprimidos,
como o vô gostava de brincar.
Ele foi preso, meu filho!
6
Curto e grosso. Sincero também.
Esse era o meu avô. Homem inteligente que tratava criança como gente e não ficava
entrincheirado atrás de "inhas" e "inhos", reduzindo o tamanho de tudo como se criança
falasse língua diferente.
Tudo bem, nos meus alegres oito anos bem vividos eu fiquei meio perdido no
início.
Preso?, pensei, para em seguida perguntar para mim mesmo? E não era só bandido
que ia preso?
Meu pai roubou alguém? Xi, meu pai matou alguém?
Nem matou nem roubou. É, gente, o vô explicou tudo direitinho. Complicou mas
não enrolou que o vô não era dado a tais firulas. O vô não era candidato a Miss Simpatia. O
vô falava o que pensava e o pai herdou esse grande defeito, segundo ele.
Quem fala o que quer, ouve o que não quer e em certas ocasiões vai pra cadeia por
isso!
É, gente, foi o que meu pai fez. Falou o que pensava. Viu o errado e ao contrário da
maioria tanto ontem quanto hoje em dia, não ficou calado e pior, continuou falando para os
alunos dele numa das escolas onde ele dava lá as suas aulas de História. Um dos alunos não
gostou e contou para o pai que para azar do meu pai era capitão do Exército e foi na escola,
pôs o dedo no nariz do meu pai. O resto o vô censurou, pois ele disse que havia algumas
palavras que criança não deveria ouvir e muito menos repetir. Bateram boca e naqueles
tempos, que o vô identificou como ditadura (e depois explicou), quem mandava no Brasil
eram gente como aquele capitão. Falar contra o que eles faziam naqueles tempos não era
muito inteligente (para dizer o mínimo) e o pai foi preso.
7
Puxa, na hora eu fiquei com raiva. Raiva do tal capitão. Do aluno tagarela do meu
pai. Dos homens que levaram meu pai. E sabe de uma coisa, até do meu pai...
Por que é que ele não ficou calado?
O vô explicou que tem gente que infelizmente não consegue. Até se esforçava.
Trinca os dentes. Morde a língua. Conta até dois mil, novecentos e noventa e oito e meio,
vírgula nove, ponto nove, mas por fim abre a boca e desanda a falar. Faz parte da natureza
de certas pessoas que quando vêem o errado não finge que está certo nem finge que não
está nem aí. O vô disse que alguns chamavam de personalidade, outros de loucura e a mãe,
de falta de juízo. Fosse o que fosse, o pai era assim porque o vô também era assim e se eu
não tomasse cuidado, filho único de seu filho único, também seria assim.
Eu também vou ser preso, vô?, medrei.
Tem coisa pior do que ser preso, filho.
Tem?
Ser covarde é bem pior, filho. Ser hipócrita também.
Eu prometi ao vô que não ia ser nem uma coisa nem outra, mas escabriado como só
eu conseguia ser naqueles tempos, insisti...
E eu vou ser preso também?
Mas é claro que não!, ele garantiu, cheio de convicção.
Mas e a ditadura?
Nada é pra sempre, filho. Nem eu nem você. Nada. Por que a ditadura seria, ora
seu?...
É...
No dia seguinte eu vi um dos homens que haviam levado meu pai. Estava de
8
uniforme lá na Guilherme Maxwell. Era soldado. Não, era mais do que soldado, pois os
outros soldados que estavam com ele faziam mesuras e continências como se tivessem
muito medo dele. Eu ia pra escola e vi o homem. Fiquei com raiva dele.
Odeio soldado!
O vô não gostou.
Então você não gosta de mim?
Emburrado, resmunguei
O senhor não é soldado!
Mas fui...
O e aí? de meu avô ficou no ar, esperando que eu o apanhasse ou pelo menos
encontrasse uma boa resposta para ele que continuou me olhando daquele jeito simpático
porém firme, como a dizer sem falar coisa alguma. Esperando. Apenas esperando.
Cruzei os braços sobre o peito e espetando o queixo nele com uma raiva dobrada do soldado e da ausência de uma resposta que convencesse antes de tudo a mim mesmo e,
claro, o meu avô -, afundei com vontade no sofá da sala, esperando que o Capitão Furacão
aparecesse o mais depressa possível na tela da televisão.
Ah, mas o vô não me deixou em paz...
Não é o uniforme que define o bem ou o mal que é feito contra este ou aquele, mas
o homem que está dentro dele. Ele e sua consciência. Não é o exército ou a marinha ou a
aeronáutica que faz o mal ou o bem. São os homens que estão dentro deles. Na verdade
nem são eles, mas aquilo em que acreditam, a maneira como vêem o mundo e as coisas do
mundo e por que não, o desejo de poder que está dentro de alguns deles. Muitos de nós
ficam especialmente diferentes quando têm algum tipo de poder...
9
Como de mandar a gente para a cama quando a gente não quer?
Vovô sorriu.
Isso é diferente, seu espertinho!
Ouvi meu avô porque gostava dele, mas antes porque o respeitava (e a gente
respeita sempre a quem ama, não é assim?), mas não me convenceu. Eu precisava de algo
ou de alguém para odiar, para descarregar, para não ficar sentindo toda aquela raiva
queimar dentro de mim sem ter onde ou em que ou em quem abandoná-la. Tinha horas que
servia qualquer coisa, qualquer um. Os uniformes e os homens dentro deles eram tão bons
quanto qualquer um. Mas o Candinho também servia.
Por quê?
Foi ele que começou com aquela chateação toda de ficar me apontando e gritando:
Comunista
Nem tentei fingir que não ouvia. Ignorar era impossível, pois ele não deixava.
Candinho era definitivamente um chato e dos piores, daqueles que ficavam aporrinhando, te
perseguindo onde quer que você estivesse, especialmente quando tinha muita gente em
volta para aplaudir, para rir, para imitá-lo em sua crueldade.
Comunista! Comunista!
Ele gritava. Pulava. Ficava apontando pra mim enquanto os outros olhavam e
algumas mães, por acreditar ou apenas para fuxicar, passaram a não deixar que eu fosse na
casa delas ou mesmo, que seus filhos, meus colegas, brincassem comigo. Da noite para o
dia, culpa do Candinho, virei o inimigo, o perigo vermelho - e eu achando que o verdadeiro
perigo vermelho era o time do América que naqueles tempos ainda não havia vendido seu
campo no Andaraí e era unha encravada para qualquer um dos grandes da cidade, apesar do
10
chute certeiro do Jorge e o último título de campeão estar perdido num longínquo 1960.
Comunista!
Pior do que o Candinho, apenas o uniforme de bombeiro do pai dele e o olhar do pai
dele quando ia buscá-lo na escola e ficava me olhando quando Candinho me apontava.
Tinha certeza que fora ele que colocara aquela maldade na cabeça do Candinho que apenas
fazia o que sempre fizera melhor: implicar e repetir as coisas como um pequeno papagaio
de olhos esbugalhados e cabeça raspada feito soldado.
Comunista!
O soco pegou em cheio, bem no nariz chato dele. Espirrou sangue e ele ficou
sentado no chão, as pernas bem abertas e a mão direita lambuzada de vermelho enquanto
chorava feito bebê. Acabei na sala da diretora. Olhos ferozes fuzilaram-me uma centena de
vezes antes de minha mãe aparecer e ouvir um monte de coisas bem ruins sobre mim da
diretora. Olhos ferozes fuzilaram-me uma centena de vezes antes de minha mãe aparecer e
ouvir um monte de coisas bem ruins sobre mim da diretora e de outras tantas mães que
esperavam por ela na saída. Virei o inimigo público número um. Fui ainda mais apontado,
atingido por uma quantidade temível de olhares enfurecidos, a começar pela mãe enorme
do Candinho e o pai bombeiro que ficava o tempo inteiro resmungando...
Também filho de quem é?...
Aquilo me encheu de raiva, sabia?
Falar de mim, vá lá. Resmungar um monte de bobagens, tudo bem. A surra que
levei, tudo bem, o que fazer, né?
A mãe chorou mais do que bateu, mas de qualquer forma doeu. Eu aceitei.
Aguentei. Fui me consolar com a Elisangêla no programa do Capitão Furacão e tudo
11
resolvido. O que me chateava mesmo era ouvir falar mal de meu pai. Seria sempre injusto,
já que ele nem estava lá para se defender. Coisa de gente covarde que se sente forte quando
exerce sua covardia sem contestação.
Não quis mais ir para a escola. O vô não deixou.
De jeito nenhum!
Por quê? Eles...
Se você não for, eles terão vencido...
Não entendi.
... Você dará razão a tudo que dizem de ruim sobre você e sobre seu pai.
Ele foi comigo. Na verdade, por muitos meses, o vô me levava e me trazia.
Algumas vezes, ele ficava sentado debaixo de uma árvore, chupando laranja - é, tinha um
sujeito com uma maquininha bem estranha que descascava laranja lá perto da Praça das
Nações, e se havia algo que fazia a alegria do vô era chupar laranja - e jogando conversa
fora com quem quer que passasse. Esperava eu sair. O ritual não mudava: chegávamos de
queixo erguido e olhando bem dentro dos olhos de todo mundo, mas cumprimentando com
toda a educação possível, e saíamos com pompa ainda maior, passos largos mas nunca
apressados, ar sorridente porém sem os dentes a mostra.
Sabe de uma coisa?
Mesmo o olhar do Candinho e de seu pai bombeiro passaram a não me perturbar
depois de certo tempo.
Numa certa manhã de agosto, enquanto voltávamos para casa e eu comentava com
meu avô que Candinho parara de me chamar de comunista, ele sorriu e disse algo que
naquele dia e naquele tempo eu não entendi - algo que somente hoje, entrando em meus
12
bem vividos cinquenta, fica bem mais fácil compreender, apesar de doer profundamente a
completa compreensão de tais palavras...
Os animais matam por uma razão. Nós, humanos, temos a morte
como essência de nossa natureza. Matar e destruir é a nossa razão. Se não de existir, pelo
menos de ser. Não é a fome. Pode ser a defesa, mas muitas vezes matamos ou destruímos
pelo fútil, o sem sentido. Apenas o futil, o sem sentido, move a morte que provocamos.
Noutras vezes, criamos nossas próprias razões e motivos. Assim somos nós...
Pensei tê-lo visto chorando. Havia lágrimas em seus olhos. O sol forte refletiu-se
nos olhos brilhantes que enxugou bem depressa com a ponta dos dedos longos, torcidos
pela artrite. Apenas a fungada longa o traiu - o nariz dele escorria sempre que chorava.
Subimos para minha casa em silêncio.
Falar o quê?
Respeitei a dor de meu avô. Como ele gostava, pois sabia que se irritava quando
algumas pessoas, a começar por minha mãe, ficava questionando, por exemplo, a sua dor e
preocupação com a prisão de meu pai.
Rapaz, os olhos dele viravam duas brasas na maior das fogueiras e era bom sair de
perto.
O silêncio de meu avô era a medida certa de sua dor e sua dor podia ser bem longa,
impenetrável, mas antes de mais nada, solitária. Era o jeito dele. Vovô gostava de ser
deixado sozinho para sofrer, para chorar, para lidar com seus mais profundos sentimentos.
Aliás, que bobagem, não é mesmo?
Sofre mais ou apenas sofre quem grita, se exalta , estrebucha?
A dor é maior quando ficamos histéricos?
13
Berrar os palavrões mais feios exprime realmente o tamanho de nossa dor?
Talvez. Questão de opção. Nós preferimos a vastidão hostil e implacável do
demorado silêncio. A quietude tensa da solidão é nosso refúgio. A paz de nosso rosto é o
poço profundo, o maior deste ou de qualquer mundo, onde afogamos todo e qualquer
sofrimento. Enfim, somos bem egoístas na dor. Ela é apenas nossa e o mundo nada tem a
ver com isso.
Gostando ou não, somos assim. Como meu avô.
Ah, é: Sylvia Telles também fazia parte da dor toda particular de meu avô. Tanto
quando ele nela entrava e quando dela saía. Era sua cantora preferida e eu me lembro que
meu pai contou algo sobre o dia em que ela morreu num acidente de carro - o Fusca dela
entrou debaixo de um caminhão carregado de abacaxis indo para Maricá - em 66, e de
como ele ficou trancado em seu apartamento, ouvindo um disco, o mesmo, por mais de uma
semana...
É de manhã
Vem o sol, mas os pingos da chuva
que ontem caiu
Ainda estão a brilhar
Ainda estão a dançar
Ao vento alegre
Que me traz esta canção...
Meu avô adorava aquela música. Gostava de assobiá-la e somente não a cantava
porque, segundo ele, apenas Sylvia Telles deveria ter o direito de fazê-lo. Mais fã,
impossível. Falar de Lúcio Alves, outro cantor que gravara a mesma música, só servia para
14
piorar as coisas e quando ainda estava entre nós, papai adorava implicar com ele, tocando
exatamente naquele ponto bem delicado da relação entre os dois.
Nem me fale nisso! Nem me fale nisso!, resmungava vovô, pronto para a briga.
Aquela era uma das lembranças mais felizes que nos acompanhava quando, toda
quarta-feira durante mais de um ano, íamos até a Tijuca, visitar meu pai num quartel do
Exército da Barão de Mesquita. Quer dizer, ele o visitava. Eu não ia além do portão, pois
nunca em tempo algum em que estivera preso meu pai não quis me ver e muito menos que
eu o visse ou entrasse naquele lugar. Mesmo meu avô só conseguia aquelas visitas por que
um dos capitães que trabalhavam no quartel naquele dia era companheiro dos tempos da
guerra e permitia que ficassem uma hora juntos. Quanto a mim, era deixado com os guardas
na guarita, cara amarrada, pouco disposto às brincadeiras dos soldados que faziam de tudo
para me agradar, para atenuar o nada-a-fazer-e-o-muito-esperar daquela hora vazia,
preenchida com pensamentos ruins, idéias sombrias sobre o tudo de terrível que parecia
acontecer por trás das paredes do grande quartel. Preocupado. Atormentado por toda sorte
de receios sobre o que realmente poderia estar acontecendo ali dentro com o meu pai. Pelos
olhares e dedos apontados, sempre voltados para mim, o cochicho deste ou daquele
soldado, aqueles uniformes indo e vindo à minha volta, sussurrando coisas sobre mim, este
hostil, aquele gentil, a maioria meramente curiosa.
O que falavam sobre mim?
Por que me apontavam?
Seria sobre meu pai que falavam?
E o que falavam sobre meu pai?
O que estava acontecendo?
15
Ninguém dizia nada. Era como se eu não tivesse a menor importância ou o que quer
que eu pudesse sentir fosse insuficiente para alguém, até mesmo meu avô, me contar o que
realmente acontecia - pois naquele instante eu não tinha a menor dúvida de que algo
acontecia e era bem ruim - por trás das sólidas paredes daquele grande quartel na Tijuca.
Homens
carrancudos.
Olhares
trocados.
Ar
de
desconfiança.
Soldados
amedrontados. Um silêncio tão pesado que por vezes chegava quase a me esmagar. Um ou
outro carro verde, sempre fechado, entrando e saindo de tempos em tempos. Todos
evitando o olhar desamparado - apenas uma vez encontrei arrogância e um certo tipo de
coragem - de alguns homens que desciam de um dos carros que chegavam e eram
rapidamente escoltados para dentro do prédio. Quando aos carros que saíam, nada se dizia
ou se via, os próprios soldados na guarita baixando a cabeça ou desviando o olhar quando
os via passar. Olhos são janelas e os deles se abriam naquelas ocasiões para uma tristeza tão
grande que mal dava para descrever, infelizes e misteriosas testemunhas do que quer que
conseguissem entrever a simples visão daqueles carros saindo fechados do quartel.
Meu coração apertava.
E se meu pai estivesse dentro de um daqueles carros que saíam?
Apenas aquelas quartas-feiras que se repetiram por mais de um ano me davam a
certeza de que meu pai ainda estaria dentro do quartel da Tijuca quando eu voltasse na
semana seguinte e algo dentro de mim me dizia que tinha muito ou tudo a ver com o meu
avô, com os amigos que ele tinha entre aqueles homens silenciosos de uniforme. Nunca
perguntei.
Por quê?
Ele não responderia.
16
Porque, não sei. Ele apenas não responderia. Estava em seus olhos, nos sorrisos de
falso entusiasmo, na alegria tão infantil quanto artificial que procurava demonstrar ao sair
do quartel. Íamos a pé até a Praça Saenz Peña. Íamos conversando, eu perguntando sobre
meu e ele me dizendo coisas que esperava que eu gostaria de ouvir, no que aliás o meu avô
sempre foi bom demais. Nos últimos meses antes de meu pai finalmente voltar para casa,
vovô chegava a antecipar a pergunta mais conhecida, aquela que eu sempre fazia depois de
voltar do quartel na Tijuca...
Logo, logo ele vai estar de novo com a gente!
Sequer me permitia desanimar. É, aconteceu depois de cinco ou seis meses indo
àquele quartel e quando muito vendo-o por uma de suas janelas, responder a um tímido e
breve aceno de mãos. Eu chorei dentro do ônibus. Fiquei com medo de não ver meu pai
nunca mais - afinal de contas, não era o que minha mãe, aflita e chorosa, dizia e repetia
para meu avô na cozinha lá de casa quando os dois ficavam a sós na crença de que eu
estivesse em meu quarto dormindo (é, eu não estava, não)?
Eles vão matá-lo lá naquele lugar miserável!
Escondido atrás da porta quis perguntar. Não entendi...
Matar? Matar por quê?
O que meu pai fizera de tão grave para...?
Meu avô a acalmou como fazia comigo. Repetiu quase as mesmas palavras que
disse a mim naquele dia em que chorei dentro do ônibus...
A gente precisa ter fé!
Até quando?
Nunca perguntei. Creio que apenas para não magoá-lo. O que meu avô pedia era
17
demais. Por mais que tentasse a gente não conseguia. Chegar em casa e não encontrar meu
pai naufragando entre pilhas e pilhas de livros, planejando aulas ou lendo mais jornais do
que eu conseguia guardar os nomes, muitos até em outras línguas, era demais tanto para
mim quanto para minha mãe. Seu sorriso, aquele que eu jamais veria novamente daquele
modo carinhoso, envolvente, cheio de crença em si mesmo e nas pessoas. Realmente era
difícil. Chorar era melhor do que nada fazer. Até o Natal, a nossa festa, a que meu pai mais
gostava, já não era o mesmo desde que aqueles soldados o levaram.
O primeiro e único sem ele foi triste demais. Minha mãe não se animou para fazer
nada e se não fosse a falsa alegria e os doces e rabanadas que meu avô trouxe, eu e ela
ficaríamos na sala vendo televisão, partilhando da emoção e da felicidade de um bando de
americanos num filme qualquer cheio de neve e boas intenções, velhas canções de Natais
inalcançavelmente felizes.
Vovô não gostou. Chegou a reclamar. Insistiu que devíamos comemorar até mesmo
acreditando que aquele seria o último Natal em que estaríamos separados. Apelou,
garantindo que, onde quer que estivesse e assegurou que, apesar de estar preso, ele estava
bem, meu pai ficaria muito triste se soubesse que estávamos chorando e olhando velhas
fotos como se ele tivesse morrido.
Inútil. Pior. Quanto mais ele falava, eu e minha mãe lembrávamos de meu pai e
chorávamos. Por fim, ele também chorou. Foi uma choradeira só. Horrível. Uma noite para
esquecer mas que nenhum de nós esqueceria.
Por essas e por outras, nem eu e muito menos minha mãe conseguiu entender a
insistência teimosa e até enfurecida dele no ano seguinte para que preparássemos uma
grande festa de Natal.
18
A coisa ficou feia. Ele e minha mãe brigaram. Disseram coisas bem feias um para o
outro (não, nada de palavrões, mas mesmo assim coisas tão ruins que nem ouso repetir
mesmo tendo se passado quase cinquenta anos). Meu avô foi embora batendo a porta com
força e prometendo não voltar. Acabou voltando. Continuou insistindo.
Era para ser uma surpresa, mas já que vocês não vão fazer a festa se eu não
contar...
Não foi preciso dizer muito mais. Explicar tornou-se desnecessário.
Meu pai ia voltar para casa naquele Natal!
Foi o próprio coronel que me disse. A ordem de soltura já foi expedida...
Nunca nos empenhamos tanto com um Natal como naquele ano. Gastamos o que
não tínhamos. Meu avô trouxe a moça que fazia a limpeza no apartamento dele para ajudar
lá em casa. Tudo foi limpo. Nada ficou fora do lugar. Pilhas de rabanadas transbordavam de
pratos na grande mesa da sala. Vovô trouxe um dos vinhos do Porto cujas garrafas ele
mantinha trancadas a sete chaves sabe-se lá onde, pois nem no apartamento era. Sobrou
galinha, farofa. Tinha mais Crush e Grapette que eu podia engolir. Maionese. Bacalhau.
Um leitão veio da padaria onde meu avô mandou assar. O padeiro e alguns empregados da
padaria acabaram ficando para festa, pois muitos dos vizinhos que convidamos não
apareceram. Apenas um dos professores que trabalhavam com meu pai veio. Tinha um
monte de companheiros da FEB que o meu avô trouxe quase amarrado mas que gostaram
muito da comida e da bebida (o velho Motinha bebeu tanto que passou o Natal dormindo no
banheiro e a gente só deu pela falta dele quando precisou usar o banheiro). Uma prima de
meu avô chegou de Anta (na época eu não entendi bem e pensei que ela viria montada
numa anta, mas ela, rindo muito, explicou que Anta era um lugar lá perto de Sapucaia - que
19
eu também não sabia onde era, mas tudo bem -, já chegando em Minas Gerais). Até o
motorista do táxi, um velho Oldamobile que fazia ponto lá perto da estação de Ramos, que
meu avô contratara para ir buscar meu pai na Tijuca acabou ficando para a festa. Ele era um
negro enorme, a voz de trovão estrondeando por toda casa quando gargalhava, presa fácil
das piadas contadas pela tal prima de Anta (e que piadas apimentadas que a prima do meu
avô contava!...). Ele gostava de arregaçar as mangas da camisa até os cotovelos e ajudou a
amparar meu pai quando ele subiu o pequeno lance de escadas que levava para dentro de
casa.
Pai...
Não consegui dizer mais nada. Bobagem. Não havia a menor necessidade. Minhas
lágrimas e as de minha mãe falaram por nós. Abraçamo-nos com toda força do mundo,
como se teméssemos que alguém (alguns soldados) fossem entrar a qualquer momento e
mais uma vez nos separar.
Não, nada nem ninguém conseguiria. Família. Nem no Natal. Nem em nenhum
outro momento.
Feliz Natal, pai...
Bem que tentamos. Fizemos o máximo. Nós e todos que estavam em nossa casa
naquele dia. Houve risos. Houve uma tentativa das melhores de fingir que nada acontecera.
Meu pai até riu depois de ouvir outra das piadas da prima do vovô (gozado, eu nunca mais
a vi ou ouvi falar dela), mas triste admitir, o Natal nunca mais foi o mesmo lá em casa
depois daqueles tempos que papai passou longe de nós.
Sorriso tem dor?
Pois é, o de meu pai passou a ter.
20
Estranho isso, não?
Tão estranho que nem sei como explicar. Talvez não haja explicação. É algo que se
sente e não se explica. Simplesmente eu percebi depois que a festa acabou e entramos em
janeiro. Algo mudou em meu pai ou meu pai mudou, não sei bem. Algo aconteceu. Quis.
Tentei. No entanto, não perguntei nada. Esperei que meu pai contasse o que quer que ele
achasse que eu deveria saber. Eu e minha mãe. Ele contaria quando quisesse, quando
tivesse vontade e do jeito que achasse melhor, algo que afinal de contas ele nunca fez. De
certa forma, o pai que voltou para casa não era o mesmo que saiu dela tempos antes. Nunca
mais seria. Algo se perdeu para sempre e eu confesso que senti. O sorriso bonito que tinha
se foi para nunca mais voltar. meu pai se transformou num homem de longos silêncios e
poucos sorrisos, cada vez menos sorrisos. Foi algo que a tal ditadura fez: não destruiu os
ideais do homem nem o professor, mas partes bonitas do homem que fora ficaram para trás,
naquele quartel da Tijuca onde vovô ia visitá-lo. Eu mais senti do que vi, mas foi para
sempre. Triste, muito triste. Entretanto, no dia que meu pai veio para o Natal e não mais
nos deixou, eu não notei ou preferi não notar aquelas perdas. Abracei-me a ele e chorei
muito.
É, seus olhos se transformaram em quartos vazios onde eu nunca mais encontrei o
pai que tive, pois simplesmente não sabia em qual deles o encontraria ou onde ele afinal de
contas se escondeu.
Triste, muito triste.
FIM
Download

O NATAL EM QUE PAPAI VOLTOU PRA CASA