O CORPO DESEJOSO
NA POÉTICA DE FLORBELA
Lígia Mychelle de Melo Silva
Mestranda em estudos da linguagem pela UFRN.
Resumo
Abstract
This paper approaches the sensual into Florbela Spanca's
poetics. Through the analysis of some poems from the work
"Charneca em flor" (1999), the paper’s main ain is to show
that exploring one's own body is the main resource used by
the Lyrical voice to attract the attention from others.
Keywords: Florbela Espanca; sensuality; body.
n. 35 2010 p. 129-138
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Palavras-chave: Florbela Espanca; sensualismo; corpo.
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O presente artigo aborda o sensualismo na poética de
Florbela Espanca e tem como principal objetivo demonstrar,
através da análise de alguns poemas da obra “Charneca em
flor” (1999) que a exploração do próprio corpo é o principal
recurso utilizado pela voz lírica para atrair o olhar do Outro.
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Introdução
O corpo gera sensações, emoções e imagens (Guaiarsa, 2002). Essa
assertiva constitui-se em um dos princípios fundamentais para fazermos uma
leitura da poética de Florbela Espanca (1894-1930)1, a qual apresenta como uma
das características mais marcantes o amor erótico. Ao fazer uma leitura minuciosa
dos sonetos que compõem a obra “Charneca em flor” (1999), foi verificado que de
uma forma geral a temática do erotismo em Florbela se manifesta através do
desejo que a persona lírica revela em fundir-se ao amado.
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Em Florbela Espanca, o erotismo é uma forma de sentimento, as imagens
eróticas que percebemos nos sonetos estão ligadas diretamente ao desejo do “Eu”
em encontrar, em possuir o “Outro”, podemos dizer, então, que o erotismo em
Florbela é o “querer ter”. Dessa forma, o erotismo se manifesta em sua poética
através do desejo que a persona lírica revela em unir-se ao amado e somente
através dessa união é que, supostamente, o sujeito poético alcança a sensação de
fazer-se completo. Sendo assim, a poetisa Florbela vai ao encontro da idéia do
escritor e ensaísta francês Georges Bataille (2002, p.33-34) que diz: “... Sofremos
pelo nosso isolamento na individualidade descontínua. A paixão nos repete
incessantemente: se você possuísse o ser amado, este coração que a solidão
estrangula formaria um só coração com o ser amado”.
130
Então, para que essa união seja possível, para que a persona consiga
saciar sua vontade de se juntar ao amado a quem ela se dirige nos sonetos, ela
quer fazer-se desejada, ela mostra-se sensual. Esse sensualismo é manifestado
em alguns poemas florbelianos através da descrição do corpo da persona lírica.
Desse modo, a nossa proposta, nesse artigo, é verificar nos poemas “Realidade”2,
“Passeio ao campo”3, “Toledo”4, “Volúpia”5, “III”6 de que forma o corpo é utilizado
para atrair o olhar do Outro.
Antes de adentrarmos na análise dos poemas, faremos um breve
comentário acerca da vida e da obra dessa poetisa portuguesa, que foi “ignorada
por completo pelo público leitor e pela crítica, sua obra tina sido saudada na altura,
pelos comentaristas de plantão, como mais uma das (abundantes e inexpressivas)
flores do galante ramalhete das poetisas de salão[..]”, conforme aponta a
pesquisadora Dal Farra (1999), só veio ter o reconhecimento da sua obra muitos
anos após sua morte.
Em meio às damas que encantavam com uma poesia pueril e casta, a
qual reafirmava o discurso machista de que a mulher tinha que ser fútil, e tinha que
está sempre “atrás” de um homem, numa posição inferior, Florbela escandalizava
com seus versos que mostravam uma mulher bem á frente de seu tempo, que
sentia desejo e “oferecia-se” ao amado (“... Bebe-a dentro de mim, bebe-a
comigo!”) ao invés de esperar ser cortejada como era comum na época.
Florbela Espanca, de acordo com Rosana Gonçalves (2001), ultrapassou
a sua condição feminina e transcendentalizou sua arte e, tendo sido, de forma
involuntária, precursora do movimento feminista em Portugal, foi muito além da
sociedade machista a qual pertenceu. A mulher Florbela não era submissa, como
era comum na época, ao marido, ao casamento. Espanca era submissa ao desejo,
à volúpia, aos prazeres do corpo e, exatamente por esse motivo, por ter quebrado
as regras de uma sociedade arcaica, patriarcal, machista e hipócrita, Florbela
Espanca pagou um preço muito alto, sendo tão incompreendida, rejeitada e
criticada pela sociedade a qual estava inserida.
Atualmente, a fortuna crítica da moça de Alentejo já é considerável,
embora seja importante ressaltar que grande parte dos estudos acerca de Espanca
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tendem a identificar a obra com a biografia, “não distinguindo, ao menos
tenuamente, as fronteiras entre o eu da pessoa empírica e o eu-lírico, persona, da
escrita poética. É, pois, esta a questão que figura o primeiro lugar na fortuna crítica
da poeta” (Santos, 2006, p. 17).
Em vida, a poetisa alentejana publicou apenas dois livros: em 1919, ela
publicou o “Livro de mágoas” e em 1923, O livro de Sóror Saudade, que tiveram
cada um, a pequena tiragem de duzentos exemplares, conforme registrou Dal Fara
(1999). Todo o restante da sua obra - Além dos conhecidos e refinados sonetos, a
obra literária florbeliana consta também de contos, de cartas e de um diário íntimo,
“O diário do último ano” - foi publicada postumamente. “Charneca em flor” foi o
primeiro a ser publicado após o suposto suicídio da poetisa (em janeiro de 1931).
Dal Farra (2007, p. 189) registra e comenta a nota que o “Diário de noticias de
Lisboa” publicara ao sair a primeira edição do livro:
“E sábado lhe enviarei o manuscrito, sem falta. Tenho uma tão
grande vontade de ver o livro pronto, que parece-me hei de
morrer antes disso. Mande-me noticias e depois as provas para
as emendar convenientemente.”7 (Dal Farra, 2007, p.188)
Ainda de acordo com Dal Farra (1999): “Em pouco mais de uma semana a
edição de janeiro se esgota, e outra e mais outra são produzidas a partir de então...”.
Devido a esse acontecimento, “o extraordinário boom editorial”, Battelli
empolga-se e publica, ainda em 1931, tudo o que encontra de Florbela. Até mesmo
o livro de contos inéditos, “As Máscaras do destino” e as correspondências que a
poetisa trocara com Júlia Alves.
É interessante notar que, para alguns críticos, embora,
cronologicamente, Florbela Espanca tenha pertencido ao movimento modernista
lusitano, ela não estava associada claramente a qualquer movimento literário.
Massaud Moisés (2004) reforça esssa afirmação e diz que Florbela se impôs com
valor próprio, pertencendo a um pequeno grupo o qual ele nomeia de interregno,
sem maiores vínculos com as tendências que estavam em voga.
Para esse críticos, não é possível limitar a produção poética da poetisa a
um único estilo. Para alguns sua obra está mais perto do neo-romantismo, já que
encontramos, em sua poética, temáticas como o pessimismo, o desencanto e o
ceticismo e de certos poetas de fim-de-século (devido a seu decadentismo e
obsessão pela morte), portugueses e estrangeiros, do que da revolução dos
modernistas, a que foi alheia.
Já outros, levam em consideração o caráter confessional e sentimental
de sua poesia e afirmam que Florbela segue linha de Antônio Nobre, fato
reconhecido pela poetisa. Por outro lado, a técnica do soneto, que a celebrizou, é,
sobretudo, influência de Antero de Quental e, mais longinquamente, de Camões.
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O livro foi publicado, conforme foi registrado, devido ao esforço do
professor e amigo Guido Battelli, com o qual Florbela trocava correspondências e a
quem a ela confiou os manuscritos da obra:
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“No dia 25 de janeiro de 1931 a nota do “Noticias ilustrado”,
edição semanal do Diário de noticias de Lisboa, registrava
então que ‘acaba de vir a público a edição póstuma de alguns
lindíssimos sonetos de Florbela Espanca, o Charneca em flor,
graças aos cuidados do professor Guido Battelli, da
Universidade de Coimbra’, e completava: ‘como a sua poesia
era desvairada e profunda, mas não perfeita e acabadinha,
como não teve quem a exaltasse em vida nos grandes jornais;
o público desconheceu-a. A sua morte deixou um rasto de
silêncio, que é preciso acordar.’”
131
Há quem diga, inclusive, que a produção de Florbela é uma intersecção
das particularidades de várias tendências literárias. De acordo com o crítico e
ensaísta José Rodrigues de Paiva (1994) ela pertence a uma linhagem de poetas
para os quais não se tem, esteticamente, uma classificação única e definitiva. Não
cabe nas “grades” das escolas e movimentos literários. Massaud Moisés (2004)
reforça essa afirmação e diz que Florbela se impôs com valor próprio, pertencendo
a um pequeno grupo o qual ele nomeia de “interregno”, sem maiores vínculos com
as tendências que estavam em voga.
Totalmente “alienada” das preocupações sociais - a poetisa chega a
confessar, em cartas, que não se interessa por política - e ainda refletindo alguns
valores culturais do inicio do século XX como, por exemplo, o culto à forma,
poderíamos dizer,a princípio, que ela pode ser considerada neoclássica, visto que
há em suas poesias toda uma preocupação e um esmero com a estética .E é
justamente isso que a converte numa sonetista de primeira grandeza.
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No entanto, Florbela soube muito bem – e como poucos poetas - a esse
culto à forma, incorporar o conteúdo, conseguindo, assim, um equilíbrio alcançado
por poucos escritores da época. Ao utilizar uma forma fixa, tradicional para exprimir
uma catarse de sentimentos, de emoções e de desejos, Espanca acaba dando
uma roupagem objetiva a seu discurso lírico, íntimo e extremamente subjetivo.
132
Esse equilíbrio pode ser justificado pela clara influência que o movimento
simbolista exerceu sobre a poética florbeliana, pois, ao analisar sua produção
literária percebemos que ela tinha uma enorme preocupação em não limitar a arte
ao objeto, explorando em sua obra poética conteúdos místicos e sentimentais, em
que há o predomínio da sensibilidade e da emoção (se opondo à objetividade e à
razão tão comuns na estética realista); utilizando uma linguagem ornada e colorida,
em que as palavras são escolhidas pela sonoridade, pelo ritmo; o uso do
conhecimento intuitivo e não lógico e a concepção espiritual e subjetiva da vida,
mergulhando no inconsciente e na introspecção do eu e preocupando-se em
buscar a essência do ser humano (a alma), essa poetisa encontrou no soneto a
forma ideal para exprimir seus sentimentos, para confessar toda sua mágoa, toda
sua dor e para revelar seu sensualismo.
Apesar de rótulos como “donjuanismo feminino” e “narcisismo”, Florbela
Espanca vai muito além desses rótulos e não é uma poeta de uma só temática: Ela
é a poetisa das flores, das cores e das dores, dos sonhos, das sensações, das
frustrações, dos desenganos. Para José Rodrigues de Paiva (1994), Florbela é
antes de tudo uma poetisa que construiu uma linguagem, uma poética, uma
mitologia lírica.
No entanto, é sempre significante ressaltar que um dos aspectos que
chamam mais atenção na obra poética da poetisa portuguesa Florbela é a vertente
erótica, ou seja, seus poemas são fortemente marcados por intensos impulsos
eróticos os quais constituem um dos primeiros princípios para se fazer uma
possível leitura interpretativa de sua obra. Pensar criticamente a escrita literária
dessa sonetista portuguesa é pensar na escrita como perturbação, como
excitação. Achamos, portanto, que o erotismo é um dado importantíssimo para se
estudar, analisar e compreender a poesia florbeliana.
Os apelos do corpo em Florbela
O corpo fala, o corpo pede, o corpo revela, o corpo apela. O corpo, na
poética florbeliana, reclama o direito ao prazer A escrita florbeliana é extremamente
convidativa, pois se trata de uma poesia sinestésica, que é cor e som, que é
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perfume, que é luz e sombra. Eis, portanto, um recurso utilizado pela voz poética
para atrair a atenção do amado – e mais do que isso, para fazer suscitar o desejo no
objeto amado através da declaração do seu próprio desejo: o uso das diversas
sensações; ela apela para o tato, para a visão, para o olfato.
Trata-se de um recurso que faz parte do universo feminino, que é próprio
do erotismo feminino, conforme aponta Alberoni8: “O interesse das mulheres pelos
cremes de beleza, pelos perfumes, sedas, peles, tem um significado mais erótico
que social. Já no século passado, um primo de Darwin, Sir Francis Galto, havia
demonstrado que as mulheres possuem uma sensibilidade tátil muito mais
apurada que a dos homens.”9.
“Frêmito do meu corpo a procurar-te,
Febre das minhas mãos na tua pele
Que cheira a âmbar, a baunilha e a mel,
Doido anseio dos meus braços a abraçar-te,
Olhos buscando os teus por toda a parte,
Sede de beijos, amargor de fel,
Estonteante fome, áspera e cruel,
Que nada existe que a mitigue e a farte!
Como se vê no soneto acima, os sentidos estão todos apurados,
aguçados para viver momentos de paixão; o corpo da persona se confunde com o
desejo e chega a arrepiar, a vibrar na procura, na busca pelo amado (“frêmito do
meu corpo a procurar-te”). As mãos ardem (“Febre das minhas mãos”) ao tocar a
pele do “Outro”, “que cheira a âmbar, a baunilha e a mel.” No segundo quarteto o
uso da sinestesia prevalece. O “Eu” continua a buscar o “Outro” para saciar o
desejo, pois, ela está já tonta de fome e “nada existe que mitigue e a farte!” a não ser
o encontro tão almejado com o amado. Vejamos a seguir um comentário de
Francesco alberoni:
“O erotismo é uma forma de conhecimento, um conhecimento
do corpo. Do nosso corpo, do corpo do outro, um conhecimento
adquirido através do corpo. Nosso corpo tornar-se um objeto
erótico quando queremos agradar aos outros. É o desejo dos
outros que põe em movimento o nosso conhecimento. As
religiões ascéticas que combatem o erotismo, não o lavam.
Então todos os sentidos se embotam: o tato, a sensibilidade
cinestésica, o olfato.” (1986, p.185).
Então, como foi observado, para exprimir o desejo de ter o Outro, Florbela
utilizou no poema o tato – “Febre das minhas mãos na tua pele”. –; o olfato – “Que
cheira a âmbar, a baunilha e a mel” –; a visão – “Olhos buscando os teus por toda a
parte” e o paladar: “Sede de beijos, amargor de fel, / Estonteante fome, áspera e
cruel”. Trocando em miúdos com a citação transcrita acima, podemos ver no soneto
“III” que a persona poética faz do próprio corpo e do corpo do amado o principal
elemento erótico, a principal fonte de sedução.
A dinâmica dos sentidos, a mistura das sensações percorre o soneto e é
exatamente essa dinâmica que dá o tom erótico e sensual do poema, indo ao
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E o meu coração que tu não sentes,
Vai boiando ao acaso das correntes,
Esquife negro sobre um mar de chamas...”
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E vejo-te tão longe! Sinto a tua alma
Junto da minha, uma lagoa calma,
A dizer-me, a cantar que não me amas...
133
encontro de uma citação10 utilizada por Alberoni (1986) a qual afirma que o erotismo
feminino é mais tátil, muscular, auditivo, mais ligado aos odores, à pele e ao contato.
Outro elemento que aparece constantemente na poética de Florbela é a
temática do vinho que, como sabemos, é uma bebida afrodisíaca e, quando
bebemos, geralmente, liberamos nossos instintos. O vinho esquenta os corpos e
os corações e é, por isso, com freqüência, associado à sedução, à volúpia, ao
desejo. Observemos o soneto “Realidade”:
“Em ti o meu olhar fez-se alvorada
E a minha voz fez-se gorjeio de ninho...
E a minha rubra boca apaixonada
Teve a frescura pálida do linho...
Embriagou-me o teu beijo como um vinho
Fulvo da Espanha, em taça cinzelada...
E a minha cabeleira desatada
Pôs a teus pés a sombra dum caminho...
Minhas pálpebras são cor de verbena,
Eu tenho os olhos garços, sou morena,
E para te encontrar foi que nasci...
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Tens sido vida fora o meu desejo
E agora, que te falo, que te vejo,
não sei se te encontrei... se te perdi... “
134
O poema “Realidade” reflete bem a eterna busca, a ânsia por uma
totalidade, a eterna procura da persona poética pela paixão de alguém que fosse
capaz de saciar seu desejo, e de promover nela a sensação de completude. A leitura
interpretativa do soneto permite-nos dizer que o sujeito lírico se prepara para
receber o amado: ”E a minha cabeleira desatada / pôs a teus pés a sombra dum
caminho...”.
O primeiro quarteto do poema já parece ser uma preparação do “Eu” para
unir-se ao amado. A expressão “gorjeio de ninho” pede comprovar isso, pois, como
sabemos, a palavra ninho conota lugar onde os casais namoram, fazem amor. Já
gorjeio é o mesmo que som agradável (canto dos pássaros). Então, quando o
sujeito poético diz que “minha voz fez gorjeio de ninho” podemos interpretar como
se ela tivesse fazendo um canto de preparação para a relação amorosa, da mesma
forma que os pássaros gorjeiam quando estão se preparando para o
acasalamento.
No segundo quarteto, o primeiro verso “Embriagou-me o teu beijo como
um vinho” já indica um contato mais íntimo entre a persona lírica e o amado. O beijo
do amado, assim como o vinho, deixou a persona arrebatada, inebriada. Esse
verso dialoga com os cânticos de Salomão: “Beije-me ele com os beijos da sua
boca; pois melhor é o seu amor do que o vinho11”. E também: “e os teus beijos como
o bom vinho para o meu amado, que se bebe suavemente, e faz com que falem os
lábios dos que dormem.12”.
A expressão “cabeleira desatada” também aponta para um contato
íntimo, pois, lembremos que antigamente o ato de soltar os cabelos era algo
sensual, sedutor, uma vez que as mulheres mantinham-nos presos e só os
soltavam nos momentos mais íntimos. Na terceira estrofe, a persona faz seu autoretrato e no último verso diz que nasceu para encontrar seu amado, como se fosse
o destino, a sina dela. É como se o amor dela fosse algo transcendental (indo ao
encontro da metafísica e do misticismo tão apreciados pelos simbolistas).
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E, finalmente, no segundo terceto temos: “Tens sido vida fora o meu
desejo”, esse verso dialoga com Bataille (2004, p. 45) no seu ensaio sobre o
erotismo quando diz que o erotismo busca incessantemente fora um objeto de
desejo, embora ele seja um dos aspectos da nossa vida interior.
Observemos agora o soneto “Volúpia”:
“No divino impudor da mocidade,
Nesse êxtase pagão que vence a morte,
Num frêmito vibrante de ansiedade,
Dou-te meu corpo prometido à morte!
A sombra entre a mentira e a verdade...
A nuvem que arrostou o vento norte...
– Meu corpo! Trago nele um vinho forte:
Meus beijos de volúpia e de maldade!
Trago dálias vermelhas no regaço...
São os dedos do sol quando te abraço,
Cravados no teu peito como lanças.
Há vários vocábulos pertencentes ao campo semântico do erótico, como
exemplo temos: “êxtase, frêmito vibrante, beijos de volúpia, arabescos etc. é
interessante que o uso dois vocábulos juntos que têm o /r/ vibrante provoca, no
poema, o próprio efeito vibratório: “frêmito vibrante”.
No terceiro verso do segundo quarteto o corpo da persona poética se
confunde com o vinho – “– Meu corpo! Trago nele um vinho forte” – o que faz com
que o soneto torne-se ainda mais sedutor. O poema termina com a persona
envolvendo o amado em “voluptuosas danças” : temos, então, um emaranhado de
corpos, pois, arabescos são ornamentos de origem árabe nos quais se
entrelaçam linhas. Podemos inferir que, na última estrofe, temos a realização do
próprio ato sexual.
É relevante registrar aqui o comentário que Dal Farra faz sobre esse
soneto:
“[...] Eis aqui uma peça que privilegia o tato, com seu corolário,
aliás pleonástico, de frêmitos vibrantes, bem como a simbólica
alimentar que através da imagem transubstanciada do vinho,
identifica o corpo feminino ofertado. Resulta daí uma liturgia da
volúpia, onde paganismo de divindade se entrelaçam para
vencer o destino do corpo que, desde o nascimento prometido
à morte, fica desviado, no poema, para as mãos e para o
domínio do amado.”
No poema abaixo, intitulado “Toledo”, também podemos encontrar a
dinâmica do vinho, cujo efeito (a embriaguez, o êxtase) se confunde com a própria
libido da persona poética: “Meu corpo de âmbar, harmonioso e moço /É como um
jasmineiro em alvoroço/ Ébrio de sol, de aroma, de prazer!”. A sinestesia
permanece: “As tuas mãos tateiam-me a tremer” (o tato); “Meu corpo de âmbar”
(olfato), conforme observaremos no poema:
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O soneto “Volúpia” já carrega no título um teor de erotismo, pois, o
significado de volúpia é grande prazer dos sentidos, sobretudo o prazer sexual. O
poema inteiro é um ofertório do corpo da persona poética ao amado.
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E do meu corpo os leves arabescos
Vão-te envolvendo em círculos dantescos
Felinamente, em voluptuosas danças...”
135
“Diluído numa taça de oiro a arder
Toledo é um rubi. E hoje é só nosso!
O sol a rir... viv'alma... não esboço
Um gesto que me não sinta esvaecer
As tuas mãos tateiam-me a tremer...
Meu corpo de âmbar, harmonioso e moço
É como um jasmineiro em alvoroço
Ébrio de sol, de aroma, de prazer!
Cerro um pouco o olhar onde subsiste
Um romântico apelo e mudo
- um grande amor é sempre grave e triste.
Flameja ao longe o esmalte azul do Tejo
Uma torre ergue ao céu um grito agudo...
Tua boca desfolha-me num beijo...”
Outro recurso utilizado para chamar a atenção do amado é a autodescrição que a voz poética faz também com o intuito de apelar para o olhar do
amado. Observemos o soneto “Passeio ao campo”:
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“Meu Amor! Meu Amante! Meu Amigo!
Colhe a hora que passa, hora divina.
Bebe-a dentro de mim, bebe-a comigo!
Sinto-me alegre e forte! Sou menina!
136
Eu tenho, Amor, a cinta esbelta e fina...
Pele doirada de alabastro antigo...
Frágeis mãos de madona florentina...
-Vamos correr e rir por entre o trigo!
Há rendas de gramíneas pelos montes...
Papoilas rubras nos trigais maduros...
Água azulada a cintilar nas fontes...
E à volta, Amor... tornemos nas alfombras
Dos caminhos selvagens e escuros,
Num astro só as nossas duas sombras...”
É interessante perceber no poema transcrito acima o retrato que a voz
lírica traça de si mesma, com a clara intenção de invocar o outro, a persona lírica faz
o seu auto-retrato. Ela se desenha, ela se descreve. É interessante perceber que o
auto-retrato que se repete nos sonetos florbelianos não é somente um culto à sua
própria imagem. Mais do que um ato tão-somente e puramente narcisístico, é um
ato de oferta ao amado; trata-se de um verdadeiro ofertório para envolver o Outro.
O Eu se desenha para chamar a atenção do Outro, para ser notada e, mais do que
isso, ela espera ter seu desejo reconhecido pelo amado, pois, conforme comenta
Palmier (1977, p.100):
“O desejo não é um simples apelo ao outro como outro, uma
simples busca do amor como o é a solicitação. Não se satisfaz,
de forma alguma, com um objeto, como a necessidade. O que
é próprio do desejo é que ele se enraíza no imaginário do
sujeito. Ele é o desejo de um Outro, mas desejo de um outro
desejo, desejo de fazer com que seu próprio desejo seja
reconhecido pelo outro. É o que expressa esta fórmula tornada
clássica por Lacan: ”o desejo do homem é o desejo do outro.”.”
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Considerações finais
Todos os movimentos, ações, características e explorações do corpo têm
um efeito sobre o Outro. É exatamente por esse motivo que a persona lírica dos
sonetos que foram aqui analisados faz do corpo o principal artifício para atrair a
atenção do amado. O corpo da persona está desejoso e, por isso, os sentidos estão
todos aguçados para ser tocado, para ser dominado pelo Outro. Alberoni (1986,
p.26) faz o seguinte comentário:
O erotismo em Florbela, como já foi comentado, se manifesta através do
desejo que a persona lírica revela em estar perto do amado, em unir-se a ele,
rendendo-se aos desejos do corpo e tornando-se escrava do prazer. Somente
através dessa união é que, supostamente, o sujeito poético alcança a sensação de
fazer-se completo. O erotismo é, portanto, uma forma de busca pela completude,
pela integração.
Temos desse modo, algo que vai bem mais além do ato puramente
sexual. Trata-se de um erotismo que ganha uma dimensão mais ampla,
transcendendo a barreira do físico e conseguindo alcançar uma dimensão
espiritual. No entanto, para que essa dimensão espiritual seja possível, é preciso
que, primeiramente, a persona conquiste o amado. Justifica-se, então, a
exploração do corpo na poética de Florbela Espanca.
Para concluir, tentamos demonstrar no percurso desse artigo, através da
análise de alguns sonetos que, Florbela Espanca, incorporada num “Eu” que, ao
descrever, se descreve, dialoga com Barthes (2003) que diz que “a linguagem é
uma pele: esfregue a minha linguagem no outro. É como se eu tivesse palavras ao
invés de dedos, ou dedos ao invés de palavras. Minha linguagem treme de desejo.”
É exatamente isso que Florbela/sujeito poético faz: esfrega a linguagem/corpo no
outro. A abordagem do erotismo na poesia florbeliana começa, portanto, com um
apelo aos sentidos para que o Outro perceba o corpo desejoso – que a voz poética
quer que se torne desejado. Através das “sensações, emoções e imagens” do
corpo, o “Eu” quer envolver o amado, captando o olhar dele e fazendo com que ele
mergulhe no seu universo íntimo.
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Então, trocando em miúdos com o comentário transcrito acima, podemos
inferir que, em geral, a mulher quer sentir a presença física do amado, quer estar
perto do amado para que, dessa forma, ela alcance a sensação de completude.
Mais do que a efemeridade do prazer carnal, a mulher busca a continuidade. É isso
que acontece nos escritos florbelianos: a voz poética busca incessantemente a
fusão com o Outro.
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“Existe uma estreita ligação entre o erotismo tátil, muscular,
entre a capacidade de sentir os odores, os perfumes, os sons e
o prazer de ser desejada e amada de modo contínuo. A mulher
quer sentir a presença física do seu homem, sentir as mãos
dele sobre sua pele, a força doce e acolhedora de seu abraço,
seu cheiro, a mistura dos cheiros que se torna perfume. Quer
ouvir sua voz profunda a chamá-la. Quer sentir a aspereza de
seus pêlos, o peso de seu corpo, a força delicada de suas
mãos, o leve contato entre seus dedos, o furtivo tocar-se que
renova-se que renova a declaração de amor de maneira
infinitivamente melhor que quaisquer palavras.”
137
NOTAS
1
Poetisa portuguesa, natural de Alentejo, Vila Viçosa que fica no sul de Portugal.
2
Charneca em flor: 1999, p.212.
3
p.216.
4
p.227.
5
p.238.
6
p.258
7
Carta enviada ao professor Guido Battelli, datada de 28 de outubro de 1930.
8
O erotismo. Fantasias e Realidades do Amor e da Sedução: 1986. p. 9-10.
9
Francis Galton: “The relative sensibility of men and Women at the nape the neck”, Nature, 1894.
10
Beatrice Faust: Woman sex ad pornography, Nova York, Penguin Books, 1981.
11
1995, p.578.
12
p.580.
REFERÊNCIAS
BATAILLE, Georges. O erotismo. Tradução de Cláudia Fares. São Paulo: Arx, 2004.
BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
vivência
35
ALBERTONI, Francesco. O erotismo Fantasias do amor e da sedução. São Paulo: Círculo do livro, 1986.
DAL FARRA, Maria Lúcia. Os devaneios eróticos de Florbela. (29-39) In: Encontros prodigiosos. Anais do
XVII encontro universitários brasileiros de literatura portuguesa. V.1. Belo Horizonte: FALE/UFMG: PUC
Minas, 2001.
138
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n. 35 2010 p. 129-138
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10_Lígia Mychelle de Melo Silva