ANAIS DO III CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
Comitê Dança em Mediações Educacionais – Setembro/2014
DANÇAS FOLCLÓRICAS E DANÇAS POPULARES:
LIMITES E POSSIBILIDADES DA CULTURA POPULAR
Thais Ferreira* (UFBA)
Orientadora: Lúcia Matos**
RESUMO: Estudar a cultura popular nos leva a pensar em diferentes entendimentos da
dança. Assim, propomos discutir os modos como as diferentes configurações de dança,
folclórica e popular, estão sendo abordadas na cultura popular. Como compreender
formas de manifestações que são parte de um mesmo processo, com significados
díspares e alcance singular? Será necessário compreender as danças como parte de um
processo de transformação, representado ora pelo olhar da cristalização da tradição e ora
pelo olhar da tradução da cultura.
PALAVRAS-CHAVE: Dança Popular. Dança Folclórica. Cultura Popular. Tradição.
Tradução.
ABSTRACT: Studying popular culture leads us to think in different understandings of
dance. Thinkin these perspectives, we propose to discuss the ways in which different folk
and popular dance’s configurations are being approached in the popular culture. How what
to understand expressions forms that are part of the same process, that have different
meanings and an unique reach (competency)? For this will be necessary to understand
the dances as part of transformation process, represented sometimes by a crystallization
view of one tradition, sometimes by view of version’s culture.
KEIWORDS: Popular Dance. Folk Dance. Popular Culture. Tradition. Translation.
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Entre-lugares da cultura: folclore como tradição e cultura popular como tradução
A discussão apresentada neste artigo está circunstanciada pela pesquisa de
mestrado, ora em estágio inicial,e visa ampliar a discussão sobre meu objeto de
pesquisa– danças populares. Minha experiência nas escolas públicas do Paraná, instigou
a pensar nas manifestações populares, mais especificamente nas danças folclóricas
como o foco da pesquisa. Entretanto, ao me inserir no universo da dança em Salvador,
pude verificar diferenças de abordagens entre as danças folclóricas, abordadas, no meu
contexto, e as danças populares em Salvador. Isso gerou uma problematização para o
termo folclore, suas limitações bem como instigou-me a compreender o alcance da cultura
popular.
O termo folklore – folk (povo), lore (saber) – foi criado pelo arqueólogo inglês
Willian John Thoms em 22 de agosto de 1846 e adotado com poucas adaptações por
grande parte das línguas européias, chegando ao Brasil com a grafia pouco alterada:
folclore. O termo identificava o saber tradicional preservado pela transmissão oral entre os
camponeses e substituía outros que eram utilizados com o mesmo objetivo –
“antigüidades populares”, “literatura popular” (Vilhena, 1997, p. 24).
Nesse sentido de “saber do povo”, o folclore designa diferentes formas de
conhecimento e manifestações culturais de diversos grupos de uma sociedade. É a partir
do conjunto das tradições culturais transmitidas que o folclore é pensado, tais como as
danças, festas tradicionais, brincadeiras infantis, lendas, superstições, músicas,
manifestações religiosas, mitos, entre outras. Há aqui um contraponto entre a cultura
popular e erudita, mas não parece claro delimitar onde começa e termina o folclore.
Considera-se, por exemplo, a dança do Frevo ou Maracatu uma manifestação do folclore
ou cultura popular? Ou ainda o Fandango Paranaense é uma dança folclórica ou dança
popular? Foram estes questionamentos que me levaram a iniciar esta discussão, e
investigar isso é o maior desafio no momento.
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A Carta do Folclore Brasileiro de 19951, a qual é uma releitura da Carta de 1951,
aprovada no I Congresso Brasileiro de Folclore, traz no Capitulo I o seu conceito:
1. Folclore é o conjunto das criações culturais de uma comunidade, baseado nas
suas tradições expressas individual ou coletivamente, representativo de sua
identidade social. Constituem-se fatores de identificação da manifestação folclórica:
aceitação coletiva, tradicionalidade, dinamicidade, funcionalidade. (s/p)
Nesta Carta, folclore e cultura popular são entendidos como equivalentes, como se
fossem iguais, pois dialogam sobre as mesmas questões e ocupam o mesmo espaço na
pesquisa.
Para Cascudo (1972) o folclore é considerado como cultura, nele ocorrem
mudanças, por isto é dinâmico, enquanto funcional. Estas mudanças operam-se através
da invenção de novos instrumentos e técnicas em prol da melhoria da qualidade de vida
do povo.
Tanto a Carta do Folclore quanto Cascudo trazem o conceito de folclore como algo
dinâmico, estático mas mutável, porém como ser tradicional e dinâmico ao mesmo
tempo? Sendo que tradicional é o que se funda na tradição, que incorpora hábitos e
costumes.
Para melhor compreensão, a tradição vem do latim traditio, tradere que significa
entregar ou "passar adiante", é a continuidade ou permanência de uma doutrina, visão de
mundo, costumes e valores de um grupo social. Com isso, tradição é a tentativa de
permanência, é uma postura rígida frente a cultura, a qual não corresponde ao dinamismo
que é apresentado acima pelos autores.
A tradição pode ser interpretada como a cristalização da cultura, como se fosse
possível transferir ou transpor conhecimentos e costumes de uma época para a outra sem
que eles sofram transformações e adaptações, como algo estável, de forma que a cultura
1
O VIII Congresso Brasileiro de Folclore, reunido em Salvador, Bahia, de 12 a 16 de dezembro de 1995, procedeu à
releitura da Carta do Folclore Brasileiro, aprovada no I Congresso Brasileiro de Folclore, realizado no Rio de Janeiro, de
22 a 31 de agosto de 1951. Esta releitura, ditada pelas transformações da sociedade brasileira e pelo progresso das
Ciências Humanas e Sociais, teve a participação ampla de estudiosos de folclore, dos diversos pontos do país, e
também teve presente as Recomendações da UNESCO sobre Salvaguarda do Folclore, por ocasião da 25ª Reunião da
Conferência Geral, realizada em Paris em 1989 e publicada no Boletim nº 13 da Comissão Nacional de Folclore,
janeiro/abril de 1993.
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seja transmitida de uma geração a outra e reproduzida de forma fiel, acreditando na
possibilidade de manter viva a tradição.
De acordo com Hall, 1998 (apud AMOROSO, 2009, p. 125), existe outra
possibilidade para a tradição: a Tradução: Ela descreve aquelas formações de identidade
que atravessam e cruzam as fronteiras naturais, e que são formadas por pessoas que se
dispersam para sempre de suas terras natais. Tais pessoas mantêm fortes vínculos com
seus lugares de origem e de tradições, mas não possuem a ilusão de um retorno ao
passado. Elas são obrigadas a chegar em um acordo com as novas culturas em que
vivem, sem que sejam completamente assimiladas por elas, ou que percam
completamente suas identidades.
A tradução descrita por Hall corresponde ao que é possível compreender como
cultura, pois ela atravessa as fronteiras da tradição, dissolve as consolidações do
passado no presente, repensando, reconfigurando e realizando uma releitura da cultura.
Este acordo entre o que passou e o presente é uma postura que possibilita ir além, estar
no além, revisitar o passado com o olhar do aqui e agora. Conforme a afirmação de Homi
Bhabha (2013):
Estar no “além”, portanto, é habitar um espaço intermédio, como qualquer dicionário
lhe dirá. Mas residir “no além” é ainda, como demonstrei, ser parte de um tempo
revisionário, um retorno ao presente para redescrever nossa contemporaneidade
cultural; reinscrever nossa comunalidade humana, histórica; tocar o fundo em seu
lado de cá. Neste sentido, então, o espaço intermédio “além” torna-se um espaço de
intervenção no aqui e no agora. (p. 28)
Deste modo, Bhabha explana um conceito de cultura dinâmico, tradutório e híbrido,
que gera o trânsito de experiências e cria significados novos para símbolos culturais. Para
ele, o conceito está relacionado aos deslocamentos que colocam em choque diferenças
culturais, como uma ação da sobrevivência, pois para ir além ou estar no além é
necessário o retorno ao passado e uma reinscrição histórica no presente. Para o autor, o
conceito de hibridismo ressalva que “culturas são construções e as tradições, invenções”
(Bhabha, 2013, p. 126), e que, quando em contato, criam novas construções
desterritorializadas, ou seja, para além das fronteiras, atravessando-as e cruzando-as,
“tocando o fundo em seu lado de cá”.
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Conforme a citação do parágrafo anterior, se a ideia de tradição está presa ao
folclore então ele possivelmente é invenção, e se o conceito de cultura leva em conta a
dinâmica das transformações por que passam as sociedades, tanto de perdas quanto de
recuperações constantes de valores sócio-histórico-culturais, o folclore também pode ser
compreendido como a tradução ou construção. Mas há um risco neste entendimento do
folclore, pois ele estabelece vínculos com algo que já não tem sentido para quem o faz,
como um processo de repetição sem reinvenção, ao mesmo tempo em que se ele é
tradição também é inventivo, sendo assim será que toda invenção não é uma forma de
construção? Como passado e presente estão relacionados à cultura sem ser continuidade
um do outro, sendo que são constantemente construção ou invenção?
O trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com o novo que não seja parte do
continuum de passado e presente. Ele cria uma ideia do novo como ato insurgente de
tradução cultural. Essa arte não apenas retoma o passado como causa social ou
precedente estético; ela renova o passado, reconfigurando-o como um “entre-lugar”
contingente, que inova e interrompe a atuação do presente. O “passado-presente”
torna-se parte da necessidade, e não da nostalgia, de viver. (Bhabha, 2013, p. 29).
Os entre-lugares representam as diferenças culturais, os quais fornecem terrenos
para criar estratégias singulares e plurais de subjetivação, dando início a novos signos e
traduções da sociedade, são deslocamentos culturais que em contato com o outro se
contaminam e transformam, tendo nas fronteiras não o fim de algo, mas sim o ponto
inicial de alguma coisa que começa ali naquele momento presente.
Este entendimento de cultura leva em consideração o sujeito como agente social,
portanto cultura constitui parte indissociável da experiência humana. No seu livro Cultura
Brasileira: o que é, como se faz? Aldo Vannucchi (2011, p.9) afirma que como todo ato
humano, a cultura envolve as categorias fundamentais do sujeito (a própria pessoa
humana), do objeto (o conjunto infinito dos produtos culturais) e do processo (o vir-a-ser
permanente da existência criadora). Considerando que todo grupo humano, assim como
nós brasileiros, vai adquirindo uma identidade própria ao longo da história, com
ingredientes dinâmicos e híbridos como então definir cultura popular?
Para Vannucchi (2011, p. 13) “existem dois planos culturais no Brasil: o erudito,
marcado pela branquidade e pela europeidade, alienado e alienante; e o vulgar, das
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camadas subalternas, mais criativo, mais aberto à convivência humana e ao atendimento
imediato das necessidades espirituais.” O segundo plano cultural, considerado como
vulgar pelo autor, diz respeito a cultura popular, aos saberes dos colonizados, com
diversas influências desde a européia até a indígena e africana, o qual é a identidade do
Brasil, representando nossa brasilidade e sua história. O mesmo autor complementa: “Foi
por meio desta cultura vulgar – recheada de elementos indígenas e africanos – que o
povo brasileiro edificou, com os tijolos e cimentos de que dispunha, a cultura nacional que
tinha assentado na terra e de significativo para toda a população.” (2011, p.14).
Existia e ainda existe preconceito sobre tudo que é popular, como sendo algo
subalterno, ruim, de pouco valor, inferiorizado, justificado na história do país como a
cultura dos povos de cor, sendo assim a cultura popular foi e ainda é marginalizada, ao
mesmo tempo em que pode ter sido manipulada e influenciada pela dominação cultural.
Conforme Hall (apud AMOROSO, 2009, p. 106):
A dominação cultural tem efeitos concretos – mesmo que estes não sejam todo
poderosos ou todo-abrangentes. Afirmar que essas formas impostas não nos
influenciam equivale a dizer que a cultura do povo pode existir como enclave isolado,
fora do circuito de distribuição do poder cultural e das relações de força cultural. Não
acredito nisso. Creio que há uma luta continua e necessariamente irregular e
desigual, por parte da cultura dominante, no sentido de desorganizar e reorganizar
constantemente a cultura popular; para cercá-la e confinar suas definições e formas
dentro de uma gama mais abrangente de formas dominantes. (Hall, 2003, p.239).
Esta citação de Hall pode ser exemplificada nas danças populares de determinado
grupo que passam a visitar palcos e teatros, para esta transição do chão de determinado
povoado para o palco do espetáculo pode ser necessária uma releitura do que é popular
em seus modos de fazer dança/dançar. É uma constante busca por aceitação, uma
estilização do popular, que muitas vezes perde o sentido ao se deslocar do meio social
que realmente acontece, pois tende a reproduzir modelos da cultura dominante e acaba
por desvalorizar sua própria cultura.
Apesar de a cultura popular ser um lugar de ascensão, a qual tem buscado
legitimidade e valorização, ainda existem preconceitos, tanto no meio acadêmico quanto
da sociedade em geral. É uma dificuldade de compreensão de que todo povo é povo e
que o “saber do povo” é cultura popular, e sendo saber é carregado de conhecimento, o
qual compartilhamos e construímos no dia a dia da sociedade.
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Estudar a cultura popular nos leva a pensar em diferentes abordagens da dança,
os conceitos acima discutidos apontam para o entendimento das danças folclóricas e
danças populares como diferentes formas de compreensão da cultura, ora como tradição
ora como tradução. Neste momento investigaremos as danças folclóricas, que tem como
foco a tradicionalidade. Para a discussão a seguir vou me valer da manifestação do
Fandango Paranaense, considerando que o mesmo pode ser observado dentro das
perspectivas da tradição ou da tradução da cultura popular e, para tanto, irei entrelaçar os
conceitos dos autores com depoimentos de um mestre do Fandango2, Aorélio Domingues.
Danças folclóricas e danças populares: cristalização da tradição e tradução
da cultura
Para situar o leitor será feita uma breve descrição sobre o fandango paranaense:
“O fandango é um rico depositário de canções e ritmos. Podemos dizer que Fandango é
uma reunião de várias danças (marcas). Sua coreografia variada é difícil, exige técnica,
atenção agilidade, preparo e calçados especiais para o sapateado.” (NOVAK, 2005, p.20)
Não se sabe ao certo a origem do fandango, alguns livros trazem a manifestação
como original dos portugueses, outros dos espanhóis, também acredita-se que
originalmente foram os índios carijós que iniciaram, outra possibilidade foram os casais de
colonos açorianos, e ainda há a influência dos negros vindos da África. Enfim não é
possível dizer que o fandango possui uma única matriz, e talvez seja por isso que ele é
tão rico em detalhes e técnicas, pois certamente tiveram múltiplas influências.
Desde as suas matrizes o Fandango sofreu transformações, adaptações e foi
sendo reconfigurado de alguma forma, porém existe uma compreensão do Fandango
como dança Folclórica e outra como Dança Popular. Considerando que as danças
folclóricas refletem a compreensão da tradicionalidade, como entender quando um grupo
de dança é folclórico ou popular, considerando que ambos são manifestações da cultura
popular?
2 Aorélio Domingues é neto de fandangueiro, rabequista e filho de Paranaguá PR, constrói instrumentos de
fandango. Mestre de Folia do Divino, do Fandango e do Boi de Mamão, trabalha na manutenção da cultura
popular como atividade espontânea em loco e costura possibilidades de promoção da arte popular através
da Orquestra Rabecônica do Brasil a qual é o idealizador.
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A ideia de tradição se prende ao folclore, porém o conceito de cultura popular leva
em conta a dinâmica das transformações por que passam as sociedades, então a perda e
recuperação constante de valores sócio-histórico-culturais podem ser entendidas como a
tradução da cultura. O risco do folclore é manter vínculos com algo que já não tem sentido
para quem o faz, como um processo de repetição sem reflexão, é o que pode acontecer
em determinados momentos com grupos de danças étnicas quando deixa de ser cultura
popular e passa a ser show, espetáculo.
O mestre do Fandango Aorélio Domingues, durante uma entrevista3 realizada em
17 de agosto de 2014, apresentou uma reflexão sobre o fandango paranaense,
considerando-o como não apenas dança, mas sim um universo:
Fandango é uma dança, ela ta inserida num contexto onde ela acontece por causa
daquele contexto social, fandango ele começa como paga de mutirão4 em outrora, se
fazia mutirão pra roçada, pra tiragem da mandioca, roçada de palha de samambaia,
daí a paga deste trabalho era um baile de fandango, quem não participasse do
trabalho não podia dançar. E mesmo sendo paga de trabalho, dentro deste contexto
que acontecia o fandango existiam também bebidas próprias do fandango, comidas
próprias do fandango e todo um vocabulário que rege este fandango, expressões,
nome de peça de viola, nome dos instrumentos propriamente dito, por isso que eu
falo que é um universo de coisas, fandango se estiver fora deste contexto caiçara ele
passa a ser folclórico. (Domingues, 2014).
O universo que rege o fandango é que dá sentido à sua prática, que o identifica
como manifestação, logo excluir o fandango desta comunidade é como deixar de lado o
que o caracteriza. Marianna Monteiro (p.44, 2011), observa e estuda danças populares, e
para ela nesta configuração escapa ao olhar o sentido que lhe dá o popular, pois
desconhecer alguns códigos internos que regem cada manifestação impede a apreciação
da expressão peculiar das comunidades.
Então deslocar a dança da sua comunidade pode ser uma forma de folclorizá-la,
pois isto demonstra que a preocupação é a representação de uma tradição, a
3
Entrevista concedida por DOMINGUES, Aorélio. Entrevista I. [agosto. 2014]. Entrevistador:Thais Ferreira.
Paranaguá, 2014. 1 arquivo .mp3 (1:06:38).
4
Paga de mutirão: fandango estava vinculado ao pixirão, ocasião em que os vizinhos auxiliavam o dono da
casa nos trabalhos da roçada ou plantação, após a plantação ou colheita o dono da casa oferecia um
Fandango de agradecimento, o que era muito apreciado pelos trabalhadores.
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cristalização da cultura, a qual desconsidera o universo, a comunidade na qual ela é tida
como tradutora desta mesma cultura. Aorélio ainda complementa:
[...] Para se ter um exemplo quando a gente faz espontaneamente esta manifestação
ela ta ali acontecendo por causa da amizade da camaradagem, da troca de favores
entre compadres ou entre violeiros, então existe esta troca e quando a gente faz isso
fora do contexto a gente ta fazendo ou por um cachê ou pra representar a dança
como a gente faz na comunidade né. Então a gente faz uma dança, por exemplo,
Curitiba a gente tem uma série de marcas que a gente já faz organizadamente, os
dançarinos entram e saem no momento que foi determinado e a gente realiza aquilo
num espaço de tempo determinado também, então isso é folclórico, é uma
sistematização. A dança não é folclórica porque ela não é morta ela é viva
espontaneamente, mas o ato de se fazer é folclórico, então é uma representação,
então o grupo comunitário ele se organiza como grupo, tem um representante, um
mestre, ele sai do contexto pra fazer uma representação daquilo que é na verdade,
sai do universo do fandango, então a gente considera isso folclórico. (Domingues,
2014).
Para Aorélio quando o Fandango está inserido dentro da comunidade, quando as
pessoas tocam viola e trocam versos, quando um sorri para o outro porque sabe que
errou, ele se torna parte do universo de vida daquelas pessoas, que cantam, comem,
dançam, falam e vivem o Fandango. Ele não é apenas algo isolado que é feito para
manter uma tradição, vai muito além disso, fandango é um modo de vida do povo caiçara.
Assim quando se trata de dança popular não há como separar o homem do seu contexto,
ou a dança dos acontecimentos que a envolvem.
Marianna Monteiro afirma que “a dança não pode ser apreciada separada da
música, do poema, da linguagem cênica, do conjunto de aspectos espetaculares da festa,
na qual se insere (...) não podemos compreender desvinculada do contexto das festas em
que ocorrem, com seus múltiplos significados religiosos, sociais, artísticos, afetivos e
simbólicos entrelaçados.” (2011, p.45).
Este é o reconhecimento de grande abrangência do fenômeno da dança popular,
pois as relações entre cultura popular e vida social são parâmetros da própria dança, que
de alguma forma identifica uma comunidade, na forma de compreender os espaços que
ela ocupa e as pessoas que estão inseridas naquele contexto. Para Monteiro (2001): A
vida cultural é sempre uma forma poderosa de manipulação do real por meio do símbolo,
cuja eficácia reforça um campo relativamente autônomo de significados.
Como entender as danças folclóricas sem considerar estes significados do
presente, como algo isolado, cristalizado, que reproduz a tradição de um povo?
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É possível que existam nas danças folclóricas formas expressivas vindas do
passado, porém estas são atualizadas a partir de novas compreensões e dinâmicas. O
Mestre Aorélio Domingues, representante do Fandango Paranaense traz uma reflexão
sobre os grupos de fandango do litoral paranaense, dentro dos quais consegue identificar
um grupo como folclórico. Este grupo de Mestre Romão5 recebeu a influência de um
professor e folclorista paranaense Inami Custódio Pinto que fez parte do grupo em um
momento que o fandango estava sendo revitalizado:
Na linhagem do mestre Romão que era apresentação, os melhores violeiros eram
dele, os melhores batedores de tamanco eram dele, então se via o grupo era
realmente perfeito, mas também era perfeito de figurino, também era perfeito de
maquiagem, também era perfeito de marcação de palco, era perfeito de mapa de
palco, de som, de luz, o grupo era perfeito, então ele tinha essa função de
apresentação. Quando começou a se fazer os bailes de fandango aqui no mercado6,
que começou a envolver o órgão publico, quem estava no órgão publico até então era
só o grupo de mestre Romão, que era um grupo folclórico porque também ele se
intitulava folclórico, e que ele vinha desta escola de folclore brasileira, então ele era
mestre, ele é mestre, os violeiros são mestres, cantadores, tocadores, mas é eles
repassaram o fandango perfeitamente para os jovens, formaram dezenas, centenas
de fandangueiros, mas com uma função folclórica, então você nunca via esses
dançarinos num baile por exemplo, se via muitos e muitos dançarinos em palco, mas
nenhum em baile, eles não participavam do universo do fandango. (Domingues,
2014).
A percepção dessas cristalizações parece essencial à compreensão dos sentidos
das danças folclóricas, pois existe um formato no qual ela se insere, a dança é
sistematizada e organizada para reproduzir uma manifestação folclórica. Não envolve
batedores de tamanco, tocadores e mestres em uma experiência além do palco, apenas
apresenta um repertório coreográfico previamente ensaiado, sem que o fandango seja
vivenciado na sua totalidade e além deste espaço, ficando limitado a apenas algumas
expressões da cultura popular, deixando de habitar o universo que Aorélio nos
apresentou. Em contrapartida ao grupo de Mestre Romão, existia também em Paranaguá,
5
Romão Costa, 74 anos, aposentado do serviço duro de estivador, ainda acha forças para ensinar e
divulgar o Fandango para os jovens de Paranaguá, dança desde os 12 anos de idade, desenvolvendo
assim o amor pela arte. Aprendeu muito sobre o fandango com seus pais e hoje é um grande conhecedor, é
quem passa com dedicação tudo que aprendeu sobre o fandango. Foi este conhecimento adquirido desde
os 12 anos que lhe rendeu o título de “Mestre”, pois “Mestre”, em fandango, é aquele que domina todas as
marcas. (NOVAK, 2005,p. 56)
6
Mercado do Café em Paranaguá – local onde os grupos de fandango se reúnem para os bailes.
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mais especificamente na Ilha dos Valadares, o grupo de mestre Eugênio 7 que
compreendia o fandango de outra forma:
Muito pelo contrário você via raramente o Mestre Eugênio em palco, mas o via em
todos os fandangos (bailes) e os dançarinos dele em todos os fandangos. Então são
duas linhagens assim, que nasceram com propósitos bem marcados, um folclórico
mesmo e o Sr Eugenio com um grupo de fandango, grupo ainda falando em grupo só
pela questão de se organizar, mas era fandango da Ilha dos Valadares. O grupo do
Mestre Romão era Grupo Folclórico Mestre Romão, tinha ele como mestre – figura
central e a função dele era representar a cidade em festivais e também fazer
apresentações em festas da cidade, a função deles era essa, depois que o Sr
Eugenio começou a se estruturar e começou a fazer os bailes na própria Ilha dos
Valadares ainda assim não houve um movimento do Grupo do Mestre Romão pra
olhar pra esta questão. (Domingues, 2014).
Conta Aorélio que com o tempo os grupos8 foram se modificando, os discursos
foram mudando e as diferenças começaram a diminuir, apesar delas existirem até hoje.
Na atualidade é possível ver os integrantes do Grupo Folclórico do Mestre Romão
freqüentando bailes e também quando convidados, os outros grupos se organizam e
fazem apresentações em palco. Este olhar múltiplo que dá visibilidade a sabedoria
popular propõe uma ligação com a história que acredita no deslocamento no espaçotempo e nas transformações que acontecem neste percurso. O fandango e suas
pluralidades fazem parte da construção da história que o tempo todo se desvelam e
revelam, indicando um olhar mais contemporâneo e menos folclórico para a dança.
Conforme Daniela Amoroso (2013) que apresenta a poética da dança popular brasileira
que mostra um corpo que tem uma maneira de viver, uma técnica de corpo, um
movimento que nos traz a tradição do passado para o dinamismo do presente.
Desta forma podemos compreender que danças folclóricas ou populares
dependem das manifestações culturais que em que estão inseridas, sendo elas parte do
passado, tidas como tradições, ou sendo a cultura viva que se transforma e modifica. É
possível compreender que há limites em uma e possibilidades na outra, porém é
importante admitir que ambas andam juntas, compartilham de pensamentos e crenças,
7
Mestre Eugenio: mestre do fandango que faleceu em 2011, grande representante do fandango enquanto
dança e manifestação popular, entusiasta da cultura de Paranaguá.
8
O fandango paranaense está se firmando a partir destes grupos que incansavelmente mantiveram as
festas, bailes e pessoas reunidas, seja para bater tamanco, comer barreado ou tocar rabeca, fazendo com
que hoje ele seja considerado patrimônio cultural imaterial do Paraná.
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que são envolvidas pelos mesmos saberes do povo e que buscam expressar a cultura
popular.
Esta pesquisa investigou o limite da dança folclórica que é a tradição e as
possibilidades da cultura popular, traduzida nas danças populares. O lugar que na dança
folclórica é cristalizado é o mesmo entre-lugar onde a dança popular se articula, comunica
e transforma. Ou seja, elas estão conectadas no passado, ligadas de alguma forma no
presente e inter-relacionadas no que diz respeito à cultura popular e suas manifestações,
ambas defendem e representam um espaço próximo, dentro do qual em algum momento
se atravessam, sendo que de algum modo contaminam e são contaminadas,
considerando as dinâmicas sociais.
Portanto, mesmo uma dança folclórica que tenha como foco o espetáculo, com a
tentativa de manter viva a tradição, ainda assim ela está dentro do contexto da cultura
popular que faz com que o tradicional seja transformado pela cultura dinâmica. Para este
entendimento foi necessário perceber a cultura popular, as tradições e as traduções
enquanto dança, também foi
imprescindível
a reflexão para compreender os
deslocamentos, no caso o trânsito de lugares - do Paraná a Salvador, o de conceitos - do
Folclórico ao Popular, criando assim embasamento para a compreensão do aqui e agora,
alicerces que por vezes foram indefinidos, mas que nunca perderam o sentido, apenas se
permitiram transformar e modificar, para que o objeto de pesquisa desta investigação seja
sempre o melhor lugar do mundo, conforme Gilberto Gil (1977):
“O melhor lugar do mundo é aqui,
E agora
Aqui onde indefinido
Agora que é quase quando
Quando ser leve ou pesado
Deixa de fazer sentido
Aqui de onde o olho mira
Agora que ouvido escuta
O tempo que a voz não fala
Mas que o coração tributa...”
Concluo este artigo com o sentimento de algo que esta em um constante processo
de transformação, como a cultura popular. Como se esta discussão seja apenas o
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princípio de um estudo que não pode ser descrito em linhas ou citações, ele faz parte de
um entendimento maior e ao ser contextualizado pode ter sua compreensão modificada.
Este é o universo da cultura popular, que instiga, inquieta e move o pesquisador.
Referências
AMOROSO, Daniela. Levanta, mulher, e corre a roda: dança, estética e diversidade no
samba de roda de São Félix e Cachoeira. 260p. Tese. (Doutorado em Artes Cênicas),
Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, Escola de Dança e de Teatro,
Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2009.
BHABHA, Homi K. O local da Cultura. 2 ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013.
CASCUDO, Luiz Camara. O folclore está vivo. Entrevistador: Dailor Varela. Veja, São
Paulo. P. 3-5, edição 189. 19 abr. 1972.
GIL, Gilberto. Refavela. Aqui e Agora. Rio de Janeiro: Som Livre, 1977. CD. Faixa 3.
MONTEIRO, Marianna Francisca Martins. Dança Popular: espetáculo e devoção. São
Paulo: Editora Terceiro Nome, 2011.
NOVAK, Patricia. Fandango Paranaense da Ilha dos Valadares: uma manifestação
caiçara. Curitiba: Imprensa Oficial, 2005.
VANNUCCHI, Aldo. Cultura Brasileira. O que é, como se faz? São Paulo: Edições Loyola,
1999.
VILHENA, L.R. Projeto e missão: o movimento folclórico brasileiro 1947-1964.
Rio de Janeiro, Funarte, 1997.
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Mestranda em Dança na Universidade Federal da Bahia (2014), membro do grupo de pesquisa PROCEDA
– Políticas e Processos Educacionais em Dança e bolsista da CAPES, especialista em Ludopedagogia
(2013) e graduada em Educação Física pela UFPR (2007). Seus estudos recaem sobre o tema Danças
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ANAIS DO III CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
Comitê Dança em Mediações Educacionais – Setembro/2014
Populares na escola, tendo como linha de pesquisa Mediações Culturais e Educacionais em Dança. E-mail:
[email protected]
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Lúcia Matos é professora Adjunto III da Escola de Dança da UFBA, Bolsista de Produtividade em
Pesquisa UFBA (PQ 2014/2015). Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Dança – UFBA (20112013/reeleita para o biênio 2013-2015). Doutora em Artes Cênicas (UFBA, 2006, bolsista CAPES). Mestre
em Educação (bolsista CAPES). É co-lider e pesquisadora do grupo PROCEDA – Processos
Corporeográficos e Educacionais em Dança (UFBA), atuando na linha de pesquisa Políticas e Processos
Educacionais. E-mail: [email protected]
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