Prefácio
Em nome da Liga da Canela Preta
Marcos Rolim*
Houve um tempo, e não faz muito, em que se considerou o uso da minissaia, criada pela estilista inglesa Mary
Quant, uma prática delituosa. Em meados dos anos 60,
duas jovens porto-alegrenses foram às ruas desta pátria bagual usando as saias curtíssimas que estavam na moda em
Londres. Foram então acossadas por dezenas de homens
em plena Rua da Praia, ofendidas verbalmente e ameaçadas a ponto de a polícia ser obrigada a intervir, conduzindo as meninas à delegacia, onde se lavrou a competente
ocorrência de “atentado à moral e aos bons costumes”. Na
época, as moças foram vilipendiadas pela ousadia. Hoje,
todos sabemos que elas nada fizeram de errado e que seus
agressores é que mereceriam a vergonha pública. Na mesma época, era comum que mulheres fossem proibidas de
trabalhar vestindo calças compridas, os jeans eram vistos
como “roupa de transviados” e jovens do sexo masculino que usassem cabelos compridos eram, evidentemente,
“maconheiros” ou “pederastas” (ou os dois).
Como já se observou, o saber é sempre limitado, mas
* Doutor e mestre em Sociologia, jornalista, pesquisador e professor
do Centro Universitário Metodista IPA. Ex-presidente da Comissão
de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do RS e da Câmara
dos Deputados.
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a ignorância é infinita e, ainda hoje, se pode encontrar pessoas cuja visão de mundo é formada por um magma de
preconceitos – racistas, misóginos, homofóbicos, a lista é
longa – e por intolerância. O fato a destacar, entretanto, é
que o mundo se move.
A história é aquilo que alguém contou sobre ela e que,
por boas ou más razões, é repetido pelos demais. Por isso,
estamos sempre – ainda que disso não tenhamos consciência – “fazendo” história. Os processos e os acontecimentos
que podem ser isolados para a análise não têm, em si mesmos, qualquer sentido. Somos nós que atribuímos a eles os
sentidos que, uma vez compartilhados, passam a ser aceitos
como verdades. Para que algo seja considerado verdadeiro
é preciso que se estabeleça em torno dos enunciados um
determinado consenso, já nos ensinou Habermas. Por isso,
fatos e processos históricos costumam mudar de sentido
na medida em que os consensos que os amparavam são
quebrados por novas informações, por evidências científicas e por mudanças culturais e de sensibilidade.
Este novo trabalho de Léo Gerchmann tem tudo para
ser considerado histórico no sentido de ser o primeiro texto de pesquisa a respeito do alegado “racismo” que teria
caracterizado o Grêmio em suas origens. Uma mácula tão
antiga e tão naturalizada que foi aceita como verdadeira até
mesmo por nós, gremistas, que não dispúnhamos de outra história. Sempre que “eles” nos acusavam, mudávamos
de assunto ou procurávamos situar o constrangimento em
um pretérito imperfeito que há muito havia deixado de ser.
Somos o time mais popular do Rio Grande, dizíamos, o
de maior e mais apaixonada torcida, e somos 100% pretos,
brancos e azuis – e pronto. Mas, lá no fundo, ficava uma
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ponta de desconforto.
Não mais, gremistas de todas as querências; não mais.
A investigação histórica de Léo Gerchmann nos libertou,
em nome de Lupicínio, de Lumumba, de Aírton, de Ortunho, de Alcindo, de Everaldo e de centenas de atletas
negros que já vestiram a camisa tricolor – e de milhões
de torcedores negros tão apaixonados como o Léo, que é
branco e judeu, e como eu, que não tenho religião e que
virei gremista pelas mãos de outro Léo, meu avô materno,
Léo Schneider. O vô, aliás, incapaz de dizer um palavrão
mesmo quando o juiz nos aplicava e para quem o racismo
era uma das mais graves ofensas diante de Deus, adoraria
este livro. Meu amigo Marco Antônio Bandeira Scapini,
que tanta falta faz, também.
O mundo ao início do século XX era algo tão diferente que podemos pensá-lo como outro planeta. Quando
o Grêmio foi fundado – quinze anos após o fim da escravidão –, mal se sabia o que era futebol no Brasil. O jogo,
criado pelos ingleses, não era compreendido por aqui, e
as pessoas sabiam menos a respeito de suas regras do que
o brasileiro médio sabe hoje sobre o críquete. Aquela era
uma época em que apenas uma minoria de senhores da
sociedade se interessava pelo esporte. Um tempo em que
respeitáveis cidadãos de polaina e relógios de algibeira
assistiam ao match para aplaudir os goals de seu escrete.
Léo Gerchmann desmonta o mito da segregação racial
atribuída ao Grêmio, mostrando que era muito difícil para
os negros jogarem nos clubes brasileiros por razões, sobretudo, socioeconômicas. Havia, sim, um processo de exclusão dos negros, mas ele nunca foi proposto pelo Grêmio,
mas pela sociedade brasileira, profundamente hierárquica
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e preconceituosa. Ainda assim, muitos negros e pardos jogaram no Grêmio – e antes de outros terem esta chance no
“outro time”.
Até a metade do século, pelo menos, ainda era muito
forte entre pesquisadores e intelectuais, especialmente entre os médicos, as concepções eugênicas que propunham
medidas para “melhorar as raças”. Ideias profundamente
autoritárias a respeito da castração de pessoas com “má índole” ou com defeitos físicos e doenças eram aceitas como
expressão do conhecimento científico. Quando se menciona a palavra “eugenia”, hoje, logo nos ocorre a experiência
nazista e o genocídio praticado contra os judeus, além de
outras minorias como os homossexuais, os ciganos e as
crianças com deficiência ou doenças mentais. O problema
é que as concepções pretensamente científicas dos nazistas
eram compartilhadas por muita gente fora da Alemanha.
Zygmunt Bauman, aliás, em Modernidade e ambivalência,
alerta-nos para o fato de que a disposição nazista em eliminar os “indesejados” correspondia à mentalidade moderna
da época. A primeira sociedade eugênica da América Latina surgiu em São Paulo, em 1918. Em meio ao movimento,
transitavam também posições racistas influenciadas por
cientistas europeus e norte-americanos críticos da “mestiçagem”, considerada por muitos como um caminho para a
degeneração das raças.
O Brasil teria de esperar ainda algumas décadas até
que estas bobagens fossem desacreditadas entre a comunidade científica e que o país criasse, na outra margem,
uma noção positiva a respeito da miscigenação. Para este
resultado, deve-se reconhecer particularmente a contribuição de Gilberto Freyre – que, em Casa-Grande & Sen10
zala, lançado em 1933, sustenta uma visão francamente favorável ao processo de miscigenação, a ponto de fundi-lo
com a noção de brasilidade.
Bem, mas o livro de Léo Gerchmann não trata apenas de desmontar o mito do segregacionismo atribuído ao
Grêmio. Ele é também um manifesto a favor da tolerância
e do respeito às diferenças. Antes de ser gremista, Léo é
um humanista que repudia as manifestações de racismo
em qualquer lugar do mundo e em qualquer torcida, inclusive na nossa torcida. O livro, escrito de forma leve e
simples, tem posições firmes, não faz média nem joga para
a torcida. Lugar de racista é na cadeia, não nas cadeiras da
Arena ou de qualquer outro estádio do mundo.
É isso aí, Léo. Os gremistas agradecem muito o esforço e a contribuição e, entre nós, especialmente o grande
grupo tricolor que sempre se sentiu mais herdeiro da “Liga
da Canela Preta” do que da Casa Grande (lendo o livro,
vocês saberão o que foi esta Liga e por que Lupicínio Rodrigues virou gremista por conta dela).
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O Grêmio real
Este livro não se propõe a mostrar o clube perfeito, a
pureza vestida de azul, preto e branco. Tamanha pretensão
seria uma visão totalitária da vida, própria de quem se considera especialmente puro em detrimento dos outros, os
imperfeitos, defeituosos e impuros. Remeteria a algo que
se quer aqui combater – o conceito tipicamente nazista de
“raça pura”, que deve ser contestado e repelido de forma
tenaz, por se tratar de perigosa leviandade.
O que se pretende é apresentar matizes, contextualizar
uma trajetória gloriosa e humanizar o debate para remover
o mito – o chamado “mito que limita o infinito”, simplificador de complexidades ao pôr rótulo onde há uma mais
que centenária vida pulsante, com momentos altamente
edificantes e outros nem tanto.
A propósito, este trabalho se inicia com uma autocrítica gremista, um questionamento ao clube que é a paixão
do seu autor e a razão de ter sido escrito. Falo do Grêmio
de Adão Lima, o primeiro atleta inquestionavelmente negro a jogar na dupla Gre-Nal; do Grêmio que tem seu hino
composto pelo negro Lupicínio Rodrigues em fiel tradução de alma e imagem (“Até a pé nós iremos” e “imortal
tricolor” são palavras que fazem uma ode à humildade, à
perseverança e à superação amplamente reconhecidas); do
Grêmio que tem o negro Everaldo representado pela estrela dourada na bandeira do clube. Pois, de peito estufado, refiro-me a esse Grêmio e pergunto aos dirigentes que
atravessaram décadas no seu comando: por que deixaram
que se consolidasse o injusto rótulo de elitista à agremia-
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ção que, paradoxalmente, costuma ser eleita a de maior
torcida no sul da pátria de chuteiras e uma das maiores e
mais fiéis do mundo, mesmo em meio a eventuais crises
e vendo o principal adversário local – aquele que absurdamente se jacta de ostentar a marca “do povo” como exclusiva – acumular seus mais expressivos títulos? Arrisco
mais adiante, sobre essa questão, alguma teoria carregada
de subjetividade.
Antes de teorizar, prefiro contar que nós, a esmagadora maioria dos gremistas, nos incomodamos, sim, com a
imagem distorcida que se criou. Rejeitamos energicamente essa etiqueta abjeta. Defendemos a diversidade de cores
de pele, etnias, religiões e orientações sexuais – e sabemos
que nosso clube tem fortemente entranhada a pluralidade
que abriga essas saudáveis diferenças. Sentimos orgulho
ao constatar que o Grêmio, claramente, é uma entidade de
massas. Mas sabemos que, sendo de massas, abriga um que
outro inevitável bandido ou até grupos de bandidos, gente
homofóbica e racista – que está longe de nos representar.
Pelo contrário!
Uma dicotomia simplificadora impõe os rótulos citados acima. E qual é essa dualidade a que me refiro? É a
rivalidade Gre-Nal. Muitos tentam ainda hoje fazer o contraste “elitismo x paraíso racial”. Perdão, amigos colorados:
isso não existe.
Não quero falar aqui do rival. O tema do livro é o Grêmio. Às vezes, porém, isso se impõe como forma de clarear
contextos.
O Grêmio tem uma história, seus orgulhos e seus pecados. E quem não os tem? Mas garanto: o saldo é extremamente favorável a um clube generoso na essência. A alma da
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instituição é humilde, plural e solidária. Quem vive sua
rotina sabe disso. Deslizes? São exceções que confirmam a
regra, como se diz.
Já faz muitas décadas que o tricolor gaúcho se consolidou como legítimo clube do povo, expressamente aberto
em aspectos que incluem cor de pele, etnia e gênero. Sei
que adversários se melindram com essa constatação. Claro,
o marketing do “paraíso racial em contraposição ao elitismo” foi tão eficiente que há quem tema perder sua supostamente intocável convicção superficial, forjada à base de
precária mitologia. Muita gente boa escolheu o clube do
coração sob a influência de uma premissa perversa e sem
fundamento.
Tornou-se uma verdade, uma falsa verdade. Eventuais
ofensas preconceituosas sempre ocorreram, tristemente,
nos dois grandes clubes gaúchos.
Mais: ocorrem em estádios de futebol, em centros comerciais, em escolas, em ambientes de trabalho, nas casas
e nas ruas.
O preconceito é fruto da ignorância e se apresenta de
diversas formas, revestido em diferentes roupagens.
Essas nossas grandes instituições são como cidades.
Existe a pretensão de erradicar a bandidagem de Porto
Alegre, ou do Rio, ou de São Paulo, ou de Caxias do Sul,
ou de Pelotas, ou mesmo de municípios com porte mais
acanhado? Claro que não, infelizmente. Mais difícil é fazer isso em instituições com uma multidão de aficionados,
milhões e milhões de pessoas. Se de algum simpatizante
dessas entidades populares partem ofensas raciais contra
o goleiro do adversário na Arena, de outra, no Beira-Rio,
surgem gritos no mesmo tom até contra a mãe de um za15
gueiro do próprio clube ou contra uma funcionária chamada de “negrinha” que deveria estar em outro lugar.
É perda de tempo achar que essa escória racista será
banida, pelo menos neste momento – o que se pode fazer,
sempre, é isolá-la, para que fique bem claro o quanto é repugnante e minoritária.
E torcer para que a evolução dos costumes a elimine. ...
Sou autor, também, do livro Coligay – Tricolor e de
todas as cores (192p., Libretos, 2014). Trata-se, a Coligay,
do caso mais fantástico de pluralidade e aceitação das diferenças já registrado na história do futebol brasileiro, certamente um dos mais significativos em todo o mundo. Pois
foi no Grêmio que pôde se criar, em meio à névoa da ditadura militar, essa torcida organizada de gays. Na época, a
polícia tinha o chamado “departamento de costumes” para
monitorar e punir comportamentos tidos como inadequados pelos rígidos padrões vigentes. As mulheres eram chamadas de “vadias” caso se arriscassem a ir aos estádios, e
os homens que as acompanhavam eram os “cornos”. Pois o
ambiente plural do clube permitiu que a Coligay até tivesse uma salinha própria no Estádio Olímpico para guardar
bandeiras, faixas e demais adereços a serem usados durante os jogos.
Enfim, o histórico acolhimento à Coligay foi oficial!
Na introdução de Coligay – Tricolor e de todas as cores
(também um livro sobre diversidade, que de certa forma
inspira este trabalho), conto uma história que me diz muito. Meu pai, o ex-conselheiro do clube Henrique Gerch16
mann, o Hershel, era judeu (como eu, claro) e ensinava
um menino negro que vivia perto do Estádio Olímpico,
também ele gremista, a falar iídiche, aquela mistura de
alemão com hebraico destinada a preservar uma cultura
milenar, perenizar uma etnia historicamente perseguida
e permitir a existência de uma fé diferente da dominante. Quando meu pai morreu, não precisamos pedir: esse
clube, no qual cresci sem jamais sentir qualquer rastro de
preconceito, fez um comovente minuto de silêncio.
...
Ao conversar com o cineasta, músico e professor Carlos Gerbase quando eu ainda começava as pesquisas para
este livro, ele me contou do seu pai, o José Gerbase, um
nordestino que veio de Alagoas e encontrou acolhida no
antigo Fortim da Baixada, o primeiro estádio do Grêmio.
Lá, foi feliz e chegou a presidente, em 1946. Sim, nordestino! Sabemos que um dos eventuais e mais odiosos preconceitos sulistas se dá justamente em relação aos nordestinos,
que vêm de uma região brasileira absolutamente menos
europeizada que a nossa.
Mais: o autor do hino do Grêmio, o negro Lupi, que
ombreia com o também gremista Teixeirinha na condição
de mais popular artista gaúcho (e a Elis Regina, referência
gaúcha na MPB, também era tricolor fanática...), certamente teria lá suas indagações a respeito do mito de elitista
criado acerca do seu amado clube.
Em artigo no antigo jornal Última Hora, Lupi contou
por que era gremista, tão gremista que fez aquele lindo hino.
Principalmente por ser negro, revelou ele naquele texto mi17
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