Concurso Família galp
Um Palmo de Vida
José Figueiredo Costa
galp ‘07
José Figueiredo Costa
Introdução
Com o desafio agora lançado a todos os colaboradores, inserido em mais uma iniciativa
do Programa Vidas Galp, para participarem no Concurso Famílias Galp, o meu impulso
imediato para pesquisar o que há muito estava nos anais do esquecimento, veio de repente ao calor da minha curiosidade, partindo desde logo, com total entusiasmo, para a
recolha de toda a informação disponível, escrita e verbal, que fosse capaz de consolidar
os actos e justificar os factos, de modo a poder descrevê-los com a maior fiabilidade
possível.
Nesse propósito, parti nessa aventura, sacudindo o pó do tempo, e entrei de novo num
mundo que julgava irremediavelmente perdido.
Não fosse este desafio, não estaria hoje um pouco mais feliz, não só pelo facto de ter
descoberto factos singulares da minha família, como em ter a oportunidade de os transmitir, a bem de uma causa, também ela singular.
Por tudo isto, muito obrigado.
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Família Galp
I
O meu avô materno era um beirão de rija têmpera, nascido nos contrafortes da Serra do
Caramulo, em plena Beira Alta, mais precisamente na aldeia de Lobão da Beira, logo à
saída da cidade de Tondela .
Homem de uma estatura imponente, de farta cabeleira e olhos azuis cravados num rosto
rosado, de braços e ombros largos, contrastando com uma tal doçura de trato e bondade
de alma, que ainda hoje me comove, só de pensar.
Morreu ao completar 98 anos, sufocado com um caroço de pêra que acidentalmente
engoliu. Triste sorte para um homem valente e corajoso que fez da vida uma luta constante, vencendo até ao fim todos os desafios que enfrentou, com uma força interior
hercúlea.
Para ele quase nada era impossível, tal a força do seu querer e o gosto pela conquista,
sempre em prol do bem-estar da sua família. Se esta estivesse bem, ele estava feliz e o
seu sonho realizado.
Sempre teve por mim uma predilecção particular, talvez por ser o neto mais velho e o
mais atento às mil e uma histórias que gostava de contar, muitas delas em verso, e aos
relatos da sua vida que repetidamente fazia.
Lembro-me que me levava para as vinhas e pacientemente me ensinava a encontrar os
ninhos dos pintassilgos, a armar os costelins, a enterrar as armadilhas para apanhar as
toupeiras, a saber provar as amoras maduras, a escolher os míscaros, e tantas outras
coisas que já não consigo lembrar.
A vida naquele tempo, estou a falar no início do século vinte, era muito dura e a fome
uma constante. Valia alguma agricultura que o minifúndio produzia, sem grande expressão para o pecúlio das famílias, mas de grande utilidade para a subsistência do dia a dia.
O amanho da terra nunca o cativou, nem a vocação de agricultor algum dia o seduziu.
Contava ele que, ainda rapazola, conheceu Lisboa pela mão de um tio que aí morava,
muito perto do que é hoje o bairro Madre de Deus. O seu primeiro trabalho foi de moço
de fretes e, mais tarde, foi servir nas cavalariças da casa real.
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Família Galp
A fim de constatar a veracidade deste facto, desloquei-me ao Palácio da Pena, na serra
de Sintra, onde, na cozinha do palácio, se encontra o livro de Registo. Régio de todos
os serviçais do palácio. Lá estava o nome de Vital Marques de Figueiredo, ajudante de
cocheiro e tratador de bestas. Tinha sido de facto ajudante do cocheiro do Rei D. Carlos,
tal como lhe ouvi contar tantas vezes.
Aquando do regicídio, foi um dos que foi dispensado, voltando para a aldeia que o viu
nascer. Mais tarde casou com aquela que viria a ser a minha avó Amélia, da qual teve
quatro filhos, dois rapazes e duas raparigas.
Se até aí a vida era cada vez mais difícil, lembremo-nos da instabilidade da primeira
República, com o aumentar da família, tudo ficou mais penoso.
Não se sentindo atraído pela vida rural, havia que partir, rasgar novos horizontes e governar a vida noutro sítio. Assim pensou e assim aconteceu.
Aos 25 anos partiu para os Estados Unidos da América, como emigrante, e por lá andou
cinco anos. Com o dinheiro que conseguiu amealhar, voltou a Portugal e comprou, junto
à aldeia, as duas melhores vinhas das redondezas e uma casa com sacadas e alpendre,
casa essa que ainda hoje permanece na família, conhecida pelo Paço do Terreiro ou Paço
do Vital.
Decorridos quatro anos, e apesar da não concordância da família, voltou de novo para
a América, onde permaneceu mais seis anos, tendo trabalhado primeiramente numa
fábrica em Boston, que produzia as máquinas de costura Singer e, por último, numa
companhia petrolífera, a Pennsylvania Rock Oil. São disso exemplo os vários Aerogramas que enviou para a minha avó, onde relata tais experiências.
Decorria o mês de Maio de 1938, quando um vapor aportou a Lisboa, trazendo um Vital
mais maduro, mais culto e sobretudo mais rico. No cais esperava-o o tio, agora com um
ar mais cansado e muito triste. A mulher tinha falecido há dois dias e o seu desânimo
perante a vida era total. Valeu-lhe nessa altura o sobrinho Vital, que ficou com ele um
bom par de semanas, adiando assim a viagem de regresso a Lobão da Beira.
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Foi nessa altura que soube que estava em construção uma Refinaria em Lisboa e que
precisavam de operários especializados. Com a experiência que trazia, não lhe foi difícil
ser aceite nesse empreendimento, tendo sido colocado, primeiramente, na construção
da Unidade de Conversão de Cracking, e depois como encarregado, no enchimento e
transbordo de produtos.
Havia lá em casa um pequeno caderno já encardido pelo tempo, que era uma espécie de
diário, onde ele fazia os assentos de tudo o que de mais importante lhe acontecia, a par
de uma ou outra observação mais genérica.
Nesse caderno, podia ler-se os vinténs que recebia por mês, o cargo de “Encarregado”
que tinha na refinaria, as importâncias juntas - dinheiro que ele guardava num tubo de
alumínio que enfiava num buraco da parede disfarçado com um calendário de uma beldade seminua, as importâncias que enviada para a mulher, algumas dívidas que tinha,
os preços do pão, da pinga, do pitrol, enfim, um rol de coisas tão diversas que, só por si,
davam uma ideia das dificuldades daquela época.
Reparei um dia, numa das folhas, em dois pormenores curiosos. Um era o nome de
Franklin Roosevelt e o outro, a frase “... fui ao jáze...“, escritos durante as suas permanências nos Estados Unidos da América, porventura registando alguns momentos
de algum significado mais íntimo. Embora com a dificuldade evidente e imprecisão
compreensível, recordo ainda hoje os seus relatos sobre o presidente da América e a
palavra Jazz, que ouvi pela primeira vez na vida, e não fazia a mais pequena ideia do
que significava.
Por uma carta escrita e enviada para Lobão da Beira, datada de 7 de Agosto de 1946,
fiquei a saber a razão da sua saída da Refinaria de Cabo Ruivo – o grande desgosto da
mulher, pela recusa do Bispo de Viseu em não aceitar a ordenação do filho mais velho,
José Marques.
Aquele que viria a ser o meu tio preferido, apesar de ter concluído o último ano do
Seminário Maior em Viseu, não colheu as boas graças do Bispo para abraçar a vida de
sacerdote, que alegou questões religiosas para justificar tal acto, ou seja, como o pai
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de José não era um “homem de igreja”, não fazia sentido que o filho fosse ordenado
padre.
Este facto abalou de tal maneira a família, que o emigrante Vital alheou-se por completo, até ao fim da vida, de qualquer assunto relacionado com a igreja.
Não fosse o desafio deste concurso, este texto jamais poderia ser escrito.
Agradeço à Galp estes momentos.
São Vida!
II
O rosário do tempo é implacável na sua progressão, fazendo da nossa vida um movimento contínuo em direcção a um fim aceite e de todos conhecido.
O filho rejeitado pela igreja partiu para a cidade de Quelimane, em Moçambique, onde
se estabeleceu como comerciante, na companhia do outro irmão que o acompanhou
nessa aventura. Ficaram em Lobão da Beira as duas irmãs que aí casaram, constituindo
as suas famílias ao redor do vinho do Dão, produzido nas suas adegas a partir de vinhas
demarcadas e de castas próprias, com predominância de Touriga Nacional.
Da filha mais nova nasceram três filhos, sendo eu o mais velho. Dada a profissão de
meu pai, Guarda Fiscal, percorri várias localidades ao longo da costa, desde a Figueira
da Foz até Lisboa. Ano após ano, os vários graus de ensino foram sendo ultrapassados,
chegando o final do curso e o tempo do serviço militar, logo seguido do primeiro emprego.
Por essa altura conheci um pouco da Galiza, mais propriamente os arredores de Santiago de Compostela, Porrinho, Pontevedra e Vigo.
Um dia houve festa num restaurante perto de Pontevedra, cujo nome já não lembro. Eu
estava lá. Era o casamento de minha irmã Amélia, com um galego de nome Manolo
Carrera, estabelecido em Lisboa na área da restauração.
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Família Galp
Soube nessa altura que um dos convidados do casamento trabalhava numa empresa
portuguesa ligada ao petróleo, e que tinha uma ligação muito estreita a outro galego,
Manuel Boullosa.
O conhecimento entre mim e esse senhor aconteceu por acaso e naturalmente. A troca
de algumas experiências fortuitas e um convívio ocasional no Estoril, fez de D. José
Aser Castillo Pereira uma espécie de talismã para mim, tendo contribuído indirectamente para a minha entrada na Petrogal.
Após cinco anos como responsável pelo Centro de Informática da Setenave, na altura
um dos três maiores estaleiros navais do mundo, e por convite da IBM, ingressei nos
quadros da Companhia TLP – Telefones de Lisboa e Porto.
Ainda não tinha completado o processo de admissão, eis que surge o convite do então
Director Geral, Engº Aser Castillo Pereira, através do meu cunhado Manolo, para concorrer a uma vaga na Petrogal. Corria então o mês de Fevereiro de 1981.
Estava em provimento o lugar de chefe de departamento do Centro de Informática de
Cabo Ruivo. A selecção e o acolhimento foi feito por aquele que viria a ser o meu chefe
durante muitos anos, Victor Reis, por quem nutro uma forte amizade e grande respeito,
não só pela sua verticalidade de princípios, como pelo exemplo da sua conduta social
e familiar.
Estive nessa função durante quinze anos, até que, em finais de 1997, o Centro de Informática da Petrogal acabou a sua missão, sendo a mesma entregue à consultora americana, EDS, em regime de outsourcing total.
No dia em que saí de Cabo Ruivo o palco ficou vazio,
a lágrima escorreu pela face e desfez-se no chão,
o grito sufocou pela força do desespero,
a peça acabou,
o pano caiu de vez,
o actor morreu
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o silêncio fez-se
e assim continua
até hoje...
III
Tinha acabado de completar 29 anos, quando entrei para o Centro de Informática da
Petrogal, em Cabo Ruivo, ocupando então o lugar de chefe de departamento.
Tinha um staftécnico de quarenta e oito colaboradores, organizados em cinco secções e
um serviço. Um dos chefes de secção, o Sr. Rocha, tinha nessa altura 50 anos. O chefe
de serviços era o Sr. Almeida, já falecido, um pouco mais novo, bem como a sua mulher, Maria Teresa, sua colaboradora directa, que formavam um casal de inseparáveis
com uma ternura fora de comum. Quem os conheceu, pode testemunhar este facto que
diariamente era demonstrado, constituindo um motivo de forte admiração.
Havia o José Maria, responsável pela Secção de Manutenção Eléctrica do edifício, juntamente com o Renato, o Fernando Lopes, a Anabela Teixeira, o Fernando Henriques,
chefe do sector de expedição, o Nuno Cal, dos Sistemas, o José Ribeiro, já falecido, o
António Ferreira, o Sílvio Xavier, a Fátima Pereira, a Hermínia, a Carmo Bastos, a Alice Serras, a Olga Pereira, e tantos outros que aqui recordo com amizade. Do sector da
Operação, recordo aqui todos os vinte operadores, em particular o Francisco Baptista,
já falecido.
Nesse tempo, a proximidade entre os colaboradores e a chefia era tão abrangente, que
se estendeu a factos e actos que normalmente são dirigidos a familiares próximos. Por
duas vezes fui convidado para padrinho de baptismo e, por várias vezes, participei em
casamentos de familiares deles.
Não queria deixar de registar um caso que se passou com uma colaboradora nossa, responsável pelo bar da Informática, a nossa querida Júlia.
A Júlia vivia com os dois filhos e o marido numa casa do Bairro da Petrogal na Boba-
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dela, localidade situada junto a Sacavém.
Vida árdua e algumas vezes penosa, não tanto pela falta de algum pecúlio familiar, mas
sobretudo pela vida que os filhos levavam e das consequências que isso lhe acarretava.
Felizmente posso hoje passar à escrita este relato, uma vez que a situação foi ultrapassada, e as vidas, tal como estão, são dignas de elogio e regozijo.
Certo dia, a Júlia, num enorme desespero, falou comigo pedindo-me que a ajudasse
a internar os filhos num centro de reabilitação. O pior mal do mundo tinha chegado a
sua casa. As suas coisas começavam a desaparecer. Algo tinha que ser feito. Ela não
podia resolver sozinha aquele problema. Estava a ver a família a desfazer-se. Chorava.
Restava eu.
Através de conhecimentos nessa área, e após várias peripécias, conseguimos internar
os dois jovens num centro de acolhimento perto da cidade de Setúbal. Tendo fracassado
a primeira tentativa, voltei à carga para a segunda, fracassando de novo. À terceira vez
empenhei-me directamente, e numa conversa longa que tive com o mais velho, acordámos tentar mais uma vez. Depois de alguns meses veio a notícia mais aguardada.
Ambos tinham decidido partir para a cura total, mas agora fora do país.
Decorridos duas semanas sobre esta decisão, ambos partiram para França, indo trabalhar numa quinta de agricultores, fazendo todos os trabalhos que normalmente se faz no
campo. Soube mais tarde das grandes dificuldades de adaptação por que passaram, por
vezes quase à beira do desespero. Valeu a força interior e alguma ajuda de um Irmão
religioso francês, meu amigo, que era frade franciscano, a quem eu tinha pedido para
acompanhar o caso.
Por lá ficaram até hoje, constituindo duas famílias felizes, para alegria de todos os familiares e amigos, sobretudo para a avó Júlia, que agora, finalmente, é uma mulher feliz.
Outro caso que me sensibilizou na altura e que ainda hoje acompanho com forte empenho, foi o processo burocrático e legal que pessoalmente levei a cabo, de adopção de
uma criança, para um casal de colegas da Direcção de Informática. Nessa altura, não
fosse essa criança e tudo o que ela veio trazer sob o ponto de vista emocional e racional,
a separação seria uma realidade.
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Felizmente tudo correu bem, tendo agora o Sérgio, 20 anos.
O espírito de equipa e o seu fortalecimento continuado, foi um dos pilares de maior
importância na minha actividade como gestor, em grande parte suportado pela minha
formação humanista em prol da comunidade. Ser feliz, proporcionando aos outros um
pouco mais de felicidade, sem esperar por isso qualquer recompensa, é o meu lema de
vida desde que me conheço.
Talvez tenha sido esta atitude perante a vida e os outros, a melhor herança que recebi
do meu avô Vital.
Ainda hoje todos esses colaboradores recordam os jantares de Natal da Direcção de
Informática. Sob minha organização e orientação, era uma festa participada e saboreada
por todos, quase sempre mais de cinquenta, onde todos partilhavam o mesmo sentimento de solidariedade, extensivo nalguns casos aos familiares directos. Tínhamos orgulho
em dizer que era o jantar de Natal da família Informática, tal a postura sentimental que
havia.
Escolhido o restaurante, quase sempre na zona de Marvila ou de Xabregas, logo eu começava a redigir as quadras de Natal, cada uma dedicada a um colaborador, incluindo os
elementos da própria Direcção e algumas vezes da própria Administração. Cada jantar
nunca demorava menos de três horas, tal o convívio que se gerava e a amizade que se
partilhava.
O número de quadras variava entre as cinquenta e as cem, todas de cariz jocoso, divertidas, que procuravam transmitir mensagens sérias, através de jogos de palavras e de
trocadilhos cruzados.
Com estas quadras eram feitas pequenas publicações devidamente encadernadas, que
depois se distribuía a cada um. Ainda hoje, muitos desses colegas guardam esses cadernos na gaveta do seu posto de trabalho.
É com saudade que os revejo, vendo neles a importância que tiveram no fortalecimento
da Família Galp.
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São estes retalhos que constituem o melhor matizado da grande colcha Galp, bordada e
debruada com as vidas que sob ela trabalharam e tantas vezes sonharam.
Mais uma vez obrigado, por este palmo de vida.
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