UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA Departamento de Letras e Artes Especialização em Literatura e Diversidade Cultural. Profª. Elvya Shirley Ribeiro Pereira. JOÃO BOSCO DA SILVA ([email protected]) INFÂNCIA – DE GRACILIANO RAMOS Resumo literário do Romance. Feira de Santana 2011 Para facilitar o estudo e o entendimento da obra de Graciliano Ramos, fizemos este resumo literário, para dar uma boa visão sobre o conteúdo, o histórico e etapas da vida do Mestre Graça. O livro é uma autobiografia interessante. Se quiser, depois leia o livro completo, pois não vai se arrepender. 1. NÚVENS (de lembranças) Primeira lembrança foi um vaso de vidro cheio de pitombas. Lembrei-me também de muitos casos. Nessa época eu tinha de 2 a 3 anos. Nem tudo que era redondo era pitomba. Laranja, por exemplo. Presenciei aulas de ABC. Aquela escola era um ponto de descanso em Alagoas, nas viagens pelo sertão de Pernambuco. Lembrei-me de muitas pessoas, entre eles José Baía e de lugares por onde passei. Num dia vi um redemoinho levantando tudo na rua e minha mãe tentou fechar a porta, mas foi em vão. Acompanhei também escavação de um buraco medonho numa região distante e outro buraco de açude perto de casa para juntar água da chuva. A minha família fez plantio e a colheita de muitas abóboras. Nessa época eu ouvia romance popular lido por Dona Maria. 2. MANHÃ: Depois do inverno com os tanques cheiros e a roça verde veio a seca e a devastação. Como eram belas as manhãs de inverno, com alegria e fartura. Tenho boas lembranças das qualidades do meu avô materno, a sua resistência à seca e a sua determinação, apenas não tinha sido muito amável com a minha avó, pelo seu ciúme exagerado. Naquela época chegaram em casa uns ciganos e dois se apresentaram. O primeiro foi mal recebido por minha mãe. O outro era um coletor de impostos para o cangaço. Levou dezenas de mil réis e foi embora. Depois que eles passam tudo volta a rotina. 3. VERÃO: O meu verão é incompleto nas lembranças. Um dia faltou água em casa e quase morri e sede. Todo mundo ficou abatido. O homem agreste obedecia ao chefe político que apertava o devedor e venerava o credor, economizando o que podia, com avareza. Só não economizava nas surras e repreensões. 4. UM CINTURÃO: Tive as primeiras relações com a justiça com 4 a 5 anos de idade. Onde está o cinturão? Bradava meu pai. Todos me abandonaram pensando que eu havia escondido o cinturão do meu pai. Sofri demais. Quando meu pai voltou para descansar na rede, lá estava o cinturão, que havia se desprendido da fivela, quando ele se deitou da outra vez. Portando houve um julgamento e condenação, sem direito e defesa. Um inocente. 5. UMA BEBEDEIRA: Fomos a cavalo visitar um fazendeiro vizinho. Eu, minha mãe e meu pai. Na casa do amigo, meu pai foi tratar de negócios e eu fiquei com minha mãe e as suas amigas na sala. Colocaram-me numa rede. Deram-me vários cálices de licor. Fiquei meio desencontrado até que fiz coisas sem sentir, pois estava dominado pelo álcool. Inclusive dei em cima da filha do dono da casa. Repeti perguntas e fui exagerado nos devaneios. 6. CHEGADA À VILA: Chegamos à noite na vila em plena festa na fogueira. Meu pai dizia que eu parecia um papa lagartos. Se José Bia estivesse ali, certamente explicaria o que era papa-lagartos. Pela manhã percebi que estava num mundo cheio de casas brancas ou pintadas, trepadas umas sobre as outras, parecendo puleiros. Entrei na casa de Dona Clara para conversar, mas ela não decifrou o meu intuito. Andei pelas ruas da vila, sentei-me e adormeci. 7. A VILA: A povoado Buíque (PE) tinha a aparência de um corpo aleijado. Tronco, cabeça, coxa etc. Um beco ia até a lagoa e outro para o puteiro com o nome de Cavalo-morto, um areal mal-afamado. As janelas da casa do vigário olhavam a escola pública. D. Maria professora e mulher de Antônio Justino (quirica) dava aula particular. Ela não fazia nada. A vida social da vila era desenvolvida no largo (praça). Nos domingos as atividades da Igreja eram intensos. O padre João Inácio era bruto na convivência com os fiéis. Como em todo interior, a política era feita pelas famílias poderosas do nordeste, os Cavalcantes, os Albuquerques, Siqueiras, Tenórios etc. O advogado Bento Américo ficou famoso por ter sido professor, vestir mal e escrever sem verbos. Nas calçadas os visinhos faziam história da política nacional. Não freqüentavam as calçadas e censuravam, por exemplo, Antonio Justino e Seu Agro, por preguiça ou vida irregular. Dona Maroca passava e nem olhava, bonita e cheirosa. 8. VIDA NOVA: Ficamos morando na rua da palha, visinhos de D. Clara. Meu pai era comerciante do largo da feira. Num dos quartos da casa minha mãe achou uma nódoa no chão. Pensou que não era nada, mas depois foi constatada que era sangue de algum tuberculoso. Tivemos de nos mudar para uma esquina, perto do puteiro cavalo-morto. Deixei de dormir em rede, por causa do medo das almas do outro mundo. Na outra esquina morava Teotoninho Sabiá (tinha as pernas finas) junto da esposa e três filhos. No inverno a nossa rua se transformou num riacho de água suja. Rosenda, a lavadeira, me contou que eu tivesse cuidado com o sapo-boi, pois ele morde como um cachorro e só larga um cristão quando o sino toca. Os cururus choravam com frio e eu também sentia frio e gostava de ficar ouvindo os sapos. 9. PADRE JOÃO INÁCIO: O local dos fuxicos era a sala de jantar. A sala de visita era inútil. A nossa casa foi se transformando num paiol, para guardar montanhas de sementes de milho. O padre João Inácio cuidava das pessoas portadoras de varíola. O tratamento era repugnante. Eu gostava de me enfiar dentro da montanha de milho e ficar pensando na vida e tendo idéias. Ficava quietinho para que ninguém me achasse. Até mesmo o Padre João Inácio, que era muito rigoroso. 10. O FIM DO MUNDO Minha mãe lia romances para mim. Às vezes eram longos. Leu uma vez a história de Adélia e D. Rufo. A mãe se emociona, abraça-o e chora. Ela gostava dos conselhos de D. Bosco. Leu outro que dizia que o mundo iria s acabar. Era um cometa que iria passar, mas depois de uns dois anos realmente ele passou e foi embora sem nada acontecer que acabasse o mundo. 11. O INFERNO: Eu tinha uns seis anos naquela época e era uns 14 a 15 anos mais novo que a minha mãe. Numa leitura de um folheto ela falou a palavra “doméstica”. Eu quis saber o que significava. Ela disse que era inferno e eu me lembrei das fogueiras e S. João e do breu queimado que derreteu e me queimou o dedo, deixando uma cicatriz. A senhora já esteve lá no inferno para saber o que tem lá? E os padres já estiveram? Não, disse ela, é o que contam. Não há nada disso, eu falei. Recebi chineladas e outros castigos. 12. MOLEQUE JOSÉ: A preta Quitéria teve vários filhos. Os machos não ficaram em casa. Fugiram ou foram presos. As filhas Luiza e Maria foram criadas por gente do meu avô. Maria era escrava e teve uma filha Joaquina. Ela se libertou e casou. Luiza era intratável e vagabunda. Maria era prendada em atividades do lar. Nesse ínterim apareceu José, que sutilmente procurava aproximar-se das pessoas. Um dia enganou-se, pensando que estava vendo de longe meu bisavô montando num cavalo e disse: “Seu Ferreira de gibão, no cavalo de seu Afro”. Não era. Numa noite ele negou que havia feito uma traquinagem, por mais provas e evidências. Meu pai deu-lhe uma surra. Tentei ajudar, mas meu pai terminou batendo em mim também. 13. UM INCÊNDIO: José me chamou para ir visitar o resto de umas cabanas incendiadas num lugar ali perto. Chegando lá, vimos no terreiro homens e mulheres chorando, porque eles só conseguiram salvar parte dos pertences. Os moradores de uma casa sentiram falta de uma imagem de Nossa senhora e alguém da casa em chamas teria ido tentar buscar. Nossa Senhora escaparia, se quisesse. Andando por ali vimos perto de um tronco escuro um corpo carbonizado, parecendo um rolo de fumo. Talvez fosse de uma negra. Voltei ao sítio e em casa meus pais perceberam que eu estava transtornado e tentaram me acalmar, dizendo que aquilo era um fato comum. Ao dormir, tinha sérios pesadelos, ao lembrar aquela negra morta. Acordei gritando e acordei também toda a minha família. Se a mulher tentou salvar Nossa Senhora do incêndio e morreu, então ela seria a culpada. Os adultos dizem que aquela negra foi levada ao céu por Nossa Senhora. Mas pensei se ela chegasse lá toda queimada e imunda, estragaria as delícias eternas e mancharia as asas dos anjos. 14. JOSÉ DA LUZ Para reduzir as minhas travessuras, os adultos falavam de lobisomem. Padre João Inácio, de religião. José da Luz, de polícia. José da Luz era elegante e cordial. Às vezes exigente, pelo ofício de policial e outras vezes jovial e bom. Nem triste e nem mal. Meio tonto e ingênuo. Eu ficava muito tempo na loja do meu pai com inveja dos outros meninos que brincavam na rua, livres. Entre devaneios e olhando as mercadorias, lembrei-me do tempo em que meu tio foi hóspede da fazenda e guardava uma arma numa gaveta. Um dia peguei a garrucha e ao abrir a gaveta, caiu uma caixa de espoleta no chão, para o meu desespero. Coloquei tudo no lugar e saí. Num outro dia José da Luz chegou na loja e eu estremeci de medo. Para minha boa surpresa, ele conversou numa boa amizade e, contou histórias e cantou. Era um ótimo professor. 15. LEITURA: No balcão da loja eu estava abrindo umas caixas quando vi alguns cadernos e folhetos. Não sabia ler ainda, mas meu pai estava ensinando as primeiras letras e queria que eu aprendesse o alfabeto na raça. Perdia a paciência e me batia nas mãos. Mocinha passou a me ensinar. 16 - ESCOLA Preguiça, a chave da pobreza. Quando comecei a ver os pronomes mesoclíticos (ter-TE-ão) foi uma confusão e aflição. Mocinha continuava as lições e era pouca a minha evolução. Quando eu escrevia alguma coisa maravilhosa eles não acreditavam. Ameaçaram colocar-me na escola. A escola era horrível. Depois de tudo arrumado, então finalmente resolveram me levar à escola. Logo na entrada vi dois homens segurando um garoto que se debatia e urrava ferrozmente. Eu nunca reagiria daquele jeito, porque eu já estava domado desde a minha casa. 17. D. MARIA Dona Maria deu-me uma cadeira, retirou um folheto e mandou que eu lesse. Tive dificuldades. Ele gentilmente me colocou na frente e me deu uma grande atenção. Ela era cheirosa e educada. Um certo dia apareceu na gaveta da mesa da professora um lápis graúdo. Dona Maria disse que poderia ser a medida de cortar fumo de seu Antônio Justino. Ela não usava a palmatória nos alunos. Perguntou-me outro dia se eu lavava as orelhas. Claro, deveria estar suja. Morri de vergonha. Em casa lavei e esfreguei tantas vezes até ficarem esfoladas. Aprendi catecismo com Sinhá e Antônio Justino. O segundo livro da escola foi o maior culpado do meu desespero, um infortúnio das minhas aptidões, a começar com a obrigação de fazer um papagaio de papel. Fiz e não voou. 18. O BARÃO E MACAÚBAS Comecei a ler outro livro que contava a história de um menino que conversava com passarinhos. Um outro, de uma mosca, que caiu no fogo. O barão de Macaúbas era o responsável pelas coisas ruins que aconteciam nos dois livros. Todos os personagens eram como uma sociedade de sapos. Adiante, no livro, um fugitivo entra no refúgio de uma aranha, que tece e estende fios na entrada e os perseguidores passam e não pegam o fugitivo. Dona Maria concluiu que é muito difícil enxergar uma narrativa simples nas palavras desarrumadas e compridas. É um mistério. Aos sete anos eu já lia alguma coisa e me dedicava a tabuada. Nessa idade fui obrigado a ler Camões e foi terrível. 19. MEU AVÔ Minha mãe adoeceu e foi passar uns meses na fazenda do pai dela (meu avô). Meu tio Serapião me assustava contando histórias de assombração. Nos dias de matança de gado eu ficava ali no curral olhando. Meu avô era muito religioso e também queria me ensinar. Maria Moleca era quem lavava os pés do meu avô, além de fazer a comida e arrumar a casa. Ela morreu de supetão, vomitando sangue. Meu avô tinha muitos bois e quando os vendia, escondia o dinheiro. Na época da seca era um sofrimento para arranjar comida e água. Serapião continuava a contar histórias, inclusive a do Brasil, com uma porção de erros. 20. CEGUEIRA: Afastei-me da escola com problemas nas vistas. Meus olhos incharam. Incharam. Minha mãe me chamava de bezerro-encourado (intruso) e de cabra–cega. Na escuridão desses dias eu percebi o valor enorme das palavras. Os meus ouvidos aguçavam a cada dia mais, possibilitando ouvir barulhos e conversas de longe. Tentava escrever, mas os garranchos ficavam fora das linhas. Começa a paixão pelas palavras e a nascer um escritor. 21. CHICO BRABO A voz de Chico Brabo, visinho da direita lá de casa me irritava. Ainda mais agora, com meus ouvidos aguçados. Ele possuía uma farmácia em casa e receitava remédios aos doentes de graça. Minha irmã Leonor foi curada com um remédio dele. Seu empregado era João, um garoto de 10 anos. Lá em casa eu ouvia “João ô João!” Eu pensava “vai logo João, senão esse homem vai continuar gritando”. Algumas pessoas vinham me visitar. José da Luz, por exemplo, contava histórias para mim. Enquanto isso, o pobre João sofria nas mãos de Chico Brabo. 22. JOSÉ LEONARDO: Ele aparecia aos sábados na feira. Homem sério e digno. Já o seu irmão, Antônio Freire, era vagabundo e vivia nas ruas pedindo aqui e ali tudo o que precisava. Ele levou-me à sua fazenda Pico, há duas léguas da vila. Na fazenda não tinha gado e por isso não tinha aquele fedor de bosta de animais. Ele era industrial rico, fazendo rapadura. Fiquei encantado com a fábrica. À noite na casa grande da fazenda teve festa. Eu gostava de lhe fazer perguntas e ele sempre as respondia. Ele me deu uma pedra faiscante, que encontramos no caminho da fazenda. Algum tempo depois a minha família mudou para a cidade e aquela pedra sumiu. 23. MINHA IRMÃ NATURAL: Na viagem que fizemos mais importante para a fazenda do meu avô, ficamos por três meses. Lá foi onde Mocinha desapareceu. Ela era tratada por todos nós com carinho. Ela se embelezava e se enamorava com o espelho da sala. Ela conheceu Miguel, um ambicioso. Meu pai não gostou dessa aproximação entre eles, mas eles foram trocando bilhetes e olhares. Ela sumiu e foi raptada por vários cavaleiros. Mentira! Ela fugiu foi com Miguel mesmo. Casaram-se sem festa nem dança, na missa das sete. Teve alguns anos de felicidade. Minha família não quis reconciliação com ela. Mudamos depois e soubemos que Miguel a abandonou, para viver com outra. Mocinha sumiu sem deixar vestígios. 24. ANTONIO VALE: Estávamos hospedados na estação que nós fizemos na vila, sem nenhum conforto. Como retirantes. Meu pai foi trabalhar numa fazenda lá em Pernambuco. A seca arruinou tudo e ele teve dificuldades. Voltou para a Alagoas. Mesmo assim ao voltar ele trouxe algum dinheiro e comprou e lavrou um cercadinho do lado do cemitério. Antonio do vale já estava devendo uma conta grande ao meu pai. Ele viajou em busca de dinheiro e muita gente acreditava que ele não voltaria. Um dia ele se apresentou e pagou tudo. 25. MUDANÇA: Viajamos novamente de mudança. Descansamos uma tarde na casa do poeta popular Cordeiro Manso. Seguimos a viagem. Meu pai ainda tinha uma situação razoável de economia. Na mudança ela ainda levava uma boa carga de produtos da fazenda. Os amigos haviam ficado para trás. Chegamos em Viçosa (Alagoas). Hospedamo-nos no Engenho de Fogo Morto. Meu pai trabalhou com seu Manuel Costa, num comércio, mas não eu certo. Vivíamos perto de tios e tias agora, com primos e primas em promiscuidade. Voltamos para a cidade. 26. ADELAIDE: O comércio foi estabelecido na cidade, na esquina do largo principal. Nossa casa era na rua Juazeiro, perto da cadeia. Meu pai adoeceu e eu fui estudar na escola pública da professora Maria do Ó. Ela era robusta e controlava os 78 alunos na sala de aula. Recebi o terceiro livro de Barão de Macaúbas. Tinha muitas letras complicadas e regras de pontuação. Não soube, por exemplo, decifrar o porquê de depois de 1899 viria 1900. Minha prima Adelaide, filha de pais ricos, estudava naquela escola somente porque era perto de casa. Sofria por ter uma condição econômica melhor do que os outros alunos. Vai aqui um pouco de preconceito e racismo. A professora negra Maria do Ó exigia cada vez mais de todos. Os colegas também pressionavam cada vez mais a prima Adelaide. Eu fazia de contas que nem a conhecia, para não sofrer represálias deles. 27. UM ENTERRO: Naquele dia não teve aula. Estava passando um enterro, sendo levado por quatro alunos um caixão de um anjo para o cemitério, onde eu nunca tinha entrado. Simeão, o coveiro velho, foi quem fez o enterro. Ele dizia que defuntos não o incomodavam. Andando entre as catacumbas vi covas, objetos sujos e um ossuário. Fui ficando desesperado e imobilizado. Não sei como saí dali, e parece que foram os meus colegas que me levaram para casa. Não me lembro. As imagens e o desespero ainda me acompanharam em casa. O que me inquietava eram as almas. Ao longo do tempo esses fantasmas foram sendo substituídos por outros fantasmas. 28. UM NOVO PROFESSOR: Tiraram-me da escola da mestiça e me colocaram mana escola do mestiço, porque mudamos para a rua da Matriz, longe da escola da rua Juazeiro. (Vai aqui novamente um pouco de preconceito e racismo). Na nova Escola eu continuava a saltar as linhas e engolir períodos gramaticais, lembrando das histórias do barão de macaúbas. O novo professor vivia no mundo da lua, vaidoso ele gostava de ficar se olhando no espelho da sala, andando também como um sonâmbulo. Eu continuava cometendo os mesmos erros de leitura. Éramos apenas uma meia dúzia de alunos, que tremíamos quando o professor pegava a palmatória. Ele poderia recitar discursos brilhantes e se tornar um homem. Forçava-nos a repetir uma frase por 10 vezes, com a observância dos pontos e das vírgulas corretamente. Parecia tudo com o Barão de Macaúbas (*). Não deu certo. Deixei a escola e me colocaram numa outra pior, mas onde adquiri uma “seleta clássica”. (*) Barão de Macaúbas: Era filho de Miguel Borges de Carvalho e de Mafalda Maria da Paixão. Nasceu no povoado de Macaúbas, então pertencente à pequena Vila de Rio de Contas, ao sul da Chapada Diamantina, exatamente quando esta completava cem anos de emancipada. Em 1841 entra para a Faculdade de Medicina da Bahia, transferindo-se em seguida para o Rio de Janeiro, onde diplomou-se em 1847.Era casado, desde 1848, com Francisca Antônia Wanderley, oriunda de importante família pernambucana, com quem teve vários filhos. 29. UM INTERVALO: Seu Nuno quis me transformar num ajudante de missa. O catolicismo não me inspirava simpatia, mas era melhor do que aritmética e a seleta clássica. Seu Nuno era fazendeiro e comerciante. Ganhei logo uns presentes dele para enfeitar meu quarto. Aprendi muita coisa da Igreja, além das orações. Quase entrei para um Seminário, mas quando comecei a atuar nas missa foi um desastre. Esquecia de tudo, escorregava no tapete etc. Padre Loureiro no começo até que quis me corrigir, mas foi tanto trabalho que desanimou. Afasteime. Padre Pimentel, também me ensinou muita coisa da Igreja. Desde a viagem de Abraão, até a chegada na palestina, com linguagem simples. As histórias mais complexas ele não contou. As moças costureiras fizeram elogios ao meu paletó cor de macaco. Guardei-o como lembrança. 30. OS ASTRÔNOMOS: Aos noves anos ainda quase analfabeto, eu era considerado inferior, se comparado com os Mota Lima, nossos vizinhos, garotos perfeitos. A professora D. Agnelina tinha mãe e filha. A mãe era caduca e a filha uma mulata enxerida. Ela nos ensinava as lições, mas parecia ignorante como nós, os outros alunos. As aulas eram longas e demoravam cinco horas. Uma prisão. Uma crucificação. Numa noite, depois do café, meu pai mandou que eu buscasse um livro no seu quarto e determinou que eu começasse a leitura. Fiz a leitura que ele me pediu. Na noite seguinte ele pediu a mesma coisa. Na terceira noite, antes dele pedir, fui lá no quarto e peguei o livro, mas ele estava muito silencioso. Não quis ouvir a história. Contei o caso para a minha prima Emilia. Falei da história e dos personagens e de uma tal de “Águeda” (*). Na loja o Eusébio declamou uma parte daquele mesmo livro e falou errado “Aquêda”. Percebi que eu estava melhorando. Emilia me perguntou, se você gosta, porque não lê sozinho? Ela deu-me o exemplo dos Astrônomos, que liam o céu que ninguém tinha visto. O sol, a lua e as estrelas conheciam perfeitamente. Se eles conseguem ver coisas tão distantes, porque nós não conseguimos ler um livro que está tão perto? Os astrônomos eram formidáveis. Eu, coitado, pobre de mim, continuava preso às coisas e mazelas da terra. (*) uma cidade portuguesa pertencente ao Distrito de Aveiro, Região Centro e subregião do Baixo Vouga, 31. SAMUEL SMILES: Dona Agnelina sugeriu a meu pai que eu fizesse aulas particulares com o professor Rijo. Fui eu e meu primo José para essas aulas. Nas aulas ele sugeriu a leitura de textos de Samuel Smiles. A palavra Smiles eu só conhecia como “smiles” no português, mas o professor corrigiu e disse que em inglês era “Smailes”. Eu e José achamos que o professor estava errado e não entendemos que a palavra era em outra língua. Passamos a admirar o professor. O cliente da loja, Fernando, disse que Smailes era mentira e estava errado. Era smiles. Continuei consultando o professor e o dicionário. 32. O MENINO DA MATA E O CÃO PILOTO: Na loja descobri uns pedaços de folhetos amarelos que se chamava “O menino da mata e o cão piloto”. Mostrei em casa a Emilia, minha prima, e ela não gostou desde a capa. Aquilo era obra de protestante ou do diabo. O romance poderia ser complicado e deixar marcas. Fiquei preocupado. O menino e o cão morreriam, tornando a todos infelizes. O folheto caiu no chão e eu não quis mais apanhá-lo. Resolvi não ler. 33. FERNANDO: Fernando era ranzinza. Morávamos num cercado do engenho e só tinha valor quem adulava o senhor proprietário. Fernando era parente próximo do governo e fiscal da intendência, perturbando a quem trabalhava nas feiras, como Nero, de Roma. Causávamos arrepios, tinha veneno. Um dia na loja os empregados abriram uns caixões de mercadorias e deixaram uma tábua com uns pregos virados para cima, jogada no chão. Fernando viu, pegou o martelo e bateu nos pregos, para não ferir as crianças na rua, ao pisar naquela tábua. Quando vi aquilo foi que tive uma surpresa. Então Fernando não era mau? Havia comparado a Nero. Talvez Nero envergasse também os pregos para não furar os pés das crianças. 34. JERÔNIMO BARRETO: Como adquirir livros? Pedi socorro a prima Emília. Eu precisava ler. Ela falou das bibliotecas do dr. Mota Lima, professor Rijo e Padre Loureiro. Eu não me arriscaria em abusá-los, Mais perto tinha Jerônimo Barreto (O tabelião) Pedi a Emilia que falasse com Jerônimo. Ela recusou. Pedi a José Batista, o empregado da loja. Ele achou que uma bobagem dessa eu mesmo deveria fazer. Fui até a casa de Jerônimo, que me recebeu cordialmente e me cedeu “O Guarani” e se colocou à disposição para novos empréstimos. Encantei-me com a história e personagens. Na cidade chegou um novo tipo e escola e me colocaram lá. No primeiro dia logo o diretor leu um ditado e não gostou muito do que eu escrevi, Mas mesmo assim eu já gostei da proposta. O Diretor Jovino Xavier pediu para que eu levasse uma gramática e a Constituição Federal do Brasil. Só levei e a gramática. Não quis analisar a constituição e causei má impressão ao diretor. Ele passou várias semanas sem falar comigo. Passei a ler cada vez mais, ampliando a minha visão de mundo. Li toda a biblioteca de Jerônimo. 35. VENTA-ROMBA O governo ofereceu ao meu pai o emprego de Juiz substituto, mas ele não sabia nada de leis, para que pudesse julgar. Os bacharéis se incomodaram. Venta-romba era um pedinte que aparecia sempre às sextas feiras procurando esmolas. Um dia ele entrou lá em casa até a sala. – Vá embora vagabundo! Minha mãe mandou. Ele ficou triste. Meu pai foi chegando e tomou um susto, gritando: “Esteja preso”! – Brincadeira seu Major (a todo homem ele tratava de major) Porque seu Major? Os soldados chegaram e levaram o pobre moribundo, para ficar preso por 24 horas. Ele saiu chorando. Foi a segunda alusão a justiça/injustiça do livro. A primeira foi o episódio do Cinturão. 36. MÁRIO VENÂNCIO: Um grupo teatral foi criado e o major Pedro Silva ofereceu uma casa na rua Juazeiro, na frente da cadeia. Foi criada a escola Dramática Pedro Silva. A primeira peça foi o plebeu. Mário Venâncio, um moço agente do correio se destacou pela sua atuação e feiúra. Nessa mesma época foi sugerida a criação de um periódico “Dilúculo”, que significa Alvorada do dia. Era impresso em Maceió e trazidos os exemplares por Buriti, um vendedor de revistas que declamava versos no meio da rua, como por exemplo os versos de “Moço Louro” . A redação era feita na agência do correio. No periódico eu e Mário Venâncio começamos a divulgar nossos primeiro escritos. Ele elogiava os meus trabalhos, prevendo que eu seria um bom escritor no futuro Pouco tempo depois ele bebeu ácido fênico e morreu. Foi com ele o Dilúculo. No colégio toleravam-me. Em casa detestavam minha nova ocupação. 37. SEU RAMIRO Naquele tempo a cidade não tinha hotéis e as pessoas iam lá para casa. Os hóspedes chegavam e saia a qualquer hora e nem agradeciam. Pagavam apenas com roupas e bugigangas que vendiam. Chegou um dia seu Ramiro, com o desejo de fundar uma loja maçônica. Nesse período Pedro Rico endoideceu e andava a cavalo se dizendo alma dele mesmo, pedindo missa e reza para ele. Seu Ramiro inaugurou a loja “Mensageiros da fé” e foi aliciando adeptos, pregando pelas casas, falando do Supremo Arquiteto do Universo. Ele viu no primeiro número do Dilúculo a minha obra “Pequeno mendigo” e censurou várias palavras escritas, segundo ele, estavam erradas. Meu pai emprestou-lhe dinheiro e ele foi embora desiludido, repugnando os três pontinhos maçons... 38. CRIANÇA INFELIZ No colégio havia um aluno desgraçado, que ao se chegar aos grupos de colegas tinha um sorriso cínico. Os mais bravos davam-lhe as costas, fazendo o rapaz se sentir entre inimigos. O maior deles era o próprio diretor. – sem vergonha! Descarado! Ele se escondia atrás dos livros. Nas sabatinas os alunos que acertavam puniam com a palmatória os ignorantes. Em casa do pai também não dava sossego e o punia severamente, até com murros e açoites. Às vezes a escola era um refúgio. Ele aceitava a ingratidão e ria, fazendo-me pensar como um gigante Adamastor (as forças da natureza – os Lusíadas) Ele era pálido e medonho. Deixei-o no tempo do colégio, lá pelos 15 anos. Ele entrou para o crime. Atirou num homem à traição. Foi absorvido pelo júri, mas continuou a sua violência e crueldade. Na Academia foi aprovado ameaçando os examinadores, bacharelando-se e fundando um jornal. Não deu certo. Teve muitas mulheres e foi na casa de uma delas que um desconhecido o matou, a punhaladas. 39 – LAURA (lembra a musa de Petrarca) Aos 11 anos tive grave desarranjo. Aquilo ia passar. No colégio fui nomeado segundo secretário. Num exame com Jovino Xavier foi que eu conheci Laura. Quando ia para a escola eu parava na frente da casa dela. Ela tinha um sorriso lindo e a boca vermelha. Às vezes na minha mente ela não tinha corpo e em outras vezes ela aparecia como um ser membrudo e espesso, toda carne e osso. As demais coisas perderam o valor. Laura sempre aparecia de novo, um vulto entre as plantas, como um clarão. Constantino, o caixeiro novo da loja, autor de textos também no Dilúculo reparou meu abatimento e me aconselhou a visitar Otilia da Conceição. Recusei a proposta daquela inicial sexual. Um dia entrei com Constantino numa casa na rua da Palha. Otilia da Conceição estava lá e me senti muito mal. Foi a minha inicial sexual. Adoeci de artrite e o meu corpo se cobriu de machas. Passei a ler novelas russas, parado numa cadeira de lona. Já não era mais criança. =================================================================== ==== PÓSFÁCIO (Cláudio Leitão) O romance descreve a formação do escritor Graciliano Ramos, desde criança até 15 anos e os seus primeiros escritos. O passado não tem solidez dos documentos. Não dizem muito do que aconteceu. Existem os registros das dores e prazeres entre os anos de 1936 e 1944. Os primeiros capítulos “Nuvens, Manhã e Verão” têm muitos acontecimentos e personagens que vão estar presentes durante toda a narrativa. Algumas passagens de “O cortiço” de Aluízio de Azevedo causam repulsa ao futuro escritor ao registro de incêndios e inundações, como início de sua produção poética. O autor não tenta apenas fazer registros documentais. Ele tenta puxar da memória as lembranças. “Se não me engano” já mostra essa intenção. O registro da escrita é fragmentado em forma de folhetim, com capítulos com seus títulos, como episódios, mas nem sempre contínuos. São marcantes os registros das viagens e mudanças, com as descrições do ambiente e seus problemas, levando consigo o período da alfabetização do menino. Os fatos no decorrer dos tempos são marcados nos ambientes numa fazenda no sertão pernambucano e no povoado de Buíque (PE) e Viçosa (zona da mata de Alagoas) As lembranças são momentos de hesitação do autor. A nebulosidade está caracterizada na crise de cegueira e nos sonhos. O ato de escrever solidifica a existência. A autonomia da escrita possibilita o autor transitar ludicamente por memórias, ficção, romance de formação e pelo universo da oralidade, traduzidas para a escrita. A figura e o poder do pai são destacados A mãe dona de casa e leitora dos primeiros romances também é um registro importante. Outro aspecto literário importante é a cronologia, com as etapas de crescimento e os primeiros acontecimentos e contatos com a escola e a leitura. O desenvolvimento da narrativa ocorre para caracterizar um menino sem palavras e sem escrita, em processo de aquisição de cidadania, observando um mundo às vezes cruel, mas cheio de possibilidades, envolvido em medo e pavor. Um romance auto-biográfico e às vezes ficcional descritivo da oralidade de pessoas num determinado tempo de infância do narrador, em movimentos e deslocamentos, processando-se a aprendizagem e o gosto pela leitura e escrita em construção num ambiente inóspito, mas gerador de conflitos e formação literária de Graciliano ramos. -----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------PEQUENA BIOGRAFIA: Graciliano Ramos: 27/10/1892, Quebrângulo (AL) 20/03/1953, Rio de Janeiro (RJ) Nasceu em Quebrângulo (AL), em 1892. Um dos 15 filhos de uma família de classe média do sertão nordestino, passou parte da infância em Buíque (PE) e outra em Viçosa (AL). Fez estudos secundários em Maceió, mas não cursou faculdade. Em 1910, sua família se estabelece em Palmeira dos Índios (AL). Em 1914, após breve estada no Rio de Janeiro, trabalhando como revisor, retorna à cidade natal, depois da morte de três irmãos, vitimados pela peste bubônica. Passa a fazer jornalismo e política em Palmeira dos Índios, chegando a ser prefeito da cidade (1928-30). Em 1925, começa a escrever seu primeiro romance, Caetés - que viria a ser publicado em 1933. Vai a Maceió em 1930, e dirige a Imprensa e Instrução do Estado. "São Bernardo" (1934) e "Angústia" (1936 e preso pelo regime Vargas, acusado de subversão). Memórias do Cárcere (1953) é um contundente relato da experiência na prisão. Em 1937 transferese para o Rio de Janeiro, publicando não só romances, mas contos e livros infantis. Vidas Secas é de 1938. Em 1945, ingressa no Partido Comunista Brasileiro. Morre em 1953. REFERÊNCIA: RAMOS, Graciliano. Infância. Rio de Janeiro: Record, 2008.