TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO
ACÓRDÃO/DECISÃO MONOCRATICA
REGISTRADO(A) SOB N°
ACÓRDÃO
llllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllll
'i
*02285539*
Vistos, relatados e discutidos estes autos de
Apelação n° 7152066-0, da Comarca de Piracicaba, em que é
Apelante Anadec Associação Nacional de Defesa da Cidadania e
do Consumidor, sendo Apelado Net Piracicaba Ltda:
ACORDAM, em 13a Câmara de Direito Privada
- "D" do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, proferir a
seguinte decisão: "
Deram provimento ao recurso, vu.
Sustentaram oralmente a Dra. PATRÍCIA HELENA MARTA e a
q
a
Defensora Pública designada em 2 instância Dra. DORA
BUSSAB CASTELO.", de conformidade com o relatório é voto do
Relator, que integram este acórdão.
Participaram
do
julgamento
os(as)
Desembargadores(as) Luis Eduardo Scarabelli, Tonia Yuka
Koroku e Carlos Eduardo Prataviera. Presidência do(a)
Desembargador(a) Luiz Sabbatc
<
São Paul
Luis Eduardo Scarabelli
Relator (a)
%
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VOTO N°:
235
APEL. N°:
7.152.066-0
COMARCA:
PIRACICABA
APELANTE:
ANADEC - ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE DEFESA DA
CIDADANIA E DO CONSUMIDOR
APELADA:
NET PIRACICABA LTDA.
EMENTA
AÇÃO CIVIL PÚBLICA - Serviços de TV a Cabo (TV por
assinatura) - Cobrança por ponto adicional - Discussão
sobre a legalidade - Natureza dos serviços prestados Justa
expectativa
do consumidor
que adquire
serviços em deter opção de entretenimento,
tais
pouco
importando em que local de sua residência irá assistir a
programação
ou se o fará de forma conjunta
ou
separadamente dos integrantes do núcleo familiar Inexistência de serviços prestados adicionalmente pela
instalação
dos
pontos
-
Serviços
que
não
são
mensurados como a energia elétrica - Abusividade da
cobrança - Existência de projeto de lei que, com base
nesta justificativa, proíbe expressamente a cobrança Impossibilidade
necessidade
indevidamente
de
da
imposição
restituição
pelos
de
dos
consumidores
reformada - Apelação provida
tais
valores
valores
-
e
pagos
Sentença
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I - RELATÓRIO
Trata-se de sentença que julgou improcedente ação civil pública,
entendendo ser possível a cobrança por ponto adicional de serviços de TV
a Cabo (fls. 351/359).
Anadec - Associação Nacional de Defesa da Cidadania e do
Consumidor interpôs apelação, sustentando ser ilegal a cobrança pelo
mencionado ponto adicional. Pleiteia, assim, a reforma da sentença para
fins de reconhecimento da procedência do pedido inicial (fls. 361/381).
Net Piracicaba Ltda. ofereceu contrarrazões, pugnando pela
manutenção da sentença (fls. 387/436).
O Ministério Público deu parecer pela anulação da sentença
para produção de prova pericial (fls. 459/470).
É o relatório.
II - DECISÃO
Primeiramente, observo que não é o caso de se anular a
sentença para determinar a realização de prova pericial, na exata medida
em que esta é totalmente despicienda para a hipótese dos autos, em que
se discute eminentemente questões de direito acerca da legalidade ou não
da cobrança de pontos adicionais de serviços de TV a Cabo.
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Neste sentido, já se decidiu que "(...) Inocorre cerceamento de
defesa quando a matéria é estritamente de direito e o magistrado
decide julgar antecipadamente o mérito, nada obstante tenha sido
realizado prova pericial posteriormente considerada irrelevante para
o julgamento" (STJ - 2 a T. - REsp 862.653/MS - Rela. Min a . Eliana
Calmon - j . 02.09.2008 - DJe 10.10.2008).
Feita esta anotação inicial, verifica-se que a apelação comporta
provimento.
Como
se
sabe,
a
livre
iniciativa
é
consagrada
constitucionalmente como um dos próprios fundamentos da República
Federativa do Brasil (artigo I o , inciso IV, da Constituição Federal), do qual
se extrai que (...) o prestígio que a liberdade de iniciativa recebe da
Constituição significa, também, o reconhecimento de um direito
titularizado por todos: o de explorarem
atividades
empresariais"
(COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, vol. 1. 8 ed. rev. e
atual. São Paulo: Ed. Saraiva, 2008, p. 189).
Todavia, não se trata de princípio absoluto, já que o texto
constitucional legitimou o modelo econômico neoliberal, "(...) que
funda
na livre iniciativa,
os quais aquela
mas consagra
deve se compatibilizar"
também
outros valores
se
com
(COELHO, Fábio Ulhoa. Op.
cit, p. 187).
Assim, conclui-se que "A defesa do consumidor, a proteção do
meio ambiente, a função social da propriedade
e dos
demais
princípios elencados pelo art. 170 da CF como informadores da
ordem econômica, bem como a lembrança da valorização do trabalho
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como um dos fundamentos dessa ordem, tentam refletir que a livre
iniciativa não é mais que um dos elementos estruturais da economia.
Ao delinear o perfil da ordem econômica com o traço neoliberal, a
Constituição, enquanto assegura aos particulares a primazia da
produção e circulação dos bens e serviços, baliza a exploração dessa
atividade com a afirmação de valores que o interesse egoístico do
empresário comumente desrespeita" (COELHO, Fábio Ulhoa. Op. cit., p.
187).
No presente caso, discute-se a legalidade da cobrança por ponto
adicional de serviços de TV a Cabo (TV por assinatura).
Muito embora não haja definição doutrinária acerca do contrato
em análise, a legislação estatui que "O Serviço de TV a Cabo é o serviço de
telecomunicações
que consiste
áudio, a assinantes,
mediante
na distribuição de sinais de vídeo
e/ou
transporte por meios físicos" (artigo 2 o ,
caput, da Lei 8.977/95).
Nestes termos, é perfeitamente possível concluir que, quando
não for a hipótese da chamada modalidade empresa, trata-se de serviço
adquirido por assinante com o nítido intuito de lazer, para que possa
visualizar e ouvir dados televisivos transmitidos com certa exclusividade
pelos sistemas disponíveis.
Em outras palavras, a justa expectativa do consumidor que
adquire e paga por tais serviços pode ser resumida na opção de
entretenimento televisivo que deseja deter além daqueles transmitidos
pelos canais abertos.
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P a r a t a n t o , afigura-se irrelevante se o a s s i n a n t e vai assistir estes
p r o g r a m a s n a sala, no q u a r t o ou n a cozinha de s u a residência, ou, ainda,
se conjunta ou s e p a r a d a m e n t e com s e u s familiares.
A partir de tal assertiva, verifica-se q u e a c o b r a n ç a pelos pontos
adicionais p e r p e t r a d a pela fornecedora começa a g a n h a r contornos de
abusividade, por ferir o princípio d a boa-fé objetiva.
Deveras, referido princípio, positivado em diversos dispositivos
n ã o só do Código de Defesa do C o n s u m i d o r como do Código Civil, impõe
u m a série de c o n d u t a s - p r é - c o n t r a t u a i s , c o n t r a t u a i s e p ó s - c o n t r a t u a i s - ,
a fim de se evitar situações r e p u d i a d a s pelo direito.
Neste sentido, "(...) o dever de a c t u a ç ã o s e g u n d o a boa-fé
implica,
seguramente,
negociais
gerais,
de
o
de
modo
não
prejudicar,
mediante
desproporcionado,
a
condições
contraparte:
a
desproporção pode ser determinada, de forma c ô m o d a , t o m a n d o por
bitola a regulação supletiva normal, consagrada na lei o u o tipo
contratual
normal,
atentos
os
fins
deste
e
os
que
o
contrato
q u e s t i o n a d o permita obter." (CORDEIRO, Antônio Manuel d a Rocha e
Menezes. Da boa fé no Direito Civil. 2 a reimpressão. Coimbra: Almedina,
2 0 0 1 , pp. 658-659).
E, q u a n d o se a n a l i s a m os a r g u m e n t o s trazidos pela operadora de
TV a Cabo, conclui-se q u e todos eles estão ligados a aspectos empresariais
a p e n a s , j á q u e a livre fixação do preço n ã o implica n a possibilidade de
imposição de c o b r a n ç a s a b u s i v a s (artigo 5 1 , inciso IV, da Lei 8 . 0 7 8 / 9 0 ) .
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Note-se q u e a alegação de q u e "O SERVIÇO DE PONTO
REPRESENTA
NOVO SERVIÇO AO CONSUMIDOR'
EXTRA
(fl. 407) é totalmente
afastada pela c o n s t a t a ç ã o de que o serviço é pago pela disponibilização n a
residência do a s s i n a n t e , e n ã o pela q u a n t i d a d e assistida, n ã o
sendo
serviço m e n s u r á v e l como a energia elétrica, por exemplo.
Caso contrário, u m u s u á r i o que n ã o utilizasse os serviços n u m
d e t e r m i n a d o m ê s estaria isento de pagar a m e n s a l i d a d e , o que, por óbvio,
n ã o se verifica.
E, t a n t o é indevida a c o b r a n ç a que j á t r a m i t a h á a l g u m tempo o
Projeto de Lei 3 4 6 / 0 5 do Senado Federal, q u e visa instituir o § 3 o no artigo
2 6 d a Lei 8 . 9 7 7 / 9 5 , p a r a proibir e x p r e s s a m e n t e a c o b r a n ç a de adicional
pela disponibilidade do serviço de TV a Cabo, q u a n d o instalado em pontos
adicionais ou p o n t o s extras de d e m a n d a de sinal p a r a c a d a u s u á r i o
individual n u m único domicílio.
Vale ressaltar q u e referido projeto, q u e j á conta com parecer
aprovado n a Comissão de Meio Ambiente, Defesa do C o n s u m i d o r e
Fiscalização e Controle, a p r e s e n t a como justificativa que, "(...) a
dos custos
iniciais de instalação,
que, claro, têm que ser ressarcidos,
faz sentido a cobrança pelo uso continuado
usuário
chegam
de TV a Cabo é contratante
ao seu
distribuídos
domicílio,
conforme
seu
despeito
podendo,
interesse
não
dos pontos extras. Pois, afinal, o
de uma prestação
à vontade
de
uso"
de serviços
do contratante,
(capturado
no
que
serem
"site"
< h t t p : / / www. s e n a d o . gov. br / sf/ atividade / m a t é r i a / detalhes. asp?p_cod_ma
te=75380&p_sort=DESC&cmd=sort> e m 5 de janeiro de 2009).
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Destarte, a única conclusão possível é a de que a cobrança por
ponto adicional de serviços de TV a Cabo é abusiva e desproporcional,
sendo de rigor a sua proibição como forma de recondução da relação
contratual ao equilíbrio:
"A desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo
titular e o sacrifício imposto pelo exercício a outrem
constitui, por fim, o mais promissor dos subtipos integrados
no exercício em desequilíbrio. Integram-se, aqui, situações
como o desencadear de poderes-sanção por faltas
insignificantes, a actuação de direitos com lesão intolerável
de outras pessoas e o exercício jussubjectivo sem
consideração por situações especiais.
(...)
"O tipo abusivo do desequilíbrio no exercício surge como um
cadinho onde tomam forma novos casos de comportamento
inadmissíveis. Nele, o mais característico é, afinal, uma
coloração metodológica particular que, no próprio campo das
permissões normativas de agir, manda atender às
conseqüências da decisão, que sancione ou censure os
exercícios concretos. Requer-se, em áreas de comportamento
danosos, ainda que dotados de legitimidade formal, o
atender redobrado às redimensões sinépicas implicadas,
como forma privilegiada de controlar, em toda a sua
extensão e não, apenas, a nível constitutivo, da
compatibilidade dos exercícios com a ordem jurídica no seu
todo." (CORDEIRO, Antônio Manuel da Rocha e Menezes. Op.
cit, pp. 857 e 859-860).
Anoto, por oportuno, que deve ser fixada multa para a hipótese
de descumprimento da obrigação, nos moldes do artigo 461 do Código de
Processo Civil, sendo esta fixada em valores individuais por se tratar de
ação que se discute interesses individuais homogêneos, o que facilitará
eventual fase de execução.
Deveras,
durante
muito
tempo
se
discutiu
acerca
da
possibilidade ou não de imposição de condenações cominatórias e de como
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incutir no íntimo do c o n d e n a d o a real vontade de se c u m p r i r a obrigação,
chegando-se à conclusão d a inviabilidade, motivo pelo qual se fazem
necessários
instrumentos
que
prevejam
sanções,
no
d e s c u m p r i m e n t o voluntário (neste sentido: GOMES, Orlando.
caso
de
Obrigações.
13 ed. Rio de J a n e i r o : Forense, 2 0 0 0 , p. 180-181).
Assim é que o Código de Processo Civil prevê, como i n s t r u m e n t o
d a efetividade jurisdicional, a fim de impor o c u m p r i m e n t o d a obrigação ao
devedor, a m u l t a cominatória, i n d e p e n d e n t e m e n t e de pedido d a parte
interessada:
"O art. 4 6 1 , caput, reza que o juiz 'determinará providências
práticas que a s s e g u r e m o resultado prático e q u i v a l e n t e ao
a d i m p l e m e n t o ' . Tais m e d i d a s , c o m p l e m e n t a o § 5 o do
mesmo
artigo,
podem
consistir
(a
enumeração
é
exemplificativa) na i m p o s i ç ã o de multa, na b u s c a e
apreensão, na r e m o ç ã o de p e s s o a s e c o i s a s , no d e s f a z i m e n t o
de obras e no i m p e d i m e n t o de atividade nociva, c o m o u s e m
requisição de força policial." (ASSIS, Araken de. Manual da
execução.
9 ed. rev. e ampl. São Paulo: Ed. Revista dos
Tribunais, 2 0 0 5 , p . 481).
III - DISPOSITIVO
P o s t o i s s o , por m e u v o t o , dou p r o v i m e n t o à apelação, a fim
de: a) c o n d e n a r a Net Piracicaba Ltda. na obrigação de não-fazer
c o n s i s t e n t e na proibição de efetuar cobranças de m e n s a l i d a d e s por
p o n t o s a d i c i o n a i s de s e r v i ç o s de TV a Cabo, sob pena de multa de u m
salário m í n i m o por cada cobrança, d e v e n d o e s t a m u l t a ser revertida
em
beneficio
de
cada
consumidor
cobrado
indevidamente;
b)
c o n d e n a r a m e s m a Net Piracicaba Ltda. a restituir, e m dobro (artigo
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4 2 , parágrafo único, da Lei 8.078/90),
os valores pagos pelos
consumidores a título de ponto adicional de serviços de TV a Cabo.
Condeno a apelada a arcar com as custas e
despesas
processuais, inclusive verba honorária advocatícia que fixo, por
eqüidade, em R$5.000,00.
LUÍS EDUARDO SCARABELLI
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