Luis Eduardo Ponciano Aragon
O Impensável na Clínica
Tese de Doutorado
Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica
Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade
PUC-SP
São Paulo – 2005
ii
Luis Eduardo Ponciano Aragon
O Impensável na Clínica
Tese
apresentada
examinadora
da
à
Banca
Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção
do título de Doutor em Psicologia
Clínica, Estudos da Subjetividade, sob
a orientação da Profa. Dra. Suely
Belinha Rolnik.
Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica
Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade
PUC-SP
São Paulo – 2005
iii
Banca Examinadora
_____________________________________
Dra. Suely Belinha Rolnik – Orientadora
_____________________________________
Dra. Regina Néri
_____________________________________
Dra. Miriam S. Chnaiderman
Suplentes
_____________________________________
_____________________________
Dr. Luis B. Lacerda Orlandi
Dra. Ângela Capozzolo
_____________________________________
_____________________________
Dr. Gilberto Safra
Dra. Maria Cristina G. Vicentin
iv
Autorizo, exclusivamente para fins acadêmicos e científicos,
a reprodução total ou parcial desta Tese por processos de
fotocopiadoras ou eletrônicos.
Assinatura:__________________ São Paulo, março de 2005
v
Agradecimentos
À Suely B. Rolnik, mais do que orientadora, incentivou-me a fazer a
opção pelo doutoramento e acolheu ternamente minhas dificuldades e
impasses. Ainda além, a força e a vitalidade de seu pensamento
apresentaram um caminho - intenso e feliz - de trabalho e experiência, até
então desconhecido.
Ao Peter Pál Pelbart, pelo interesse sincero em meu desenvolvimento
acadêmico e pela oportunidade de participação em seus enriquecedores
Grupos de Orientação.
Ao Luiz B. L. Orlandi, por tudo que aprendi e aprendo com ele desde a entrevista para a minha inclusão no processo de doutoramento.
Mas especialmente pela dedicação e generosidade na Banca de
Qualificação.
À Regina Néri, pelo estímulo e pela interlocução durante todo o
percurso, mas, sobretudo pela amizade.
À Miriam S. Chnaiderman, por sua participação atenta e delicada no
processo de Qualificação.
Ao meu amigo Paulo Sergio de Carvalho, pela cumplicidade durante
todo o caminho, e por sua incansável e carinhosa dedicação à leitura e
revisão da tese.
Aos meus amigos e colegas dos Grupos de Orientação: Abrahão de
Oliveira Santos, Maurício Lourenção Garcia, Vera Lucia F. Mendes, Bruno
Vasconcelos, Tania Maia Barcelos, Maria Cecília Galetti, Ana Cristina
Lopérgulo, Rosane Preciosa Sequeira, Paulo Buenoz, Elizabeth Lima,
Edson Olivari de Castro, Maria Cristina G. Vicentin, Cristiane F. Mesquita,
Alexandre Henz, Érica Inforsaro, Damian Krauss, Patrícia Rochael, Felícia
Knobloch, Ângela A. Donini, Giovanna di Marco, Margaret M. Chillemi,
vi
Roberta C. Romagnoli, Valéria F. de Andrade, Walter Muller e Ricardo W.
M. da Silveira. Com seus comentários, críticas, parcerias... enriqueceram
não só meu trabalho, mas minha vida.
À Regina Benevides de Barros, Eduardo Passos e colegas da “Clínica
Trans”, que indicaram – com suas idéias e amizade – diversas trilhas para
esta pesquisa.
Aos pacientes e analisandos que, com seus sofreres e dedicação, me
deram a oportunidade de desenvolver-me profissionalmente e realizar este
trabalho.
Aos meus mestres e colegas, médicos e psicanalistas, os quais
participaram e participam da tecedura do meu percurso.
Às amigas do consultório, pelo apoio e afeto.
À Elza Nicolino, Berenice Néri Blanes e Ignácio Gerber, pela presença
sincera e por saberem naturalmente o que são os “afetos de vitalidade”.
Aos meus pais: Nadir e José, pelo amor, interesse, incentivo, vida, ou
seja, por tudo.
Aos meus familiares por sua atenção amorosa.
À PUC-SP – através do Núcleo de Estudos e Pesquisas da
Subjetividade - por acolher meus anseios de pesquisa e tornar possível a
realização desta tese.
Ao CAPES, pelo apoio financeiro.
vii
Para Anne e Antônia
com amor
viii
Resumo
ix
Fruto de experiência clínica que imbricou os campos da medicina e da
psicanálise, esta pesquisa circunscreve uma forma de sofrer particularmente
atual, decorrente da distância entre a alta produtividade de objetos formais
(técnicos, estatísticos, arquitetônicos, conceituais, ideativos, etc.) que são
oferecidos aos sentidos, e a restrição do poder de apreender a realidade de forma
intensiva, intuitiva ou pática. Para isso, combina o método cartográfico – pelo
qual se explicitam as sensações vividas nesta clínica, nômade, por deslizar em
devires de corpos sempre defasados em relação a si – com a construção de
inúmeras alianças teóricas com pensadores vinculados principalmente à Filosofia
da Diferença e à Psicanálise.
Com inspiração em Winnicott e Illich, o conceito de esquizoalgia é usado
para falar da agonia que “habita” este território, que não pode ser determinado
como corpóreo ou mental, consciente ou inconsciente, objetivo ou subjetivo. A
contribuição de autores como Lyotard, Deleuze, Simondon, Uexküll e Stern,
ajuda a delimitar a idéia de “corpo-acontecimento”, um corpo não apenas
empírico, mas também sustentado por uma realidade pré-individual, virtual.
O deslocamento de uma perspectiva de análise que visa as formas
individuadas
(sujeito,
nomes
de
patologias,
modelos
teóricos),
para
a
processualidade impessoal, inédita e imprevisível dos acontecimentos, dá
condição para pensar um sofrer relacionado à própria emergência do processo de
subjetivação. E, desta forma, também uma clínica que lide com este sofrer.
A concepção deste corpo intensivo, pulsante e rítmico põe as bases para
uma clínica que lide com os aspectos afetivos e virtuais do ser; que instaura um
processo de errância quanto ao que se pretende fixo e estruturado, penetrando o
terreno brumoso das sensações, afetos de vitalidade, intuições e “memórias
intensivas”.
Neste
ponto,
são
usadas
contribuições
de
Bion
(os
proto-
pensamentos e a intuição).
Por fim, é ressaltada a perspectiva ética da opção clínica desenvolvida,
apresentando-se alguns pontos que foram se afirmando como conseqüência da
experiência.
Palavras-chaves: Medicina, Psicanálise, Clínica, Ética, Corpo, Sofrimento.
x
Abstract
xi
This research circumscribes a particularly current form of suffering as the
result from a clinical practice that overlapped the medical and psychoanalytical
fields. This specific suffering is seen as the consequence from the distance
between the great productictivity of formal objects (technical, statistical,
architectural, conceptual, etc) being offered to the senses and the restriction of
the power to apprehend reality in a intensive and intuitive way. For that purpose,
it combines the cartographic method – through which are cleared out the
sensations lived in this nomadic clinical practice, sliding in becoming-bodies
always out of step with one self – with the assembling of several theoretical
alliances with thinkers linked primarily to the Philosophy of Difference and to
Psychoanalysis.
Inspired by Winnicott and Illich, the concept of schizoalgy is used to
address the anguish that “dwells” in this territory and cannot be determined as
corporeal or mental, conscious or unconscious, objective or subjective. The
contribution of authors like Lyotard, Deleuze, Simondon, Uexküll and Stern,
helps to set the limits of a “body-occurrence”, a body not only empirical, but also
held up by a pre-individual and virtual reality.
The displacement from an analytical perspective that aims at singled out
forms (subject, pathological classification, theoretical standards) to a impersonal
process-action of events, unique and unpredictable, is what sets the conditions to
thinking a form of suffering related to the emergence of the subjectivity-act
process. And therefore, to also think a clinical practice that deals with that
suffering.
The genesis of such intensive body, pulsing and rhythmical, lay the basis
for a clinical practice that deals with the affective and virtual aspects of being.
Such practice establishes an erratic process regarding what is intended to be
structured and permanent to get into the misty ground of sensations, affections
of vitality, intuitions and “intensive memories.” At this point, it’s used the
contributions by Bion (the proto-thoughts and intuition.)
Key words: Medicine, Psychoanalysis, Clinical Practice, Ethics, Body,
Suffering
xii
Sumário
01 Apresentação
08 • Primeira cartografia clínica: Um grito, muitos sopros
29 Capítulo 1 – Corpo Objetificado
37 Capítulo 2 – Perspectivas para um corpo-acontecimento
37
2.1. Corpo-passagem
40
2.2. Corpo-estranho
44
2.3. Corpo-melodia
56 • Segunda cartografia clínica: Violetas e sons
60
2.4. Corpo-devir
62
2.4.1. O virtual
66
2.4.2. Comunicação e In-formação
67
2.4.3. O coletivo
70
2.4.4 Morre-se
76
2.4.5. Afetos
84 • Terceira cartografia clínica: Moça e a notícia que vem
das sombras
92 Capítulo 3 – Fragmentos críticos de corpos atuais
92
3.1. Imanência
96
3.2. Invenção e captura
103
3.3. Controle, antecipação e risco
108 Capítulo 4 – Apontamentos para uma clínica “do”
impensável
108
4.1. Os proto-pensamentos
114
4.2. Intuição – por uma “memória intensiva”
119
4.3. Imaginação, subjetivação e devir
126 Capítulo 5 – Agonias Impensáveis
135 Capítulo 6 – Uma ação ético/clínica
135
6.1. Agenciamento teórico
146 • Quarta cartografia clínica: Uma ação
150 Referências Bibliográficas
158 Créditos das Imagens
xiii
Índice das Imagens
07 Imagem 1 - Francis Bacon - Fragment of a crucifixion
(1950)
12 Imagem 2 - Anomalia cardíaca fetal à ecocardiografia e à
necropsia
28 Imagem 3 - Juan Valverde – Anatomia del corpo humano
(1560)
36 Imagem 4 - Kazuo Ohno - Butô
55 Imagem 5 - Francis Bacon – Pintura de triptic (1970)
83 Imagem 6 - Adriaan Van den Spiegel – De formato foetu
líber singularis (1631)
91 Imagem 7 – Ultra-som fetal tridimensional
107 Imagem 8 - Sir Samuel Luke Fields – O médico (1891)
125 Imagem 9 - Nazareth Pacheco – Sem título (1998)
134 Imagem 10 - Bebê prematuro
145 Imagem 11 - Vaso de Phintias (VI a. c.)
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
1
Apresentação
São as marcas que escrevem.
Suely B. Rolnik
A porta fechada não contém o grito. Do fundo de um corredor de
hospital chega o som, rude e insistente, que transtorna os que passam.
Parece não caber na paisagem e, talvez por isto mesmo, faz tremer as
estruturas da tecnologia médica e as convicções dos profissionais da
saúde. O choque entre a impossível dor e a pletora de objetos que lhe
tentam dar forma, conter, nomear, parece multiplicar o impensável da
sensação fugidia.
Outro local, outro momento, outra atmosfera. Moça, tolhida do poder
de ser mãe, vaga insone, qual zumbi em frangalhos, pelo consultório de
psicanálise, pela casa sem vida, pelas páginas do caderno repleto de
conversas lançadas aos ouvidos do filho ausente. A notícia da morte
chegou meses antes do acontecimento, enquanto ainda gestava a
condenada criança. Viu, com pavor, seu corpo tornar-se território estranho
e ameaçador. As sensações que a possuíam e se exprimiam de forma
inescapável e involuntária não respondiam aos diagnósticos e remédios, ou
à “segurança” de saber – a cada momento – o que está “realmente”
acontecendo com o feto ou com seu corpo (através do reiterado diagnóstico
de crises de pânico).
As formas de um câncer disseminado ou de um feto doente, de uma
psicopatologia ou do nome de um sofrimento são oferecidas aos sentidos.
Escutar, cheirar, sentir, mas principalmente olhar, são ações perceptivas
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
2
que vêm passando por uma multiplicação de variações em suas
associações com objetos tecnológicos. Os equipamentos que esquadrinham
o corpo produzem cada vez mais um número maior de informações, e estas
abarrotam as relações, enquanto tentam ser – pobremente – contidas, em
diversas imagens e palavras ou discursos.
Mas esta produção não se restringe ao corpo, estando disseminada
por todos os recantos do cotidiano, através dos meios de comunicação de
massa. Produz-se e difunde-se uma enormidade de “seres” imagéticos,
narrativos, conceituais, arquitetônicos, classificatórios, identitários. Não
apenas por uma aceleração da capacidade de desenvolvimento técnico,
mas também por uma tentativa de captura pela sedução do poder de
consumo de cada um. Só se pode vender o que existe enquanto objeto
individuado, e este objeto tem se tornado progressivamente imaterial. Ou
seja, para tentar capturar o impalpável do desejo ou do medo, são
oferecidas as possibilidades de “ver o rostinho do bebê” ao ultra-som ou de
vestir-se de uma forma que assegura – provisoriamente – a pessoa em um
status qualquer 1 .
Caminhando por entre a selva de “objetos-sujeitos” está o ser do
grito, da errância atormentada, da agonia. Ao contrário da matéria
perceptiva, as sensações não permitem formalização. Só concedem
exprimir-se enquanto passam para “outro destino”, são transitivas,
singulares, intempestivas. As sensações abrem o campo do intensivo, préindividual, rítmico. Território obscuro e vital, esquizo por fugir e fazer fugir
tudo o que é fixo e determinado.
Uma perspectiva desta questão é a proposta por Pelbart, quando diz que “se antes o
acesso às redes de sentido e de existência, aos modos de vida e aos territórios subjetivos
estava baseado sobretudo em critérios intrínsecos tais como tradições, direitos de
passagem, relações de comunidade, pertinência religiosa, sexual, cada vez mais esse
acesso é mediado por pedágios comerciais, impagáveis por uma grande maioria. O que se
vê então é uma expropriação das redes de vida pelo capital” (Pelbart, 2002, p. 253).
Nestes “pedágios” são vendidas “maneiras de ver e de sentir, de pensar e de perceber, de
morar e de vestir”, ou seja, “a promessa de um modo de vida invejável” (idem, p. 252).
1
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
3
Proponho, com este trabalho, uma aproximação a este plano não
empírico do corpo para, assim, esboçar a idéia de que, neste tempo que é o
nosso, vem ocorrendo um sufocamento da potência intensiva. Nesta
ecologia particular do que se apresenta atual e do que se mantém em
virtualidade, concebo o que será chamado de agonia impensável ou
esquizoalgia. Sensação de um sofrer difuso e intenso, que emerge
justamente no limiar do processo de subjetivação, de seu abafamento e
produção. Neste caminho tentarei encontrar a potência de uma clínica que
lide com o campo de forças imateriais e, com isto, o viés ético e político que
toma esta aposta.
Com o objetivo de mergulhar o leitor no terreno das sensações, criei
esta Tese com a mesma imprevisibilidade e participação com que nos
colocamos na situação clínica, através de “cartografias clínicas”. Com isto
intencionei abrir espaços livres de sentido teórico, para que se possa criar,
entre o trabalho e o leitor formas inéditas de pensar e sentir. Desta forma,
procurei me manter fiel à trajetória clínica que me interessa.
Sobre o percurso
Pareceu-me importante apresentar um roteiro do percurso trilhado.
Começo pelo item chamado “Corpo objetificado” (Capítulo 1), como
contraponto
ao
corpo
que
transcende
a
experiência
empírica
e
representacional, o qual irá capturar nossa atenção.
Em seguida, para aproximar-me da complexidade da temática, foi
necessária a “construção” de um corpo-acontecimento (Capítulo 2). Ou
seja, procuro mergulhar em uma perspectiva que tem o corpo em processo
como foco maior. Para tal projeto – tendo em vista a dificuldade de realizálo – multiplico perspectivas teóricas que, cada uma a seu modo, se
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
4
agenciam com a proposta geral. Neste caminho tomam forma várias
imagens do pensamento, nomeadas como “corpo-passagem”, “corpoestranho”, “corpo-melodia” e “corpo-devir”.
Por esta estratégia, busco criar uma alternativa à lógica clínica – e
ética – que lida unicamente com seres constituídos e conciliados em uma
identidade fechada, como é o caso das abordagens habituais que visam à
relação médico-paciente enquanto conjunto de regras de convívio 2 . Para,
assim, produzir de forma mais determinada a aproximação àquelas
agonias surgidas no próprio limite processual do ser.
Este corpo-acontecimento inclui o corpo empírico, bem como a
virtualidade potencial que lhe subsiste, atravessa e sustenta. O que
permite pensar em uma ecologia de atualização e virtualização dos seres,
sejam eles idéias, máquinas, palavras ou indivíduos.
Em seqüência a este ponto, apresento alguns poucos “fragmentos
críticos” (Capítulo 3) sobre situações atuais, coletados no decorrer da
pesquisa, para explorar algumas situações cotidianas sob o viés da
mutação contínua, a partir de um plano de imanência imaterial. Também
avanço na idéia de um fomento atual à invenção (e, em contrapartida, de
obstaculização desta) e, em seguida, trago algumas concepções sobre a
dinâmica atual de controle, antecipação e risco, completando o panorama
– fragmentário – do contemporâneo.
Uma particularidade característica do nosso tempo – a qual procuro
defender – é o fomento à produção de corpos extensivos ou formais, ou
seja, a capacidade de pôr em série, estabelecer contato e promover novas
sínteses a partir de diversos fluxos (conceituais, técnicos, imagéticos ...) 3 .
Mesmo as clínicas com enfoque intersubjetivo, respeitam um pressuposto de relação
entre individualidades. Esta pesquisa está mais alinhada a uma perspectiva de relação
trans-subjetiva.
3 Incluí aqui também os corpos mais etéreos, mas não menos atualizados, da publicidade
em todas as suas formas (comercial, acadêmica, institucional). Esta trabalha na
2
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
5
A isto vem aliar-se uma tendência à restrição dos planos de sentido
potenciais (intensivos). Quero dizer que há também uma potência de
esvaziamento da apreensão pática – a qual chamarei de intuição – da
multiplicidade ou complexidade que acompanha o surgimento destas
sínteses. A velocidade de substituição de objetos, e de exposição a estes,
por exemplo, convoca à metamorfose dos corpos, mas a condição de
apropriação
da
experiência
intensiva
–
do
gostando,
distraindo,
intoxicando – com freqüência não é acolhida. O que dá condição a uma
asfixia do que, na experiência sensível, a excede, e exige das formas e
representações, o seu ultrapassar.
Após reunir o instrumental que nos permite pensar um “corpoacontecimento” e transitar por algumas reflexões acerca dos nossos
tempos, empreendo a tarefa de apontar alguns caminhos teóricos para o
que chamo de “clínica do impensável” (Capítulo 4). São idéias e
associações para a clínica, decorrentes do trajeto percorrido.
O esforço, do qual esta tese é resultado, foi vivido no Programa de
Psicologia Clínica (PUC-SP), por um clínico (médico e psicanalista).
Obviamente o interesse maior vem das sensações experimentadas – além
de no próprio corpo do “pesquisador/cartógrafo” – neste território. E,
destas
experiências,
surgiu
a
necessidade
de
propor
que
temos
experimentado agonias singulares, difusas e intensas, que se relacionam
mais com o como viver e como morrer (a processualidade da ecologia
virtual/atual) do que com a clássica oposição dialética vida/morte.
Agonias impensáveis (Capítulo 5), por estarem no limite do que se
pode experimentar e pensar. Entre corpo e mente, ser e ambiente, objetivo
e subjetivo, atual e virtual, mas escapando sempre da captura (mesmo da
localização em um entre formalizado ou espacializado).
multiplicação de mundos possíveis, para tentar capturar o imprevisível, e assim estipular
um preço ou hierarquia de propriedade (Lazzarato, 2004).
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
6
O trabalho não poderia se encerrar sem postular que encaro o
próprio projeto de considerar um corpo “acontecendo no infinitivo”, uma
atitude clínica, bem como ética e política. Apresento, então, no Capítulo 6
– “Uma ação clínica” – a delimitação de algumas características da ação
sob este viés.
A ação não se restringe a um campo específico do saber – médico ou
psicanalítico – instalando-se nas bordas. Como das bordas é fruto este
mesmo esforço. Deste território brumoso deve surgir a ação que interfira
no “impensável”.
Ainda resta destacar que a estratégia metodológica da Tese
comportou dois planos de ação que se atravessam.
O primeiro plano, o cartográfico, que se dá no mergulho em
situações contemporâneas, sem uma pretensa neutralidade científica, mas
ao contrário, tendo como objeto o que se produz no encontro/choque do
“cartógrafo” com o “território”. Assim sou fiel ao projeto de conviver com o
corpo em processo e não com objetividades já formadas. Devemos perceber
os trajetos, o evolver dos encontros, mais do que as individualidades. Faz
parte da cartografia uma aproximação crítica da experiência. A qual, nesta
pesquisa, terá como foco o processo de individuação e constituição de
“mundos próprios” (mutantes e mutagênicos).
O segundo plano é o que tange a forma de apresentação. Foram
incluídos pequenos ensaios e histórias chamados cartografias clínicas
(“Um grito, muitos sopros”; “Violetas e sons”; “Moça e a notícia que vem
das sombras” e “Uma ação”), entremeados de capítulos onde procedo a
desenvolvimentos teóricos. Com isto espero situar o leitor no movimento
cartográfico e na opção crítica, a qual – insisto – é também um
posicionamento ético e político frente ao sofrer atual.
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
Imagem 1 – Fragment of a crucifixion - Francis Bacon (1950)
7
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
8
Primeira cartografia clínica
Um grito, muitos sopros
Gritos.
Mais gritos.
Não quaisquer. São gritos de raiva. Mas não só. Difícil dizer o que se
pode traduzir a partir daquele grave som que enche os espaços. Certo é
que ninguém que está por perto consegue furtar-se ao impacto da
situação. É um grito que demanda, exige.
Queixa, raiva, medo, alguma emoção outra, ou uma mistura de
várias destas, complexas, parciais, transbordam do já volumoso corpo.
Corpo extenso, pesando aproximadamente cento e cinqüenta quilos,
não se contém, e se alonga. Passa inadvertidamente a ocupar todo o
quarto, os corredores, os outros quartos, o corpo de todos os vizinhos.
Atletismo louco, faz com que seu corpo in-corpore outros em contágio.
Surpreende ainda, o fato de esta ocupação militar partir de um corpo
quase imóvel. As pernas, órgãos habitualmente dóceis e obedientes,
abdicaram faz um tempo de suas atividades. Paraplegia, dizem os médicos.
Como seria bom parar de ouvir aquele clamor, que parece agressão
pura e simples! Por que ele não se conforma com sua situação infeliz, e
aceita seu destino? São alguns dos pensamentos, desesperados, que
surgem nas pessoas responsáveis por cuidar daquele espaçoso ser.
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
9
Não é um ser qualquer. É um paciente. Ser paciente, hoje, traz em si
uma complexidade própria.
Compõe uma paisagem arquitetônica particular. Um hospital, quase
um hotel (Sant’anna, 2001, p. 30). Corredores amplos, suítes de bom
tamanho,
televisão,
rádio,
ar
condicionado.
Difícil
encontrar
uma
explicação lógica para aquele grito. “Olha só o conforto que é oferecido!”
Certamente a paisagem é muito diferente dos templos de Esculápio,
na Grécia antiga. Pavilhões com belos jardins, onde os doentes acorriam
para curar-se pelo contato com a beleza, e através dos sonhos visitados
pela divindade (Lyons & Petrucelli, 1987, p. 176). Diferente também dos
leprosários da Idade Média, e de muitos hospitais da Renascença.
Depósitos de “sub-humanos”, destinados unicamente à morte (Foucault,
2001, pp.101-2).
Não são parecidos – os hospitais modernos – nem mesmo com os
hospitais dos séculos dezessete e dezoito, época de opulência econômica, e
da necessidade de a nova burguesia distanciar os pobres e doentes de
suas casas e cidades. Naquela época, os cuidados propriamente médicos
deveriam ser procedidos na casa do próprio doente. O convívio com os
familiares era fundamental para a recuperação deste. Havia também uma
filosofia médica por detrás desta atitude. Tirar o paciente do seu ambiente
habitual poderia interferir na evolução natural da doença. Assim, a
classificação da doença e a terapêutica que ocorre em seqüência, poderiam
ser prejudicadas (Foucault, 2001, pp. 102-3).
Não é descabido este sobrevôo por sobre as épocas. Não há um
universal que se chama paciente, e atravessa os séculos, imutável. Cada
tempo carrega em seu bojo a condição de “criar” seus próprios pacientes (e
seus cuidadores), e assim é com nosso próprio tempo.
Portanto, aquele transbordante corpo, que enche os ouvidos e a
mente da equipe encarregada de sua saúde, já participa de um conjunto
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
10
de fluxos que, estes também, se con-formam e excedem as formas. Fluxos
arquitetônicos, conceituais, médicos, tecnológicos...
Coloquemos mais alguns destes fluxos em evidência.
Doenças mais graves são “vividas” em um hospital. Isto denota que o
tratamento
independe
do
local,
e
mesmo
é
beneficiado
por
um
deslocamento da pessoa do que podemos chamar de seu lar. A doença tem
um estatuto mais independente do entorno. É praticamente um indivíduo
a ser eliminado, uma “entidade” nosológica (ou identidade). Há, então, um
esvaziamento das ligações afetivas que aproximam a pessoa “dos seus”.
Familiares,
objetos,
lugares,
memórias
sensoriais
não
são
mais
importantes para a determinação da patologia e, menos ainda, para o
ataque
às
suas
habitualmente
bases
por
anátomo-patológicas
estudos
(táticas
“multicêntricos”,
determinadas
“duplo-cegos”
e
“randomizados”). E, junto a isto, há uma virtualização do ser, confrontado
com uma população de encontros inéditos, os quais produzem sensações
que “insistem” por conquistar vias de expressão, formas de subjetivação.
No hospital, a família se desincumbe do doente. Em um mundo onde
homens, mulheres e mesmo crianças são atarefadas; no qual todos portam
a responsabilidade de prover sua própria felicidade, em meio a uma
profusão de objetos e identidades a serem consumidos; e onde a morte
tornou-se um “não-sei-quê” aterrador, sempre afastado e presente; neste
mundo, a doença e a morte dificilmente comunicam ou questionam
alguma coisa para os saudáveis e vivos 4 . Ao contrário, contingência infeliz,
tem seu (não-?) lugar para ser vivida. Longe do cotidiano dos sãos, que
ficam protegidos do contágio da proximidade com o adoecer e o morrer.
Bertrand Vergely ao dizer que não há mais lugar para os mortos na sociedade moderna,
quer dizer que “não é mais um morto que se enterra, é o enterro ele mesmo que se
enterra” (Vergely, 2001, p. 26). Podemos parodiá-lo dizendo que não é mais o doente que é
negado, mas o próprio fato do adoecer/envelhecer.
4
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
11
As instalações contemporâneas favorecem também a concentração,
em um só local, dos equipamentos médicos. Nos últimos dois séculos,
desenvolveu-se uma forma de produção de saber em íntima relação com o
sentido da visão. Um léxico, que liga as imagens do corpo, diretas ou
mediadas tecnologicamente, foi criado e elevado à forma principal com que
se diz a verdade sobre o doente/doença. Vê-se o aumento ou diminuição
dos órgãos. A consistência do fígado, rim, baço. A inflamação da pleura,
pericárdio, meninge. A função excretora dos rins, digestiva dos intestinos,
bombeadora do coração.
Corpo massa. Passivo ao esquadrinhamento do olhar clínico
contemporâneo. Olho erotizado e voraz, que articula uma palavra para
cada recôndito que recebe sua atenção. Tradução simultânea, parece não
comportar distância entre o que se apresenta e o que se fala. “As imagens
falam por si”! 5
Um exemplo é minha própria dissertação de mestrado (Aragon, 1996) – realizada no
âmbito tradicional da medicina atual – na qual os “cortes” anátomo-patológicos do
coração de fetos mortos acompanhavam os “cortes” que se obtêm ao ultra-som (Figura 2).
Cria-se uma sensação de “aprendizado imediato”. Ver ao ultra-som passa a ser ver o
coração anatomizado. Este é identificado, num esforço redutor, à doença e em última
instância ao doente. Nas palavras de Foucault: “o olhar clínico tem esta paradoxal
propriedade de ouvir uma linguagem no momento em que percebe um espetáculo”
(Foucault, 2001, p. 122).
5
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
12
Imagem 2 – Defeito do septo atrioventricular à ecocardiografia fetal e à necropsia.
A anamnese, a percussão, a ausculta são capturadas por esta
linguagem baseada no olhar. São apenas formas diferentes de o olhar
passear por dentro do corpo, compondo imagens para o médico. Som de
galope “é igual” a coração enfraquecido. Depressão “é” uma falta de
serotonina.
Uma pedagogia do olhar, baseada na correlação de todas as
informações obtidas do vivo, com aquelas observadas no cadáver. Assim,
tudo deve ser passível de ser recolhido por este “olho que fala”. Aquilo que
não se deixa iluminar, que escapa, é gerador de angústia, sinal de
incompetência, interferência, e estímulo para uma nova investida desta
forma de conhecer. A própria estatística busca obliterar o espaço entre a
representação visível e o “espetáculo” complexo de sensações.
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
13
Esta clínica, uma clínica, não se pode deixar de dizer, é fascinante.
Fascinante porque seduz o olhar. Fascinante porque permitiu um acúmulo
fantástico de saber. Fantástico, pois este saber resultou em possibilidades
de tratamento e na efetiva abolição de dores e doenças físicas e funcionais.
E, tudo isto, em curto lapso de tempo. Conhecimento enciclopédico,
pobremente contido em infindáveis volumes, mas sempre tidos como
defasados, insuficientes.
Tecnologia clínica que, no encontro com as tecnologias fabril e
informática, pariu uma extensa prole de objetos. Estes não mais são frutos
do labutar cotidiano do profissional-artesão, debruçado sobre seu objeto.
O freqüente e intenso encontro do homem com o objeto, transformando
suas mãos em instrumentos hábeis pela resistência do encontro, toma
hoje uma outra dimensão.
O objeto, antigamente, como que escolhia o profissional. Deixava-se
(ou não) manipular, esculpir, e agora perdeu muito de sua voz. Ele era o
próprio encontro humano: povoado de um sem número de fatores, não
determinados e não passíveis de serem transmitidos em livros; autoridade,
presença de espírito, envolvimento com a família, forma de tocar,
intensidade da voz, ritmo das visitas.
Como uma torneira aberta, que vai inundando de água os cômodos,
o saber do olho vai ocupando a cena clínica. Esta vai recebendo em sua
companhia tantos novos observadores, testemunhas, que o encontro se
transforma radicalmente, para além ou aquém da consciência dos
parceiros (ou da vontade destes). São exames de urina e sangue. São
tomografias
e
ultra-sonografias.
São
fonoaudiólogos,
psicólogos,
especialistas médicos. É toda uma pletora de seres de saber que
fragmentam o encontro, fragmentando os sujeitos e objetos. Sabe-se tanto,
que inevitavelmente se sabe pouco. Assiste-se, então, à procissão:
oncologista,
enfermeiro,
cardiologista,
ecocardiografista,
radiologista,
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
14
fisioterapeuta. Profissionais mergulhados em um mundo esquizóide, no
sentido de partido, em pedaços. Na verdade, este movimento está para
além deles. Não há qualquer voluntarismo.
Os novos equipamentos (técnicos e conceituais) atravessam o corpo,
dissecando-o em pequenas fatias, sem, no entanto, esgotar sua vida, e sem
sentir os obstáculos que antes ele oferecia, e modelava a relação médicopaciente. Os obstáculos serão de outra natureza, mais etérea. O sopro de
um grito, uma palpitação que não se dá ao olhar, um humor que resiste a
se aliar à anatomia das circunvoluções cerebrais, às organelas ou às
proteínas celulares. O mal-estar se apresenta, mas traz consigo muito
mais de sombra do que luz 6 . Inunda de virtual o encontro clínico, e pega
os personagens desprevenidos. Acostumados que estão, por décadas, a
lidar com imagens totais e nomes próprios.
A submissão da natureza à geometria, ao mecanicismo, ao desejo de
manipulação abriu caminho para a produção de uma forma de conhecer
mais distante do objeto em si. Da superfície de contato, da pele.
Paradoxalmente, a interioridade do saber, o que ignora a pele,
estende o corpo em múltiplas direções, produzindo uma outra forma de
superfície. Como se a pele “desse o troco” por ser ignorada, multiplicandose.
Os enciclopedistas são ponto privilegiado de passagem de uma forma
de saber ilustrado, indireto, intelectual, interpretativo 7 . Parece que algo
deste movimento foi se instalando no corpo das pessoas em geral. O corpo
vai progressivamente se tornando matéria de saber e de manipulação.
Como se cada verbete, cada campo do saber, pudesse dirigir-se para o
Como diz Pontalis (1991, p. 15): “uma doença que entra em sua fase ‘crítica’ pode
conhecer um desfecho fatal ou um desenlace feliz; de qualquer modo será decisiva,
produzirá a decisão. Um ‘simples mal-estar’ não permite nem um diagnóstico seguro nem
um prognóstico provável; desarma nosso saber, escapa a qualquer apreensão”.
7 “Pensado por adultos”, como diria Simondon (2001, pp. 88-94).
6
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
15
outro “de fora”. O corpo é vivido muitas vezes como um estorvo. Diz-se que
o “físico” não acompanha a “idade mental”. Mas também o mental ou
psicológico deve poder ser “trabalhado” com psicoterapias, antidepressivos,
meditações.
Grito.
O paciente que acompanhamos, e que nos acompanha, grita. Faz
reclamações, aparentemente sem sentido. As enfermeiras e auxiliares não
são habilidosas em aplicar as injeções. Alguns remédios não estão lhe
fazendo bem e por isto recusa-se a tomá-los. Nada do que é feito ou
proposto é recebido sem resistência.
O corpo mesmo da comunidade hospitalar vai sendo capturado por
um movimento, ao qual, ele também, corpo-comunidade, resiste (e se
transforma). Uma dor, aguda e difusa, vai transformando o corpocomunidade em medo, desespero, ódio. Os médicos procuram ser breves e
técnicos, a equipe de enfermagem começa a recusar-se a tratar o paciente,
as funcionárias administrativas sentem-se acuadas pelas exigências dos
familiares – estes também transtornados com a situação.
“Corps morcelé”. Corpo fragmentado. Desintegrado.
Corpo difuso e real, agônico. Dissolvendo-se e refazendo-se entre o
grito e o que lhe subsiste, o sopro.
Este corpo traz à lembrança as ansiedades impensáveis ou agonias
primitivas de Winnicott (1994, p.72). Agonias no limite do pensável, pois
relacionadas à própria tensão do que emerge como um eu, um corpo
sentido como único e próprio.
A desintegração já é uma defesa, uma organização, a tentativa de
recolher um ser da explosão potencial. Ser, arrancado de suas referências
minimamente asseguradoras. À procura inconsciente de um plano possível
de existência singular. Mesmo que “em pedaços”.
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
16
“Corps morcelé”. Aqui, a expressão ganha uma dimensão imprevista.
Como que um “Corpo sem Órgãos” 8 , ou de mil órgãos, se apresenta. Uma
desconstrução do organismo, dentro do hospital-hotel. Exames, os mais
diversos, vasculham partes e substâncias de um corpo que já perdeu os
limites, pois prescindem da organização em um só corpo. E também
porque em seu vasculhar, promovem um recorte, que atinge paciente,
cuidadores, arquitetura, saber. Os profissionais com várias especialidades,
com vários pacientes para tratar, com vários locais de trabalho para
freqüentar... são parte integrante deste plano que abdicou de um
pretendido corpo com limites precisos.
Grito.
“Todo o corpo escapa pela boca que grita” (Deleuze, 1996, p. 23).
Corpo que expande, toca e recria suas dimensões, lançando as relações em
novas dimensões.
Uma nova processualidade retira, a fórceps, o automatismo das
relações, de seus trilhos habituais. Um novo corpo é exigido a partir deste
acontecimento.
Ele não se recusou a ir ao hospital. Como de costume, as pessoas
não se recusam a procurar um médico – esperando uma cura – quando
uma doença se apresenta. Porém, aquele deslocamento de ar, aquele som,
parece tornar todos os livros de medicina obsoletos. Mais que isso, faz
parecer que todos contêm apenas páginas em branco. Câncer, paraplegia,
quimioterapia, infusão contínua. Os livros estão cheios de palavras e
imagens. O grito, a rabugice, apaga todas. Aí, neste “impossível lugar”,
afirma-se uma nova existência.
O Corpo sem Órgãos, é um conceito extremamente complexo, desenvolvido por Deleuze
e Guattari, a partir do livro O anti-Édipo. Faço neste ponto uma apropriação particular,
com o sentido de ser um ponto de apoio e passagem para o pensamento. Uma das
definições dada pelos autores é a que segue: “O Corpo sem Órgãos é o que resta quando
tudo foi retirado. E o que se retira é justamente o fantasma, o conjunto de significâncias e
subjetivações” (Deleuze & Guattari, 1996, p. 12).
8
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
17
O adoecer como um processo. Um processo paradoxal, positivo e
negativo, de produção de novas existências. Trata-se de adoecer e não de
portar uma doença. Pois, nesta concepção que estou delimitando, esta
última é apenas uma fotografia. Um momento capturado em cena ou
palavra.
Com Canguilhem aprendemos que a saúde é um processo dinâmico,
que só pode ser concebido a partir do adoecer 9 . Estamos à frente de um
corpo sempre em revolta. Longe do equilíbrio, constituindo o que é doença
e saúde a cada instante, no limite das marcas que carrega em si e dos
encontros que se apresentam.
O que é o adoecer na situação que tratamos? O câncer do corpo
cadaverizado? A projeção maciça de um ser psicológico, mergulhado em
desamparo e intolerante à castração ou à frustração?
Sim. O exame físico, a tomografia e a biópsia, não deixam dúvidas
quanto à presença de uma galopante neoplasia.
Sim. O desespero, o medo, a sensação de desamparo, a raiva, são
sinais que marcam os corpos e as mentes dos atores. Transferência 10 e
contratransferência 11 compõem a cena de uma clássica psicanálise.
Mas também sim. Sim para o corpo vivo que não cabe na patologia e
nem na comunicação de representações subjetivas. Não cabe na
estrutura 12
orgânica
ou
psicológica.
Nem
mesmo
no
recorte
“A doença não é somente desequilíbrio ou desarmonia; ela é também, e talvez sobretudo,
o esforço que a natureza exerce no homem para obter um novo equilíbrio” (Canguilhem,
2000, p. 20).
10 A transferência “designa em psicanálise o processo pelo qual os desejos inconscientes
se atualizam sobre determinados objetos no quadro de um certo tipo de relação
estabelecida entre eles e, eminentemente, no quadro da relação analítica” (Laplanche &
Pontalis, 1988, p. 668).
11 Contratransferência é definida como “conjunto das reações inconscientes do analista à
pessoa do analisando e mais particularmente à transferência deste” (Laplanche &
Pontalis, 1988, p. 146).
12 Estrutura pensada aqui como: “a posição de uma ordem simbólica irredutível à ordem
do real, à ordem do imaginário e mais profunda do que ambas” (Deleuze, 1995, p. 260). E
9
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
18
fenomenológico. Isto pois, “segundo a tese fenomenológica da Unidade
intencional do ser no mundo, ‘toda multiplicidade implica necessariamente
uma unidade teleológica que a ordena. Esta ordenação é a garantia de sua
racionalidade (...) e assim a explicação da subjetividade transcendental é o
tema da filosofia primeira’ ” (A. de Mulrat, apud Aliez, 1996, pp. 93-4).
Mas com seu adoecer, o ser problematiza. Faz emergir, produz. Não
supõe uma teleologia, e não se reduz à unidade sem carregar consigo toda
a penumbra de virtualidade potencial. Homem surgindo do não-humano
no homem.
Acompanho Aliez (1996, p. 94) quando ele define que, em oposição à
tese fenomenológica, “a tese ontológica da dobra acontecimental do ser do
mundo (...), o devir e a multiplicidade sendo um só e mesmo ser, o
múltiplo não tem mais unidade à qual todo ser é relativo; o devir não tem
mais sujeito distinto de si mesmo; e se o sujeito se iguala ao mundo, do
qual é um ponto de vista constituinte, o mundo leva consigo o pensamento
da heterogênese da natureza.”
As identidades – médico, psicanalista, doente, doença, o que
projeta 13 ou transfere, o que introjeta 14 ou contra-transfere –, a descrição
do “ser no mundo”, são insuficientes para capturar o que está “vindo a
ser”. O acontecer do encontro, por sua própria característica de
complexidade, não permite captura. A não ser uma delimitação parcial.
Afetação e cartografia.
ainda: “os elementos simbólicos não têm designação extrínseca nem significação
intrínseca mas apenas um sentido de posição, é necessário estabelecer em princípio que o
sentido resulta sempre da combinação de elementos que não são eles próprios
significantes” (idem, p. 263, grifos do autor).
13 A projeção é “operação pela qual o indivíduo expulsa de si e localiza no outro, pessoa
ou coisa, qualidades, sentimentos, desejos, e mesmo ‘objetos’, que ele desdenha ou recusa
em si.” (Laplanche & Pontalis, 1988, p. 478).
14 Introjeção é o “processo evidenciado pela investigação analítica: o indivíduo faz passar,
de um modo fantasmático, de ‘fora’ para ‘dentro’, objetos e qualidades inerentes a esses
objetos.” (Laplanche & Pontalis, 1988, p. 323).
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19
O sofrer que atravessa o encontro clínico, longe de ser uma falta ou
uma deficiência é, ao contrário, sempre excesso, produção. Para usar a
metáfora de Deleuze, uma “dobra do Fora” (Deleuze, 1991, pp. 101 e ss).
Um dobrar que recolhe, em seu movente limite, uma série do que estamos
chamando de fluxos.
Sofrer que é superfície de dobra. Frêmito, ondulação, porosidade da
pele que recolhe o passado, o condensado, no interior e abre-se para o
futuro de um exterior em constante movimento. Sofrer é presente vivo, que
serpenteia exprimindo novas conformações. Expressão que se apresenta
em nosso horizonte e interroga os corpos.
Assim, sempre há um sofrer. O sofrer, o exprimir, o dobrar dos
acontecimentos que não se resumem à historicidade cronológica 15 . Uma
certa dor de movimento, de crescimento. Doer que inquire a forma como o
tempo e o espaço se enovelam e produzem os seres.
Não se trata de enaltecer o sofrimento 16 , mas de escutá-lo, não
recusá-lo, perceber quais rumores pedem passagem, para permitir dobras
que recolham o que se apresenta.
Com isso quero dizer que a experimentação e o acontecimento nunca se resumem à
história. Nas palavras de Deleuze: “a história não é a experimentação, ela é apenas o
conjunto das condições quase negativas que possibilitam a experimentação de algo que
escapa à história.” (Deleuze, 1992, p. 210). E, em um desdobramento que considero
importante, o mesmo autor, referindo-se ao livro Clio de Péguy, aponta que “há duas
maneiras de considerar o acontecimento, uma consiste em passar ao longo do
acontecimento, recolher dele sua efetuação na história, o condicionamento e o
apodrecimento na história, mas outra consiste em remontar o acontecimento, em
instalar-se nele como num devir, em nele rejuvenescer e envelhecer a um só tempo, em
passar por todos os seus componentes ou singularidades.” (idem, p. 211).
16 As palavras sofrer e sofrimento são expressões, neste trabalho, do que excede as formas
e da abertura para o radicalmente novo. Não pretendo, em nenhuma hipótese, enaltecer a
dor ou a doença. Ao contrário, as dores que despertam a atenção de médicos e
psicanalistas devem ser devidamente acolhidas por estes, para que o problemático da
vida, o que pede expressão e produz metamorfose, o que estamos tratando como sofrer,
possa ser vivido em sua plenitude. Não coloco em questão a necessidade de acolhimento,
mas o modo como este está podendo ser agido.
15
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
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Recolher em seu bojo a complexidade movente do apagamento das
identidades estáveis. E, com este mover, poder perceber a emergência das
agonias esquizo, impensáveis.
O rude som que invade a enfermaria não demanda um analgésico.
Não é dor física, o que dá origem ao som. Os antidepressivos ou
neurolépticos também não cabem na situação. Uma angústia se instala em
todos os que estão à volta. Algo precisa ser feito, os cuidadores também se
sentem
adoecendo.
Eczemas,
gripes
freqüentes,
dores
de
cabeça,
obesidade, irritabilidade.
Por este viés do acontecimento é que fui chamado. Talvez, algumas
reuniões com um psicanalista ajudem a minimizar os efeitos que a tarefa
de cuidar estava trazendo em seu bojo, pensaram.
Todos gostam da profissão pela qual optaram. No entanto estão
adoecendo. E nesta situação específica, chegaram ao limite de pedir que o
paciente fosse transferido para outro hospital.
Nos encontros com os cuidadores, uma série de outras linhas de
força vai se revelando. A necessidade de rapidez, a identidade do doente
com a doença, o estereótipo de bondade como identificação do profissional
que cuida, o esvaziamento do que singulariza a pessoa adoecida em prol de
um cuidar tornado automático e tido como suficiente.
Através de uma pergunta, toda uma série destas questões se revela.
E aqui, podemos dizer que, inadvertidamente, houve uma intervenção
clínica.
“Qual a profissão do paciente?” – perguntei.
Nenhuma, das cerca de oito pessoas que estavam presentes na
reunião, sabia responder. Apesar da sensação de culpa, de falha, que
iluminou o rosto de muitos, o que importa não é a resposta que falta, mas
aquilo que sua ausência traz à baila.
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
21
“Acho que trabalhava no porto. Devia ser uma pessoa muito ativa!”
Com estas palavras, a enfermeira desencadeia no grupo um
conjunto de elaborações acerca do paciente e deles próprios. O que nos
interessa é o que se apresenta neste “entre-corpos”. Aquilo que não se dá a
ver como sujeito e objeto, cuidador e paciente – com sua possível
psicologização – mas o que os con-forma, hoje.
E foi o que apareceu naquele momento. Movimento. Alteração da
percepção, junto com alteração do que percebe. Visão que muda com o
olho.
Identidade-doença, fragmentação e serialização dos encontros,
corpo-igual-a-massa.
Foram
alguns
dos
planos
problemáticos
que
surgiram.
O objetivo não é o de esgotar, ou mesmo mapear exaustivamente
estas forças em jogo. Fundamental é acompanhar o movimento que se
produz quando o habitual, o instituído, se rompe. Há a emergência de
novos sentidos, há produção de novas realidades.
Lançar perguntas. Quebrar pretendidas essências imutáveis e
universais transcendentes. Atualizar o que é real na sustentação da cena,
mas em estado de virtualidade. Aspecto analítico do que chamo de clínico.
Falamos de uma disposição que atenta para o ser-sendo (paciente,
médico, psicanalista, grupo...). É preciso não negar o sofrer. É preciso não
se culpabilizar, estancando o devir por uma identificação com a falta ou o
pecado. É preciso resistir à captura do novo por “palavras-tampão”.
Atitude que não tem como meta caber no limite do visível/invisível.
Os novos sentidos são produções, e não um saber à espera de uma lente
ou luz que o tornasse acessível. Não são também parte da dialética
consciente/inconsciente (recalcado - verdrängung), pois não se trata de
reminiscências.
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
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Produções como expressão que emerge do encontro. Revelando
algumas destas que estou chamando de linhas de forças. Formando
outras, por composição de vários fatores, virtuais ou não.
Uma atitude clínico-política. Atitude de escuta. Escuta no sentido de
abertura para ser afetado pelo que se produz no encontro. Escuta que
comporta a delicadeza de aceitar os vários planos de sentido que
sustentam o acontecimento, sem por isso querer esgotá-los. É o que
concebo como uma clínica que considera o que está em estado de
virtualidade. Pois é justamente esta profusão de planos, de linhas de força,
este excesso, que permite a emergência de novos sentidos. Com isto tornase possível escapar aos grilhões de uma dor re-apresentada, para o
ineditismo de uma apresentação. De uma alteração daquele sofrer. Mesmo
estando implícito que não há espaço para um ideal teleológico, de cura,
apaziguamento total, ou parada.
Muitos serão os visitantes deste paciente. Médicos, enfermeiros,
auxiliares, fisioterapeutas, técnicos. Vários deles têm outros trabalhos e
cuidam de um grande número de pessoas. Colocá-las em um só local
facilita as coisas.
Chegamos a outro relevo da cartografia que estamos realizando. Que
reúne em sua espessura como que vários estratos geológicos.
Resistência, obstáculo, mau humor. Paciente difícil, dirá a equipe de
saúde.
Este paciente, impertinente por certo, teimava em perguntar a cada
médico que o visitava pela manhã, informações sobre seu estado de saúde
e o tratamento em curso. Digo impertinente pois, segundo dados das
enfermeiras e médicos, ele só fazia isto para confrontar a opinião de uns
com a dos outros, assim descobrindo as distâncias entre elas.
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
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Foi aí que descobri haver um médico diferente para cada dia da
semana, designado para vê-lo. Isto apesar de um só deles ser o
responsável pelo enfermo.
É tamanho o nosso costume de pensar em termos de sujeito/objeto;
de concentrarmos as singularidades de cada época e situação em
identidades
(nosológicas,
anátomo-patológicas,
...);
que
facilmente
acreditamos que o inferno no qual a equipe de saúde está mergulhada
deve-se ao temperamento daquele paciente. Esquecendo que aquele corpo
é a forma e o que resiste a ela, o que se diferencia, dos fluxos que nos
atravessam.
Esta pessoa tem um câncer em estágio adiantado. Tem um
diagnóstico que parece permitir a liberdade dos profissionais. Um
revezamento possível, pelo fato de que o bastão que cada um carrega é o
mesmo: o câncer.
Mas porque não ver o paciente todos os dias, já que tratar pacientes
foi a profissão eleita? Pergunta ingênua para quem habita o século XXI. Os
trabalhadores continuam ocupados com pacientes. Só que eles são muitos,
distribuídos por vários lugares diferentes. Diminuiu a relação do médico
com o paciente, e aumentou destes com a doença e com as instituições. E
talvez ainda mais com compromissos menos palpáveis, como sustentar a
existência reduzida à unidade de consumidor. Tentativa de pagar a
recalcitrante dívida de uma sociedade na qual “o homem não é mais o
homem confinado, mas o homem endividado” 17 . (Deleuze, 1992, p.224)
A idéia de “homem endividado” se revela, aqui, pelo espalhamento e fragmentação da
movimentação dos profissionais. Eles não estão mais “presos” a um hospital ou
instituição, mas des-integrados. Estão acelerados, talvez na tentativa de recuperar a
unidade perdida já na origem do viver contemporâneo. Dívida impossível de ser paga,
difusa e sutil, apesar de intensamente experimentada. Mais ainda, exclui-se do jogo quem
não tem condições de assumir as dividas incessantes de um cotidiano constantemente em
processo de obsolescência.
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Ter um diagnóstico dá condição de ser tratado por vários
profissionais, é uma senha. O diagnóstico e o tratamento devem ser feitos
em hospitais conveniados, públicos, universitários. Esquemas de rodízio
em ambulatórios ou visitas matinais. Esquemas de plantão. São
conseqüências das mudanças nas concepções de doença, de doente, de
médico, de pessoa.
O paciente que ocupa nossa atenção, estranhamente, apesar de
estar totalmente mergulhado neste sistema de saúde, resiste a ele. Põe em
xeque a alternância de profissionais.
Resiste também à forma como o cuidado se dá. Freqüentemente se
observa uma enfermeira saindo daquele quarto a chorar. Acusada de não
ser atenciosa, ou de ser incompetente para administrar os medicamentos e
outros cuidados. Cada enfermeira não consegue deixar de considerar como
uma crítica à sua pessoa, mesmo sabendo que todas elas estão sofrendo o
mesmo tipo de injúria.
Psicanaliticamente, há vários modelos teóricos, melhores ou piores,
que poderiam se aproximar da situação em questão. Aquela pessoa, em
estado de profundo desamparo, em meio ao estigma da doença, ao malestar geral, à imobilidade, poderia estar transferindo para aqueles
profissionais a responsabilidade de suas dores. Talvez reagindo “como se”
fossem pessoas agressivas ou frustradoras de sua história pregressa 18 .
Estaria, em sádica fruição, fazendo uma identificação projetiva (Klein,
1991, pp. 20-43)? Seria, a angústia sentida por enfermeiras e médicos
uma forma inconsciente de comunicação da angústia sentida pelo doente
(Bion, 1994, pp.119-20)?
Num processo de re-presentação teatral de desejos inconscientes. Este modelo teórico,
como veremos, será posto em questão.
18
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
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No entanto, todas as chaves explicativas – neste momento é isto que
importa destacar – têm que se render à precariedade de sua condição,
frente ao acontecimento que evolve.
O próprio ato de cuidar também é posto em questão. Justamente
uma das ações que mais toca a equipe encarregada de zelar pela saúde.
Com isto, há uma certa desconstrução do que estava em jogo na escolha
inconsciente da profissão. E da proteção que a hierarquia dá: “eu sou o
sujeito que cuida, você é o objeto do cuidado”.
Uma desconstrução da instituição, da “tecnologia de diagnosticar e
tratar”,
da
arquitetura
e,
por
que
não?,
das
próprias
pessoas.
Desmembradas em cabeça latejante, em ódio incontido, em garganta
inflamada (talvez último recurso de conter um ... grito).
O grito-catástrofe lança os corpos em queda livre, e faz ressoar os
mais íntimos recônditos dos seres. E, para além de uma passagem ou
intrusão do que há de interior no paciente, no exterior dos cuidadores, há
a constituição de um “plano de sofrer”.
O conceito de dobra subjetiva nos dá ferramentas para “pensar
diferentemente”. Pois o que forma o interior não é diferente do que está
fora, a não ser pelo fato de, momentaneamente, estar na face interna. No
entanto, há uma contigüidade, um ponto de passagem, que preserva a
potência
mutante
das
figuras,
ansiosamente
asseguradas
em
estabilidade 19 .
O modo como Deleuze concebe a questão do duplo em Foucault esclarece esta questão.
O duplo “nunca é uma projeção do interior, é, ao contrário, uma interiorização do lado de
fora. Não é o desdobramento do Um, é uma reduplicação do Outro. Não é uma reprodução
do Mesmo, é uma repetição do Diferente. Não é a emanação de um Eu, é a instauração da
imanência de um sempre-outro ou de um Não-eu. Não é nunca o outro que é um duplo,
na reduplicação, sou eu que me vejo como o duplo do outro: eu não me encontro no
exterior, eu encontro o outro em mim (‘trata-se de mostrar como o Outro, o Longínquo, é
também o mais Próximo e o Mesmo’)” (Deleuze, 1991, p.105).
19
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Os cuidadores foram, inadvertidamente, eles também, expostos à
concretude de intensas e moleculares forças.
A asfixia de uma imobilidade produtiva, que o grito compartilha, faz
vibrar as angústias e a precariedade das identidades. Aproxima a certeza
de que as senhas/códigos (como “aquele que cuida”) só se sustentam por
um labor constante e fatigante. Abala a servidão a um tecno-logos que
subsume seus corpos para um propósito ao qual, doentes, resistem.
Agonias de um corpo que, em velocidade infinita, atinge e ressoa os
corpos impensáveis de nosso tempo.
Sem tempo. Para percorrer os trajetos entre uma paragem e outra.
Para ligar e ligar-se. Colorir com suas cores uma realidade proliferante em
objetos e potências. Potências de descoberta. Mundos novos, novas
alegrias e inquietudes.
Tempo esquizo, que exige habilidade e flexibilidade imensa. Tempo
que ameaça com uma queda sem fim, com o desmembramento do
organismo pela revolta dos órgãos, seduzidos e arrastados para distâncias
enormes, com exclusão e morte. Tempo que, da mesma forma, também
abre mil perspectivas de encontros e alegrias.
Possível ainda uma clínica?
Sei que não é possível ficar passivo ante o grito. Mil sopros a
convocam. E eles partem também do que acostumei chamar “mim”.
Aspiro uma ação possível.
Encontro... uma.
“Colocar o grito sonoro com as forças que o suscitam.” (Deleuze,
1996, p. 41).
Dar forma aos sopros que sustentam e exigem o grito, Pois este não
pode ser suprimido. Ao contrário, é caminho de “cura” para aquilo que
ainda “não foi experienciado” (Winnicott, 1994, p. 73), apesar de vivamente
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
27
real e presente. Virtual (real e inatual) aspirando a maturação em
acontecimento.
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
Imagem 3 – Anatomia del corpo humano - Juan Valverde (1560)
28
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
29
Capítulo 1
Corpo-objetificado
Ó tu que estudas esta máquina, o corpo, não
deves te sentir ressentido por receber o
conhecimento que resulta da morte de um
semelhante; alegra-te que nosso Criador tenha te
dado acesso a um instrumento tão perfeito. Mesmo,
porém, que sejas movido pelo amor, é possível que
te vença a náusea; e ainda que não te vença tal
náusea, talvez sejas derrotado pelo medo de
passar longas horas noturnas junto a corpos
esquartejados.
Leonardo da Vinci
Ando pelas ruas do bairro, cumprimento João, cumprimento Maria.
Reparo que têm formas próprias, volumes. Têm curvas, que
delimitam o corpo, e fazem sugerir conteúdos. Eu – reparo – também os
tenho: formas, volumes e conteúdos.
Participamos todos de uma comunidade de indivíduos. Como
também aquele “volumoso corpo”, colhido em um leito de hospital.
Mas podemos nos perguntar: o que fez com que, para além dos
indivíduos, nos preocupássemos com os seus órgãos, a vertigem do
desconhecido de seus interiores?
Acostumamos a nos pensar – não é um privilégio dos médicos –
enquanto um “conjunto de órgãos”, e isto está marcado nas falas e nos
medos. “Estou com uma dor no coração”, alguém diz. E outro responde:
“deve ser entupimento das coronárias!”
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
30
Antes do famoso médico anatomista de Bruxelas, Andréas Vesalius,
e de seu tempo, o fascinante século XVI, o interior dos corpos não era
objeto de atenção específica 20 . No entanto, um fervor humanista que
atravessou a arte e a medicina naquele tempo fez com que o corpo humano
ganhasse uma atenção enorme (Lyons & Petrucelli, 1987, p. 369). Retratos
dos corpos e suas expressões. Volumes que traíam músculos e órgãos sob
a pele. Cadáveres que, sem pudores, escancaravam os seus “dentros”.
Entre os anatomistas daquele século, há mesmo os que conceberam
desenhos nos quais dissecam a si próprios, ou homens dissecados que
seguram a sua própria pele (Vène, 2001, pp. 58-9).
Percebe-se que houve um deslizamento – sutil, mas contínuo e
seguro – na forma de conceber o corpo próprio, cotidiano. Toda uma
tecnologia do saber começa a banhar os espíritos que, não só se lançam
aos mares em busca do desconhecido, como atravessam um limite ainda
mais assustador (e sedutor), a pele.
“O corpo passa a ter um dentro!”
E dentro, há um conjunto de estruturas regulares da espécie
humana.
O homem vai tendo seu corpo objetivado através da descoberta de
novas formas. Estas, também, reservatórios de interiores.
Com o tempo, vai tomando conta deste corpo uma filosofia que
enxerga a natureza como uma mecânica. Vê o corpo como uma máquina
composta de peças que possuem funções diferentes, mas que se compõem
para dar vida ao ser. 21 .
“Contra o olhar medieval, Vesálio vai instaurar os direitos da observação” (Gil, 1980,
p.124).
21 O corpo morto é o eleito para servir de complemento à concepção emergente de ciência.
Pois esta ciência crê na possibilidade da razão, da elaboração intelectual, compreender o
todo da natureza. O corpo reduzido às partes, manipulado, reconstruído, esposa
amavelmente as regras do entendimento. O qual, aliás, terá por princípio que a própria
20
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
O
corpo
emergiu
da
profundidade
31
abissal
de
um
interior
desconhecido, para um complexo estrutural, capaz de dar condições à
apreensão deste enquanto massa viva, biológica e fisiológica. O interior –
dessacralizado e fonte de interesse – passou a guiar os passos da ciência
médica, que desenvolveu técnicas para penetrar, de muitas formas, nesta
“boneca russa”, a fim de “conhecer o corpo”, e quem sabe, a origem da
vida.
O corpo sempre é acompanhado por um conjunto de idéias,
historicamente determinadas, que também o ajudam a ganhar forma. Por
exemplo: um corpo com um fígado duro e cirrótico é muito diferente
(inclusive com expressões e tratamentos diversos) daquele que, no início
da era cristã, apresentava um desequilíbrio dos humores. É fácil
pensarmos que houve apenas um aperfeiçoamento da medicina (e da
sociedade como um todo), linear e certo, para uma maneira cada vez mais
adequada de apreender o corpo. No entanto, não é bem assim. O corpo
toma a forma do fluxo ideativo, da complexidade do jogo de saberes e de
poderes em questão. Ele comporta também uma série de planos de
interpretação possíveis, que convivem em maior ou menor proximidade.
Ainda além, existe um campo potencial que abre este corpo para uma
conformação imprevista.
Como imprevista, e talvez impensável até então (apesar de não ser
mística ou transcendental), a ligação do corpo vivo com o corpo morto.
Segundo Foucault, foi no início do século dezenove que o famoso
patologista Xavier Bichat começou a correlacionar os achados patológicos
após a morte, com o que deveria estar ocorrendo no corpo vivo, antes
percepção estará – como na Dióptrica de Descartes – subordinada ao conceito (Muricy,
1988, p. 481). Ou seja, já que a natureza respeita as leis da ciência, há que aperfeiçoar os
domínios da razão para apreender melhor aquela. Como é o caso do uso do microscópio
de Leeuenhook ou do telescópio de Galileu. Os quais superaram as limitações dos
sentidos humanos na conquista da verdade.
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
32
daquela 22 (Foucault, 1998, p.167). Quem poderia imaginar que um corpo –
que já não é mais propriamente humano; que já foi abandonado pela
centelha divina, pela alma; que é constituído de matéria pútrida,
cadavérica – poderia ter “algo a dizer” para os vivos?
Sim. Num jogo de fluxos conceituais e materiais, a meninge
inflamada do cadáver é o que há naquela criança de nuca contraída, febre
e manchas na pele. A medicina, como a vida, está cheia de criações, nas
quais não é possível discernir se foi a natureza ou a cultura que mudou
primeiro. Um conjunto de fatores, os mais diversos, concorreu para a
“descoberta” do “cadáver-professor”. Inúmeras conseqüências se darão,
sem podermos negar que elas mesmas não começaram aí, mas estavam
“em gestação”. Alguns desdobramentos deste evolver serão: o interesse da
medicina pela anátomo-patologia; a redução da importância do vivo da
pessoa para pensar a saúde; a adaptação dos corpos vivos ao que se deseja
evitar no morto (como não comer comida gordurosa, para não ter
entupimento das coronárias); a predominância do olhar.
O corpo do qual trata a medicina é um corpo vivo, mutante, no
sentido de que é aberto a um campo potencial que o pensa e o age de
forma diversa a cada momento.
O corpo-estrutura tem dentro e fora. O corpo-máquina funciona, ou
não. O corpo biológico é massa viva, tendo uma espessura que permite a
Para além do que se poderia considerar como uma simples correlação da vida com os
achados post-mortem, há toda uma mudança na concepção de vida e,
concomitantemente, em como as pessoas a experimentam. “É preciso, portanto,
substituir a idéia de uma doença que atacaria a vida pela noção muito mais densa de vida
patológica” (Foucault, 1998, 174). Como vimos desenvolvendo, é o próprio viver que está
em questão, cada vez mais – produção intensa de novos corpos-mundos, e captura em
modelos e imagens surdas. Deleuze (1991, p. 102), ao comentar este trabalho de
Foucault, assinala que “a vida consiste apenas em tomar seu lugar, todos os seus
lugares, no cortejo de um ‘Morre-se’ ”. O poder toma a vida como objeto, fazendo com que
a morte deixe de ser “o instante decisivo ou acontecimento indivisível” (que tornava a vida
destino), passando a ser coextensiva àquela e “como feita de uma multiplicidade de
mortes parciais e singulares” (idem).
22
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
33
observação (das mais diversas formas) e a manipulação. O corpo-cadáver é
um duplo do corpo vivo, sendo que ambos fazem um só, vivo-e-morto.
Todos estes corpos – biológico, estruturado em organismo, maquinal
ou cadáver – se atravessam, para compor a concepção hegemônica da
medicina contemporânea.
Uma característica que os atravessa, a todos, é o distanciamento do
que o corpo tem de obscuridade e vertigem. O interior do corpo, com seus
órgãos e funções, e mesmo o corpo visitado pela morte, tornou-se
superfície iluminada pelo sol do conhecimento.
Mas de qual conhecimento estamos tratando?
De um conhecimento que cria uma discursividade para tudo do
corpo. Traduz a presença complexa daquele em fórmulas matemáticas,
geométricas, ou descritivas. E o desconhecido é apenas o ainda não
conhecido. É um conhecimento que asfixia a multiplicidade de planos de
virtualidade, que estão presentes nos momentos de encontro 23 .
Isto conduz ao que estou chamando de corpo objetificado. Fechado
em
modelizações
que
encarnam
a
crença
de
poder
mapeá-lo
completamente. Ou indefinidamente, criando um movimento próprio à
ciência contemporânea, de captura e nomeação do virtual, e não tensão e
convivência.
Estes fluxos e capturas já apontados não são uma propriedade
privada da medicina, ou de qualquer outra ciência. São movimentos no
mais das vezes sutis, que se dão a ver, de forma insidiosa, “de dentro” das
pessoas. Como por exemplo, quando uma pessoa chega para fazer um
ecocardiograma, e eu pergunto: “como o senhor tem passado?” E recebo a
resposta: “não sei doutor, o senhor agora é que vai poder me dizer!”
23
Este tema será desenvolvido em maiores detalhes no decorrer do trabalho.
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
34
Com esta pequena troca de palavras, fica claro que o paciente se
sente despossuído da condição de conhecer a verdade de seu corpo 24 . Esta
verdade foi deslocada para a capacidade de invasão de um equipamento,
que irá vasculhar seu interior, eviscerando-o. Através de um “médico
tecnológico”, que não conhecia o paciente até aquele momento. Portanto
vê-se que um valor, relativamente recente, ganha espaço com relação ao
encontro da dupla clínica médico-paciente (com a possível passagem de
histórias, toques, intuições etc.).
O que interessa aqui não é desenvolver o tema (muito interessante)
das transformações da relação médico-paciente, mas falar de algo que lhes
subsiste.
O corpo-concebido-como-cadáver entra, hoje, voluntariamente no
consultório, para fazer exames de toda sorte, e se assegurar – de maneira
parcialmente infrutífera – de sua saúde, ou do seu pouco risco de morrer.
O paradoxo é que, quanto mais o corpo é colonizado pelas idéias que
o con-formam em uma imagem fixa, mais ele se abre em desconhecido.
Quanto mais se reproduzem concepções sobre o corpo, sem
considerar a coletividade de fatores, atuais ou potenciais – que estão em
presença – mais fragmentos formam-se, e com eles mais angústia.
Não se trata de tentar recusar os conhecimentos científicos, mas de
pôr em relevo que a produtividade de “descobrimentos” sobre o corpo tem
respeitado um plano de acúmulo e fragmentação, plano este que atravessa
a todos nós, e traz conseqüências. É o que chamamos de conhecimento
enciclopédico, extenso e particularizado, que se reproduz veloz e
ansiosamente, para que o conjunto forme um corpo.
24 Há, no entanto, um ganho paradoxal para o paciente em questão. Apesar de alijado do
processo de produção de saber sobre si neste acontecimento específico, enfrenta a
particularidade deste jogo singular de saber/poder, com o reconhecimento de sua
capacidade limitada de ter consciência sobre a complexidade de seu ser. Podendo assim
se beneficiar do que esta forma de investigação pode lhe oferecer (como o tratamento de
uma enfermidade – orgânica ou funcional – assintomática).
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
35
Como plano, ele se apresentará, conforme já apontado, não só na
medicina, mas em todo o tipo de clínica. Também a psicanálise, como
veremos, ver-se-á obrigada a enfrentar a questão da proliferação de
psicopatologias e de teorias metapsicológicas.
A partir do momento em que podemos conceber o corpo como o
resultado do cruzamento de múltiplos fatores, e vivendo em múltiplas
fases, estamos nos preparando para encarar um “outro corpo”, que é o
mesmo, mas paradoxalmente também difere deste (objetificado). O corpo
que nos interessa propor e pensar, não é fechado em si, mas passagem,
estranhamento, ritmo...
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
Imagem 4 – Butô por Kazuo Ohno
36
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
37
Capítulo 2
Perspectivas para um corpo-acontecimento
Tudo o que sobrará de mim
é papel impresso.
Com um pouco de manhã
engastado nas sílabas, é certo, mas
que é isso
em comparação com meu corpo real? meu
corpo
onde a alegria é possível se mãos lhe tocam os
pêlos
se uma boca o beija
o saliva
o chupa com dois olhos brilhantes?
Ferreira Gullar
2.1. Corpo-passagem
Os trajetos não são reais, assim como os devires
não são imaginários, na sua reunião existe algo de
único que só pertence à arte.
Gilles Deleuze
Eu passo por Maria, passo por João. Os nomes próprios revelam que
se trata de pessoas, indivíduos, e como tais mutuamente excludentes.
João não é Maria, e nenhum dos dois sou Eu. Casamentos, assassinatos,
trocas, todo tipo de situação entre nossas individualidades pode ocorrer.
Da mesma forma que o paciente que grita, pode recusar-se a tomar uma
injeção, deprimir-se ignorando todo o movimento ou morrer.
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
38
No entanto, interessa-me enfrentar a obviedade desta interpretação,
que de tão familiar, nem parece ser apenas uma.
O interesse comporta justificativa. A principal é o próprio movimento
de deslocamento interpretativo. Tendo em conta a proposta de que o
pulsar que habita os encontros lança os corpos em um processo de
transformação contínua. Isto por serem atravessados por singularidades
pré-individuais, virtuais, não integradas nas formas. E, justamente o
excesso ou a desmedida, a precariedade dos seres, é que não cabe na
dialética 25 , instaurando um corpo que é sempre passagem, em vias de
desaparecimento. Corpo aberto a um plano que interroga constantemente
seus limites, por exposição à alteridade radical que é este plano potencial.
O grito que explode nos corredores de um hospital me atinge, e eu já
não sou o mesmo de minutos atrás, embora talvez necessitasse me iludir
que sim. Enquanto me exponho, o ritmo do som, a intensidade, as
expressões faciais que se somam, os gestos... tudo muda comigo.
E agora então, quem eu sou?
Sempre é possível pensar que sou o mesmo de sempre ao longo do
tempo; como individualidade constituída buscar encontrar palavras
simples, para explicar uma doença ao “paciente leigo”; ou me compadecer
de sua dor, procurando ser compreensivo e gentil. Observe-se que existe,
desta forma, uma separação e um voluntarismo. Eu posso ser desta ou
daquela forma. Toda a questão do terceiro excluído 26 está presente neste
plano da relação entre indivíduos. Da mesma forma que a ilusão de
reversibilidade encarnada no ou. Ser ou não ser, desta ou daquela forma.
25 Dialética entendida como forma de pensamento baseado na contradição ou oposição
dos termos, comportando os três momentos sucessivos desenvolvidos por Hegel: tese,
antítese e síntese. Ao contrário, procuro trabalhar com a idéia de uma concomitância
paradoxal da negação e da afirmação.
26 Terceiro excluído tido como terceiro termo excluído, ou seja, a contradição entre termos
se resolve sempre com a aceitação da veracidade de um e a falsidade do outro.
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
39
Mas, desta forma, o paradoxo de um adoecer que não se localiza em um
indivíduo, não estaria contemplado.
Pensemos diferentemente que “algo” se passa, mas não de um para
outro. Não se trata aqui, de uma transferência de representações e nem da
constituição
de
um
terceiro
objeto
que
seria
uma
forma
de
intersubjetividade. Guattari traz aqui sua contribuição, falando na
passagem de um “ímpeto rítmico mutante de uma temporalização capaz de
fazer unir os componentes heterogêneos de um novo edifício existencial”
(1992, p. 32). Ritmicidade que não tem proprietário, mas é o próprio
acontecer.
“Nosso” paciente não dá trégua aos “nomes próprios que vão visitálo”.
Todos
os
padrões
de
conduta
pessoais
–
laboriosamente
confeccionados e automática, mas talvez angustiadamente, representados
– tremem. Cada profissional é colhido por um estranhamento que parece
brotar de si (é verdade que na presença do paciente), abrindo espaço para
o encontro com a precariedade do ser. Um médico que evita o seu
paciente? Uma enfermeira que não pára de chorar após desempenhar o
seu trabalho?
A lógica do terceiro excluído pode realmente funcionar, como prova a
vontade manifesta de transferir o paciente para outro hospital. Ou o fato
de todos da equipe se “reconciliarem” consigo mesmos, após a morte dele.
Funciona mas não resolve.
Aquele grito não mais preenche os corredores e ouvidos, mas a
vibração (multiplicidade pré-individual virtual) que o sustentava, já havia
confrontado os circundantes com aquilo que ultrapassa a geometria de
suas certezas. Não será possível esquecer – pois marcada na pele viva – a
experiência do encontro, que disparou um devir.
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
40
Algo de um sofrer intenso se passou. E ainda passa, mesmo após a
morte. Pois isso que passa, por não passar de um para o outro, não pode
acabar com o afastamento ou com a morte.
Aquilo que sustentava o grito, ou seja, o aspecto potencial do
encontro singular – as paredes de um hospital, a pressa de todos, a asfixia
de um nome (“câncer”), a tradução de si nas imagens (de tomografia, mas
poderiam ser quaisquer outras), e uma infinidade de outras séries –
conserva o ímpeto, apesar de diferir sempre. O próximo paciente já não
ocupará o mesmo quarto, pois não há mais como alinhá-lo na série de
pacientes com câncer, e nem como reproduzir a complexidade do instante,
a atmosfera. A equipe já mudou, e tudo o mais com ela.
Desta forma, descubro que não sou o mesmo enquanto devenho,
ninguém é, passo de fase. E a passagem é o contato com a eternidade do
instante.
Corpos são atualizações transitivas, resultado de um pulsar que
recolhe e expulsa singularidades impessoais e pré-individuais.
2.2. Corpo-estranho
...não há experiência, em senso estrito, que
lá, onde alguma coisa de radicalmente estranho
está em jogo.
Maurice Blanchot
Aquele grito (mas poderia ser um sorriso ou um tapa) estranha, pelo
fato de que “algo” da multiplicidade agida no grito produz ressonância nos
circundantes, disparando estados inéditos do viver.
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
41
O estranho é o abalo, mínimo que seja, na repetição de si. É a
instauração do diferir no que se acredita próprio, especular e estável.
Implica uma abertura potencial. A cada instante o ser se faz, um novo
“mundo ambiente” se apresenta. Há apenas a eternidade da pulsação que
atualiza e virtualiza aspectos do ser-mundo. Este último, quando se abre
para o momento seguinte, “esperando” encontrar-se lá, surpreende-se de
não poder atravessar os momentos, sem participar do pulsar que é
acontecimento irredutível a unidades de medida de tempo.
Assim, estranho é – para nós – a potência demoníaca do repetir que
nunca encontra a si mesmo, estando para além.
Não há algo pronto, que só faz emergir da virtualidade. Se assim o
fosse, seria apenas a realização de um possível. Ou seja, este algo seria já
uma re-apresentação do passado, que se coloca no futuro como uma
possibilidade. A enfermeira pode chorar, o médico pode auscultar ou o
paciente pode gritar. Há sempre um leque de possíveis, que desliza do
passado e abarrota o futuro com suas ramificações, realizando-se, ou não.
Mas mesmo o possível sofre influência do potencial. Aquilo que força o
atual para se diferir.
Quando uma possibilidade vai se realizar como, por exemplo, o bebê
retornar ao seio, talvez buscando encontrar algumas das lembranças
vividas (outra possibilidade), um campo de indeterminação se abre. O bebê
encontrará um “outro seio”, pois este já mudou desde a última mamada, e
o bebê também. Seu cheiro, humor, sabor, são novos.
A enfermeira chora – ou não – mas por qual motivo? Em qual
momento? Em relação a quem?
O relacionamento entre pessoas totais, fechadas em si através do
tempo, com sua lógica estrutural de posições ocupadas num jogo
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
42
relacional de exclusão mútua, é, no mínimo, uma forma interpretativa 27 .
Forma que reduz o contato com a produtividade potencial – que abre os
seres ao radicalmente novo – à idéia (em certa medida necessária) de
oposição entre o ser e o mundo.
No entanto, ao considerarmos a questão da produtividade virtual,
somos convidados a considerar a questão da própria “passagem” dos
corpos de um estado a outro, da potência para um experimentar o que se
dá nas fissuras da percepção/memória linear ou determinada. Para além
do possível.
Pensamos em uma percepção/memória do que não foi inscrito, no
sentido de que jamais fez parte de um sistema de registros de memória.
O radicalmente estranho surgiu na equipe de cuidadores. Surgiu,
porque a complexidade dos seres – com suas profissões, hábitos,
tecnologias, formas de produzir tempo e espaço – incluía a potência para
serem afetados por aquele grito. Para entrar em contato com algo
inominável do encontro, que produziu uma passagem para outra fase,
para
outra
realidade
subjetiva/objetiva,
com
suas
sensações
e
necessidades de expressão próprias. Aquele acontecimento entornou o
estabelecido para formar uma angústia difusa, uma irritação, uma
disposição para a doença física.
Estranho não é amigo, nem inimigo, tem um estatuto-limite,
impreciso. Não pode ser afastado como “não-eu”, e nem ser assumido
enquanto eu, familiar.
Na radicalidade deste estranho, que não mais pode ser afastado,
encontramos a questão que Lyotard (1997, p. 62) – ao trabalhar a
E, no máximo, é um modo de subjetivação que “é o terror ao outro e, portanto, ao devir
e à morte, e a instauração de uma utopia da unidade, uma ilusão de completude,
mantida pela tutela que este terror exerce sobre a subjetividade e que tende a sabotar
todo e qualquer movimento de criação da existência.(...) Ou seja, um racismo contra o
estranho-em-nós” (Rolnik, 1996a, p. 38-9).
27
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
43
perlaboração 28 freudiana (durcharbeitung ou working through) – propõe:
será possível lembrar-se de algo que não pôde ser esquecido, porque não
foi inscrito?
O estranho, neste contexto, seria o contato com algo que possui uma
realidade transitiva, virtual, esquizo, em potência. Corresponderia ao
tangenciar de uma memória que não surge de um suprimido da atenção,
ou de um recalcado do consciente, mas que passa “ao lado”. Uma
“memória inédita”, agida pela abertura à desmedida dos instantes, não
sendo repetições habituais, ou rememoração de algo já vivido.
Nada deste plano esquizo está no plano das formas, apesar de ser
real. Não há um fechamento ou uma totalidade, ali, onde o “entre fluxos”
gesta o atual.
Penso em uma “memória-presença”, no limite do tempo e do espaço.
Pois a potência é memória de um corpo que a sustenta e é sustentado por
ela. É presença real, mas invisível, pulsante. É uma presença que não tem
lugar nem momento no suporte de inscrições, por ter quebrado o suporte
inscritível ou memorável (Lyotard, 1997, pp. 62-3).
O som que fere os tímpanos e atiça o corpo desaba em atualidade e
lança o instante em contato com uma dor sem tempo, por contê-los todos.
Neste cristal do tempo vem se instaurar o estranho, o absolutamente novo,
aquilo que não se mistura com o suporte de outras marcas, pois dilacera e
produz a própria pele do momento. Assim que é afetado pelo incontido do
som não pode mais continuar o mesmo, impassível. Será, ao contrário,
irremediavelmente lançado ao mar dos afetos em aventura necessária.
Palavra cunhada por Laplanche e Pontalis (1988, p. 429) para traduzir o termo
utilizado por Freud “durcharbeitung”, elevando-o à categoria de conceito. Acompanhando
a perspectiva de Lyotard, parlaborar é “passar ao lado da síntese”, é uma “técnica sem
regra ou com uma regra negativa, desregulada, uma generatividade sem outro dispositivo
do que a ausência de dispositivo” (1997, p.62).
28
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44
2.3. Corpo-melodia
Nasce no ar a primeira flor. Forma-se o chão
que é terra. O resto é ar e o resto é lento fogo em
perpétua mutação. A palavra “perpétua” não existe
porque não existe o tempo? Mas existe o ribombo. E
a existência minha começa a existir. Começa então
o tempo?
Clarice Lispector
Buscando uma outra forma de aproximação deste plano de
virtualidade, que constitui um certo modo de apreendermos os seres,
enquanto expressão de uma processualidade que os atravessa, explorarei
nesta parte as intuições conceituais de Jacob von Uexküll.
Uexküll foi um etólogo, do início do século vinte, que publicou sua
obra maior chamada Dos animais e dos homens – digressões pelos seus
próprios mundos – doutrina do significado (Streifzuge durch die umwelt von
tieren und menschen) (Uexküll, s/d).
Logo no primeiro parágrafo do prefácio, escreve que seu livro limitase “a incluir o que podia chamar-se a descrição de um passeio por mundos
desconhecidos”. E além: “estes mundos não são apenas desconhecidos,
são também invisíveis; mais do que isso: o seu direito de existir é-lhes, em
geral, contestado por muitos fisiólogos e zoólogos” (idem, p. 23).
Quais seriam, então, estes “mundos desconhecidos e invisíveis”?
Seriam mundos gestados em um plano “supra-individual” 29 . E
apenas esta concepção já nos coloca diante da dificuldade de pensá-lo,
29 Preferi utilizar o termo “supra-individual”, apesar da tradução portuguesa usar “superindividual”, por considerar mais adequado ao pensamento do autor.
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
45
uma vez que a forma ocidental de pensar, habitualmente, parte dos
indivíduos constituídos. A resistência que nosso pensamento impõe,
revela-se, quando Uexküll determina que dele “[plano supra-individual]
não se pode formar qualquer idéia adequada, pois não é uma substância
nem uma força” (idem, p. 88). Por isto, encontraremos, ao longo do livro, a
potência de palavras que habitualmente passam apenas tangencialmente
nos livros científicos, como: esboços, teores, protótipos ou “melodias
iniciais”. Veremos que a forma mais profícua de penetrar neste terreno
brumoso será o da música.
A idéia fundamental que é lançada é a do umwelt (mundo ambiente).
Este é, propriamente, o mundo que está aquém ou além das formas sujeito
e objeto. Que os inclui, atravessa e con-forma. Assim, é criado um termo
que procura resistir ao que, no “meio ambiente”, é já separado a priori.
Este
mundo
ambiente
não
é
homogêneo.
É
povoado
por
singularidades intensivas, que surgem dos encontros, os mais diversos, os
quais mobilizam o “arranjo” entre o que é atual e a multiplicidade invisível
do
plano
supra-individual 30 .
Complexos
destas
singularidades
que
acontecem no mundo ambiente são chamados pelo autor de “mundospróprios”. Para cada ser vivo, há uma melodia que lhe subsiste, e que se
estende, enquanto potência, pelo entorno. Um plano de “melodias iniciais”
está oculto sob uma “cortina das aparências”. Ou seja, a flor e a abelha
são compostas uma para a outra, em contraponto 31 . As “cortinas” são
expressões diversas de planos melódicos que se dão a ver, deixando na
Penso em um mundo que transcende o empiricamente experimentado, o qual “não é
certamente redutível a algum estrato físico ou biológico, social ou cognitivo, ou qualquer
outro. (...) Trata-se de um mundo como reserva infinita, transmundo, sem hierarquia de
complexidade, sempre e por toda parte diferente e complicado” (Lévy, 2003, p. 27).
31 “Como modelo, podem servir-nos as regras da composição musical, que parte do
princípio de que são necessários, pelo menos, dois sons para formar uma harmonia. Na
composição de um dueto, as duas partes que se devem fundir numa harmonia são
compostas nota por nota, ponto por ponto, uma para a outra. Nisso se baseia a teoria do
contraponto, na música” (Uexküll, s/d, pp. 180-1).
30
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
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sombra um processo molecular de mutação contínua, o qual implica a
abertura para o plano virtual (não formal e não dialético). Da mesma forma
que há “uma partitura inicial para a mosca, tal como existe uma partitura
inicial para a aranha. Ora eu afirmo que a partitura inicial da mosca (que
também podemos designar por protótipo) atua na partitura inicial da
aranha, de modo que a teia tecida por esta resulta ‘própria para capturar
moscas’” (Uexküll, s/d, p. 166).
Poderíamos argumentar que estas são determinações hereditárias, e
não possuem relação com a processualidade supra-individual que aqui
tratamos. No entanto, por uma série de exemplos, Uexküll esclarece que os
impulsos instintivos são apenas uma expressão, resultado da perplexidade
de quem não apreende a dinâmica da constituição imanente, em
contraponto, da natureza (idem, p.88).
Poderíamos, então, conceber: aquele paciente que grita... ou, melhor,
os planos de sentido, que concorrem para a emergência daquele grito,
entram em ressonância com os planos que “harmonizam” os indivíduos
que entram em contato com ele. Desta maneira, um corpo melódico vai
ganhando consistência entre os indivíduos (na verdade “para além”, pois
não se trata de um entre espacializado). Ligando-os visceralmente e, ao
mesmo tempo, iluminando as resistências que os diferenciam. Um mundopróprio se conforma a partir do encontro. Não como uma mistura de
individualidades ou como uma unidade de conjunto, mas como o
surgimento de uma partitura inédita que ultrapassa o constituído – num
movimento paradoxal de virtualização e atualização. Assim é que se tornou
possível a comunicação da própria gênese dos mundos próprios abertos
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em devir (pelo evolver 32 do mundo ambiente), re-configurando suas
potências para afetar e serem afetados por outras melodias.
Este “corpo-mundo-ambiente” sempre escapa à apreensão, porque
se dá no limite do encontro de sons. “Só as ondas de ar não podem
produzir uma melodia ou uma harmonia, nem constituir uma partitura.
Apenas o encontro destas com o ouvido humano as pode forjar” (idem, p.
200). Neste entre, neste dueto, aquém do humano, a potência rítmica
sempre se conserva em virtualidade; o que permite o evolver do “corpopartitura”, e a formação de novos. No limite do próprio corpo que se forma,
o ímpeto rítmico se conserva, agora engendrando a porção nova daquele,
expressa na atualidade, em sua singularidade vibrátil (potencial, residual,
que não se esgota). Não há reversão do tempo, ou constância estática deste
corpo melódico, mas apenas uma conservação ativa de alguns aspectos de
si. Esta é uma característica que percorre desde o nível intracelular, até a
parte mais abstrata da subjetividade. Para conservar a integridade das
formas, é necessária a abertura, a troca, a comunicação, que é invenção de
ritmos.
O “ser-paciente em processo”, deitado em uma cama de hospital,
atravessado por instrumentos tecnológicos, traduzido por códigos os mais
diversos, afastado do “seu mundo próprio” habitual, será impelido a
produzir uma nova partitura. Seria esta uma doença?
O encontro de todos estes – e muitos mais – “fluxos melódicos” darão
origem a um novo corpo. Um corpo contemporâneo, que surgirá do
encontro e do devir de potências virtuais. Território permeado também pelo
Utilizo a palavra evolver com o sentido de transformação (transformar-se ou tornar-se),
a qual dá a ver, por sua própria existência, a ação pré-individual da qual os indivíduos
são resultado. Esta palavra é utilizada por Bion (que será uma referência para este
trabalho), assim como evolução. Optei pelo verbo evolver por entender que evolução
passa, mais fortemente, a idéia de aperfeiçoamento. Em inglês diz-se evolve:
“desenvolvimento de um estado ou estágio do ser para outro” (Webster, 1987, p. 107).
32
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“hábito de si” – por uma ritmicidade tornada fundo, através da repetição –
mas, como vimos, sempre mutante.
Seria, então, o caso de tentar extirpar o corpo-grito com palavras de
repulsa ou com medicações sedativas?
Talvez sim. Se a música que se compõe no encontro dos seres faz
surgir algo de tão insuportável, que os ameaça profundamente. Estamos
diante da questão proposta por Espinosa: o que pode o corpo?
Sabemos que cada corpo-partitura conserva em suas notas a
desconstrução de outros. Assim, não podemos nos iludir, achando que em
qualquer situação, devamos acolher a violência do salto que afoga o nosso
corpo empírico, neste corpo em processo. Para manter e aumentar a
perspectiva de sentido do ser (o ímpeto rítmico) é necessária a conservação
do vínculo que produz seu “teor melódico”.
Mesmo assim, não é possível dar as costas à produtividade que nos
consome e aviva; à urgência do corpo-invenção que pede passagem, apesar
da inércia musical de nossa constituição. Inércia que é como que um
“ritmo de base”, mesmo não sendo essência ou identidade imutável. Até
porque o corpo está cada vez mais exposto à pressão de estabelecer
sínteses baseadas no encontro de séries aparentemente incompossíveis.
A resistência, a desaceleração dos fluxos-grito ou dos fluxosrabugice, se estabeleceu na confluência do que nos temporaliza, e exigirá
um re-arranjo dos corpos em seus aspectos visíveis e invisíveis, atuais e
potenciais.
Neste ponto preciso, é que procurarei pensar a ação clínica. Ação
banhada de uma ética e uma política específicas.
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Não nos deteremos neste tema, aqui. Mas importa convidar alguns
elementos da teoria de Uexküll, que implicam um atravessamento da ética,
da política e da perspectiva de ação.
O mundo próprio do sujeito se constitui em uma dinâmica de
sínteses de fluxos heterogêneos em devir, o que estabelece um plano. Este
plano pode ser chamado de “ciclo-de-função” (Uexküll, s/d, pp. 34-6). O
ciclo, ou um conjunto deles, vai se tornando apreensível por sinaisperceptivos e marcas-de-ação. Os primeiros estão fora dos órgãos de
percepção, e estabelecem uma ligação entre os participantes do ciclo. Já as
marcas-de-ação imprimem uma alteração no objeto do impulso, sendo
estas também o resultado deste plano, que em última instância, consiste
numa interdependência da percepção e da ação. Não há propriamente uma
relação de causalidade. A ação é uma potência convocada pela percepção.
E esta última está, já, implicada naquela. Enquanto se age, vai ocorrendo
um reforço e uma modificação na percepção, ou seja, no plano como um
todo, reforçando ou virtualizando determinados teores em questão.
Sendo o impulso efetor e o poder de ser afetado, aspectos
constituintes do ciclo, é necessário buscar “de dentro” (ou seja, de modo
não transcendente), o que determina e influi nesta partitura espaçotemporal singular. Os signos de percepção “entram como perguntas no
sujeito-animal” (idem, p. 34), situando-o em um campo problemático no
qual está mergulhado. Portanto, para cada situação, deve-se procurar uma
delimitação do que está em jogo no ciclo emergente, com seus sinais
perceptivos e suas marcas-de-ação, suas perguntas e esboços de resposta.
Uexküll exemplifica este campo problemático, observando o que se dá
entre o carrapato e o mamífero. Escreve: “não é o estímulo químico do
ácido butírico que se debate, nem tão pouco o estímulo mecânico
(desencadeado pelos pêlos), nem ainda o estímulo térmico da pele, mas
apenas o fato de saber porquê, entre as centenas de ações que resultam das
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propriedades do corpo do mamífero, só três se tornam portadoras de sinais
característicos relativamente à carraça [carrapato], e porquê essas e não
outras” (idem, p. 37, grifo meu).
Fica claro que, ao concebermos um corpo como expressão singular
de um plano de sentidos, já estamos procedendo a uma política:
encarando o ser como visceralmente ligado ao entorno. Convergência de
outros tantos planos, que não lhe são contemporâneos, mas criam a sua
própria temporalidade, na determinação de seu mutante mundo próprio.
Com sua característica própria de abertura para a afetação e impulso, a
gênese do tempo no mundo do carrapato diverge muito de qualquer outra.
Este pode ficar em um estado de latência de dias ou anos, até que o
encontro com o mamífero produza um evento, que marcará o seu mundo.
Obviamente, se olharmos “de fora”, podemos impor a nossa cronologia à
situação. No entanto, “só por excessiva leviandade alimentamos a ilusão de
as correlações do sujeito, outro que não nós, com as coisas do seu mundopróprio existirem no mesmo espaço e no mesmo tempo que as que nos
ligam às coisas do nosso próprio mundo humano. Esta ilusão é alimentada
pela suposição da existência de um mundo único em que todos os seres
vivos estão encerrados” (idem, p. 42).
Podemos, a partir destes desenvolvimentos da pesquisa etológica,
estender esta perspectiva ético-política, de considerar cada ser como
resultante de uma produtividade temporal e espacial próprias, para os
seres humanos. Isto porque, “toda a Natureza participa, como motivo, na
formação da minha personalidade, no que respeita ao meu corpo e ao meu
espírito – pois se não fosse assim, faltar-me-iam os órgãos para reconhecer
a Natureza” (idem, p. 215). No entanto, existe entre os animais e o homem,
a diferença de que este último pode ampliar “os limites da natureza inata”
(idem, p. 215), por uma ampliação da capacidade de afetação (e portanto
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uma transformação com limites mais amplos da musicalidade de seu
mundo próprio).
Justamente na capacidade humana de ampliar sua exposição à
afetação,
reside
seu
diferencial
e
sua
fragilidade.
As
tecnologias
discursivas e técnicas fazem nossa época ganhar um colorido inigualável,
bem como um sofrer característico.
Desenvolverei mais adiante este argumento – de que esta diferença
de mundos entre os homens, de tempo e espaço, não é puramente abstrata
– também, através da observação de bebês. E do impacto tecnológico em
nosso sofrer, por outra cartografia clínica.
Por ora vamos reter que existe uma diferença de mundos entre os
seres. É necessário que ela seja preservada, e não encarcerada em um
modelo aplicado a priori a todos.
Daí se tira como conseqüência, que os modelos interpretativos de
reconhecimento do sofrer singular de cada um, em cada situação e em
cada época, devem ser sempre tidos como insuficientes, precários, em
processo de dissolução. Faço a opção pela cartografia (Aragon, 2003, p.
16). Que busca “entrar” – incluindo o pesquisador ou clínico no processo –
no mundo próprio do corpo que está ganhando visibilidade.
Não há como prescindir totalmente das teorias, modelos e formas.
Não seria desejável, e nem mesmo possível. Isto porque, como já apontado,
importa a perpetuação de um constituído, um hábito, um vínculo –
musical – entre as partes que formam um complexo (teoria, ser, imagem).
Mas devemos fazer um esforço de limpeza, de silêncio, de espaçamento,
das nossas próprias pré-concepções, para permitir um novo “ritmar entre”
(mesmo porque a exigência do plano potencial não cessa).
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Não há homogeneidade na “mistura clínica”, mas encontro e
condição de afetação, em contraponto, das singularidades.
Ainda um desdobramento ético-político – que terá conseqüências
clínicas – é a crítica que Uexküll faz, à perspectiva de Herbert Spencer 33 de
sobrevivência do mais apto. Em várias passagens de sua obra, o autor
demonstra o engodo de pensar que há a evolução de um ser menos para
um mais perfeito (idem, p.210). Cada ser é perfeito em si, e tem os
melhores meios para o evolver de suas necessidades potenciais. Eles
formam suas partituras entre seus mundos próprios, na imanência de
seus campos problemáticos, e não estão “preocupados” com qualquer
finalismo ou aperfeiçoamento. Não há uma hierarquia de formas, seres ou
mundos próprios. O ser em condição de perpetuar não é aquele que habita
os extremos, mas o que corresponde à expressão suficiente dos potenciais
melódicos de seu mundo próprio.
Com isto quero dizer que a alteridade radical, o diferente, o
estranho, o próprio diferir é abertura para o devir do ser e para a geração
de novos potenciais. As relações ocorrem em um plano extensivo – como o
contato das ondas sonoras do grito com o tímpano – mas também em um
plano intensivo – como o que atravessa as questões “Por que este grito?”,
“Por que agora?”, “Por que aqui?”, “Por que me afeta desta maneira?”
Estes planos devêm, estabelecendo transferência com uma “potência
do entre”. Potência que é a condição de ampliar o circuito de
afetação/produção de sensações. Isto, mesmo que a espécie e o ser
mudem radicalmente. Não há qualquer “preocupação” com uma estética
da harmonia ou de sustentar uma ética do aperfeiçoamento e do equilíbrio.
Spencer foi um filósofo contemporâneo a Darwin, tendo influenciado este último em
suas elaborações teóricas. No entanto há diferenças entre ambos. Uexküll se opõe
especificamente ao primeiro, na medida em que ele defende uma teoria evolutiva na qual
o vivo caminha “sempre mais em direção a um ideal de equilíbrio e de harmonia” (Stiegler,
2001, p. 95).
33
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53
A expressão plena dos potenciais em um acontecimento pode ser a doença,
a rabugice, o desespero, a dor, o grito.
O mundo ambiente avança produzindo fissuras nas formas,
mutações nos seres, e estas “anormalidades” buscarão perseverar,
enquanto expressão da ecologia atual/virtual. Há uma inversão de
perspectiva quanto à filosofia spenceriana, pois o menos diferenciado (o
menos determinado em uma forma ou padrão rígido de normalidade) é o
que melhor permite a expressão do que se encontra em estado de potência.
Em outras palavras, da precariedade é que se gesta a vida, ou da doença a
saúde. O “pobre”, aquele que não está encarcerado na repetição de suas
pré-concepções, o mais despojado de clichês é o que tem maior poder de
participar dos devires, ser passagem para a atualização da virtualidade (e
vice-versa) apresentada nos encontros.
Assim, podemos nos reportar àquele corredor de hospital, com
aberturas para quartos separados; enfermeiras passando de um em um,
com a complexidade de sua existência; médicos especialistas, capturados
na fragmentação célere de seu tempo. Planos, fluxos, melodias, compondo
partituras. Sopros que se atravessam, compõem e decompõem harmonias,
e surgem em um grito. Perfeito por sua própria presença. Nada de
diferente poderia atualizar de forma melhor o jogo de corpos, empíricos e
potenciais, recortados por um olhar – o nosso, mutante e aberto – da cena.
E, então, do observatório imanente deste acontecimento poderíamos
nos perguntar: e agora? O que virá? Como intervir neste processo? Como
não ser afogado por ele?
A clínica, ainda que precária em sua função, se destinará a
mergulhar neste mundo ambiente. Carregará toda a densidade éticopolítica da sua – agora valorada – precariedade. Irá cartografar as marcasde-ação e os signos perceptivos, intuirá o plano no qual o ciclo-de-função
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se dá, e buscará uma negociação possível entre as formas e as potências
virtuais.
Neste plano, a cura seria apenas um deslizamento de sonoridades,
que se singularizam em outras melodias.
Tendo em mente a multidão de fluxos em ação, não podemos almejar
extirpar a doença, ou extinguir a dor, sem nos colocarmos em um plano
analítico por um lado e potencial por outro. Não se trata de sair ao encalço
da saúde perfeita ou do indivíduo mais apto, e nem de tolerar a dor, mas
de abrir espaços que permitam o inédito do encontro, para intuir e
melodiar as “proto-sonoridades” que pedem passagem.
Neste ponto do trabalho, um outro ensaio virá intrometer-se, criar
problema.
No
corpo-melodia
que
se
pretende
esta
tese,
o
ritmo
compassado da teoria sobrenadante, cede espaço à harmonia condensada
da cartografia de uma sessão analítica. Estratégia que almeja tocar naquilo
que a mim mesmo escapa. E assim, ser fiel à perspectiva ético-política de
legitimar as zonas de indiscernimento. Nuvens de sentido, abertas por
entre as palavras e conceitos. Abertas entre eu, o leitor, e mais.
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Imagem 5 – Pintura de tríptico - Francis Bacon (1970)
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Segunda cartografia clínica
Violetas e sons
Por automatismo do pensamento, ou ignorância do vivo da vida,
esperava-se o encontro costumeiro, das pessoas habituais.
Não foi, no entanto, o que ocorreu naquele dia.
A mulher, alta, de passos seguros, e por vezes alegre, avançava com
dificuldade. Todo o mundo parecia ser cruel demais, intenso demais, para
aquele ser. Não uma crueldade agressiva, de ataque, belicosa. A violência
que se apresentava era do próprio encontro das cores na retina, do ar que
não parava de tocar o rosto a cada passo.
A voz, o som que tece a voz, a vibração que se lança ao espaço,
parecia trazer consigo o gume afiado da navalha, pronto a dilacerar
qualquer expressão, qualquer relevo.
Assim, o corpo se encolhia na poltrona, afundando num úteroabismo. Furo, buraco, escuro. Tudo o que havia e assegurava a existência
costumeira foi perdendo a realidade. Os apoios invisíveis do cotidiano –
estante, parede, chão – ficaram evidentes por sua ausência. A fala lenta,
escandida, amorfa, esposava o corpo em despedida, quase sem vida.
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Não se falava de morte. Não era preciso, e nem mesmo possível.
Hoje, parece que falar de morte teria sido rude ao extremo para com a
ditadura do momento que seguia, insano.
Violetas. Falava-se de violetas, as plantas. Os pequenos vasos
dispostos em fileira no cordão da janela. Tudo o mais perdeu o sentido,
apenas aquelas folhas verdes com flores ocasionais, resistiam na
espessura sideral do breu. Vazio que se tornava mais presente do que a luz
indireta das imóveis violetas. Elas precisam ser molhadas, pelo menos.
Tornaram-se o único fio, tênue, de sustentação. Cordão umbilical, fio-mãe.
Como se as frágeis plantinhas segurassem – com dificuldade – a visceral
genitora que desabava exangue.
De repente, ou não, as pétalas, o caule, as imperfeições das folhas...
não precisavam mais de água. Não precisavam mais, como ela, de nada
mais. Eram apenas objeto de descrição. Momento de despedida da mãe
que, despossuída do poder de dar a vida, recolhe na memória as feições da
criança morta. Ação desesperada e sem vida, que se equilibra e se nutre de
impossível resgate.
O diário repleto de palavras trocadas com o filho ausente, já não
servia de amparo para aquela mulher. Fantasma que vagava pelas noites
indormidas, assombrando e assombrada, em instante eterno, as páginas
rabiscadas do caderno. A família, a casa, os amigos, a igreja, e ... o diário,
perderam a razão de ser. Ficou a imagem, debilmente traduzida, das
violetas.
Não se sabe de onde, pois não havia mais nada. Talvez vindas do
pouco de seiva que restava, improvável. Explodiram palavras.
Palavras palavras mais palavras Pode ser que não fossem palavras
eram mais propriamente sons Sons em galope fortes incontroláveis
Vibração bruta sem origem ou destino Diziam da vida das cores dos
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encontros desencontros Contavam aventuras de heróicos cotidianos
Encarnavam os tempos de todos os mitos e se diziam e desdobravam se
moviam davam voltas preenchiam.
Emergiu do nada, ou assim parecia, tamanha a força do ruído em
contraste ao silêncio infinito que preenchia o espaço entre as sílabas
dementes.
Quanto tempo durou esse jorro, que usava minha boca, língua, voz?
Momentos, segundos, minutos. Quero dizer, o tempo todo. O tempo todo
contraído em sístole infinita, após a diástole tornada assistolia. Após? Ou
antes? Ou durante? Como saber o que poderia ser causa ou efeito? O que
já estava, o que esperava, o que se seguia?
Parecia vir de mim aquela multidão, enfurecida de vida. Mas eu, eu
mesmo, estava pequeno ... e grande também. Estava ausente de mim, mas
presente, tão presente, de algo que não sei o quê. Erupção, cascata,
explosão... são imagens que me ocorrem hoje, distanciado que estou do
acontecimento. Imagens de uma natureza que não é – e é – minha. É
nossa, é dali, é além de nós.
É. Mas certamente não é qualquer coisa. Está para além, no mesmo
movimento que nos inclui necessariamente.
A correnteza diminuiu a velocidade. A maré baixando, como que
num esgotamento lunar. Sem planos, imprevisto, o ritmo encarnou outro
compasso. Os olhos vivos, surpresos, foram os testemunhos da mágica
aparição. Surgiram assim, saltados, em alguma hora, e se deram a
reconhecer que algo havia se passado.
Estávamos salvos. Algo nos redimiu. Como num sonho, éramos
personagens jogados com violência em outro local, outra dimensão.
Apenas um certo ar de surpresa e fadiga fazia lembrar, com dificuldade, a
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paisagem anterior. As paredes retornaram em asseguradora consistência.
O armário, os livros, cortinas riam-se da peraltice de terem se ausentado,
sem sair do lugar. A voz e as palavras voltaram correndo, fazendo-se
submissas, à atitude que se espera delas.
Bronca.
Foi uma bronca que se deu. Pelo menos foi esta a palavra que surgiu
d’Isso tudo.
Mais do que uma palavra, bronca tornou-se um signo, uma chave.
Um código secreto que passou a nos ligar em incrível intensidade. A
própria ligação.
Bronca e pronto. Proferida, montava toda uma atmosfera singular,
plena de vitalidade, feliz.
“Lembra aquela bronca?”
E só isso já fazia valer a pena viver a vida, ali, juntos.
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2.4. Corpo-devir
Viver é ser outro. Nem sentir é possível se hoje se
sente como ontem se sentiu: sentir hoje o mesmo
que ontem não é sentir – é lembrar hoje o que se
sentiu ontem, ser hoje o cadáver vivo do que ontem
foi a vida perdida.
Fernando Pessoa
Diminuindo a velocidade do texto, inspirar-me-ei principalmente na
filosofia de Gilbert Simondon, para desdobrar alguns pontos que já vêm
sendo tratados desde o início. Interessa-me especialmente, neste autor, o
deslocamento capital que ele faz, do lidar com indivíduos para o lidar com
processos de individuação.
Ou seja, no momento em que se dá o encontro de dois sujeitos, na
sala psicanalítica – como em qualquer outro local – apenas por uma
redução lógica (poderíamos dizer alucinatória?) é que os inúmeros planos
potenciais são subtraídos. Assim, há o rebatimento da multiplicidade de
fluxos na imagem da “forma-sujeito”, fazendo com que aqueles coincidam –
por projeção – neste.
O ser individual – de cada um, e o que se forma a partir do encontro
– “não é todo o ser”, mas “resolução parcial e relativa que se manifesta
dentro de um sistema cheio de potenciais e contendo uma certa
incompatibilidade em relação a si mesmo, ...” (Simondon, 1995, p.23).
Nesta perspectiva, o ser não pode ser concebido “como substância,
ou matéria, ou forma, mas como sistema tenso, supersaturado, abaixo do
nível da unidade, não consistindo somente em si mesmo, e não podendo
ser adequadamente pensado ao modo do terceiro excluído; ...” (idem, p.23).
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O indivíduo ou o individual passa a ser, mais do que resultado,
passagem, meio, através do qual a realidade potencial se exprime. Orlandi
— tomando como referência Deleuze (em Différence et répétition, Paris,
PUF, 1968, pp. 315-7) — esclarece que “o processo pelo qual as
intensidades determinam diferenciações e, assim, se explicam, sem,
contudo, perderem sua própria ‘independência’, recebe o nome de
‘individuação’. Assim, diz-se que ‘toda individualidade é intensiva’
justamente porque ‘a intensidade é individuante’, isto é, as ‘quantidades
intensivas
são
fatores
individuantes’.
Em
outras
palavras,
a
individualidade ‘afirma em si a diferença nas intensidades que a
constituem’” (Orlandi, 2000, p. 60) 34 .
Caminhemos com mais vagar, pois, como Uexküll lembrava, não é
fácil desfazer as armadilhas do pensamento, tornadas automáticas e
habituais – inquestionadas por parecerem óbvias – como é o caso de ter
sempre o indivíduo como origem do pensar. Mas, como conseqüência deste
desencadear teórico, somos lançados ao terreno do virtual, do préindividual, do intensivo.
34 Os trechos entre aspas são de Deleuze, em Différence et répétition, Paris, PUF, 1968, pp.
315-7.
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2.4.1. O virtual
Mas na Obscuridade tudo se contém:
as formas e as chamas, os animais e eu também,
nela que consorcia
existências e energias –
Pode bem ser que uma força sombria
se mova em minhas cercanias.
É às noites que minha alma se confia.
Rainer Maria Rilke
O pré-individual não é uma substância, nem tem forma, pois ele
emerge por entre as formas e as substâncias. É real, enquanto potência,
mas não é atual. Ao contrário, está no limiar de metamorfosear-se em
corpo atualizado, permitindo assim o transformar deste.
Não é uma “realidade falsa”, ilusória ou imaginária. Mas “um modo
de ser fecundo e poderoso, que põe em jogo processos de criação, abre
futuros, perfura poços de sentido sob a platitude da presença imediata”
(Lévy, 1996, p. 12).
Trata-se de um plano de potência poética, necessário para a
formação/deformação dos indivíduos (seres ou imagens).
Desabituados que estamos em olhar para a profundidade processual
das formas, faz-se necessário “diminuir a luminosidade até reencontrar
um limiar de revelação. Para aprender a ver” (Dentin, 1993, p. 133).
A relevância deste método não era estranha a Freud, o qual em carta
a Lou Andréas-Salomé de 25/5/1916, escreve: “Sei que ao escrever tenho
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de cegar-me artificialmente a fim de focalizar a luz sobre um ponto escuro,
renunciando à coesão, à harmonia, à retórica e a tudo o que a senhora
chama de simbólico, temendo como temo a experiência de que qualquer
pretensão ou esperança neste sentido implique o perigo de distorcer a
matéria sob investigação, ainda que pudesse embelezá-la,...” e mais
adiante: “... meus olhos, adaptados como estão à escuridão, provavelmente
não suportam a luz forte ou um campo amplo de visão” (Freud, 1975, pp.
65-6).
A realidade não se esgota em mim, nem na moça, sentada à minha
frente. Ao contrário, nós somos parte de uma realidade maior, aberta e
informe – poética. Somos como que cicatrizes, tentativas de cura, de uma
ferida
que
nos
engloba.
Ferida
que
é
o
perguntar
que
nossas
individualidades tentam responder, mas que sempre lhes escapa, ao
menos em parte 35 .
Por este viés do pensamento, devemos considerar o ser como um
complexo formado por duas dimensões da realidade, uma individuada e
outra pré-individual (Simondon, 1995, p. 229).
No encontro, os indivíduos enquanto tais são apenas uma resolução
parcial de elementos atuais (extensivos) e da multiplicidade virtual
(inextensa ou intensiva – não capturável pelos sentidos).
Apesar de nutrirmos uma ilusão ao imaginarmos que o encontro se
daria com as “pessoas habituais” 36 , a cada encontro, os indivíduos em
Assim, “é preciso conceituar a individuação como complexa operação ativada no
indivíduo tomado como meio de individuação, um meio que implica uma realidade préindividual, um campo de singularidades pré-individuais” (Orlandi, 2003, p. 90).
36 Espinosa – segundo a leitura de Deleuze – afirma que a consciência é puramente
transitiva, sendo um sentimento contínuo da passagem ou variação do ser no encontro
com outros. Ela acalma a angústia de sua ignorância através de uma tripla ilusão: da
finalidade (tomando os efeitos como causas), da liberdade (tomando-se a si própria como
causa primeira) e teológica (tomando um Deus ou ser transcendente como causa final,
35
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
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processo e as circunstâncias já mudaram. Plenos de potência, ou seja, de
imprevisto, de ineditismo, o encontro dará continuidade à processualidade,
formando novas individuações. Só assim poderemos dizer que houve um
encontro, no sentido forte do termo.
Este é o terreno do trágico, da violência e da crueldade, pois não há
calmaria no encontro. Este, não sendo pura reprodução, traz o sofrer do
diferir de tudo o que é habitual, conhecido, pessoal e provoca um
estranhamento que fulgura por entre os corpos. Moraes – acompanhando
Bataille – traz uma imagem forte para pensar a violência da poiésis,
implicada na transcendência das formas orgânicas. Conta da multidão
asteca ao pé das pirâmides onde se arrancava o coração das vítimas,
momento no qual “é sempre uma fulguração, que consome, que é
esperada”... [e]...“essa fulguração ocorre precisamente no momento em que
as formas sólidas são destruídas, isto é, quando os objetos disponíveis do
qual o mundo é feito se consomem como num braseiro de luz.” (Moraes,
2002, p. 164).
O fulgurar do instante de excesso e consumo das formas violenta, ao
mesmo tempo em que excita e cura o homem de sua humanidade. Penso
em uma erótica impessoal que impulsiona o ser – estabelece uma ligação
ou continuidade – no próprio transbordar de sua duração individual,
ordenada e pensável. Convergência de “sentimentos involuntários com
instante
revolucionário”
–
instaurando
a
imprevisibilidade
que
–
“transgride o tempo homogêneo, irrompe no que se repete” (Chnaiderman,
2004). Pulsão que insiste em lançar o homem à descontinuidade de si 37 .
quando a ilusão de liberdade não é suficiente). Em verdade, a consciência é inseparável
desta tripla ilusão que a constitui (Deleuze, 2002, p. 26).
37 “O que significa o erotismo dos corpos senão a violação do ser dos parceiros? Uma
violação limítrofe ao limiar da morte? Limítrofe ao ato de matar” (Bataille, 2004, p. 28).
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
65
A realidade virtual que se apresenta nos encontros não é uma
realidade acessória, mas plena em sua “tarefa” de ser “um problema a ser
resolvido” (Deleuze, 1988, p. 341) e que só se resolve à medida que inventa
novos. Não há descanso em uma totalidade, ou em uma atualização total
das potências. “O virtual não se opõe ao real, mas somente ao atual. O
virtual possui uma plena realidade enquanto virtual. Do virtual, é preciso
dizer exatamente o que Proust dizia dos estados de ressonância: ‘reais sem
serem atuais, ideais sem serem abstratos’, e simbólicos sem serem
fictícios” (idem, p. 335).
Eu e Moça (como chamarei a “mulher alta, de passos seguros”)
fomos
inventados
naquele
dia,
através
de
potências
virtuais,
em
acontecimento. Planos virtuais, confrontados à vertigem do abismo aberto
entre nossa alteridade radical, estabeleceram uma “démarche”, na qual
nossas individualidades se encontraram – no “demais” de nós. As
singularidades que estão aquém e além de nossa sujeição em formas,
como memórias da espécie, relações com o sofrer e com a morte,
continuidade de uma confiança impensada, e um sem-número de outros
fluxos criaram – apesar de nós – um corpo novo. Corpo surgido da
expressão que o encontro pôde conquistar, de uma problemática mais
vasta que nós. “Explicação” do que não é consciente ou reprimido (pois
nunca experimentado).
Este é um dos paradoxos do virtual. É radicalmente novo, mas a
partir do que já está. Não vem de longe, como uma emanação divina. Está
longe e perto, dentro e fora, no passado e no futuro. Talvez por isto, vi
surgir na escrita, expressões aparentemente confusas como: “estava
pequeno... e grande também”, ou “estava ausente de mim, mas presente,
tão presente, de algo que não sei o quê.”
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
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2.4.2. Comunicação e In-formação
O único modo de estarmos de acordo com a
vida é estarmos em desacordo com nós próprios.
(Fernando Pessoa)
Quando digo que “as individualidades se encontraram”, quero dizer
que o resíduo não comportado na redução que as apresenta, estabeleceu
um
plano.
O
qual,
heterogenético,
é
tensão
entre
multidões
de
singularidades em trânsito.
Não se trata de uma transferência inter-individual, mas da invenção
de um corpo-melodia, a partir da resolução de potenciais em processo de
ascensão e queda.
Para Simondon, só desta forma é que podemos dizer que ocorreu
uma comunicação. Para ele – e para nós – comunicação envolve sempre
uma in-formação (Simondon, 1995, pp. 26-7 e 240). Não como uma troca
de conjuntos de dados, mas como o contato com o plano virtual, que não
permite a manutenção das formas, mas as marca de forma indelével e
única. Não nos esqueçamos, que este plano virtual não é uma outra forma
de totalidade. Mas um plano em estado de potência, impalpável mas não
irreal, que pode ou não se resolver numa forma atual.
Eu e Moça – em uma atmosfera que tenta não entupir o encontro
com pré-concepções – vamos seguindo o evolver não voluntário de uma
“ressonância interna” (que sob determinado aspecto, sempre existe, apesar
de poder ser “sufocada”). Esta expressão faz retornar à memória a
musicalidade em contraponto, e quer exprimir uma comunicação primitiva
(sem ser inferior), instantânea, em permanente estado de exigência (idem,
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
67
p. 25). Ela sempre envolve uma nova individuação, a formação de “um
novo corpo” (in-formação), uma mutação.
Então, o que consideramos comunicação é o ressoar subterrâneo de
fluxos intensivos – os quais consideraremos esquizos – estendendo uma
zona de sombra que transforma o estabelecido, unindo as individualidades
pelo processo de diferir-se.
O poder para ressoar de virtualidades que singularizam palavras
como tristeza, perda, filho, parede, sonho, delírio, e tantas outras coisas
que as palavras buscam significar, tomou a forma de jorro de palavras,
bronca, medo...
Um encontro aconteceu!
2.4.3. O coletivo
O ambiente é a alma das coisas. Cada coisa
tem uma expressão própria, e essa expressão vemlhe de fora.
Fernando Pessoa
Para reforçar a noção de abertura e de multiplicidade de dimensões
espaciotemporais que se interpenetram, implicadas no virtual, trabalharei
um aspecto do conceito de coletivo.
Já foi apontado que o coletivo não é o socius, nem um conjunto de
pessoas ou indivíduos. Também não é uma realidade inter-individual.
Agora, é possível precisar mais este conceito.
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
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É esclarecedora a crítica de Simondon. Tanto o social puro, quanto o
interindividual
puro,
não
implicam
necessariamente
“uma
nova
individuação dos indivíduos entre os quais ele [o coletivo] se institui, mas
somente um certo regime de reciprocidade e de trocas que supõem
analogias entre as estruturas intra-individuais e não um colocar em
questão das problemáticas individuais” (Simondon, 1995, p. 165). 38
Vemos que há dois modos de fazer um recorte da situação. Um que
se banha no sistema hilemórfico 39 , das formas constituídas como fechadas
ou completas em si, implicando uma apreensão do coletivo como
elementos mutuamente excludentes – em relação dialética. O outro modo
de recortar a situação – e é neste campo que me situo – é uma outra
apropriação
do
conceito
de
coletivo,
considerado
então
como
multiplicidade singular, pré-individual, em devir. A unidade, o mais
essencial ou originário, já é uma multidão, uma rede.
Toda uma série de desdobramentos decorre desta diferença, que
pode parecer sem importância. Como por exemplo, uma relação clínica se
dar exclusivamente em um âmbito, em que a informação é algo que cria
uma hierarquia, um jogo de poder, no qual um sabe e o outro aprende. Um
campo no qual a autoria e a propriedade de conteúdos e representações
Creio ser importante ressaltar – acompanhando a leitura de Orlandi – que, apesar de
nesta citação Simondon fazer uma crítica às trocas e à reciprocidade que supõem
analogias, este autor ainda mantém a idéia de que a ressonância interna pressupõe “a
exigência de alguma semelhança entre as séries ou de que sejam pequenas as diferenças
postas em jogo”. Esta posição é rejeitada por Deleuze, o qual defende que a comunicação
entre as séries é resultado de um “diferenciador” que “se desloca perpetuamente em si
mesmo e se disfarça perpetuamente nas séries, resposta que remete de modo permanente
ao estatuto do problemático.” (Orlandi, 2003, p. 95). Isto leva Deleuze a destacar – nas
próprias palavras de Simondon – que a ressonância interna é “o modo mais primitivo da
comunicação entre realidades de ordem diferente.” (Deleuze, 2003, 122).
39 Hilemorfismo: doutrina aristotélico-escolástica segundo a qual os seres corpóreos
resultam de dois princípios distintos e complementares, um deles indeterminado e
comum a todos, que é a matéria, e o outro determinante e que faz que uma coisa seja tal
como é e distinta de todas as outras, que é a forma; hilemorfismo (Ferreira, 1994).
38
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
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têm papel fundamental. Assim o coletivo estaria esboçado como conjuntos
de objetos já constituídos, após o processo de individuação.
Na segunda abordagem, a informação é vivida como trans-formação,
ou seja, potência de mutação disparada dos afetos surgidos no ineditismo
do acontecer.
O sujeito e o ambiente são apenas meios, resultados, de uma
coletividade, que comporta o mundo como o percebemos, mas também as
nuvens de virtualidade potenciais que subsistem a todas as formas. Estas
“nuvens” não são objetos ou imagens minúsculas e imperceptíveis, mas a
complexidade que pulula nos encontros e produz uma “queda livre” das
formas fixas de ser/perceber, exigindo um movimento para além.
É justamente o coletivo de singularidades impessoais e préindividuais que permite com que haja a “ressonância interna”, e que dá
condição de vida aos seres. Explico. Os seres, enquanto presos entre a
espera de um futuro e o abandono do passado, não estão totalmente vivos.
A sinergia dos planos do coletivo resolve a dualidade temporal em uma
tridimensionalidade que sustenta o ser em presença. Isto pois a
virtualidade retém o passado e intui o futuro, fazendo-os coincidir com o
presente. A ação/percepção do ser é já a emergência de sentido, o
acontecer, do coletivo (Simondon, 1995, p. 217).
Este coletivo, portanto, é “transindividual” (Deleuze, 2003, p. 123),
uma categoria do problemático, o qual é “um momento do ser, o primeiro
momento pré-individual” (idem, p. 122).
Só a experiência de enlace do que somos com o que nos vive é que
encarna, faz carne. Acontece.
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2.4.4. Morre-se
Ilusão já ter acreditado que as forças da
morte constituem a “morte fenomenal”. Ilusão ter
tido medo do desmoronamento necessário,
incontornável. Lá era a morada do sopro de vida
que não pôde ventar.
Laymert G. dos Santos
Falar da morte é sempre difícil, pois parece ter várias faces. No
entanto, dizer do paradoxo que é morrer parece inevitável.
Dizer que o morrer é necessário para o viver, ou que viver deve
possibilitar o morrer, soa como um repetir de frases antigas e sem sentido.
Mas quero, mesmo assim, insistir na importância de nos determos alguns
instantes nesta questão.
Uma figura da morte é a da moça que vaga na noite eterna,
conversando com um filho ausente. Morte em vida. Repetição infinita de
um instante profundamente pessoal, autoral. Vaidade de uma dor
insuportável, que só vê e quer a si mesma, especular.
Há,
no
entanto,
a
morte
deste
instante,
desta
imagem
incessantemente refletida no espelho da memória. Esquecimento. Esta é a
morte dos monumentos, das certezas, a mutação das imagens e das
lembranças, o mergulho, sem volta, no abismo impessoal, onde nenhum
momento é igual a outro. Só da experiência de um “morre-se” não autoral,
é que se pode conquistar uma certa tranqüilidade de “transformação
encarnada”. Caso contrário, há a agonia de um vagar, que é a morte presa
em seu último e infindável momento de quase-vida, ainda propriedade da
vida. Morte agarrada a imagens-clichê, estagnada, moribunda.
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
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A morte pode ser a resolução adequada de um coletivo de fluxos. Ela
pode estar à altura do seu acontecer. Por ser o que faz perpetuar um ser
na coletividade, não o indivíduo.
Não se trata de uma morte ou de pequenas mortes sucessivas, mas
do mergulho na noite de um coletivo pré-pessoal e pré-identitário. Coletivo
que comporta resíduos imateriais, multiplicando a dimensionalidade do
instante, elevando-o à estatura de acontecimento.
A concretude da história de Moça revela que as identidades, imagens
ou conceitos são necessários, e “buscam” perseverar em um conjunto, um
organismo. São rebatimentos, representações. No entanto, importa notar
que “a representação deve compreender uma expressão que ela não
representa, mas sem a qual ela não seria ela mesma ‘compreensiva’, e não
teria verdade senão por acaso e de fora. Saber que somos mortais é um
saber apodítico, mas vazio e abstrato, que as mortes efetivas e sucessivas
não bastam certamente para preencher adequadamente, enquanto não
aprendermos o morrer como acontecimento impessoal provido de uma
estrutura problemática sempre aberta (onde e quando?)” (Deleuze, 2000, p.
148).
Pensar a vida como evolver do coletivo que ganha forma através de
nós, arranca a esperança de autoria e mesmo de “calmaria” (em palavras
como morte ou pânico, identidades como “mãe que perdeu filho”). A
“invenção” – de um filho, por exemplo – não é uma propriedade ou
iluminação, mas a ação do corpo ao encontro do coletivo, no qual está
imerso. A morte também pode ser uma invenção, que está sempre se
atualizando, mas conservando seu estado de potência.
Nesta forma de abordagem, a invenção não “corresponde à aparição
do negativo como segunda etapa, mas à uma imanência do negativo na
condição
primeira
sob
forma
ambivalente
de
tensão
e
de
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
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incompatibilidade; é o que há de mais positivo no estado de ser préindividual, a saber a existência de potenciais, que são também a causa de
incompatibilidade e da não-estabilidade deste estado; o negativo é primeiro
como incompatibilidade ontogenética, mas ele é o outro face à riqueza de
potenciais; ele não é um negativo substancial; ele não é jamais etapa ou
fase, e a individuação não é síntese, retorno à unidade, mas defasagem do
ser
a
partir
de
seu
centro
pré-individual
de
incompatibilidade
potencializada” (Simondon, 1995, p. 32).
Então, o morrer – ou a forma singular do sofrer – pode ser o caminho
próprio de algo que pede passagem para continuar, e desta forma se
exprimir – por defasagem sob ação pré-individual. E é a isto que – com
Espinosa – chamamos “alegria”: o aumentar do potencial de abertura para
o viver 40 , neste caso, através da defasagem/caducidade no encontro
clínico, das certezas asseguradoras, dos modelos teóricos, das imagensclichê e, em um plano de ressonância, da autoria das sensações.
Ao contrário, há a morte que não exprime os potenciais do ser que
evolve, mas resulta de um fechamento a estes. Esta é verdadeiramente
uma morte triste, humilhante, a qual Simondon (1995, p. 213) chama de
passiva ou – numa perspectiva ética – um ato louco (idem, p. 247). Ato
egoísta, pois tende a reinar sobre todo o devir, no lugar de se articular à
rede de outros atos. Ato exaurido de sua realidade pré-individual, e
associado ao ser individuado, não sendo continuidade mas fim em si. Ato
capturado pela “vertigem de sua existência iterativa” (idem, p. 247). Não
sendo comunicação. Destacado do mundo.
40 Nas palavras de Espinosa: “Aquilo que dispõe o corpo humano de tal maneira que
possa ser afetado de diversos modos ou que o torna apto a afetar os corpos externos de
um número maior de modos, é útil ao homem; e é-lhe tanto mais útil quanto o corpo se
torna por essa coisa mais apto a ser afetado de mais maneiras ou a afetar os outros
corpos; e, pelo contrário, é-lhe prejudicial aquilo que torna o corpo menos apto para isto.”
(Ética IV, prop. XXXVIII)
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73
Eu e Moça “vivemos” a impessoalidade de um morre-se.
Ele – o morre-se – estava lá, em seus dois aspectos, de desapego e
potenciação. O acontecimento que foi tocar o tênue limite vida/morte
tornou o que havia em corpo. E esta encarnação do instante de virada, foi
o que “nos redimiu”. O empuxo vertiginoso da queda livre do ser em
clausura, explodiu em força intempestiva de um coletivo insuspeito.
Não se trata, obviamente, de uma expiação dos pecados. Não havia
pecadores, mas atos loucos. A loucura de viver a vida de um filho, morto
ao nascer. De repetir conversas intermináveis com um fantasma que era a
imagem fechada de si. De se horrorizar ao sentir seu corpo sendo o palco
involuntário de uma repetição insana. Esta era a sua dor, o seu vazio.
No
entanto,
Moça
estava
ali
na
minha
frente,
envolta
na
singularidade atmosférica do momento. E justamente ali – naquele
condensado de marcas e virtualidades – sem qualquer plano, foi que a
alegria surgiu por entre o solo da morte.
Aceitamos – sem saber bem o risco que corríamos – a “morte-emvida” no seio do “nosso ser”, complexo e potencial. Assim a morte surda
comunicou. Não havia plano voluntário para que isto acontecesse ali,
naquela hora. Já dissemos, não há teleologia ou voluntarismo. A morte
ressoou, em um momento em que nos largávamos à sua influência.
Instalou-se no novo corpo, e não “queria” mais nada de nós. Da noite de
nossos seres houve o despertar de algo desconhecido de nós. A memória
do que nunca foi vivido agiu, e tornou presente tudo aquilo que só o
esquecimento poderia trazer. E que eu não poderia nomear. Talvez ...
“bronca”!
Entrando em um território mais conceitual e psicanalítico, importame ressaltar que o desdobramento teórico já percorrido implica uma
positivação do conceito freudiano de pulsão de morte. Mas não será
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
74
possível desenvolver esta temática neste trabalho mais do que já está
implícito. No entanto, recorro a uma observação de Gôndar, a respeito da
“pulsão por excelência”, de morte, que acredito aproximar-se do meu
pensamento. A autora afirma que “se a própria pulsão se relaciona com a
morte, é apenas na medida em que promove a morte de tudo o que é uno,
possibilitando o surgimento do diverso; ela é antes uma potência
disjuntiva do que um retorno ao inanimado. Ela não se define como uma
tendência ao limite último e certo da vida, mas é em si mesma, o próprio
limite do princípio do prazer e do campo subjetivo que ele ordena”
(Gôndar, 1995, p. 121).
Perspectivando a pulsão como impulso de diferir, podemos perceber
que estão muito distantes, a Moça que vive a eternidade de uma mãe
perdida, daquela que vive o ser mãe – com a dor que isto traz consigo – no
acontecer atual de um coletivo que a implica. Poder se desagarrar daquela
dor e fazer vibrar a sensação. Sonhar as dores de outros mundos,
percorrer o sofrimento de pais, filhos, fábulas, e tantas outras mães.
Podemos pinçar da fenomenologia do cotidiano um desejo de “viver
para sempre” ou de desfrutar de uma juventude eterna 41 . A possível beleza
estética e bem-estar físico, envolvidos neste projeto, pode desconsiderar a
processualidade de um plano de imanência que é contínuo evolver coletivo
impessoal. Projeto tornado louco por esvaziar a imagem do imaginar, a
vida do “morre-se”.
A experiência-limite de perder um filho coloca em xeque o desejo de
eternidade, pois violenta o instituído em todas as suas dimensões. É
irrupção catastrófica do potencial pré-individual, que nem mesmo dá a
41 “Em nossos dias, nada é mais desolador do que constatar que o pavor dos seres
descartáveis pode dar lugar à construção de seres que queiram durar eternamente”
(Sant’anna, 2001, p. 97).
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
75
proteção de uma palavra (como há para aquele que perde um pai ou
cônjuge).
Moça foi confrontada com a necessidade de sobreviver a seu filho. A
dimensão e qualidade de sua dor; a forma “louca” de agir ante a violência
da vida/morte que esquarteja todo o sentido; o envolvimento intimamente
corporal de sua expressão... talvez possa apontar um caminho de
aproximação de algo das agonias de nosso tempo.
Proponho que o aparente medo da morte, tão propalado em
inúmeras narrativas – e tantas vezes repetido por Moça aos médicos do
pronto-socorro em suas crises de pânico – é na verdade medo do viver.
Daquilo que na vida comporta o sofrer do coletivo potencial.
Há uma “agonia esquizo”, difusa, sem lugar e intensa, que emerge da
tensão entre viver em um mundo de imagens e representações, sedutoras
em sua promessa implícita de eternidade feliz ou pelo menos estável e
habitual; e experimentar o dissolver das mesmas na multiplicidade
inumana do devir, do “morre-se”.
Para esclarecer o que entendo por experiência cito algumas palavras
de Rilke, comentadas por Blanchot – tendo o que chama de versos como o
resultado precário e transitivo do processo de individuação – escreve: “ ‘os
versos não são sentimentos, são experiências. Para escrever um único
verso, é preciso ter visto muitas cidades, muitos homens e coisas...’ Rilke
não quer dizer, entretanto, que o verso seria a expressão de uma
personalidade rica, capaz de viver e de ter vivido. As lembranças são
necessárias, mas para serem esquecidas, para que nesse esquecimento, no
silêncio de uma profunda metamorfose, nasça finalmente uma palavra, a
primeira palavra de um verso” (Blanchot, 1987, p. 83).
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2.4.5. Afetos
...quando tenho uma sensação, todo o campo da
consciência com os seus conteúdos se impregna da
qualidade subjetiva ou tonalidade afetiva da
sensação. A angústia transforma o mundo em
angustiado; a tristeza de uma melodia faz surgir
um mundo triste; uma determinada dor invade
toda a nossa consciência das coisas.
José Gil
Nosso corpo vive, pois, confrontado com a positividade do morre-se.
Neste limite está a pele. Pele da experiência que é resultado de um
potencial de forças em relação metaestável; aquilo que se estrutura e o que
se conserva em órbita virtual. Superfície é o que conserva as marcas do
que é, e da potência do que foi e virá. É invenção de espaço/tempo entre a
res extens e o u-topos intensivo.
O ser enquanto eterna resolução potencial tem no que lhe afeta e na
sensação que lhe surge, o centro de seu ser-pele no mundo ambiente.
Podemos dizer que afetos são a constante turbulência, a violência, a
dor, do ser... vindo a.
Retornemos à etologia, agora pelas mãos de Daniel Stern, para
esclarecer pontos fundamentais deste ser em devir no mundo dos afetos.
Observando bebês, e fazendo convergir dados da experiência
psicanalítica e da psicologia experimental, este autor nos oferece um
extenso material de trabalho, para pensarmos o corpo em processo de
subjetivação, em um mundo de afetos.
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Diversamente dos afetos enquanto emoções com causas morais,
categorias distintas de padrões expressivos inatos e sociais ou energia
psíquica sujeita a descarga, há, segundo Stern, os afetos de vitalidade.
“Como a dança para o adulto, o mundo social do bebê é
primariamente um mundo de afetos de vitalidade antes de ser um mundo
de atos formais” (Stern, 1992, p. 50, grifo meu).
Os afetos de vitalidade “têm a ver” com a dança, e esta com a
música, o ritmo. Esta é uma importante intuição de Stern. Em nosso
trajeto, a musicalidade do ser-mundo é produto de uma “síntese aberta”.
Um fio de metamorfose com múltiplas linhas de fuga.
A dança se dá propriamente no limite produtivo entre eu e o coletivo,
mundo próprio e mundo ambiente, expressões diferenciais de uma
partitura sempre renovada, em serpentear contínuo, que não remete à
dialética ou à autoria. Encarna a forma deste encontro que não se decide
entre percepção e ação. Ritma.
Esta introdução à conceituação dos afetos de vitalidade é-nos
fundamental. Pois não deixa escapar que sua realidade emerge do entre,
da virtualidade ou potência, e não da combinação de formas tidas como
existentes a priori. A melodia em contraponto não é a resposta de uma
totalidade à outra, mas o surgimento de singularidades que são expressões
diversas de um plano potencial que comunica diferindo.
Afetos de vitalidade são “qualidades de sensação existentes que não
se ajustam ao nosso léxico ou taxionomia de afetos existentes. Essas
qualidades indefiníveis são mais bem capturadas por termos dinâmicos,
cinéticos, tais como ‘surgindo’, ‘desaparecendo’, ‘passando rapidamente’,
‘explosivo’, ‘crescendo’, ‘decrescendo’, ‘explodindo’, ‘prolongado’ e assim
por diante” (idem, p. 47).
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78
Não se trata de afetos categóricos, como felicidade, tristeza, medo,
raiva, desgosto, surpresa e interesse
42 ,
ou suas combinações. Os quais,
apesar de uma expressão particular para cada um, em cada situação, se
prestam mais ao re-conhecimento, à rotulação.
Já os afetos de vitalidade buscam exprimir a processualidade que
subjaz às categorias. É a fome aumentando, a luz se despedindo, a árvore
verdejando, o medo transbordando, o prazer surgindo. Afetos grávidos de
potência, por serem a expressão única do instante desta fome, desta luz,
desta árvore, deste medo e deste prazer.
Terreno poético, por ser o da emergência do sentido 43 . Sentido que é
a paradoxal convivência da atualização expressiva (agenciamento coletivo
de enunciação) com a ação nômade de devir. Onde o que se transmite não
é a forma, mas o movimento impessoal de eternidade do formar-se –
através da singularidade radical do acontecimento.
“A dança abstrata e a música são exemplos, por excelência, da
expressividade dos afetos de vitalidade. A dança revela ao espectadorouvinte múltiplos afetos de vitalidade e suas variações, sem recorrer à
trama ou aos sinais de afeto categórico dos quais os afetos de vitalidade
podem ser derivados. O coreógrafo, na maior parte das vezes, está
tentando expressar uma maneira de sentir, não um conteúdo específico de
sentimento” (idem, p. 49, grifo meu).
Aqui, refiro-me ao repertório limitado e inato de expressões faciais humanas, no qual se
baseia a apropriação social como sinais compreensíveis ou de reconhecimento (Stern,
1992, pp. 48 e 59). Isto para estabelecer uma tensão com o plano intensivo e singular da
sensação que tem apresentação qualitativa ilimitada. Importa ainda fazer uma ressalva de
que nesta frase a tristeza não é utilizada para referir o conceito espinosano – já que
aparecem em várias passagens do trabalho. Tristeza, para o filósofo, denota a passagem
do ser para um estado de menor potência para afetar e ser afetado, enquanto alegria,
sinaliza o oposto.
43 E, poeticamente, Lyotard define o sentido como “uma flor inesperada, um suplemento
de tensão que brota num encontro, inapreensível para os hermeneutas e outros
semióticos. A flor se abre sem barulho, é um acento, um tom, um modo estranho da voz,
uma voz que não é minha, nem das coisas...” (Lyotard, 1996, p. 46).
42
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Assim, eu e Moça, também nos “encontramos” em um “mundo
subjetivo global da organização emergente”, o qual é “o domínio
fundamental da subjetividade humana. Ele opera fora da consciência como
a matriz experiencial a partir da qual os pensamentos, e formas
percebidas, e atos identificáveis e sentimentos verbalizados surgirão, mais
tarde. Finalmente, ele é o reservatório básico em que podemos mergulhar
para todas as experiências criativas” (idem, p. 58).
Antes de podermos falar do medo, da morte, do delírio, somos
lançados num comunicar que nos in-forma sobre como se sente aquele
medo, como se vive aquela morte, como se produz aquele delírio. E, sem
nos misturarmos, nos encontramos fora de nós mesmos, no não-lugar
poético do devir.
É revelador quando, logo às primeiras páginas, Stern coloca que: “eu
estou sugerindo que o bebê pode experienciar o processo da organização
emergente assim como o resultado, e é essa experiência de organização
emergente que eu chamo de senso emergente de eu 44 . É a experiência de
um processo, assim como de um produto” (idem, p. 40).
Este senso de eu é um – o primeiro – entre outros mais organizados.
Mas não devemos nos apressar em dar um valor comparativo a cada um.
Não há uma hierarquia entre eles, e nem um processo de desenvolvimento
progressivo. A palavra senso foi cunhada justamente no sentido de mudar
o foco, das tarefas do desenvolvimento, para o estabelecimento de padrões
de organização (idem, p. 168).
Note-se que Stern utiliza a expressão em inglês “sense of self”. Senso é uma palavra
com muitas acepções, mas entendo que o autor procura deslocar, com esta palavra, o
enfoque do sujeito para processos de subjetivação. Assim, senso estaria alinhado à
singularidade dos planos de sentido que se exprimem em um acontecimento impessoal.
Vejo, acompanhando a concepção de Safra (1999, p. 135), o self não como “organização
mental, ou como uma representação de si mesmo, mas como o indivíduo organiza-se no
tempo, no espaço, no gesto, a partir da corporeidade”.
44
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80
Mais do que um aperfeiçoamento, vive-se uma processualidade de
subjetivação, que envolve palavras, afetos categóricos ou de vitalidade, uns
“chamando” os outros, formando mosaicos em movimento, através das
idades. Isto indica que mesmo após o surgimento do recurso às palavras,
ou do estabelecimento da diferença eu/outro, os afetos de vitalidade estão
sempre sendo experimentados. E estes encarnam o como do sentir, porque
é a própria emergência do novo enquanto marca “secretada do entre”.
Eu e Moça “sonhamos” um sonho maior que nós. E o que importava
não era propriamente seu conteúdo, mas a ação mesma de sonhar. Ritmar
o resolver de uma problemática que habitava um mundo para além de
nossas re-conhecidas subjetividades. Não se trata de “folie-a-deux”, que
seria uma unidade imaginária.
Os paradoxos reinam por entre as palavras. Nomes que deixam
escorrer, por entre os dedos, o que lhes deu vida. Os afetos de vitalidade
surgem em um movimento que é presença, mas invoca o desaparecimento,
não está em mim nem fora, é real, mas não capturável em formas, é
memória que surge, inédita.
Importante
notar
que
não
se
trata
de
uma
abstração
ou
representação, mas que no centro da realidade destes afetos, o paradoxo
vem instalar-se.
Eles sofrem a ação do que se chama “percepção amodal”. Ou seja,
um afeto percebido por uma modalidade sensorial, é “traduzido” para as
outras automaticamente (idem, p. 45). Por exemplo, o bebê reconhece
visualmente uma chupeta com a qual só teve contato tátil. Ou, reconhece
a complexidade interessante de afetos de vitalidade que podemos dizer ser
sua mãe, por perceber imediatamente (e não necessariamente por
repetição), que a modulação da intensidade dos seus gestos são similares
aos da sua voz.
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Para nós, mesmo os órgãos sensoriais são a expressão de harmonias
do mundo ambiente. E os afetos de vitalidade, apreendidos por estes,
possuem uma realidade que lhes é contemporânea, interferindo na própria
maneira como se dá forma sensível às experiências efetivas que a
transcendem. Não se pode, portanto, neste plano de subjetivação, localizar
o afeto como apenas no limite do contato do som com o tímpano, ou da
pele com o objeto. Há, sim, uma “topologia louca”, na qual os afetos vão
surgindo ao mesmo tempo em muitos locais, como que animados por uma
velocidade infinita, dando origem a um tempo/espaço singular 45 .
Esta “utopia” permite a Stern fazer a afirmação de que “cognições,
ações e percepções, como tal, não existem” (idem, p. 58). Isto, porque todos
são experimentados diretamente em um complexo indiscernível de
intensidades, padrões temporais, tons hedônicos.
A bela passagem de um livro de Stern – Diário de um bebê – nos dá a
dimensão concreta desta ontologia intensiva dos afetos. O autor descreve,
poeticamente, a experiência de um bebê de aproximadamente seis
semanas de vida, olhando um reflexo de luz contra a parede branca:
“Um espaço brilha, ali,
Um imã gentil atrai para capturá-lo.
O espaço está tornando-se mais quente e tomando vida.
Dentro dele, forças começam a girar uma em torno da outra em uma
lenta dança.
A dança aproxima-se mais e mais.
O que poderíamos aproximar, com proveito para a clínica, da noção de atmosfera –
elaborada pelo filósofo José Gil – como uma porta para intuir a “memória do não vivido”.
Em suas palavras, atmosfera “é um certo regime de forças, um campo de tensões que
emerge da paisagem e cria certos desenhos, ou cartografias subjetivas. Uma atmosfera é
aquele não sei quê que dá qualidade aos sentidos” (Gil, 1996, pp. 50-51).
45
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
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Tudo corre ao seu encontro.
Ela continua vindo. Mais jamais chega.
A excitação se desvanece” (Stern, 1991, p. 25).
Desta forma Stern procura aproximar o leitor da complexidade da
vida dos afetos emergentes. O que é interno e externo não está bem
determinado, tendo um limite fluido e movente; a duração não se dá como
seqüências fotográficas, mas como produção singular de “sentimentos-emmovimento”; os momentos são preenchidos destes sentimentos e de
percepções, os quais modificam-se juntos (idem, p. 24). 46 Há ainda – nesta
situação,
mas
que
pode
ser
estendida
a
outras
formas
de
percepção/afetação – uma tensão entre o foco de visão fixo e o de atenção
que começa a desviar-se, o que faz com que o reflexo de luz comece a
“ganhar vida”, a “dançar”, mudando de cor e de forma. Assim, o bebê
“entra em um relacionamento dinâmico com o reflexo de sol, cada um
agindo sobre o outro. (...) Não existem objetos ‘mortos’, inanimados, ali.
Existem apenas diferentes forças em jogo” (idem, p. 28). 47
Daqui podemos fazer uma ponte para a intrigante idéia de um excelente texto de Gil:
“as pequenas percepções supõem uma zona de percepções de movimentos ínfimos e de
forças poderosas. A percepção dos movimentos visíveis do corpo desencadeia outras
percepções, de outro gênero: ‘percepções’ de movimentos virtuais” (Gil, 2002, p. 143).
47 Esta passagem me foi destacada pelo interessante trabalho de Reis acerca do autoerotismo, tido como “virtualidade problemática que se atualiza em diversos regimes de
eroticidade sem jamais ser preenchido por eles” (2003).
46
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Imagem 6 – De formato foetu líber singularis - Adriaan Van den Spiegel (1631)
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Terceira cartografia clínica
Moça e a notícia que vem das sombras
O
mundo
no
qual
vivemos
nos
surpreende
em
situações
radicalmente novas e extremamente complexas. Uma delas é a realização
da ecocardiografia fetal, o exame ultra-sonográfico do coração do feto.
Perspectiva recente de proporcionar uma “visão” do coração fetal.
Procedida por um médico altamente especializado; muito distanciado do
que foi a maneira consagrada da atividade profissional de “estar ao lado”
do paciente. Ele está, certamente, ao lado. Mas o conjunto de planos de
sentido que dá forma à cena mudou muito, em pouco tempo, como se pode
imaginar.
Contarei uma história vivida neste complexo espaço-tempo. Sem a
pretensão, como foi dito, de uma improvável neutralidade científica. Busco
assim envolver também o leitor, numa experiência que tem se tornado
cada vez mais freqüente. Nem boa, nem má, muito sofrida, com
freqüência. O que pode permitir uma forma de apropriação singular, e não
só um entendimento, aceitação ou recusa.
Neste novo ensaio, vamos entrar em um mundo tecnico-científico.
Mas também composto de mundos ambientes e afetos de vitalidade. De
fluxos esquizo e processos de individuação. De agonias impensáveis e
terrores sem nome. De ritmos fetais.
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Moça negra, alta, bonita. Logo às primeiras palavras, percebe-se que
é uma pessoa inteligente e alegre. Não esconde, no entanto, a apreensão
natural de quem se encontra em um hospital, para fazer exames. Neste
caso, exame de seu bebê 48 , ainda em gestação.
O local era destinado a pesquisar problemas cardíacos fetais. Assim,
comportava equipamentos de alta tecnologia e profissionais especializados.
Estamos no setor de ecocardiografia.
A imaginação do leitor talvez o conduza a um ambiente sofisticado,
tranqüilo, confortável, e quem sabe, até mesmo acolhedor. Se assim foi
concebida a cena, o foi apenas com o auxílio de uma benfazeja e protetora
traição do desejo, que manipula os sentidos.
Estamos, eu e a paciente, em um hospital universitário. Ali, em
pequenos espaços, com poucos requintes estéticos, algumas minguadas
plantas tentavam quebrar a atmosfera densa e fria.
Em um hospital universitário vive-se uma vida muito singular, onde
transborda trabalho. Pacientes surgem aos borbotões, vindos de todas as
partes do país, e mesmo de outros países. Sotaques diversos tentam dar
contorno a queixas por vezes incompreensíveis, por se apresentarem em
uma língua extremamente regional. A demanda pelo saber médico além de
chegar em quantidade elevada carrega também uma intensidade extrema.
Para a refeição, para o estudo, para o lazer, o tempo dos
profissionais falta. E os pacientes gritam, não só com palavras, mas com
todo o seu ser, pela certeza de um diagnóstico, de um tratamento e da
Utilizo a palavra mais popular, bebê, no lugar da que seria cientificamente mais
apropriada, a saber: feto. Faço esta opção para enfatizar o aspecto psicológico complexo
que se apresenta como mãe-bebê-em-processo-de-gestação, e para me afastar da
concepção mais científica do ser. A palavra feto será utilizada quando o contexto for
predominantemente científico.
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cura daquilo que os consome em sofrimento. Parece óbvio, mas as pessoas
só vão ao hospital porque estão sofrendo, e com esta atitude deixam
implícito que será ali que o alívio se apresentará. Mesmo que este anseio
visceral não esteja, a todo o momento, na mente da equipe de
atendimento, a tensão se revela em cada olhar, gesto ou solicitação, por
menor que seja.
É nesta micro-comunidade, de alta complexidade, que se dá o
encontro.
Em instantes põe-se a funcionar o maquinismo tecnológico – que em
apenas um de seus aspectos tenta dar conta da tensão revelada acima. A
moça deitada, barriga para cima, expondo para um desconhecido, a parte
do seu corpo que encerra o seu maior mistério. Mistério da criação, do ser
si própria e ser outra, de ser entranha e ex(es)tranho.
Eu, sentado ao seu lado, era o pólo da dupla (ou do trio) destinado a
manejar o instrumento do progresso da medicina. Meus olhos treinados
não se opunham à captura das imagens que trazem as profundezas do
corpo à superfície. Não se poderia dizer que esta penetração consentida
fosse fruto de uma relação de amor. O interesse de ambos foi colhido pela
curiosidade científica que não se detém em intimidades, e põe a descoberto
o que antes era privado. Quando a atenção da paciente desviava-se da tela
para mim, era na intenção desesperada de interpretar, na minha
fisionomia, algo que pudesse ser bom ou ruim. As palavras nervosas
claramente buscam dissimular – sem conseguir – a preocupação acerca do
que o meu conhecimento poderia depreender daquele estranho jogo de luz
e sombra.
Este “clima” traz, em seu bojo, a lembrança de que o ultra-som
aplicado à medicina foi uma técnica que surgiu a partir da situação de
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guerra 49 . Os tripulantes dos submarinos necessitavam "ver" os relevos do
fundo do mar e os possíveis obstáculos ao seu progresso. Mais ainda, era
preciso ante-ver. Antecipar a possibilidade de colisões e também a
identificação de possíveis inimigos a atacar.
Provavelmente a similitude das duas situações, tão distanciadas no
tempo, não deva ser considerada mero acaso. Em ambas, a angústia
apreensiva domina o ambiente escuro. A vontade de saber se tornou
necessidade. Antecipar o acontecimento sinistro atacando o objeto
ameaçador. Em nossa história, o acontecimento só se realiza plenamente
com o nascimento, e o objeto a ser atacado com a propedêutica médica é o
bebê doente.
O costume me faz escorregar em armadilhas do pensamento. O bebê
em questão é potencialmente doente. A gestante nada sente, o bebê se
movimenta, e é parte ativa na comunicação com ela. Ambos já constroem
uma história de sensações, fabulações e afetos.
Mas, neste caso específico, a imagem que emerge na tela, apresenta
diferenças quanto ao que se poderia esperar de um coração normal. A
necessidade de concentração faz com que os silêncios sejam maiores.
A atmosfera ganha densidade. Eu, médico, vou sendo confrontado,
cada vez mais, com os medos que habitam a sala, e antes eram sentidos
como mais distantes. O acaso de um desenvolvimento embrionário
anormal é a figura concretizada do descontrole, que se procura afastar a
todo o momento.
Doença, sofrimento, morte. São perspectivas do viver que não são
propriedade de um indivíduo ou de outro, afetando também a mim,
enquanto o exame prosseguia. Assim, a necessidade de se assegurar sobre
Não só de guerra, mas também de tragédia. O desenvolvimento do ecobatímetro ocorreu
fundamentalmente para evitar um outro acidente como o do transatlântico Titanic.
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o que está se descortinando na tela. A perspectiva de prognóstico. A forma
de construir uma fala possível. Tudo isso faz com que o encontro seja
visitado por forças que há pouco eram virtualidades improváveis.
“O senhor está vendo algum problema aí, doutor?”
“Ainda há algumas partes para ver. Mas se houver algum problema,
eu lhe falarei”.
Angústia da responsabilidade de pensar sobre uma série de coisas,
antes de enfrentar a dolorosa situação de compartilhar uma notícia que
está no limite do pensável.
Como conceber uma anormalidade do coração fetal, sem os anos de
aprendizagem médica? Como explicar uma malformação específica de um
órgão, sendo que nem mesmo a criança pode ser vista, não está em seus
braços?
Enquanto os pais se esforçam para constituir um lugar para este
“ser em potência”, vendo as fotos dos familiares para tentar imaginar um
rosto, enfrentando a complexidade da escolha de um nome, ou preparando
um quarto, de súbito, passa-se a pensar em aborto, possibilidades de
tratamento, esforço para conceber uma doença dentro do corpo que está
dentro de outro corpo.
O momento chegou, de falar sobre o meu veredicto.
“Sim. Seu bebê tem um problema no coração”.
Um misto de terror e alívio marca o ar daquela sala. Está lançado
um enigma, impossível de ser resolvido. Ao mesmo tempo, encontra-se um
caminho para a já insuportável espera, pesada e lenta, que se seguia.
Esta ponta de alívio talvez seja o motivo da necessidade, tanto de
médicos quanto de pacientes, de produzir tantos nomes para o sofrer. No
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entanto, creio que esta é uma forma de aportar no que aparenta ser um
porto seguro, enquanto tudo à volta desaba.
Estranhamente, esta gestante não era uma gestante “normal”.
Ela não demonstrou as angústias que se espera nestas horas.
Mantinha uma tranqüilidade inabalável, aceitando o cuidado e as
explicações que eu considerava importantes, mas sem esboçar qualquer
tensão.
Não faltava aos encontros quinzenais. E foi se estabelecendo uma
característica
própria
aos
nossos
encontros,
os
quais
pensava
–
erradamente – que eram mais propriamente desencontros. Eu me
esforçava por encontrar um meio de prepará-la, para o que sabia, iria
acontecer. A morte de seu bebê assim que nascesse. Aguardava uma
“deixa” que permitisse uma aproximação do assunto, fazia desenhos do
coração. Mas o futuro parecia ser muito distante para ela, e assim seguia
vivenciando as transformações de seu corpo, sem recuar ante ao que se
queria dizer sobre seus interiores.
No dia do parto eu estava ao seu lado. Era a sua família, como viria
saber depois. Não havia mais ninguém para apoiá-la.
Como esperado, seu bebê morreu logo após o nascimento. Uma
menina.
Acreditava estar o meu trabalho como médico encerrado. Despedime, após uma breve conversa, e não acreditava que ainda iria encontrá-la
no futuro.
Termina aqui esta parte do relato. Mais à frente, no tratamento das
questões éticas, clínicas e políticas, ele será retomado.
Neste momento – após a “construção” de um corpo mergulhado em
um plano de imanência com vários níveis problemáticos – vamos encarar
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alguns desdobramentos desta cena contemporânea. Espero, com isso,
caracterizar um pouco da complexidade específica deste nosso tempo, que
guarda em si dores tão profundas e singulares.
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Imagem 7 – Ultra-som tridimensional de feto com cinco meses de gestação
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Capítulo 3
Fragmentos críticos de corpos atuais
A nova medicina “sem médico nem doente”,
que resgata doentes potenciais e sujeitos à risco,
que de modo algum demonstra um processo em
direção à individuação, como se diz, mas substitui
o corpo individual ou numérico pela cifra de
matéria “dividual” a ser controlada.
Gilles Deleuze
3.1. Imanência
As máquinas tecnológicas de informação e
de comunicação operam no núcleo da subjetividade
humana, não apenas no seio das suas memórias,
de sua inteligência, mas também de sua
sensibilidade, dos seus afetos, dos seus
fantasmas inconscientes,
Felix Guattari
Na perspectiva teórica que adotei, o próprio objeto técnico já é o
resultado do avanço – encontro e desencontro de planos de sentido – do
acontecer. Ele também evolve no mundo ambiente, tomando a forma e
desenvolvendo funções, a partir da musicalidade em contraponto de seu
tempo.
Por isto é que ocorre um comunicar entre o ecocardiógrafo,o médico,
o paciente, a arquitetura hospitalar... Obviamente, o comunicar de que
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falo, refere-se à transformação que os vários campos problemáticos
promovem, por ressonância interna.
Este objeto “nasce” para o uso em um momento histórico específico,
de tragédia, medo e guerra. Tem rodas, para deslocar-se facilmente por
entre espaços nosocomiais, mas não por jardins gregos, por exemplo. Tem
um olho que nunca pisca, ao contrário, está sempre alerta para “enxergar”
os interiores, produzi-los de certa maneira. Tem fibras óticas que
prolongam os nervos, e teclas que imantam os dedos.
O ecocardiógrafo, visto desta maneira, não é uma invenção que vem
do abstrato, como uma emanação divina, ou o resultado da iluminação de
um cientista especial. Faz parte de um ciclo de função, com suas próprias
marcas de ação e signos de percepção. Está “vivo”, no sentido de que
convida para um encontro específico, e muda com seu meio, respeitando a
potência da virtualidade em questão.
Um dos fluxos ou séries que destaco é o da vontade de ver. Já
trilhamos o caminho por entre a anatomia da Vesálio, a patologia de
Bichat, a filosofia de Foucault, até chegar a este médico, que busca na
visão dos interiores, uma das maiores verdades sobre o ser e seu
sofrimento. Na verdade, para garantir coerência com o pensamento que
vem sendo desenvolvido neste trabalho, afirmo que esta forma tomada pelo
evolver histórico engloba o campo médico, mas enquanto uma de suas
expressões. Os pacientes, cientistas, artistas, todos contribuem e são
colhidos, em alguma medida, nesta trajetória.
Seria uma ilusão imaginar que o paciente apenas se submete ao
exame por pedido do médico. Ele – o paciente – está profundamente
engajado na necessidade (muitas vezes persecutória e sentida como vital) –
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de vasculhar o abismo de seus interiores 50 . O que dá consistência às
histórias contemporâneas das pessoas que trocam de médico porque este
não pediu exames, ou das gestantes que se submetem a um número
enorme de ultra-sons gestacionais, numa ansiedade crescente por “ver o
bebê” 51 . Atitudes que traem, nas entrelinhas, a profunda transformação da
relação entre as complexidades que nos acostumamos a chamar de médico
e paciente. Pois a produção de códigos e imagens que buscam traduzir o
sombrio do corpo vai passando a ocupar mais e mais a atenção da dupla
(antes, durante e depois do encontro), a qual vai ficando “desatenta” ao
plano mais impalpável, qualitativo e intensivo do tempo em que estão
juntos. É verdadeiramente um mundo ambiente, com suas melodias em
choque e ressonância, individuando os sujeitos e objetos, compondo
harmonias diversas e moventes.
Outra linha que emerge do plano de imanência é o do acúmulo de
saber, com a conseqüente especialização e fragmentação, já referida –
enquanto ponto de convergência e passagem – quando comentei o
enciclopedismo.
Este particular objeto técnico, disposto na sala, é resultado de um
acúmulo fantástico de saber. O que exige, para a sua manipulação e
manutenção, uma série de profissionais especializados. São engenheiros
de software e outros de hardware. São especialistas em usar e programar
todos os recursos contidos no aparelho. São médicos, já especializados em
cardiologia, ainda mais especializados em ecocardiografia. E dentro desta,
em subgrupos como: ecocardiografia de adultos, de crianças, fetal,
trasesofágica, com estresse farmacológico, com contraste. Aqui também se
A partir de 1945 “o paciente é levado a olhar para si em escala médica, é obrigado a se
submeter a uma autópsia (no sentido literal da palavra): olhar para si com seus próprios
olhos. Ao se auto-visualizar, ele renuncia a se sentir” (Illich, 1999).
51 “À impossibilidade de ver sucedeu a impossibilidade de não ver, de não prever” (Virilio,
2000, p. 95).
50
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
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estabelece ressonância e in-formação com tudo que está ao redor,
inclusive o corpo e o pensar do médico e paciente. O profissional acumula
um conhecimento muito grande, que se aplica a uma parte pequena do
corpo. É confrontado – paradoxalmente – com o não saber, pois a
produção de dados e estatísticas é exponencial.
O esquartejamento é vivido no médico e no paciente, que se pensam
em partes. Se o paciente perguntar – como efetivamente o faz – se o
pulmão está bom, ou se as coronárias estão entupidas, receberá a resposta
de que não é possível saber com este exame. Existe, então, um assombro
de “como a medicina está avançada” (e é verdade!), acompanhado de uma
incompreensão quanto à incapacidade de tanta tecnologia captar apenas
uma perspectiva de um órgão. E isto para não falar no verdadeiro
desencontro que a pergunta revela: “pelo que está vendo aí doutor, ainda
tenho mais um tempo de vida?” Na verdade, ali se pratica uma estranha
medicina, que visa as estruturas do corpo morto, ou a função dos modelos
experimentais. Não tem quase nada a ver com a vida, e tem. O que fica de
fora é o “experimentar o viver/morrer”. O que está implicado é o acúmulo,
ou não, de desvios do normal, sinais patológicos, “partículas inertes de
morte” em vida. Há a produção, a cada novo exame, de objetos que
transformam o sentido do encontro e do viver. Estes objetos com facilidade
entram em um regime de autonomia e certeza metonímica (a parte diz da
complexidade do todo), tornando-se clichês que abarrotam os encontros e
asfixiam o imponderável do instante.
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3.2. Invenção e captura
Com a tecno-ciência no seu estado
contemporâneo, é uma potência para “pôr em
série”, uma capacidade de síntese que está em
curso no planeta Terra e de que a espécie humana
é mais seu veículo do que seu beneficiário.
Jean François Lyotard
O aparelho do qual tratamos é a expressão dos encontros entre a
informática, a física das ondas sonoras e a medicina, entre outros. Da
aproximação de saberes diversos, vê-se a constituição de um diagrama de
forças que tem grande mobilidade, e se espraia de forma molecular. Os
conhecimentos se aprofundam, mas guardam a condição de choque,
ressonância, mutação por contato e afetação. Neste sentido, parece
lembrar a capacidade dos intelectuais dos séculos XV e XVI, de
transitarem por muitos territórios do saber, como física, astronomia, artes,
medicina. No entanto, hoje, são os campos que se encontram, quase que à
revelia das pessoas. Ninguém sabe muito, e cada um contribui apenas com
uma gota, para este mar de objetos, de potencial e de invenção.
Isto resulta em um deslocamento fundamental de apresentação da
tecnologia. Antigamente, havia uma interdependência entre objeto e
homem, que os ligava visceralmente. O objeto como que escolhia o
profissional, no contato com a matéria. O formão se deixava ou não
manejar, e a madeira denunciava isto. O paciente sentia em seu ser – qual
madeira – a experiência e a capacidade de um profissional médico
específico. Isto, certamente ocorre hoje, mas quanto à tecnologia médica,
este envolvimento entre médico e paciente, entre médico e objeto, muda
bastante. A complexidade do aparelho faz com que ele “já venha pronto” (a
programação – contribuição cibernética, de um “ser que já vem pensado”),
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
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exigindo sempre o “mesmo médico” para manejá-lo. Este profissional
contribui muito pouco, ou nada, para a forma, ação e progresso daquele.
Talvez apenas na escolha do modelo a comprar, e manuseio do software.
Percebemos que são “escolhas” que respeitam o campo do possível, e não
do potencial 52 . Estamos, paradoxalmente, em um mundo intensamente
inventivo, mas no qual nossa contribuição parece ser praticamente nula.
Isto nos leva a pensar que vamos deslizando – sutil e firmemente – para
uma situação na qual somos um fragmento de um grande plano de
invenção, e temos pouca condição de ter consciência e resistir às
mensagens e imagens clichês que nos con-formam 53 . De resistir, no
sentido de abrir espaços de vazio, vacúolos de significação.
É patente, então, que não é só a máquina que é fruto do jogo de
forças, mas também o homem, com suas formas, habilidades, gestos e
pensamentos. Sua própria subjetividade se forma pelo encontro, iteração 54
de códigos, discursos, e do entre planos de sentido ao qual se expõe.
Passemos a mais algumas “conseqüências imanentes” deste homem.
Ele se expõe a um oceano de mensagens e planos de sentido. Afetos
categóricos e de vitalidade, impressões fugidias ou totalizadas. Sensações
complexas ou simples e lineares. No entanto tende a concentrar-se em um
foco. No exemplo aqui trabalhado, o coração fetal.
Existe uma explosão de campos de virtualidade, de incorporais
tensionando para a expressão. Mas, ao mesmo tempo, uma exigência de
restrição, negação ou recusa destes, para a produção de uma rota única
Lembremos que possível é o leque de ações que se pode projetar no futuro, tendo em
vista os acontecimentos passados. Já potencial é o poder de diferir radicalmente.
53 Rolnik (2005) detalha, com clareza, o processo de “hiperativação do exercício empírico”
concomitante à “anestesia do exercício intensivo do sensível”, ao longo do século XX. Isto,
a partir da diferenciação entre percepção e sensação. A primeira lida com aspectos
formais obtidos pelos sentidos, já a segunda, resulta da presença viva do outro, não
podendo ser representada, mas apenas expressa através de um processo de invenção.
54 Palavra muito utilizada por Simondon, com o significado de repetição.
52
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(ou bem concentrada) de conhecimento. Todos os personagens sentem a
profusão potencial, mas se dirigem para um encontro com foco de atenção
muito específico. Ali, na sala de ecocardiografia, terá lugar apenas o “dar à
luz” de formas do interior do coração fetal.
Isto faz parte de um mundo ambiente que “naturalmente” vai
delimitando a doença em um órgão. E mais, em um órgão independente
dos afetos de vitalidade presentes no momento. E mais, independente da
subjetividade
individuada
e
característica
do
indivíduo.
E
mais,
independente dos outros órgãos do corpo. E mais, independente da vida
deste órgão (pois, como trabalhamos, o modelo de doença é a alteração do
corpo morto ou experimental).
Tudo isto, e provavelmente muito mais, faz com que o encontro
possa ser rápido. O descarte das “nuvens de virtualidade” não só permite,
como exige, uma aceleração. Há uma “adicção acontecimental”, ou seja,
uma necessidade compulsiva de se expor à produção de eventos, numa
tentativa de dar expressão aos incorporais “seqüestrados”. A cada
produção de conhecimento, a cada formação de superfície (aqui, de dados
sobre o feto) uma nuvem de potência se forma (ter problemas, variações
anatômicas, regiões não “vistas” e portanto exigindo novos exames, ...), dáse, então, a procissão adictiva por profissionais e exames os mais diversos,
conversas, técnicas de relaxamento, manuais de auto-ajuda.
A focalização se relaciona com a equivalência. Uma miríade de
corações fetais passa pelos olhos treinados. E mais treinados estarão,
quanto mais corações passarem. O que leva a um aprendizado muito
específico, e uma estranha ignorância quanto a uma série de outras
coisas. Estranha, pois é comum ver médicos (mas não só) com uma
carreira que exigiu uma vida de estudos (mestrado, doutorado, pós-
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
99
doutorado), desconhecendo coisas muito simples, fora de seu campo de
aprofundamento 55 .
Não considero “culpa” do médico. Para existir culpa, seria necessário
habitar um outro plano de reflexão, que não o escolhido nesta pesquisa.
Do “observatório” adotado, a idéia de culpa é vista como um resquício do
passado. Talvez confortador. Seria um conflito de disciplinas, de indivíduos
individuados, ou de instâncias do saber. Mas vem se desenvolvendo o
pensamento de que existe um maquinismo subterrâneo, um evolver
ecológico, que “obriga” as pessoas a acumular, focalizar, fragmentar e
alienar uma multidão do que chamamos coletivo 56 . O que não nos impede
de poder pensar uma ética. No entanto, não será uma ética que atenderá o
registro (cristão?) da culpa.
Outra conseqüência deste panorama é a importância conquistada
pela estatística. Esta foi passando, de uma forma de detectar linhas de
invenção, para uma forma de generalização de dados e aplicação de ações
que visam um “individuo da população” 57 . No “caso” aqui estudado, o
indivíduo é mais o coração fetal do que o feto mesmo, ou a gestante.
Como foi o caso de uma paciente que atendi. Antes de ser encaminhada para mim,
submeteu-se a um ultra-som obstétrico (tétrico), feito por um profissional com uma
competência extrema em seu “métier”. O mesmo conseguiu, o que é incomum,
diagnosticar particularidades de uma doença do coração fetal, sem ser cardiologista. A
partir daí informou, com correção, à paciente que o feto provavelmente não sobreviveria
até o final da gravidez, e marcou um novo exame, para controle, no mês seguinte.
Obviamente a mulher passou a viver um sofrimento impensável, sem condições sequer de
sair dali, sendo ajudada pela secretária a telefonar para o marido, que foi buscá-la.
Alguma sensibilidade para o adoecer, para o morrer, para o sofrer da passagem do tempo,
estava simplesmente excluída do campo de atenção daquele profissional. E não é questão
(ou talvez seja justamente esta) de pensarmos que ele não é psicólogo para saber destas
coisas.
56 Penso não em um voluntarismo ou em uma imposição de alguma força abstrata, mas
na processualidade de uma estratégia de subjetivação.
57 Foucault (2001, pp. 79-98) apresenta uma perspectiva do surgimento do conceito de
população junto com uma forma de medicina coletiva. Uma apropriação do corpo pela
sociedade capitalista, através de uma “estratégia bio-política”.
55
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
100
Seguindo uma indicação de Virilio, estaríamos vivendo um tempo
onde o modelo seria o do “inválido equipado” 58 .
O homem tem os sentidos acoplados a instrumentos que permitem a
ele ser um “super-homem”. Atravessando os corpos (vivos!) com seu olhar.
No entanto, cada vez mais incapaz para uma série de outras ações. E mais
dependente dos instrumentos, que não produziu por si próprio.
O que antes era distante ou impossível (ver o que se passa no
interior do corpo vivo) torna-se possível. Mas também o que era próximo
torna-se distante. Como o contato físico, o observar da história natural da
doença (às vezes nos perguntamos “o que é isto?”, tão distanciados
ideativamente que estamos, da importância que teve, em um passado não
tão distante), o conversar. Há uma mutação do “trajeto clínico” percorrido
nos dias do hoje, o qual se detém menos na “paisagem” afetiva e singular
do encontro. Os caminhos são curtos e céleres entre objetos que proliferam
na cena clínica.
Este é um território no qual a chamada “performance” tem um lugar
privilegiado. Já que tem um objetivo definido, uma finalidade, recolhida em
meio
à
selva
potencial.
Atender
muitas
“pessoas”,
com
precisão
diagnóstica. Território que se presta às certificações de qualidade e à
conformidade em produto de consumo de massa.
A expressão aparece quando ele diz: “Com o sedentário contemporâneo da grande
metrópole, a contração no lugar não atinge apenas a área de deslocamento e de atividade
produtora de outrora, ela atinge em primeiro lugar o corpo dessa pessoa válida
sobreequipada de próteses interativas cujo modelo se tornou o inválido equipado para
controlar o seu meio ambiente sem se deslocar fisicamente” (Virilio, 2000, p. 60).
“A poluição dromosférica é, pois, aquela que atinge a vivacidade do sujeito e a
mobilidade do objeto ao atrofiar o trajeto, a ponto de o tornar inútil. Invalidez maior,
resultante simultaneamente da perda do aparelho locomotor do passageiro, do
telespectador, e da terra firme, desse grande solo, terreno de aventura da identidade de
estar no mundo” (Virilio, 2000, p. 60). Aqui, o nosso “telespectador” é a paciente que
retira os pés do chão e se apassiva em horizontal oferenda.
58
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
101
A conformação da relação à finalidade é, em certa medida,
surpreendente.
proliferação
de
Já
que
estamos
encontros
e
dizendo
novos
que
objetos
e
há
igualmente
corpos
uma
(telemáticos,
informáticos, arquitetônicos, artísticos), o que torna a invenção, o
“momento fetal” de produção de espaço/tempo, especialmente intenso.
Descobrimos uma inércia soberana, uma escravidão involuntária. O que
revela um apassivamento a alguns “fluxos dominantes”, que justamente
tem sido o do encontro como objeto de consumo, a necessidade de rapidez,
a focalização, o finalismo, a matematização do corpo e do espaço.
Considero que este apassivamento cobra um preço, trazendo para perto
dos atores uma sensação estranha de desencontro, um vazio oceânico,
uma tristeza sem lugar. Sensações que fazem par com “doenças” muito
recentes em nossa história, como “fadiga crônica”, dores com pouco ou
nenhum substrato anatômico-fisiológico (como a fibromialgia), a distimia,
ou mesmo o pânico.
Uma última associação nesta etapa da jornada é a da tradução.
Observe-se que o paciente deve tirar os pés do chão, perder a sua base, e
entregar os “seus escuros”, para a tradução em códigos de som, de luz e
binários. Após isto, haverá outra transcrição que será a das palavras
médicas, que preencherão o laudo. O virtual, o que tratamos de
incorporais ou esquizo, escapa sempre à captura em formas, apesar de
tender para elas. O contato possível com este plano ocorre pela intuição,
exige um tempo próprio, e “espaços de vazio”. O encontro ecocardiográfico
se encaminha para um processo de leitura e tradução. E mais, os vários
“textos” se prestam utilitariamente à reprodução, o que não ocorre com os
encontros que enfocam mais a intuição.
Todas estas questões não pretendem ser um lançar caótico de
observações sobre um campo específico da medicina. Bem ao contrário,
buscam produzir visibilidade sobre o sem-número de fluxos em jogo e que
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
102
muitas vezes passam ao largo da consciência (e do inconsciente recalcado).
Cada encontro está mergulhado em uma problemática maior, que o
antecede e o excede. Isto para tentarmos escapar das soluções em bases
dialéticas, que freqüentemente negativam, ou mesmo demonizam, um ou
outro personagem. Além de desembocar em propostas simplistas, que
desconsideram a complexidade do que está em jogo; ou que lidam como se
todos os fatores fossem conscientes e manipuláveis, recusando a
importância de considerar atitudes clínicas que considerem as “zonas de
sombra”, aquilo que se desconhece, mas está lá.
Tudo isto e muito mais estava presente naquela pequena sala de
exames. Eu e Moça poderíamos não querer ou não poder perceber, mas
uma produtividade intensa estava ocorrendo. Bem além do fato de “ver o
coração do feto”. E isto ficará cada vez mais claro nos encontros
posteriores.
Faz-se necessário um esclarecimento. A moça “negra e alta” que nos
acompanha aqui é a mesma que viveu comigo aquela “situação
psicanalítica”. Sem saber que eu era psicanalista, seis meses após a morte
da filha, ela me procurou pedindo alguma ajuda, já que desde então vinha
tendo o que os médicos chamavam de crises de pânico. Creio que o motivo
da procura foi o fato de que nossos “encontros cardiológicos fetais”, foram
palco de um pequeno deslocamento, quanto aos encontros habituais deste
tipo. Este deslocamento foi a nossa forma de produzir um espaço/tempo
de resistência. O que será trabalhado mais à frente como uma atitude
clínica, ética e política, que leva em conta o plano de imanência que vem
sendo elaborado.
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
103
3.3. Controle, antecipação e risco
Uma espécie de anteneurose do que serei
quando já não for gela-me corpo e alma. Uma como
que lembrança de minha morte futura arrepia-me
de dentro. Numa névoa de intuição, sinto-me,
matéria morta, caído na chuva, gemido pelo vento.
E o frio que não sentirei morde o coração actual.
Fernando Pessoa
O ponto específico que quero abordar é – no limite do objetivo e do
subjetivo – o da produção de formas de afetar/perceber o momento fetal. A
exposição do corpo aos encontros com estas inúmeras produções “exige” a
produção
de
um
novo
corpo
com
seu
complexo
singular
de
tempo/espaço 59 .
Em um sentido mais amplo, cada momento histórico comporta
determinadas modulações ou estratégias de diagramas de força e de
distribuição de formas (figurativas, narrativas e mesmo físicas). “Sociedade
de controle” foi o nome dado por Deleuze (1992, p. 224), para determinar a
particularidade de uma “ecologia virtual/atual” de nosso tempo.
Para o autor, acompanhando o pensamento de Foucault, a sociedade
disciplinar – com seus espaços fechados – estaria dando lugar a uma nova
forma de temporalização e espacialização do vivido, num processo de
antecipação e molecularização, que denominou controle. “O controle é de
curto prazo e de rotação rápida, mas também contínuo e ilimitado, ao
passo que a disciplina era de longa duração, infinita e descontínua. O
Lyotard (2001, p. 261) ressalta a importância de se abordar esta perspectiva quando
propõe que “a primeira coisa a ser atingida, e que reclama, em nossa modernidade, ou
nossa pós-modernidade, talvez seja o espaço e o tempo”.
59
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
104
homem não é mais o homem confinado, mas o homem endividado”
(Deleuze, 1992, p. 224).
Antigamente havia o tempo da gravidez, do nascimento, de lidar com
a doença ou com a morte neonatal. Tempos relativamente longos,
descontínuos e bem marcados.
Hoje, no entanto – apesar de, logicamente, haver sobrevivências de
todas as formas de temporalização anteriores – sempre há algo a fazer.
Mais exames, técnicas experimentais, atitudes inéditas. Circuito acelerado
que “acolhe” aqueles que podem se endividar, comprando a geração de
imagens e códigos que procuram afastar riscos projetados no futuro 60 .
Rabinow esclarece bem como, na atualidade, os dados da presença
imediata vão cedendo lugar à necessidade de antecipação de riscos
impessoais projetados no futuro quando diz que “a prevenção moderna é
antes de tudo mapeamento de riscos. O risco não é o resultado de perigos
específicos colocados pela presença imediata de uma pessoa ou um grupo
de pessoas, mas sim a fusão de ‘fatores’ impessoais que tornam um risco
provável. Assim, a prevenção é a vigilância, não do indivíduo, mas sim de
prováveis ocorrências de doenças, anomalias, comportamentos desviantes
a
serem
minimizados,
e
de
comportamentos
saudáveis
a
serem
maximizados. Estamos aos poucos abandonando a antiga vigilância facea-face de indivíduos e grupos já conhecidos como perigosos ou doentes,
com finalidades disciplinares ou terapêuticas, e passando a projetar
fatores de risco que desconstroem e reconstroem o sujeito individual ou
grupal, ao antecipar possíveis loci de irrupções de perigos, através da
identificação de lugares estatisticamente localizáveis em relação a normas
e médias” (Rabinow, 1999, p. 145).
O que parece estabelecer um movimento paradoxal, no qual “quanto maior a oferta de
‘saúde’, mais as pessoas respondem que têm problemas, necessidades e doenças,
exigindo garantias contra os riscos” (Illich,1999).
60
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
105
Cria-se uma situação curiosa. Na tentativa de atualização de
potenciais, antecipando possíveis (como uma anomalia fetal ou um infarto)
produz-se idiossincraticamente uma dívida eterna com o virtual, obrigando
a uma tarefa de Sísifo, e uma aflição difusa, constante e imperiosa.
A cada “nascimento ultra-sônico” do feto, a cada garfada de carne,
somos confrontados com exércitos ameaçadores de possíveis, que nos
obrigam a atitudes re-inventadas, a cada nova informação, a cada novo
exame.
No afã de controlar o virtual, desenvolvem-se técnicas que realizam
este desejo tornado necessidade, as quais são ofertadas como produtos
para consumo (geral, tanto de médicos como pacientes). Nas palavras de
Pelbart (2000, p. 31), “o regime universal e omniinclusivo do mercado
globalizado, ao mesmo tempo em que tende a engolir toda exterioridade,
também secreta, no seu seio, contingentes crescentes de exterioridade
potencial”.
Talvez, o exemplo mais extremo do que estamos tratando possa ser o
de ter um bebê morto – ou que se sabe irá morrer – na barriga, e ter que
esperar dias ou meses para o aborto ou nascimento 61 . A diferença é que há
pouco tempo esta resolução natural ocorria na ignorância da morte fetal. O
medo se relacionava ao processo de sangramento e à “perda do bebê”. Hoje
ocorre uma convivência com a morte durante a gestação. E mesmo nas
gestações normais, a sombra da “morte em vida” vai se tornando difusa e
constante, em meio aos inúmeros “encontros” com o feto.
Como lidar com a morte apenas anunciada para o futuro? Como
lidar com a morte de um bebê que nunca esteve nos braços?
Esclareço que a conduta de muitos obstetras após um óbito fetal é de esperar a
resolução natural ou aborto espontâneo, o que pode demorar semanas. Existem
dificuldades técnicas de abortar um feto já grande, o que pode colocar em risco a vida da
gestante.
61
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
106
Não se trata de uma morte imaginária, projetada no futuro. Apesar
de podermos considerar que um esforço imaginário de elaboração de luto
precisará ser feito. Nestes casos, a morte está lá, concretamente, mas
dentro da virtualidade que deveria atualizar-se em criança, ao final da
gestação.
Esta última frase soa muito estranha. Isto pois, como o inconsciente
freudiano, a esfera virtual não “reconhece” a morte. É um campo de pura
produção, sendo a morte uma propriedade dos indivíduos. Mas então,
como pensar a morte no limite virtual/atual?
Ao antecipar o acontecimento do nascer, a conjunção de fluxos, que
deu origem ao encontro na sala de ecocardiografia, criou um indivíduo.
Este, destacado do engendrar que o mantinha em potencialidade 62 , pode
morrer.
Esclarecer a situação, não nos afasta da necessidade de ter que lidar
com a realidade que Moça teve que enfrentar, após inúmeros exames e
uma biópsia da placenta.
“Seu bebê tem uma alteração genética incompatível com a vida. Se
viver até o parto, morrerá logo em seguida.”
Em sua idade gestacional, o aborto não era mais aconselhável.
Então este era o enigma da Esfinge. Como experimentar a morte no limite
do virtual? Em potência para ela, a não ser, por um discurso que antecipa
um destino inexorável. O contemporâneo mergulha no virtual, e traz a
morte como recado.
Simondon (1995, p. 166), ao tratar da morte, segue um caminho semelhante,
afirmando que a colônia (que tem seus indivíduos sempre substituídos) nunca morre.
Mas, ao contrário, quando o indivíduo se separa da colônia, aí sim, estará sujeito a
morrer (sendo a própria condição de morrer que o define como indivíduo).
62
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Imagem 8 – O médico - Sir Samuel Luke Fildes (1891)
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Capítulo 4
Apontamentos para uma clínica “do” impensável
Atrás do pensamento não há palavras: é-se.
Clarice Lispector
4.1. Os proto-pensamentos
O pensamento deve lançar-se acima dos ‘fatos’
para interrogar-se, não apenas sobre suas causas
mecânicas, mas também sobre o que os faz serem
o que são, sobre os agenciamentos de enunciação
dos quais eles são os enunciados, sobre os
mundos de vida e de significação do magma dos
quais eles surgem.
Pierre Lévy
“Nascidos vivos, queriam viver.”
Com estas palavras, Pirandello (1978, p. 327) exprime o seu
assombro, quanto ao surgimento de seis personagens, para os quais não
se considerava autor.
Seis personagens à procura de um autor é o nome da peça, que
desliza em algum limite impreciso entre os personagens e o inadvertido
autor.
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Interessa-nos, justamente o que a peça traz como questão. Nas
palavras de Pirandello: “acaso existe um autor capaz de indicar ‘como’ e
‘por que’ uma personagem lhe nasceu na fantasia? O mistério da criação
artística é idêntico ao do nascimento natural. Uma mulher que ama
poderá desejar muito ser mãe, porém, o desejo apenas, embora profundo e
intenso, não é suficiente. Entretanto um dia ela se tornará mãe, sem
contudo ter-se apercebido do momento em que isso se deu. O mesmo
acontece com o artista: vivendo, ele reúne em si um sem-número de
germes de vida e nunca poderá afirmar ‘como’ e ‘por que’, num
determinado momento, um desses germes vitais penetrou a sua fantasia
para tornar-se, também ele, uma criatura viva...” (Pirandello, 1978, p. 326,
grifo meu).
Um sem-número de “germes de vida” estão sempre repondo o
potencial
de
in-formação
e
trans-formação
dos
mundos
próprios.
Tensionando os corpos que resistem a eles. Melhor, os corpos materiais
são a resultante expressiva daqueles, imateriais e impessoais.
Ainda aqui, continua a busca por uma forma de aproximação do
corpo-melodia, vindo-a-ser, pulsante, limite entre o potencial e o
estabelecido. E, neste sentido, é possível dizer que o autor é, na verdade,
um “autômato espiritual”, ou seja, agenciamento de “germes de toda sorte,
sensoriais, cinéticos, intensivos, afetivos, rítmicos, etc.” (Martin, 1993, p.
224). O “choque” da virtualidade com o estabelecido produz uma “dança”,
um ritornelo 63 . A potência deste último “nos leva ao coração do
Ritornelo é um termo de origem italiana que determina uma “forma de retorno ou volta,
notadamente musical, ligada à territorialidade e à desterritorialização, e produtora de
tempo” (Sasso & Villani, 2003, p. 304). “Trata-se de fazer retornar, em uma troca de
códigos e em uma mais-valia de passagem, em um ritmo como entre-dois que desorienta
todas as medidas, o universal-singular contra as particularidades da memória e as
generalidades do hábito. No ritornelo, há esta invenção de vibrações, de rotações, de
gravitações e turbilhonamentos, de danças e saltos que ‘atingem diretamente o espírito’ ”
(Martin, 1993, pp. 304-5).
63
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110
pensamento, em direção do que no pensamento não se deixa pensar, o
impensado do pensamento” (idem, p. 224).
Esse caminho parece importante para a compreensão da maneira
pela qual será feita a apropriação de uma intuição bioniana 64 . E esta, tem
função neste trabalho, pelos desdobramentos que seguirão.
Bion, inspirado na peça de Pirandello, conceitua os pensamentos
não-pensados, sem pensador ou proto-pensamentos (1991, pp. 114-6).
Estes dispensam enunciado e pensador (idem, p.116). “Ninguém
pensa o pensamento verdadeiro: este aguarda o advento do pensador que
se personifica através do pensar verdadeiro” (Bion, idem, 114).
Por verdadeiro, Bion não propõe nenhuma conotação moral. Mas o
evolver
da
“realidade
última”
–
um
tornar-se
não
acessível
pelo
saber/conhecer – por oposição à compulsão. Para ele, a não-verdade é
uma face da verdade. O seu oposto é o círculo vicioso inaugurado pela
compulsão (idem, p.108).
Proto-pensamento não é uma idéia, forma ou propriedade. Mas
aquilo que impele, age, pulsa, aquém e além do pensador, sendo-lhe
contemporâneo, sem esgotar-se nele. Não é – a meu ver – partícula ou
signo, mas a própria potência desejante, impessoal e inumana.
Estamos lidando com o que busca se repetir, se manter intacto e
inteiro, e o que difere, evolve.
Desta forma, Bion nos lança em um campo trágico, no qual a vida é
a própria violência, o sofrer, a exigência, do que chamou de proto-
64 Adjetivo para a teoria desenvolvida por Wilfred Ruprech Bion (1897-1979): Psicanalista
nascido na Índia, mudou-se para a Inglaterra aos oito anos, onde estudou medicina e
psicanálise.
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111
pensamentos 65 . A tragicidade deste sofrer trouxe para o léxico bioniano
expressões como “tumulto emocional” e “mudança catastrófica” 66 .
Progredimos um pouco, quando esclarecemos que o incorporal, os
proto-pensamentos, não têm uma relação pacífica com o instituído. É um
território de tormentas, intensivo.
Os proto-pensamentos é que se afirmam em nós. E nós nascemos
para carregar a ferida que nos supõe. Assim, Bion pode afirmar que os
pensadores são resultado de uma compulsão. De uma diminuição da
velocidade do que estou chamando de virtual. Ou uma repetição do
mesmo, uma manutenção do que emerge do pensar 67 que nos pensa.
Ocorre um deslocamento do que poderia se afigurar como uma
dialética pensamento/pensador (e não apenas uma inversão da proposta
cartesiana cogito ergo sum) para uma modulação da produção de
subjetividade a partir do instante do encontro. Apresenta-se, a cada
momento, um campo de estratégias do pensar, que exprime a resolução
parcial do perpétuo dissenso entre a forma pensador e a virtualidade de
um pensamento-em-devir.
É verdade que para existirmos, nós pensadores, faz-se necessário
um movimento de repetição, hábito ou compulsão. No entanto, o excessivo
apego à forma ou representação atual de si, produz o que poderíamos
Na maioria das vezes Bion utiliza unicamente a palavra pensamento para referir-se ao
pensamento sem pensador. Utilizo o termo proto-pensamento, por acreditar representar
melhor o viés do conceito que desejo abordar, ou seja, de singularidade potencial não
formal ou extensiva.
66 “... em contextos diferentes (na mente, nos grupos, na sociedade, na sessão
psicanalítica, etc.) sempre há uma conjunção constante de fatos específicos. Sempre que
esta conjunção estável enfrenta uma situação de mudança e de crescimento, a situação
se altera e se instala um clima de catástrofe. Esta mudança catastrófica abriga três
características, às quais Bion denomina: violência, invariância e subversão do sistema”
(Zimerman, 2001, p. 373).
67 “Pensar é justamente a força que, no homem, explora e expõe o virtual ‘até o fundo de
suas repetições’ ” (Orlandi, 2000, p. 58). Repetições que, em seu fundo, encontram a
diferença. Então, pensar é diferir.
65
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112
chamar de uma doença que atinge o instante da imanência imprevisível do
pensar, que é o choque do pensador com o impensável do pensamento.
Neste sentido Bion afirma: “o ímpeto do indivíduo que admite único e
indispensável seu contribuir para o pensamento diverge do clima
emocional em que a imanência do pensamento dispensando o pensador
para pensá-lo não lhe lisonjeia o narcisismo (...)” (Bion, 1991, p.116).
Da mesma forma que o autor é já um produto, determinadas
emoções também o são, como a inveja, o ciúme ou a possessividade. Pois
estes resultam do conflito entre pensadores que se julgam essenciais aos
pensamentos que lhes acorrem (idem, p.116).
Como sentir inveja ou ciúme, se não nos colocarmos na posição de
indivíduos, com propriedade sobre aquilo que advém do plano de
imanência?
Neste verdadeiro campo de batalha, os proto-pensamentos não têm
qualquer necessidade de um pensador para pensá-los. Já, o contrário, não
é possível. O que nos lança no paradoxo de que, para o pensador existir
enquanto tal, deve assimilar e apropriar-se dos proto-pensamentos. Ao
mesmo tempo em que não pode abrir mão de sofrer a ação dos mesmos
que não lhe permitem a autoria.
Para ser não compulsivo, o indivíduo deve poder ser aquilo que não
é, em si. Participar do “tornar-se” que advém da ação potencial do mundo
ambiente, do que lhe é estranho.
Pode ser antecipado, então, que o que vai ser tratado como doença,
vem instalar-se neste limite. Será a produção de estratégia do pensar, que
ocorre “entre” os pensadores e os proto-pensamentos.
Isto nos cabe, pois permite uma diferenciação capital entre o que
chamamos de esquizo e uma patologia qualquer. A doença, nessa
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113
perspectiva, será abordada a partir do choque/expressão entre o que
emerge como estabelecido e o que se conserva incorporal. Dos pensadores
– obrigados ao narcisismo de acreditarem seus os pensamentos – com o
que lhes escapa e constitui.
Conceber um impensado do pensamento conduz Bion a uma
interessante concepção de transferência, quando afirma que esta é “uma
experiência transitória (...) é um pensamento, um sentimento, ou idéia que
você tem, em seu caminho para outro lugar” (Bion, 1992, p. 82). Diz ainda,
que, “a relação com o analista é importante apenas como uma tarefa
transicional – seria útil caso a palavra ‘transferência’ fosse usada neste
sentido mais polivalente” (idem, p. 52).
É num perambular para além do que nos assujeita às préconcepções e pré-conceitos, que se abre a ação do impensável. Desta
forma, o encontro com o analista importa na medida que é passagem para
“outro lugar”. Um “lugar” por se formar, desconhecido, pois inédito, sem
ser a reprodução de identidades ou rememoração de fantasmas. É possível
ser fiel, assim, à forma como foi interpretado o perlaborar freudiano, como
passagem.
Encerro esta parte do desenvolvimento com mais uma citação, que
nos auxiliará a apontar percursos freudianos que suportam nosso
argumento. É uma outra forma de colocação de Bion quanto aos protopensamentos. Propõe que: “alguma palavra diferente de ‘recalcado’ ou
‘suprimido’ se faz necessária, para descrever os elementos mentais que
jamais foram conscientes – e isto também significa que jamais foram
inconscientes” (Bion, 1992, p. 130).
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114
4.2. Intuição – por uma “memória intensiva”
- pois não quereis sentir e seguir um fio com
mão covarde; e, onde podeis intuir, detestais
deduzir...
Friedrich Nietzsche
Falar de “elementos mentais” que jamais foram conscientes ou
inconscientes, faz-nos retomar a questão de Lyotard, de como lembrar algo
que não pôde ser esquecido, já que não foi inscrito (1997, p. 62).
Lyotard convoca esta questão, a partir da afirmação de que a
perlaboração (working through ou passagem) é uma técnica proposta por
Freud, com a intenção de “passar ao lado da síntese”. Uma “técnica sem
regra ou com regra negativa, desregulada”, para atingir não propriamente
as inscrições, mas o seu suporte.
Neste terreno movediço, trazemos à lembrança, uma das primeiras
teorias de “mecanismo psíquico” do jovem Freud. Escreve ao seu amigo
Fliess: “Como você sabe, estou trabalhando com a hipótese de que nosso
mecanismo psíquico tenha-se formado por um processo de estratificação: o
material presente em forma de traços da memória estaria sujeito, de
tempos em tempos, a um rearranjo segundo novas circunstâncias – a uma
retranscrição. Assim, o que há de essencialmente novo a respeito de minha
teoria é a tese de que a memória não se faz presente de uma só vez, mas se
desdobra em vários tempos; que ela é registrada em diferentes espécies de
indicações” (Freud, 1986, p.208).
Freud concebe, então, um processo de subjetivação que dobra e
desdobra signos, em uma polifonia de estratos e temporalidades.
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
115
Nesta mesma carta, refere que o primeiro traço de memória não
pertenceria nem ao inconsciente enquanto “lembranças conceituais” (com
conteúdo formal), nem ao consciente (que não conserva qualquer traço), e
o chama de signo (indicação) de percepção (idem, p. 209). Tomemos estes
primeiros traços não formais, como um esforço conceitual de Freud para
atingir o plano do suporte inscritível. Ou seja, a apreensão pática – não
propriamente consciente ou inconsciente – da atmosfera afetiva dos
encontros. Indicação de percepção seria a potência de experienciar o
próprio deslizar das percepções e dos registros para outra qualidade
intensiva.
Freud mesmo – em texto bem mais tardio – ao questionar a validade
em relacionar o prazer unicamente à diminuição das tensões, refere-se à
existência de algo não quantitativo (formal, mensurável ou extensivo) na
experiência afetiva. Escreve: “Parece que eles [o prazer e o desprazer]
dependem, não desse fator [aumento ou diminuição] quantitativo, mas de
alguma característica dele que só podemos descrever como qualitativa.”
[...] “Talvez seja o ritmo, a seqüência temporal de mudanças, elevações e
quedas na quantidade de estímulo. Não sabemos.” (Freud, 1980b, p. 200).
Já tendo tratado dos afetos, é possível alinhar a indicação de
percepção e os “rearranjos” dos traços de memória, com a emergência
intensiva dos afetos de vitalidade, e a modulação contínua da subjetivação
através dos “sensos de eu” (emergente, nuclear, subjetivo, verbal e talvez
uma infinidade de outros mais).
No caminho de apresentar uma memória intensiva, pática, que se
apresenta – inédita – nos encontros, lanço uma ponte entre os signos de
percepção e os “traços a-significantes”. Expressão usada por Deleuze ao
tratar da pintura de Francis Bacon: “... marcas livres involuntárias
riscando a tela, traços a-significantes desnudos de função ilustrativa ou
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
116
narrativa...” (1996, p. 11). Desta forma se quer dizer que no limite do
virtual, queda ou ascensão em atualidade, há um território que dá
qualidade ao acontecer, para além da medida sensorial, mas que escapa
também das redes significantes (pois sempre mantém seu estado
potencial).
Já a intuição será a ação de permitir um comunicar-se com esta
memória. A porosidade para deixar vibrar as repetições em um banhar-se
no virtual. Ir diferindo por passagem de sensação não sensorial. Ação de
atingir, sem cercear, a fugacidade de traços esquizo que deslizam pelo
abismo dos encontros.
Na obra de Bion (1991, p. 17), a intuição é tida como uma
experiência supra-sensível, que, de forma análoga ao olhar, apalpar ou
auscultar do médico, é o que permite ao analista experimentar realizações
como a angústia. Portanto não se pode saber ou compreender aquela
sensação, mas apenas intuí-la, experimentá-la, comunicar-se nela.
Assim, concebemos um “território” outro, que não é propriedade
(consciente ou inconsciente) do pensador, mas ao qual tem acesso pela
intuição. Região em perpétua precariedade, podendo ser, em parte,
atualizada em representações.
Intuição, então, é o contato que se estabelece, a cada instante, com
aquilo que não respeita a cronologia da consciência, e nem tampouco a do
processo
primário
(inconsciente);
com
a
apresentação
de
uma
multiplicidade singular que não significa, mas produz sensações.
Percebemos um impasse, eternamente resolvido e por resolver,
quanto à intuição. O de manter-se inexpressa, ou de tornar-se uma
representação. Como as representações são sempre restritivas, há também
um impulso de não produzi-las.
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
117
O pensar “libera” algo da intuição. E como esta última age sob um
regime de tensão/exigência, o processo do pensar alivia enquanto frustra
(Bion, 1991, pp.21-2).
De
qualquer
forma,
entramos
em
contato
com
os
proto-
pensamentos, não através do pensar, que os esgota em matéria onírica,
mas pela intuição.
Da maneira de lidar (estratégias do pensar) com a memória
intensiva, dependerá a compreensão – esta é minha aposta – das formas
do sofrer contemporâneo.
Retornemos àquela sala, na qual eu e Moça sofremos a violência da
memória intensiva.
Estávamos mergulhados em uma atmosfera – com seus afetos de
vitalidade e proto-pensamentos – que nos pensava. Algo da sensação
surgia como familiar. A uma continuidade rítmica – surgida em nossa
presença – musicada ao longo de muitos encontros, poderíamos chamar
confiança.
É
uma
marca,
cicatriz,
surgida
de
uma
regularidade
espontânea. No entanto, a sensação guardava em seu seio o estranho
pulsar de uma harmonia errante. Atmosfera caótica que nublava a
segurança territorial do hábito.
Então, sem planos, o coletivo incorporal que nos conduzia em uma
rede de estabilidade confortável, foi desertando do nosso mundo ambiente.
A catástrofe se anunciava com inércia imperiosa à intuição, sem que nos
fosse possível contê-la. Um pensar impessoal se avolumava, trazendo
consigo o perigo e a necessidade de sofrer um “para além”; de abrir mão
dos mundos próprios, dos roteiros afetivos costumeiros, das significações
restritivas e mudar com ele. Deixar passar o sentido em devir, abrindo
vazios de saber e liberar a intuição para a possível criação de um som,
uma imagem, uma palavra.
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
118
Aliás, a técnica psicanalítica, pelo viés que venho abordando, implica
o cultivo de espaços de abertura para o avanço da força potencial. Assim
considero a radicalidade da associação livre e da atenção flutuante na
práxis freudiana. Da pletora de clichês que povoam os encontros, abrem-se
vazios de saber, sejam eles desejos, reminiscências ou necessidade de
compreensão (Bion, 1991, p. 40-2). Isto pois estes últimos apóiam-se na
experiência sensorial, são saturados (fechados em uma significação
narrativa ou figurativa) e evocam sentimentos de prazer ou desprazer (com
conteúdo), não abrindo espaço para o experimentar do devir.
Abrir-se para a violência do acontecer – inédito e impessoal – mesmo
sendo expressão da técnica, não impede que o experimentar do encontro
clínico seja mortífero ou enlouquecedor. E foi este perigo com o qual nos
confrontamos.
Será que a confiança, o “ritmo de base” que nos musicava, “sabia” da
nossa condição de resistir à explosão da memória que nos pensava
cristalizados, defasados e mortos? Não é possível fazer esta afirmação. O
fato é que, da noite dos nossos seres em despedida, uma força, impossível
até então, surgiu.
Impossível até então, porque não se pode lembrar do que não foi
integrado no pensar que constitui o nosso mundo próprio e que surge
como apresentação desmedida, fazendo mover o próprio suporte de
inscrições, ou seja, a forma de perceber e sentir.
Lançar-se ao mar com garantias ínfimas. Prescindir da segurança de
um cais-clichê-de-si não é apenas uma opção clínica, mas uma
necessidade. Necessidade de experimentar a inumanidade da individuação
em um novo corpo, através da eternidade que há no instante de um doer,
angustiar, alegrar, desesperar, aliviar...
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
119
Pode ser extremamente penoso não poder esquecer algo, por não
poder ter sido experimentada a memória intensiva de um esgarçar infinito,
de um escoar (amniótico?) incessante. É preciso ensaiar exprimir essa
memória atmosférica, para poder liberar a intuição, muitas vezes
carregada de sensações terríveis.
4.3. Imaginação, subjetivação e devir
Não cabe, obviamente, perguntar se são trajetos
reais ou imaginários, concretos ou oníricos,
objetivos ou subjetivos (...) pois todo objeto, pessoa,
grupo, singularidade com a qual ela cruza [a
criança] já carrega consigo um meio em constante
germinação, já está rodeado de uma névoa de
virtualidade que o acompanha, já habita uma
espécie de inconsciência que o povoa, já pode ser a
ponta de um cristal de inconsciente.
Peter Pál Pelbart
Dos apontamentos que venho fazendo, importa ainda destacar a
positividade do subjetivar. Na medicina, esta perspectiva pôde ser pensada
com Canguilhem ao conceber a doença como errância normativa, para
além das categorias de normal e patológico (estas são fixações da
processualidade produtora de normas). Agora serão usados alguns
instantes na defesa desta perspectiva no terreno psicanalítico.
Sendo fiel ao desdobrar de nosso trabalho, consideramos a
subjetivação como um processo. A emergência de uma musicalidade do
ser, a partir do encontro com outras melodias. O que implica uma
condição de abertura e mutação na afetação por novos ritmos.
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
120
Neste sentido, alguns teóricos do campo psicanalítico (Cavalcanti,
1998; Néri, 2003; Reis, 2003) têm proposto uma alternativa à perspectiva
dominante, de que a falta (o negativo, a castração) é o que leva o sujeito a
pensar e desenvolver o contato com a realidade. Obviamente, a falta pode
levar o sujeito a conquistar alternativas, mas esta forma de subjetivação
não pode ser primeira, pois a própria constituição do sujeito faltante já é
um resultado de um encontro de fluxos, sensações ou proto-pensamentos;
da constituição de um mundo próprio, a partir de um mundo ambiente
(aquém da divisão sujeito/objeto), nas palavras de Uexküll; ou da
comunicação, no sentido de in-formação de realidades pré-individuais, na
visão de Simondon.
Na obra de Freud, a tese da castração, como se sabe, é largamente
majoritária. Como exemplo, podemos nos reportar ao capítulo sete de A
interpretação dos sonhos, no qual desenvolve a chamada “teoria do apoio”.
O bebê busca o seio por instinto, no entanto encontra muito mais do que o
leite que sacia sua fome. Cheiro, sabor, luminosidade, calor... constroem
um cenário rico em afetos. Em um segundo momento de fome, o bebê
procura
reviver
a
mesma
experiência,
alucinando
a
“vivência
de
satisfação”. Como a alucinação não sacia, ele é obrigado a pensar
(encontrar uma estratégia que no caso seria chorar), adiar o prazer
imediato – alucinatório – para a obtenção de prazer mais adiante (Freud,
1980a, pp. 515-6).
Entretanto, é possível uma outra interpretação dos fatos. Creio que a
criança tem uma predisposição para estabelecer “linhas de coerência”
entre as experiências, mesmo quando não repetidas com freqüência (Stern,
1992, p. 46). Isto acarreta o fato de que a criança pequena não vive um
déficit na realidade, que a obrigaria a alucinar, apenas experimenta
complexos de sensações mais ou menos novas (idem, p. 228). As idéias de
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
121
falta ou conflito surgirão bem mais tarde, quando o senso de eu conceber
totalidades.
Passarei a palavra a Néri que, de dentro da própria obra freudiana –
principalmente no Projeto para uma psicologia científica e na Carta 52 à
Fliess – encontra o caminho de um “circuito pulsional de processamento
de intensidades” que realiza o potencial:
“Estamos diante de um psiquismo que se constitui como um circuito
pulsional de processamento de intensidades, visando a obtenção do prazer
que só se dá num encontro com o outro, que vai deixar marcas eróticas
singulares das experiências de dor e satisfação. A subjetivação apresentase como uma produção imprevisível, indeterminada, no sentido de
produções singulares e abertas.
Na experiência de alucinação do seio, os traços das experiências de
satisfação que a criança inscreve já são diferenciados: é a maneira como
ela cheirou, tocou, degustou, que vai marcá-la de forma singular, abrindoa para novas experiências que produzirão novas marcas, a subjetivação
podendo ser vista como uma proliferação de experiências singulares” (Néri,
2003, p. 29).
Desta forma, a alucinação se desprenderia das amarras da categoria
do falso ou do erro. Para, assim, ganhar a condição de errância. Quando se
faz o movimento de recuperar o prazer passado, esta memória já se envolve
de tantos outros signos – que estavam antes, depois, através – que o que
era pra ser o mesmo, já é outro.
Foucault afirma que “o imaginário não é um modo de irrealidade,
mas um modo de atualidade, uma maneira de pegar em diagonal a
presença para daí fazer surgir as dimensões primitivas.” (1994, p. 142).
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
122
Já Winnicott, em sua obra, “constrói” um “espaço potencial” 68 ,
paradoxal e “indecidível”, “entre” o objetivo e o subjetivo. Espaço nãogeográfico
que
“secreta”
objetividades
e
subjetividades,
no
mesmo
movimento. Portanto compreende a ilusão ou alucinação como passagem
necessária ao viver, à “produção/descoberta de mundo”. Ao comentar o
texto “On not being able to painting”, de Marion Milner, no qual a autora
defende a existência de um “transe humano primário”, como fundamental
à criatividade, Winnicott escreve que:
“este transe [humano primário] surge da não-identidade daquilo que
se concebe e do que há para perceber. Para a mente objetiva de outra
pessoa que esteja vendo de fora, aquilo que é externo a um indivíduo,
nunca é idêntico ao que está dentro desse indivíduo. Mas pode haver, e
tem de haver, para a saúde (assim implica a autora), um ponto de
encontro, uma sobreposição parcial, um estágio de ilusão, intoxicação,
transfiguração” (Winnicott, 1994, p. 300).
E, a seguir:
“Os psicanalistas estão acostumados a pensar nas artes como fugas
realizadoras de desejos quanto ao conhecimento desta discrepância
existente entre o interno e o externo, o desejo e a realidade. Para alguns
deles, pode ser um choque encontrar uma psicanalista que tira a
conclusão, após um estudo cuidadoso, que esta ilusão realizadora de
desejos pode ser a base essencial de toda a verdadeira objetividade” (idem,
p. 300).
68 “Esta terceira área foi contrastada com a realidade psíquica interna, ou pessoal, e com
o mundo real em que o indivíduo vive, que pode ser objetivamente percebido. Localizei
esta importante área da experiência no espaço potencial existente entre o indivíduo e o
meio ambiente, aquilo que, de início, tanto une quanto separa o bebê e a mãe (...)”.
(Winnicott, 1975, p. 142).
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
123
A subjetividade ou objetividade não capturam o sentido do
acontecer. A ilusão ou realidade não nos ensinam sobre os signos de
percepção, os pensamentos sem pensador, os afetos de vitalidade, o
imaginar da imagem.
Daí decorre pensar em um “momento fetal”. Espaço/tempo de
produção de um acontecer que emerge – imprevisível – do impessoal. Não
eu, não ele. Intensidades, fluxos, em plano de imanência.
Encontro de sons sanguíneos, de temperos e temperamentos.
Trago de Zygouris algumas idéias que, a meu ver, tratam deste
“momento”, no limite do virtual com o estabelecido. Emergência de ritmo:
“Os sons, o ritmo, mas também o silêncio, que é sempre um silêncio
ritmado e singular, que une a criança na barriga da mãe ao mundo, são os
precursores da música e o substrato do vínculo em geral. Mesmo antes de
seu nascimento, a criança está mergulhada no tonal e no rítmico de uma
pessoa específica que a une ao mundo. Quando alguém fala, seu corpo
toca aquele que ouve. O vínculo ‘musical’ supõe uma continuidade que se
opõe à descontinuidade das palavras da língua. Assim, através da voz os
corpos se tocam, se sincronizam ou não, se ritmam” (Zygouris, 2002, p.
27).
Os incorporais estabelecem um plano de ressonância entre as
multiplicidades qualitativas que são os seres. Assim, eles se tocam e
comunicam, evolvem. Incorporais que fazem as memórias conceituais
“imaginar”, sob a ação da memória intensiva, da proliferação de
singularidades.
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
124
As estratégias ontológicas de surgimento de mundos próprios, e as
agonias características, estão mais intensamente relacionadas a este
momento, a cada momento, em que algo de fetal é exigido de nós 69 .
Criação
e
experimentação
que
atacam
e
fazem
tremer
a
estanqueidade das imagens pétreas e reificadas de si, que Rolnik chamou
de “figuras prêt-à-porter”: “a vigência no mundo contemporâneo de uma
hierarquia mais impalpável do que aquela que se exerce entre classes,
etnias, raças, sexos, gêneros ou ideologias, mas talvez por isso mesmo
mais implacável; é uma hierarquia imaginária que oprime todos os modos
de existência. Montam-se imagens de figuras humanas que parecem pairar
inabaláveis sobre as turbulências do vivo. Tais figuras prêt-à-porter
servem como modelo identificatório, referência universal a partir da qual
avalia-se todas as figuras existentes, criando a ilusão de que é possível
permanecer em equilíbrio, imune à finitude, o que reitera a exploração do
transhumano como negativo da forma” (Rolnik, 1995, p. 100).
Agora é possível a aproximação a estas palavras de Rolnik, dizendo
que a “hierarquia imaginária”, referida por ela, só pode se constituir, na
condição de ignorar a imaginação das imagens, a ação da memória
intensiva e da intuição, da ressonância que lança os seres em errância não
formal. Insisto, neste ponto é que reside a captura e a resistência, a dor e a
alegria das produções mais intensas da atualidade.
Em uma perspectiva surgida da prática psicanalítica, Safra (1999. p. 48) escreve que
“quando áreas da experiência humana não se constituíram na situação de ilusão como
parte dos aspectos do self, temos buracos, que ameaçam o indivíduo com a dispersão de
si e com as ansiedades impensáveis.”
69
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Imagem 9 – Sem título - Nazareth Pacheco (1998)
125
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126
Capítulo 5
Agonias Impensáveis
Esta sensação é insuportável. Se tivesse
pelos, eu os sentiria eriçarem-se por todo meu
corpo. Mas, em meu estado, não tenho nem mesmo
os meios de experimentar o medo que sinto.
Thomas (Maurice Blanchot)
Moça reagiu ao impacto do anúncio de morte de seu bebê
recolhendo-se para um mundo de fantasias, compulsivamente repetido.
Respondeu com delírios e alucinações ao também fantástico mundo que
expõe sua intimidade e lhe oferece um corpo, tão distante de sua realidade
afetiva. Este corpo não se pode tocar, mas vem com a força de uma certeza
ao mesmo tempo imperiosa e sem remetente.
Como tornar suportável essa dor que parece impossível de viver?
Quais redes culturais ou de produção de sentido poderiam minimizar a dor
inominável?
Foi no território necessário para a construção/apreensão da
realidade, o da ilusão, que Moça se refugiou durante toda a gravidez.
Porém, no momento em que a bolsa amniótica rompeu, a ditadura
da verdade (intensiva) mantida distante começa a se impor em seu mundo,
a “ilusão criadora de mundos” assume tons tenebrosos, e sobrevém o
pânico.
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127
O terror se instalou em sua vida, e as crises de pânico eram a sua
saúde. Destinou aos mesmos profissionais que lhe propuseram a “questão
impossível” – os médicos – os seus medos mais intensos. Estava vagando
em um pesadelo de morte em vida, no qual o único sentido era o terror do
desabamento de si com suas águas e seu bebê sem vida. Neste pesadelo as
crises eram a expressão mais sincera de uma vontade de viver – impessoal
e ainda possível. Levava seu corpo compósito em convulsão, palco de uma
batalha sem ideologia ou moral, para aqueles profissionais acostumados a
lidar com as dores e doenças do homem. Exame físico, eletrocardiograma,
e em seguida: “você não tem nada! É psicológico”.
Talvez só queiram dizer que não é biológico. Mas que psicológico é
este que faz o suor frio brotar dos poros e o coração acelerar até não mais
poder?
Penso que há a atualização de um coletivo incorporal de fluxos
esquizo, os quais tendem a se exprimir no limite do psicológico e do
orgânico 70 , escapando aos dois, o que confronta os profissionais com as
bordas dos seus saberes 71 . Uma sensação violenta e real, mas sem forma
Uma maneira interessante de pensar esta questão em psicanálise nos foi apresentada
por Cavalcanti, quando trata o “fort” (o encenar repetido da experiência dolorosa de
separação da mãe) como “o estabelecimento de signos de percepção e de um real
originário, funcionando além do princípio do prazer” (1998, p. 278). A repetição da
“experiência fort” sem o “da” (aí está) “é uma experiência de ligação” (idem). A autora
relaciona esta experiência com a emergência da angústia automática, proposta por Freud
em Inibição, sintoma e angústia como “a primeira forma que a quantidade em excesso
toma, ligando-se às imagens cenestésicas simultâneas ao nascimento. Estabelecem-se ali
trilhamentos que dão à quantidade a forma de taquicardia, de dispnéia, de atividade
muscular desordenada, de gritos” (idem, 279). Pensando desta forma, poderíamos
considerar que no que chamo “momento fetal” estão envolvidas tanto imagens
cenestésicas, quanto afetos de vitalidade ou a origem de um pensar.
71 Pelbart delimita o que seria uma “maneira de ser esquizo”, que parece traduzir a idéia
que gostaria de imprimir ao que chamamos esquizo, tomando o cuidado de não
personificar ou naturalizar este movimento. Escreve que “a maneira de ser do esquizo,
semelhante ao do nômade, que está presente e ausente simultaneamente, que está na tua
frente e ao mesmo tempo te escapa, sempre está dentro e fora, da família, da cidade, da
cultura, da linguagem. Ele ocupa um território mas ao mesmo tempo o desmancha,
dificilmente entra em confronto direto com aquilo que recusa pois não aceita a dialética
70
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
128
física ou mental, age. Daí o pânico, o caderno cheio de conversas escritas,
as palavras que preenchiam as madrugadas insones, são a síntese própria
de incompossíveis fluxos em choque e ressonância.
Mundos de sonho (de ser mãe, ter família, ser aceita, ...) encontram
mundos tecnológicos; afetos cotidianos encontram outros desconhecidos; a
temporalidade do hábito se rompe no anúncio de uma morte futura. Os
encontros carregam a potência do diferir e, da mesma forma que podem
anunciar a alegria de um tempo novo, podem disseminar a terrível
presença de uma agonia. Agonia difusa e dolorosa por estar no limite da
individuação/indivíduo, da comunicação/informação, dos sons caóticos
para a emergência de um ritmar. Agonia que toma forma – sem esgotar-se
– no infinitivo de um “panicar”, um adoecer, um morrer. Agonias que estão
antes da atualização dos proto-pensamentos por um pensar, impensáveis.
Estas agonias – da forma como as apreendo – foram formuladas por
Winnicott (1994, pp. 71-3) 72 , como angústias reais, primitivas, que
remetem a um viver que não pôde ser experimentado ou perlaborado.
Como conceber um viver que não foi possível de ser experimentado?
Já temos instrumentos teóricos para tentar uma compreensão do
que seriam agonias impensáveis.
Uma abordagem possível seria a de fazer um uso metafórico da
palavra impensável, tomando-a por muito forte. No entanto, considero
mais profícuo incluir o impensável como parte do território limítrofe entre
da oposição, que sabe submetida de antemão ao campo do adversário, por isso ele desliza,
escorrega, recusa o jogo ou subverte-lhe o sentido, corrói o próprio campo e assim resiste
às injunções dominantes. O nômade, como o esquizo, é o desterritorializado por
excelência, aquele que foge e faz tudo fugir. Ele faz da própria desterritorialização um
território subjetivo” (Pelbart, 2002, p. 252).
72 Winnicott, ao tratar deste tema, concebe o que chama inicialmente de ansiedades
impensáveis passando, em um segundo momento, a nomeá-las agonias primitivas, por
considerar esta última expressão mais forte e adequada às suas observações.
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
129
o que é matéria de pensar, e o que ainda não o é. Para mim, o que não é
matéria para o pensar está longe de ser abstrato ou imaginário, sendo, ao
contrário, real.
Aqui, é possível sugerir que existe uma agonia relacionada a uma
memória que não pode ser recordada por não ter sido esquecida. Não tem
como objeto “exatamente o inconsciente recalcado” (idem, p. 73).
Impensável, por existir enquanto tensão no limite de passagem dos
proto-pensamentos que exigem um pensador, mas não lhe permitem
apropriação.
O bebê morto, doente ou condenado, é virtual e atual ao mesmo
tempo. Há uma exigência de pensar imagens e narrativas, as quais, além
de chegarem prontas, trazem uma mensagem de fim irremediável. Até
aquele momento não se prestaram à experiência do in-formar, do
comunicar, em temporalidade singular. Morte que chega afastada dos
afetos de vitalidade que lhe poderiam dar sentido. Os proto-pensamentos
insistem, mas o pensador necessário está paralisado em um grito sem
som.
É desta forma que me aproximo da intuição de Winnicott. Para ele,
estas agonias têm um caráter “mais psicótico” de relação com a provisão
ambiental. E considero que esta “provisão” – que no exemplo deste estudo
é a notícia da morte de um acontecer – no contemporâneo, exige mais e
mais uma forma de subjetivação que se dá na fronteira do pensar. Temos
esta fronteira como o limiar esquizo da existência. Não para patologizar,
mas para criar a idéia de que existe uma positividade produtiva que se
localiza aquém do confronto de totalidades, agindo no limite das formas,
na caducidade do instituído 73 . E é esta esfera esquizo de invenção de
estratégias do pensar e do existir, que coloco em foco. Esfera que carrega
73
Winnicott (1994, p. 71) fala de uma “organização ameaçada”.
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
130
consigo agonias singulares. E que não podem ser tratadas como
conseqüência de castração, por não terem um limite definido a ser
respeitado ou transgredido. Também não é um limite denegado. É
simplesmente impensável, por ter rompido o suporte inscritível. Por
constituir uma memória intensiva, não reprimida nem recusada.
Esta concepção abre uma forma de compreensão acerca do
desconforto da clínica contemporânea ao se confrontar com produções que
escapam às tentativas de classificação, como apresentado extensamente
por Ehrenberg (2000). Constitui-se uma sociedade sobre um terreno
movediço e rico, onde o ter ou não ter uma doença dá lugar a modulações
expressivas infinitas. Ocorrendo que a profusão de nomes, ao contrário de
delimitar mais precisamente o que se pretende patológico, oculta o
adoecer.
Quando propus que as crises de pânico eram a saúde de Moça, quis
dizer que esta era a forma dela viver a agonia impensável. Forma de afetar
e de ser afetada, de interferir ou modular sua ilusão/realidade ante a
penetrações, discursos, diagnósticos e destinos pétreos, encarnados em
imagens irremovíveis. Forma intempestiva de fazer os mundos recémapresentados dançarem e assim decompor a formalidade rija de seus
gestos estranhos.
A agonia é pensada aqui como o passaporte possível para o
experimentar. Sendo o contato intuitivo com o que está pré-pensado. Não é
o caso de considerar estas agonias como sintomas de uma patologia a ser
abolida. Também não se situam em um terreno de conflito de instâncias,
como formação de compromisso.
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
131
Não se trata de fazer uma apologia da agonia. Apenas é preciso dizer
que não é possível eliminá-la. E, em certa medida, ela é o guia que permite
pensar uma clínica que visa a capacidade de afetação 74 .
Como agonias impensáveis poderiam ter alguma valia para a clínica?
Na medida em que são testemunhas de um sofrer difuso e intenso,
resultado do encontro de mundos atuais e virtuais diversos, os quais
tendem a uma expressão possível.
Neste caminho podemos acompanhar a proposta de Illich (1975, p.
141) ao sugerir o termo esquizoalgia para o horror que surge da
expropriação do sofrimento, “pesadelo acordado diante de um real tão
penoso quanto fora de alcance” 75 . Dor que é resultado da sobrevivência em
um meio que “escapa à escala humana” (idem). Não apenas em um meio
devastado por catástrofes (já que o autor cita os campos de concentração
nazistas e a devastação causada pela bomba atômica), mas também em
um meio cotidiano como o consultório médico. Meio que é palco de
confrontos de mundos heterogêneos e em grande parte impessoais,
incorporais e inumanos.
Illich também aponta a importância de como lidar com o sofrer, e o
faz em dois aspectos. O primeiro se refere ao poder que o sofrimento tem
de produzir sentido, pois todo sofrer possui uma interrogação que lhe é
inerente (idem, p. 135). Isto faz com que possa haver uma apropriação
Numa perspectiva espinosana, os encontros que aumentam a alegria, o conatus, ou a
capacidade de perseverar no seu ser, são aqueles que aumentam o poder de afetar e ser
afetado. Ao contrário, os tristes são aqueles que diminuem este poder.
75 Ivan Illich, filósofo, envolvido no clima revolucionário de 1968, escreve o livro “A
expropriação da saúde: nêmesis da medicina” com inúmeras críticas à alienação da dor e
à expropriação do sofrimento por parte dos profissionais médicos. Neste sentido que
utiliza o termo esquizoalgia. No âmbito deste trabalho aproveitamos a intuição do autor,
retirando um aspecto mais ideológico, para aplicá-la ao território mais geral de
emergência de um experimentar intensivo ou, ao contrário, da alienação deste.
74
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132
íntima da realidade, e permite o resistir à exposição de forças que
restringem a potência de agir, afetar e criar sua singularidade de mundo.
Em segundo lugar, a ferida que não é possível assumir no
sofrimento, instala-se como “estado patológico crônico” (idem, p. 141).
Ferida que não toma forma e se repete na sensação insistente da
esquizoalgia.
Illich não desconhece nem nega os avanços e a utilidade das
técnicas de controle da dor, mas faz uma ressalva que me parece crucial,
diz que “o progresso da técnica fisiológica e biomédica só favorece a saúde
na medida em que alarga a responsabilidade dos que sofrem” (idem, p.
142). Qual é o limite de analgesia e de apresentação de mundos que
favorece a potência criativa, a alegria, e qual o que a restringe?
Destas questões surge uma diferença ética fundamental, fugir à dor
é diferente de lhe fazer frente.
Penso que a agonia impensável surgiu como resposta à questão à
qual Moça foi confrontada. O limite da impossibilidade de experimentar
aquela complexidade, e a forma (esquizo) de sua dor. Mas ao mesmo tempo
aquilo que a liga com o mundo potencial, a manifestação da força do viver
que alberga em si. A questão que repõe à cultura que a forjou na fronteira
do pensável.
Uma pergunta se impõe. Como agir uma clínica que engendre o
experimentar? Qual ação ético-política tocaria as bordas do pensar? Qual
atitude transformaria a agonia, sem aliená-la?
Aponto acima alguns caminhos para esta “clínica do impensável”.
Cito – e grifo – uma fala de Bion para retomar a perspectiva clínica, e
passar para o esboço de uma práxis:
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“Acho que o aspecto central é que você precisa ousar ser disponível a
algo que queira expressar; ousar permitir que um pensamento sem um
pensador se aloje em algum lugar, dentro dos limites de sua capacidade”
(Bion, 1992, p. 146).
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Imagem 10 – Bebê prematuro.
134
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135
Capítulo 6
Uma ação ético/clínica
Entre os gritos da dor física e os cantos do
sofrimento metafísico, como traçar seu estreito
caminho estóico, que consiste em ser digno do que
acontece, em extrair alguma coisa alegre e
apaixonante no que acontece, um clarão, um
encontro, um acontecimento, uma velocidade, um
devir?
Gilles Deleuze
6.1. Agenciamento teórico
Fomentar golpes a serem dados nas obras,
arrombá-las para fugir com elas em direção àquilo
que não vimos, que não ouvimos.
Jean-François Lyotard
No momento em que a tarefa a que me propus vai se encaminhando
para o final, faz-se necessário indicar algumas linhas para uma ação
clínica.
O fato de tecer, ao longo do trabalho, a trama de um corpo em
constante processo de individuação; um corpo singular e sempre remetido
a um plano de imanência; um corpo que se erige no próprio evolver de seu
inacabamento; já destaca uma posição ética particular. Ética de considerar
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
136
o próprio “corpo” das ações clínicas como eternamente aberto, em questão,
invenção e devir.
Desta perspectiva, o posicionamento clínico se alinha ao ético, desde
que o interrogar (como? por quê? em que momento?...) é a ação que pode
permitir o experimentar intensivo nos encontros. Ação esta que se
restringe ante o embrutecimento de repetições compulsivas de modelos,
narrativas e significações.
A atenção para o experimentar inédito das sensações promove um
campo inventivo e mutagênico que é por si próprio também uma opção
política. Isto, pois, implica uma alternativa ao relacionamento dialético e à
concepção de poder como coerção de uma força sobre outra, para uma
outra que toma aquele como a contínua invenção de novas complexidades
singulares. Cada invenção é uma dobra subjetiva diversa, e, enquanto tal,
uma nova forma de perceber e agir, de experimentar o tempo e o espaço.
Mas não basta fazer recuar o plano subjetivo/objetivo (individuado)
para o plano de processos de subjetivação, estratégia que permeia todo o
trabalho. Importa igualmente direcionar a ação ético-clínica para a alegria.
Alegria esta que é potência em expansão (Espinosa, IV, prop. XLI,
demonstração), ou seja, aumento do poder de agir, afetar e ser afetado,
“imaginar e encontrar o que é causa de alegria, o que mantém e favorece
essa causa; mas também o esforço para exorcizar a tristeza, imaginar e
encontrar o que destrói a causa de tristeza” (Deleuze, 2002, p. 107).
Assumindo como tristeza a potência imobilizada, só podendo reagir e
investir a marca dolorosa (idem, p. 106).
O grito de João que enche os corredores e faz ressoar agonias
impensáveis em todos à volta, comunica o evolver intensivo que o convoca
e concebe. O delírio de Moça é expressão da tristeza, por ser produção de
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137
afeto insistentemente investido, fechado sobre si, empobrecido do poder de
imaginação.
Frente à dor é preciso – sempre – interrogar. Mas vale precisar
melhor o que isto quer dizer. No território das corporeidades orgânicas e
funcionais, instituídas ou extensas, é necessária uma abordagem que
reduza ou alivie a dor. Isto para que no território intensivo, virtual, préindividual, possa haver a liberação do alegrar-se. Esta diferenciação é
fundamental, mas seus limites têm sofrido abalos como, por exemplo, com
o desenvolvimento de medicamentos que alteram o humor. Até que ponto
uma medicação está a serviço do controle do sofrimento físico (permitindo
a abertura para o experimentar intensivo) ou da alienação do poder de agir
e produzir estratégias singulares do pensar no choque com as sensações
incorporais?
A importância desta perspectiva do pensamento é imensa, quando
observamos o desenvolvimento desenfreado e irrefletido das tecnologias na
área da saúde.
Perscrutar e criar interpretações e imagens sobre o corpo físico tem
possibilitado o alívio de muitas dores. Mas, dependendo de como estas
informações são utilizadas, pode haver, ao contrário, um seqüestro da
potência expressiva do que chamei em momentos anteriores de memória
intensiva. E, com isso, o surgimento de agonias sem forma ou conteúdo,
mas intensas e cruéis.
Nas sociedades urbanas de cultura ocidental em que vivemos, a
intensidade crescente da produção de objetos individuados (nomes,
imagens, teorias, aparelhos) submete os corpos a um processo insidioso e
molecular de desterritorialização, fragmentação e captura por uma
estratégia de equivalência. Em nossa experiência, esta pletora quantitativa
se acompanha muitas vezes de uma asfixia da produtividade intensiva. Há
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138
um aviltamento do poder de apropriação da realidade pelo imaginar. Um
abarrotamento de interpretações e clichês que atropelam a temporalização
própria de um acontecer, fruto da participação em um movimento de informação, ou seja, um movimento de ocupação por pensamentos já
prontos, que ignoram a multiplicidade aberta de planos de sentido, os
quais determinam a imprevisibilidade do ser e a sua liberdade de criar
ritmo com o mundo.
Não entendo os objetos como possuidores de valor positivo ou
negativo em si. São resultado do movimento constante de forças
imateriais. A forma de utilização e apropriação destes mesmos objetos é
que importa. E importa porque há uma luta feroz – apesar de muitas vezes
ignorada – entre o manipular formas totalizadas de agir/perceber (impor,
consumir, vender) e a possibilidade de resistir a elas, criando espaços de
subjetivação.
Lazzarato (2004, p.230) chamou de “guerra estética” o choque entre
mundos e subjetividades surgidas da atualização do sensível, o que dá
uma dimensão forte para a ação do capitalismo no plano imaterial. Neste
regime – capitalista contemporâneo – criam-se não mais os objetos apenas,
mas o próprio mundo onde eles existem. Onde consumir um objeto é
pertencer a um mundo com sua maneira de viver, de comer, de ter um
corpo, de se vestir, etc. As transformações incorporais – neste sistema –
criando por sedução uma nova sensibilidade, que é mais um mandamento
autoritário, do que uma apropriação singular. Esta última é sempre
inédita, já a sedução multiplica o mundo com uma série de “possíveis” já
disponíveis para consumo, tentando “envelopar” a virtualidade (Lazzarato,
2004, pp.229-33). Este sistema de produção e consumo de mundos
atravessa todo o campo social havendo, obviamente, mundos médicos e
psicanalíticos a serem consumidos. Ressalte-se que além de poder ocorrer
a restrição da experiência intensiva, uma enormidade de pessoas não tem
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139
como consumir ou se endividar na tentativa de “habitar” os mundos que
lhe são ofertados, mas a que elas não têm acesso e sentem como
imprescindíveis.
Destas “nuvens de afeto”, intuídas a partir das cartografias clínicas,
parece-me imprescindível delimitar um terreno de ação clínica que leve em
conta a virtualidade do ser. Sua inatualidade e potência. Que interfira no
como ocorrerá a efetuação do sensível, e que conseqüentemente acolha as
agonias impensáveis.
Foi justamente da necessidade de acolher e fazer frente a estas
agonias que surgiu este esforço acadêmico.
Este acolhimento tomou a forma de um “criar casa” em meio a um
ressoar mutante e mutagênico com a multiplicidade intensiva.
Com os instrumentos de que agora dispomos, é possível explorar o
que quis dizer com isto, finalizando com um rápido exemplo.
Entrar em contato com este corpo, que se constitui no experimentar
de qualidades imateriais, tem como conseqüência várias perspectivas da
ação clínica. Destacarei as que considero principais:
♦ A ação tende a aumentar o poder de afetar e de ser afetado.
Considerando que a vitalidade do ser está em sua condição de
perseverar no seu ser (o conatus de Espinosa 76 ), mas não por um
isolamento. Este último aniquila o ser enquanto parte de um coletivo
impessoal e imaterial que constitui uma problemática maior que o
indivíduo. Portanto, há necessidade de um afetar-se pelo mundo ambiente
“Aquilo que dispõe o corpo humano de tal maneira que possa ser afetado de diversos
modos ou que o torna apto a afetar os corpos externos de um número maior de modos, é
útil ao homem” (Espinosa, Ética, IV, prop. 38).
76
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140
que o inclui. O que ocorre, pari passu, com o afetar, produzir marcas e
ciclos de função. Os afetos de vitalidade, enquanto produções que vão
sendo apresentadas por um entre (não dialético mas desmedido), são a via
régia de in-formação dos seres em encontro. Abrem um campo de
experiência potencial onde agir e perceber, afetar e ser afetado, são parte
do mesmo movimento.
Bion sugere que haja uma capacitação para “nos tornar um
pouquinho mais sensíveis àquilo que vemos no momento que entramos em
contato com os pacientes. Requer um treinamento que capacita o médico,
o cirurgião, o psiquiatra, a se desnudarem a si próprios de suas préconcepções, e ficarem vulneráveis aos fatos” (1992, p. 45, grifo meu).
Esta vulnerabilidade não se dá de forma abstrata ou transcendental,
mas através de “variações ardilosas, como as operações de um sub/sentir,
de um entre/sentir, de um intra/sentir, extra/sentir, trans/sentir etc.”
(Orlandi, 2003, p. 93).
♦ A ação é caminho para expressão da singularidade dos planos de
sentido.
Como vimos, os encontros comportam uma ecologia virtual, real mas
inatual, que “vibra” no limite das formas. A ação que nos interessa é a que
permite o acolher deste intensivo incorporal, tanto no movimento de
atualização como de virtualização. Pois, para nós, este expressar é o
próprio processo de viver do vivo. Por oposição, a ação pode tender a
perpetuar as formas idênticas a si.
♦ A ação, desta forma, implica permitir ser vivido pelos pensamentos
sem pensador ou proto-pensamentos. Ou seja, abrir espaços para o
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005
141
emergir do ressoar que desliza no entre. Devido a esta perspectiva que, em
minha opinião, Bion propôs como ação clínica o abdicar de desejo,
memória e necessidade de compreensão. Possibilidade de “limpar” os
clichês de si, para inventar um pensar não compulsivo.
♦ A ação respeita uma ética de espraiamento lateral. Sempre
remodela os campos potenciais, pois age no coletivo. É o que Simondon
concebeu como “ato moral”: “aquele que pode se espalhar, se defasar em
atos laterais, se ligar a outros atos espalhando-se a partir de seu centro
ativo único [imanente].” E a seguir, complementa que “o valor de um ato é
a sua largura, sua capacidade de espraiamento transdutivo” (Simondon,
1995, p. 246). Ao contrário, o “ato louco” ou “imoral” é aquele fechado em
si, tendendo a “reinar sobre todo o devir no lugar de se articular aos outros
atos” (idem, p. 247). Louco porque o esforço de iteração não comporta a
relativa inadequação a si mesmo, “tendendo a devir perfeito no interior de
seus próprios limites, não podendo senão recomeçar e não continuar”
(idem). 77
É desta maneira que entendo e valorizo a idéia de continuidade do
ser
(going-on-being) 78
de
Winnicott,
como
a
conquista
de
uma
continuidade no tempo por ressonância interna.
Isto implica “uma política que não consiste simplesmente em
reconhecer o outro, respeitá-lo, preocupar-se com as conseqüências que
É importante ressaltar que o ato louco “destrói as significações dos atos que existiram
ou que podem ser chamados a existir” (Simondon, 1995, p. 246) se inserindo no devir
sem fazer parte do devir que compreende o evolver do coletivo. Assim se destaca da
temporalidade do acontecer, se entretendo na “vertigem de sua existência iterativa” (idem,
p. 247).
78 “O ‘continuar sendo’ (going-on-being) ou a continuidade do ser é o desenvolvimento
normal, e o seu oposto é o trauma. Para Winnicott, o senso de continuidade no tempo era
uma conquista. E a experiência cultural proporciona a continuidade da espécie humana,
que transcende a existência individual” (Newman, 2003, p. 105).
77
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142
nossa conduta possa ter sobre ele; mais além, trata-se de assumir as
conseqüências de sermos permanentemente atravessados pelo outro, uma
política indissociável de uma ética de respeito pela vida” (Rolnik, 1996, p.
256).
♦ A ação implica uma amortização. Isto pois, deve envolver uma
transformação, ou transdução, nas palavras de Simondon. Aceitar um
morrer das formas é diferente de degradação. Ao contrário desta última, a
ação que implica o morrer, fertiliza o coletivo.
Explorando esta idéia na clínica psicanalítica, Winnicott diz
justamente que “não há morte, a não ser de uma totalidade. Posto ao
reverso, a inteireza da integração pessoal traz consigo a possibilidade, e
mesmo a certeza, da morte – e com a aceitação da morte pode ocorrer um
grande alívio, alívio em relação ao medo da alternativa, por exemplo, a
desintegração (...)” (apud Newman, 2003, p. 106).
A desintegração se relaciona ao que Winnicott concebeu como
agonias primitivas. Uma morte em vida, uma fratura na continuidade do
ser produzida por atos loucos. O que dá condição aos “seres-agoniados” de
hoje, habitados por um medo intenso (sem sentido, ou desligado dos
planos do coletivo) da processualidade do morrer e do envelher, que parece
acenar com a desintegração. Não tanto pela morte em si, mas porque o
próprio passar da vida lança-lhes uma questão impossível de responder.
Não podem experimentar o morrer pois, em alguma medida, são colhidos
pelo investimento incessante de figuras que alienam o experimentar do
viver intensivo.
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143
♦ A ação busca uma medida que não aniquile o ser. Para que o ser
em devir cumpra todo o seu potencial, faz-se necessário – obviamente –
que ele sobreviva em sua comunicação lateral. No limite, a morte de sua
individualidade pode ser o cumprimento de sua potencialidade, dando
lugar ao nascimento de novos seres, herdeiros, em parte, de sua ação
moral (aqui está toda a questão da sexualidade como forma de elo com a
história da espécie).
Excetuando-se este momento singular da conformidade da ecologia
virtual, é preciso evitar a dissolução total do ser, bem como a sua fixação
em iteração esterilizante, compulsiva ou aditiva.
♦ A ação não visa a anulação do sofrer enquanto pulsar vital de
acontecimentos incorporais. Estabelecer rizoma, ou experimentar as
agonias no limite do pensar, é o que pode permitir o caminhar do ser com
seu mundo, e conseqüentemente o enriquecimento de ambos. A ação não
pode pretender esgotar o sofrer pois, assim, ocorreria igualmente a
abolição do viver. Se este esgotamento fosse possível, deveríamos imaginar
que haveria um momento no qual o virtual ou os proto-pensamentos
acabariam.
A ação ético/clínica age visando uma re-orientação de fluxos que
sustentam o viver. Faço minhas as palavras de Stiegler (2001, p. 124):
“todo sofrer deve chamar um agir, mas um agir que não impeça o sofrer;
as patologias do vivente reclamam uma medicina, mas uma medicina que
respeite as patologias como forma de vida.” Acolher a dor e agir para
transformá-la, sustentando um eterno interrogar que diz: esta dor não
pode continuar! Como fazer para aliviá-la?
Encarar a agonia como expressão plena e insuportável do viver, para
trazer à luz um novo ser.
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144
♦ A ação inclui obrigatoriamente a intuição, por envolver uma
memória do que não foi inscrito. Porque ela age no próprio plano de
inscrição de memória, no próprio campo potencial que abrange a ilusão
como única forma de apropriação objetiva do mundo. Para “deixar passar”
a realidade pré-individual, para pensar os proto-pensamentos sem
reclamar-se enquanto pensador, é preciso lançar-se do cais. Lançar-se das
identidades reasseguradoras, para constituir um experimentar de uma
alteridade radical. O que obriga uma certa inconsciência, uma aposta,
uma
abertura
de
espaço
de
indeterminação,
um
banhar-se
num
“vazio/pleno” 79 .
♦ A ação respeita uma estratégia cartográfica. Na qual o clínico
mantém sua diferença, mas participa da constituição das “cartas
moventes”.
Expressão de Lygia Clark, retomada por Rolnik (2002, p. 274): “a obra opera uma
espécie de iniciação do espectador àquilo que Lygia chama de experiência do
‘vazio/pleno’: vazio de sentido do mapa vigente, provocado por um cheio transbordante de
sensações novas que pedem passagem.”
79
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145
Imagem 11 – Vaso de Phintias (VI a. c.), representando aula de música, a qual era
um elemento da terapia médica pitagórica.
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146
Quarta cartografia clínica
Uma ação
Criar espaços de resistência é buscar uma forma de experimentar as
agonias e interferir na constelação de fluxos em jogo.
Minha
forma
de
resistência
naquele
ambiente
hospitalar
e
tecnológico – em grande parte involuntária ou intuitiva – foi de marcar
retornos quinzenais após a detecção de alguma anormalidade fetal. Ou
seja, aumentar o número de encontros para “ver o bebê”. Mas o bebê não
era somente aquele iluminado pelo ultra-som.
Não havia grandes expectativas quanto a mudança nos achados do
exame. Mas, desta maneira, era possível abrir espaços de encontro, não
previamente ocupados por mapas já determinados.
Assim,
forjou-se
um
tempo
no
qual
era
possível
encontrar
expressões para as agonias impensáveis, e fazê-las circular. Experimentar
que se traduzia em perguntas como: “o bebê sente alguma coisa?” “está
sofrendo?” “foi alguma coisa de errado que fizemos?”
Tentava-se abrir “espaços de subjetivação”, para além dos saberes
que meu conhecimento produzia.
Nos
bastidores
do
encontro
na
sala
de
exames
ocorre
inevitavelmente uma intensa e sofrida produtividade subjetiva do casal, o
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147
que pode uni-los ou separá-los; criar idéias de culpa; inseri-los em uma
trajetória delirante ou de desesperada catatonia.
Poder criar um ritmo próprio de encontros, que dê conta – na medida
do possível – das agonias, desfazer os roteiros culpabilizantes, “trata” e
ensina tanto o médico quanto a paciente, pois age na coletividade de
planos que os aproxima e separa, e promove um experimentar do processo
de abertura para afetação. Ou seja, sair do registro de formação e troca de
conteúdos.
Tornar mais lento o tempo quotidiano, rendendo reverência ao que
se desconhece, tendo na bolsa o que se conhece. Permitir que um “ir
acontecendo” ocorra, para além das previsões, que jogam o passado no
futuro. Ir chegando, conquistando a mesma estatura isenta de préconceitos. Ou, caso não seja possível desnudar-nos dos pré-conceitos,
deixá-los passar. O próprio passar é o que resiste aos espaços de
interioridade dos conceitos e identidades. Lança os conceitos em
caleidoscópico 80 movimento.
Atmosferas sensíveis vão participar da emergência e do destino da
complexidade de afetos, o que dá condição de agir através de atitudes que,
interferindo neste campo, podem ter efeito clínico. Criando condições de
expressão dos afetos, e diminuição do sofrimento.
Procuro, com esta palavra, dar o colorido da processualidade inventiva do Isso
groddeckiano. “O Isso nos obriga a associar em figuras geométricas que se confundem –
em relação às cores – mais ou menos como nesse delicado instrumento de ótica, o
caleidoscópio, em que fragmentos de vidro colorido formam o tempo todo novas figuras
quando lhe é imprimido um movimento rotativo” (Groddeck, 1991, p. 226). O inconsciente
como caleidoscópio cria uma tensão com o modelo telescópico de Freud, em A
interpretação dos sonhos. Estas tensões são exploradas por Ávila, que escreve: “A escolha
de Freud recaiu sobre o Telescópio que enxerga longe e procura, em imensas distâncias,
pelo Homem. O modo pelo qual Groddeck vê a realidade humana é representado pelo
Caleidoscópio, o mutante e multicolorido instrumento que re-cria continuamente o que se
vê” (Ávila, 1999, p. 157).
80
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148
Creio que a u-topia onde se deram os encontros foi palco do que
concebi como ação ético-político-clínica, pois uma aliança forte e
involuntária ia se estabelecendo, a partir dos encontros.
A certeza disso ocorreu quando Moça me procurou para falar de
suas crises de pânico, apesar de não saber que eu já estudava psicanálise.
Desta forma, pude perceber – para além da intensidade dos encontros que
tivemos – que a ação intuitiva havia produzido marcas não só em mim,
mas nela também, e sinalizado um caminho de constituição de mundo
próprio a partir das agonias impensáveis. Mundo que já havia sido
“plantado”, no espraiar lateral que foi viver a “realidade impossível”.
A construção de um mundo próprio “nosso” e mutante, em uma
problemática maior que nós, continuou através de encontros agora no
ambiente psicanalítico 81 . Desta etapa pincei apenas um retrato, que foi
exposto acima (em Violetas e sons). Sendo possível inferir a ação clínica
neste “setting”.
Gostaria de inserir aqui um “corpo estranho”, que foi um reencontro, anos após o
término da análise.
Falo do corpo desta mulher, que morreu de câncer.
Mulher pobre, enfrentou uma via crucis após descobrir um nódulo pulmonar. Demorou-se
para ser diagnosticado o tipo de neoplasia, e após o diagnóstico, o tratamento não pôde
ser iniciado prontamente. Falta de liberação da medicação pelo sistema público de saúde.
Fui vê-la, no hospital, após uma ligação telefônica. Os encontros psicanalíticos haviam
cessado há três anos. Mesmo assim, de tempos em tempos, ela vinha me ver.
Ao chegar, encontrei-a “internada” em uma cadeira, na sala de inalação do prontosocorro. Era o terceiro dia de “internação”. Recebia alimentos e medicação ali, sentada.
Não os remédios indicados para o tratamento do câncer. Que esperavam liberação.
Nesta situação de espera, duas metástases apareceram.
Conhecia alguns médicos, e fui inquiri-los sobre a situação. A resposta: “estamos muito
angustiados, mas não temos como pagar, nós mesmos, o tratamento de tantas pessoas
que chegam, a cada dia”.
O tratamento iniciou com auxílio da igreja que freqüentava. A continuidade se deu pelo
serviço público. Mesmo assim, devido ou não ao atraso, ela faleceu em pouco tempo.
Corpo estranho ao sistema de tratamento, mas nem um pouco estranho à multidão de
excluídos que se acumulam, nesta sociedade de endividados.
A morte acena concretamente, para aqueles que não obtêm sucesso em consumir: bens,
identidades, saúde.
Creio que incluir este corpo, no corpo da tese, é também, de certa forma, estar “à altura
do acontecimento”.
81
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149
O afastamento da singularidade de cada instante – por adesão a um
receituário qualquer de vida – tolhe, abafa, a possibilidade de encontro.
Estes campos de resistência se relacionam a um incluir da noite dos
afetos no dia das formas, e deve ser buscado a cada momento, em cada
encontro.
É importante frisar, no entanto, que não é preciso ser psicanalista
para abrir campos de resistência.
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150
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Imagem 4 – Butô – Kazuo Ohno. In: Emidio Luisi e Inês Bogéa: Kazuo
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Imagem 6 – De formato foetu líber singularis, 1631 – Adriaan Van den
Spiegel. In: Magali Vène: Écorchés: l’exploration du corps XIV – XVIII siècle.
Paris: Albin Michel et la Bibliothèque Nationale de France.
Imagem 7 – Ultra-som fetal tridimensional.
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Gallery, London.
Imagem 9 – Sem título, 1998 – Nazareth Pacheco. In: Nazareth
Pacheco/Texto de Miriam Chnaiderman/Fotografia de Rômulo Fialdini:
Nazareth Pacheco. São Paulo: D&Z, 2003.
Imagem 10 – Bebê Prematuro. National Geographic Brasil, ano 3 n° 31,
Novembro 2002.
Imagem 11 – Vaso de Phintias (VI a. c.) – In: Albert S. Lyons & R. Joseph
Petrucelli II: Medicine: an illustrated history. New York: Harry N.Abrams.
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Luis Eduardo Ponciano Aragon O Impensável na Clínica - PUC-SP