maio/junho de 2014 | edição n o 1
www.bahiaciencia.com.br
interior baiano
pode se tornar
grande exportador
de energia eólica
quilombos
inauguraram luta
por cidadania
empreendida até hoje
eventos marcam
os 120 anos do
Instituto geográfico
e histórico
entrevista
zilton andrade
contribuições ao
conhecimento da
esquistossomose
Parque tecnológico da Bahia
Um território
de inovação
www.bahiaciencia.com.br
Editora
Mariluce Moura
Editora de arte
Mayumi Okuyama
Colaboradores
Ana Paula Campos, Cau Gomez, Claudia
Izique, Claudio Bandeira, Domingos
Zaparolli, Eliane S. Azevedo, Fabrício
Marques, Fernando Vivas, Francisco
Bicudo, Gonçalo Tavares, José de Freitas
Mascarenhas, Laura Greenhalg, Maria
Cecilia Felli, Mauro de Barros, Naomar de
Almeida Filho, Neldson Marcolin, Ricardo
Zorzetto, Rodrigo de Oliveira Andrade,
Rogério Junior, Visca
Tiragem 10.000 exemplares
Impressão Plural Indústria Gráfica
Distribuição Jornal A Tarde
É proibida a reprodução total ou parcial
de textos e imagens sem prévia autorização
Contato [email protected]
Tel.: 55 11 3876-7005 / 3876-7006
Bahiaciência é uma revista bimestral da
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outros olhares
Manipulação do objecto
de estudo, os perigos
Gonçalo M. Tavares
Imagens Espacialistas
1.
A ciência é uma forma de manipulação. A mão
move-se pelo meio das coisas, divide o objecto de
estudo em partes, muda essas partes de sítio, vira-as
de cabeça para baixo, acrescenta elementos, enfim.
Pensemos nos verbos que utilizamos para descrever
os actos da mão e com eles veremos que também
descrevemos os métodos da ciência. Pegar, largar,
dividir, arrancar, acrescentar, virar. Pegar ou largar
uma hipótese; pegar ou largar uma metodologia. Etc.
O cientista manipula o seu objecto de estudo e a sua
cabeça faz com esse objecto (mesmo que seja um
objecto teórico) o que as mãos fazem aos objectos do
mundo que estão, por exemplo, tranquilos e sólidos
em cima de uma mesa.
E uma teoria é também uma construção – uma forma
sensata de colocar um objecto numa relação que não
caia. Só se constrói quando se tem várias partes à
frente. Não se constrói com a unidade. Constrói-se
quando à nossa frente o mundo é múltiplo e está
dividido. Uma casa, por exemplo, uma simples casa, é
uma unidade (se no fim não existir nenhuma peça
solta), mas uma unidade feita de mil e cem objectos
distintos do mundo. Pois bem, uma teoria é uma casa.
2.
E uma teoria também é isto – a potência do súbito
incêndio e do desastre ali está, sempre, como uma
ameaça. Uma construção com fósforos, com material
potencialmente autodestrutivo. De facto aqui, neste
caso, uma associação desastrada entre elementos
pode terminar num incêndio.
Devemos, pois, manipular os elementos da teoria
com a mão em jeito minucioso de pinça. É a única
maneira.
Porque todo o material científico tem duas caras: a
força e a fragilidade. Se fores brusco demais, o
material com que trabalhas pode partir-se. Se fores
demasiado desastrado ou demasiado arrogante na sua
manipulação esse material pode, no limite, zangar-se
– e destruir-te.
O teu objecto de estudo é frágil demais: não o partas;
e é forte demais, não penses que ele é submisso!
Gonçalo M. Tavares é escritor, português, autor de Imagens dos Espacialistas,
entre outras obras
bahiaciência | 3
52
24
8 Entrevista
Zilton de Araújo
Andrade
Em atividade desde
os anos 1950, professor
deu contribuições
seminais para o
conhecimento
da esquistossomose
e de outras doenças
parasitárias
18 Capa
Depois de atrair
multinacionais como
IBM e Portugal
Telecom, Parque
Tecnológico da Bahia
prepara expansão
com centros de
biotecnologia e energia
Seções
3
Outros olhares
5
Carta do editor
6
Poucas e boas
58
Charge
Artigos
35
CIÊNCIA
CULTURA
24 Ambiente
Projeto mapeia fontes
de poluentes e
correntes marinhas na
baía de Todos os Santos
44 História
Os quilombos e as
revoltas dos escravos
entre os séculos XVII
e XIX inauguraram a luta
pela plena cidadania
empreendida até hoje
pelos negros no Brasil
30 Agricultura
Pesquisadores estudam
novos métodos de
controle da lagarta-comilona, praga dos
campos no Brasil
TECNOLOGIA
35 Energia
Potencial eólico do
interior baiano supera
a capacidade de
geração de energia
das seis maiores
hidrelétricas do mundo
juntas
50 Memória
O Instituto Geográfico
e Histórico da Bahia
comemora 120 anos
com cursos, palestras e
lançamento de livro
52 Música
A prática musical de
980 crianças e
adolescentes cria uma
germinação
artística inédita no país
16
Naomar de Almeida Filho
32
Eliane S. Azevedo
40
José de Freitas Mascarenhas
4 | maio de 2014
42 Empreendedorismo
Baiana de 23 anos cria
rede social para troca de
serviços e experiências
com base no escambo
capa Ilustração: Visca
carta do editor
O primeiro passo
Mariluce Moura
E
stamos lançando hoje, 25 de maio de 2014, a primeira
edição da revista bimestral Bahiaciência.
E o que esta publicação traz e pretende trazer daqui
por diante para os leitores? Primeiro, reportagens aprofundadas e notícias tanto sobre o conhecimento científico
produzido por grupos de pesquisa baianos, em qualquer
área do conhecimento, incluindo as humanidades e o vasto campo cultural, quanto sobre inovações tecnológicas
relevantes levadas a cabo por empresas ou instituições de
pesquisa deste estado. Claro está que existe um contexto
nacional e internacional no qual a produção local se dá e
que necessariamente estará referido nos textos da revista.
Em segundo lugar, Bahiaciência quer oferecer em suas páginas reflexões primorosas sobre temas vinculados a ciência,
tecnologia e inovação, de capital importância para o desenvolvimento deste estado, elaboradas por respeitadas autoridades no assunto em pauta ou por jovens vozes nas quais, a
par do frescor do timbre e das ideias, podem-se ouvir sonoridades que aludem a um poderoso compromisso social e ao
desejo inabalável de compreender bem, fazer e transformar.
A intenção e a pretensão desta revista é, nos limites de
uma publicação jornalística, irrigar o debate sobre uma face
pouco visível e debatida do estado da Bahia, ou seja, sua
capacidade de contribuir para a expansão do conhecimento
científico no Brasil e para a ampliação da capacidade nacional de inovar em múltiplos campos da atividade econômica.
Em outros termos, o que está em seu horizonte é a difusão
da cultura científica em tempos de profunda transformação
da sociedade contemporânea, tecnologicamente amparada,
por meio de um jornalismo de alta qualidade, que aposta
na inteligência e no discernimento do leitor.
Bahiaciência se materializa como fruto da iniciativa de
uma pequena empresa privada de comunicação com longa
e consistente experiência em projetos de jornalismo científico. Seus efetivos patrocinadores serão os anunciantes e
os leitores. Seus grandes parceiros, sem os quais seria impossível pensar em percurso vitorioso para uma publicação
de jornalismo científico, devem ser os pesquisadores baianos de todas as áreas do conhecimento, as universidades
e instituições de pesquisa instaladas no estado, as agências de fomento à pesquisa, como a Fundação de Amparo
à Pesquisa do Estado da Bahia (Fapesb), outras entidades
visceralmente comprometidas com o avanço da cultura
científica no estado, a exemplo da Academia de Ciências
da Bahia, e o jornal A Tarde, o largo canal que leva Bahiaciência aos leitores.
É importante registrar, entretanto, que na origem desta
revista está a determinação do então titular da Secretaria
Estadual de Ciência, Tecnologia e Inovação (SECTI), Paulo
Câmera, de lançar uma revista de divulgação científica na
Bahia. A seu pedido, comecei em março de 2012 a elaborar
estudos de viabilidade do projeto. No primeiro deles, observava que, “sendo a Bahia, com seus 15 milhões de habitantes,
o quarto estado mais populoso do Brasil, e Salvador, sua bela
e histórica capital, a terceira maior cidade brasileira, com
cerca de 3 milhões de habitantes, surpreendia o modesto
9º lugar que desfruta na contribuição à produção científica
nacional (o Brasil ocupa o 14º lugar na produção científica
mundial)”. Observava ainda que, se a isso agregássemos sua
“7ª posição entre os estados da federação na formação do
PIB brasileiro e o 21º lugar no PIB per capita (IBGE, 2011)”,
teríamos uma medida de quanto a Bahia precisava investir
na criação de um ambiente favorável à expansão do conhecimento científico e à inovação tecnológica.
Foram tentadas algumas vias para a publicação da revista
pela SECTI, enquanto voluntariamente íamos construindo
o projeto em termos concretos. Ao substituir Câmera, em
fevereiro deste ano, a secretária Andrea Mendonça procurou assegurar seu lançamento, mas não encontrou um
meio viável para tanto.
A essa altura, com muito trabalho já realizado, graças à
colaboração de extraordinários professores, pesquisadores
e especialistas em C&T, e de muitos colegas jornalistas, designers, fotógrafos e ilustradores, perguntei-me: por que
não tentar o velho caminho jornalístico para viabilizar a publicação? Ajustes foram feitos e eis a primeira Bahiaciência.
Torço para que esta experiência/aventura vá muito longe
e aguardo seus comentários, leitores!
bahiaciência | 5
Poucas e boas
Traje para
ir a Marte
1
A Faculdade de
Filosofia e
Ciências Humanas
da UFBA: disputa
pela reitoria teve
quatro candidatos
Campanha acirrada para reitor
Foi acirrada a campanha
para a reitoria da
Universidade Federal
da Bahia (UFBA). Ao
contrário do que
aconteceu há quatro anos,
quando era possível
vislumbrar com
antecedência a eleição
da atual reitora Dora Leal
Rosa, a disputa agora
transcorreu sem grandes
favoritos e envolveu
pela primeira vez quatro
candidatos. Dois deles
apresentaram, entre
outras credenciais, o apoio
da atual reitora. São eles
o vice-reitor Luiz Rogério
Bastos Leal, professor
do Instituto de
Geociências, e o pró-reitor
de Administração
Dirceu Martins, professor
do Departamento de
Química Orgânica do
Instituto de Química.
Os outros dois candidatos
6 | maio de 2014
apresentaram plataformas
de oposição ou de
independência em relação
à gestão atual: os
professores João Carlos
Salles, do Departamento
de Filosofia da Faculdade
de Filosofia e Ciências
Humanas, e Nelson de
Luca Pretto, da Faculdade
de Educação. A campanha
ganhou a internet,
com a lançamento no canal
YouTube de vídeos com
plataformas de candidatos
e com manifestações de
apoio. O candidato João
Carlos Salles, por exemplo,
recebeu o apoio de
Marilena Chauí,
professora de filosofia
da Universidade de
São Paulo (USP), e do
compositor e ex-ministro
da Cultura Gilberto Gil.
Já Nelson Pretto
produziu um vídeo com
uma entrevista, no qual
apresentou suas ideias
para a UFBA. Debates com
a presença dos candidatos
também animaram a
campanha. A votação,
programada para os dias
20 e 21 de maio, é uma
consulta organizada pelo
Diretório Central dos
Estudantes e por
sindicatos de professores
e funcionários e servirá
como referência para os
conselhos Universitário
e Superior de Ensino,
Pesquisa e Extensão,
aos quais cabe formar
uma lista tríplice a
ser encaminhada ao
Ministério da Educação.
O escolhido vai liderar
uma comunidade
acadêmica composta por
cerca de 40 mil estudantes,
2,3 mil professores e 3 mil
funcionários e gerenciar
um orçamento anual
superior a R$ 1 bilhão.
A Nasa, a agência espacial
americana, apresentou um
modelo de roupa espacial
talhada para os astronautas
que farão a primeira viagem
a Marte. O protótipo Z-2
Tecnologia foi escolhido por
meio de votação popular no
site da agência, ao ganhar
63% dos 233.431 votos
dos internautas. A roupa
especial possui pequenos
remendos que emitem luz.
Também adota uma costura
luminescente que pode
ser personalizada, para
identificar o usuário.
Segundo a agência BBC, a
Z-2 será produzida usando
partes impressas em 3D.
Scanners de laser vão
assegurar que cada traje se
adéque ao corpo de seu
dono. A roupa será testada
em câmaras a vácuo, no
centro de treinamento da
Nasa e em um local que
imita a superfície
montanhosa de Marte. A
primeira viagem tripulada
ao planeta vermelho está
prevista para 2030.
2
A roupa Z-2, escolhida pelos
internautas: impressão em 3D
Acervo
reaberto
3
Palestrante da
conferência: 600
pesquisadores
de mais de
50 países se
reuniram na
capital baiana
Os modos de comunicar a ciência
Salvador sediou entre os
dias 5 e 8 de maio a 13ª
Conferência Internacional
sobre Comunicação Pública
da Ciência e Tecnologia.
O encontro ocorreu pela
primeira vez na América
Latina e reuniu cerca de
600 pesquisadores de mais
de 50 países para debater
práticas e estratégias de
comunicação e divulgação
científica adotadas em
diferentes partes do globo.
Com o tema central
“Divulgação da ciência
para a inclusão social e o
engajamento político”, o
evento promoveu debates
cujo denominador comum
foi a busca por uma
divulgação científica mais
participativa, capaz de
contemplar as demandas
do público e não apenas
reproduzir o modo de
pensar dos pesquisadores.
Outro mote foi a promoção
do diálogo da produção
científica dos países em
desenvolvimento com
a dos países centrais –
em todas as plenárias,
a composição das mesas
levou em conta essa
diversidade. Um dos
debates mais animados foi
o que envolveu o papel das
novas plataformas da rede
mundial de computadores
no modo de comunicar
a ciência. “Com o advento
das novas mídias on-line,
as visões tradicionais da
comunicação da ciência
estão sendo redefinidas”,
disse à Agência FAPESP
Dominique Brossard,
professora da Universidade
de Wisconsin-Madison,
nos Estados Unidos.
O Museu Geológico da
Bahia, em Salvador, foi
reaberto ao público no dia
29 de abril com duas novas
salas: uma dedicada a
meteoritos e outra sobre a
criação do Universo e a
formação do Sistema Solar.
Para entender a formação
do Cosmos, por exemplo, o
visitante poderá ouvir uma
simulação do Big Bang. Já a
Sala Meteoritos conta com
telas com sensores, por
meio das quais os visitantes
terão informaões sobre 59
meteoritos e sete crateras
de impacto em território
brasileiro – um destaque
é a réplica do meteorito
Bendegó, encontrado no
sertão baiano no final do
século XVIII. Inaugurado
em 1975 e mantido pelo
governo estadual, o museu
dispõe de 20 mil peças
catalogadas, entre elas, 2 mil
estão expostas em 15 salas
temáticas. O endereço
do museu é avenida Sete de
Setembro, 2195, Vitória.
Células-tronco contra lesões na medula
fotos 1 ufba 2 alberto bertolin / nasa 3 peter ilicciev 4 cell medicine
O Centro de Terapia Celular do Hospital São Rafael, em Salvador, vai iniciar
nova fase de um tratamento experimental que usa células-tronco para recuperar circuitos nervosos em vítimas de lesões na medula. Um grupo de
60 pacientes participará do experimento, que utilizará técnicas de imagem
para fazer três aplicações de células-tronco na medula. A primeira fase foi
concluída e envolveu 14 pacientes paraplégicos, que receberam uma única aplicação de células-tronco mesenquimais, com grande potencial de
regeneração. Segundo a coordenação do centro, todos os pacientes apresentaram alguma melhora na qualidade de vida. As pesquisas com células-tronco são vistas como alternativas aos exoesqueletos para pacientes com
lesões medulares – como o que dará o chute inicial na Copa do Mundo –
criticados por não terem propósitos terapêuticos.
4
Células-tronco mesenquimais: estratégia para tratamento
experimental para recuperar circuitos nervosos
bahiaciência | 7
entrevista
Um cientista
tranquilo
Em atividade desde os anos 1950, Zilton de
Araújo Andrade deu contribuições seminais
para o conhecimento da esquistossomose
e de outras doenças parasitárias
Mariluce Moura e Claudio Bandeira
8 | maio de 2014
Fernando Vivas
A
os 90 anos – e parecendo uns bons anos
mais novo –, o professor Zilton de Araújo
Andrade vai diariamente ao trabalho no
Centro de Pesquisas Gonçalo Moniz da
Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), na rua Waldemar
Falcão, no Candeal, em Salvador. Ali, ele prossegue
em suas atividades científicas e administrativas como chefe do Laboratório de Patologia Experimental
(Lapex), do Centro de Pesquisas Gonçalo Moniz, e
professor dos cursos de pós-graduação em patologia
humana (UFBA), imunologia (UFBA) e biotecnologia
e medicina investigativa (Fiocruz).
Tranquilo e vigoroso, senhor de uma memória prodigiosa e de uma prosa discreta e cativante, este baiano de Santo Antônio de Jesus é referência obrigatória nos estudos sobre esquistossomose, além de ter
bahiaciência | 9
dado contribuições importantes para
a compreensão da doença de Chagas
e para as patologias do fígado ligadas
às doenças parasitárias. Entre seus
trabalhos mais citados na literatura
científica internacional estão Mild prolonged shistosomiasis in mice: alterations
in host response with time and the development of portal fibrosis, elaborado
em parceria com Kenneth S. Warren
e publicado na revista Transaction of
Royal. Society of Tropical Medicine and
Hygiene, em 1964, e Pathological lesions
associated with Schistosoma mansoni infection in man, que tem como coautor
Allen W. Cheever, publicado na mesma
revista em 1967.
Formado médico pela Universidade
Federal da Bahia (UFBA), especializado em patologia pela Universidade de
Tulane, em New Orleans (EUA), doutor em patologia pela Universidade de
São Paulo (USP) e com um pós-doutoramento no Hospital Mount Sinai, em
Nova York, Zilton Andrade, professor
da UFBA desde 1953, aposentado em
1984, mas prosseguindo com as aulas
e orientações até hoje, formou gerações de pesquisadores na Bahia. Em
seu currículo consta a orientação de 40
dissertações de mestrado e de 15 teses
de doutorado. O ex-governador Roberto
Santos, seu colega na Faculdade de Medicina, aponta-o como uma das melhores pessoas de sua geração, pesquisador
de grande importância em seu campo e
uma das referências fundamentais da
pesquisa científica na Bahia. “Ele dirigiu, por exemplo, o Serviço de Patologia
e, com as sessões anatomoclínicas que
presidia, teve papel muito importante
quando o nosso Hospital das Clínicas
estava no auge de sua contribuição à
medicina científica e à medicina social
em nosso estado”, comenta.
Desde a década de 1950, Zilton Andrade tem feito seu percurso profissional, pessoal e afetivo ao lado de Sonia
Andrade, também ela pesquisadora,
patologista respeitada e professora da
UFBA, além de ser sua colaboradora na
Fiocruz. Juntos tiveram seis filhos. No
final desta entrevista à revista Bahia10 | maio de 2014
Interessei-me por esquistossomose.
Via frequentemente jovens morrendo
nas enfermarias, vomitando sangue,
e acabando nas salas de autópsias
y Qual de seus trabalhos científicos em
esquistossomose o senhor considera
mais importante para o avanço do conhecimento desta doença?
Não tenho um trabalho principal, porque tenho seguido uma linha desde o
início. Interessei-me por esquistossomose porque era uma doença que eu
via frequentemente no Hospital das
Clínicas, inclusive com indivíduos jovens morrendo, vomitando sangue nas
enfermarias e acabando nas salas de
autópsias.
especializados, em 1953. Quando estudante, trabalhei no Hospital das Clínicas, mas ao me formar o hospital
já estava completo e não oferecia vagas. Após entendimentos entre o meu
orientador, professor Paulo Darcoso
Filho, e o então diretor da Faculdade
de Medicina de Ribeirão Preto, professor Zeferino Vaz, recebi um convite para trabalhar por lá. Recebido o
convite, fui em 1956 e passei relativamente pouco tempo, porque desde que
saí daqui o professor Edgard Santos
mostrou muito interesse em que eu
ficasse na Bahia. Após trabalhar por
quase um ano em Ribeirão Preto, tive
a oportunidade de me encontrar com
alguns colegas baianos num congresso
médico e eles me estimularam a voltar
para a Bahia. Disseram ter a impressão
de que Edgard Santos me receberia de
braços abertos. Uma dessas pessoas foi
o professor Heitor Marback, da oftalmologia. Tempos depois recebi uma
comunicação dele dizendo que eu podia
voltar em boas condições. E, embora
Ribeirão pagasse então muito melhor
que todas as universidades do país, o
reitor Edgard Santos estava disposto a
cobrir esse salário. Então vim para cá –
e foi um passo positivo que dei na vida.
y Isso era ainda nos anos 1940?
Não. Minha atividade científica propriamente dita, com publicação de trabalho, etc., começou em 1950. Entrei
na faculdade em 1944 e posso considerar concluída minha formação, com
pós-graduação e viagens para estudos
y Isso foi quando? E o senhor veio vinculado ao Hospital das Clínicas?
Em 1957, vim para a UFBA com dois
cargos, o que na época era comum porque não havia ainda o regime de tempo
integral. Então, Edgard Santos fazia o
seguinte: indicava o candidato como
ciência, feita na sala de doutor Zilton na
Fiocruz, doutora Sonia lembrou que, ao
receber o título de Professora Emérita
da UFBA, em 2011, contou aos alunos
que encontrou Zilton, já um doutorando, quando, no quinto ano da faculdade, estava estagiando na Fundação
Gonçalo Muniz. “Nós começamos a nos
entender, a conversar e acabamos namorando. Foi aí que a clínica me perdeu
para a patologia”, disse, completando
com uma original declaração amorosa:
“Ele foi meu primeiro e único orientador e com ele aprendi as regras da
boa pesquisa”. A seguir reproduzimos
os principais trechos da entrevista do
professor Zilton Andrade.
professor, que assim teria um emprego
de professor, e fazia em paralelo outro
contrato de pesquisador. Portanto, era
dedicação exclusiva, como eu estava
querendo, com dois salários, de professor e de pesquisador.
y Mas voltemos de uma outra forma à
pergunta original: que trabalhos seus
ligados à esquistossomose lhe parecem
importantes?
A questão da modulação do granuloma,
por exemplo. Estava trabalhando nisso
quando o professor Kenneth Warren,
um americano da Universidade Cornell, veio dar cursos aqui. Peguei uma
fase em que Edgard Santos queria fazer
uma universidade de verdade, tinha
noção de como estimular pesquisa e
trazer professores de fora, e instalou
o Programa de Residência Médica, que
teve grande importância no atendimento dos doentes no Hospital das
Clínicas e no ensino da patologia e de
outras especialidades para os jovens
que se formavam e queriam ficar. Foi
uma fase de ouro, florescente.
Então, quando voltei de Ribeirão
Preto, começamos a trabalhar. Kenneth
Warren tinha infectado camundongos
com esquistossoma nos Estados Unidos e contado o número de ovos no
fígado e nos intestinos dos animais
infectados, com uma técnica que ele
mesmo tinha desenvolvido. Viu que
o animal recém-infectado tinha uma
doença mais grave e, com o passar do
tempo, melhorava com a fase crônica.
Ele contava o número de ovos nos tecidos e verificou – para sua surpresa –
que o número de ovos era muito maior
na fase crônica que na fase aguda. Ele
me relatou isso como algo que não conseguira entender. Preservou o fígado e
incluiu em parafina e me procurou para
ver se, como patologista, eu lhe daria
alguma resposta satisfatória.
y Ou seja, por que na fase crônica da
doença o indivíduo, com maior carga
de ovos do parasito, passava melhor
do que na fase aguda?
Exatamente. O indivíduo ainda era o
camundongo. Foi um modelo simples,
já bastante usado em seus aspectos
imunológicos, tanto que foi uma surpresa para mim esse trabalho ter tido
uma repercussão tão grande. Mas a
questão é que ele pôs muita gente a
trabalhar com muitos outros modelos
e, quando os resultados desses novos
trabalhos eram publicados, citavam o
nosso artigo (Andrade e Warren). Vou
explicar alguns detalhes: verifiquei que,
na fase aguda, o ovo, ao chegar no fígado, provocava uma lesão extensa,
com necrose e inflamação muito grave.
Com o passar do tempo, o hospedeiro
ia modulando a lesão e essa modulação
tinha uma base imunológica. A novidade é que não era exatamente uma
novidade, porque era o mesmo fenômeno que se conhecia para a tuberculose,
por exemplo. O indivíduo se infecta,
a doença é grave, pode ter disseminação, com granulia, e com o passar do
tempo esse indivíduo faz uma doença
localizada, crônica.
y O que ninguém sabia é que no fígado
esse processo também ocorria na esquistossomose.
Na época, a pesquisa sobre os fatores
que ocorrem na modulação da tuberculose estava muito em voga. Muitos
desses estudos passaram a ser feitos
então com a esquistosoma, que é um
modelo muito mais simples de reproduzir em laboratório. Assim, esse fenômeno da modulação podia ser esmiuçado do ponto de vista dos fatores imunes envolvidos. O resultado foi
um trabalho atrás do outro publicados
na Europa e no mundo todo citando
o nosso trabalho como exemplo. Um
dia, um jornal de São Paulo levantou os
pesquisadores brasileiros mais citados
na literatura e, para minha surpresa,
eu me vi entre eles. E o fator principal
foi esse trabalho.
y A surpresa foi só por modéstia, não?
Tinha gente muito mais avançada, mas
a ciência caminha assim.
y O senhor pode explicar mais claramente a modulação de granuloma para os
não especialistas?
Quando o ovo do Schistosoma chega ao
fígado, há dentro dele um embrião que,
seguindo o ciclo evolutivo normal, sai
do ovo ou do tecido e vai para as fezes.
Para tanto, o embrião dispõe de umas
glândulas que produzem uma substância que destrói os tecidos do hospedeiro em volta do ovo e permite sua saída
desse mesmo ovo quando chega perto
da luz intestinal, e é eliminado pelas
fezes. Isso é da rotina da evolução do
parasita. Macho e fêmea, reprodução
de ovo, e esse ovo amadurece. Maduro
é que ele sai; se não amadurecer, não
sai, fica preso no fígado. A destruição
de tecidos do hospedeiro não se faz
de graça e o organismo parasitado e
já sensibilizado pelo Schistosoma – pelo verme – faz uma reação violenta,
aguda, inclusive com necrose do tecido. Essa é a reação inicial, mas, com o
passar do tempo, o organismo modula a resposta imunológica e não tem
mais necessidade de fazer tamanha
reação – acontece com muitos indiví-
Foi uma surpresa para mim a
repercussão tão grande do nosso artigo
(meu e do Warrent) sobre modulação
na esquistossomose
bahiaciência | 11
duos que têm esquistossomose e estão
passando sem maiores problemas. O
organismo, ao aprender a modular a
resposta, faz uma reação mais efetiva
e mais econômica.
y Mas o senhor dizia que essa fase não se
estabelece sem danos e prejuízos para
o organismo.
Exatamente. Se a carga parasitária for
muito grande, essa resposta, mesmo
modulada, lenta e efetiva, deixa fibrose
e lesões vasculares obstrutivas. Essa fibrose prejudica a vascularização do fígado. E foi isso que eu mostrei a Warren.
y Qual é a consequência desse trabalho para o controle e o tratamento da
doença?
A tentativa inicial desse trabalho foi
explicar o que acontece com os infectados, principalmente para visitantes
de áreas endêmicas ou de locais em
que a esquistossomose se instalou
recentemente e apresenta, portanto,
muitos casos graves. Pode-se chegar
numa área em que está todo mundo
infectado, mas ninguém se queixa de
nada e, de vez em quando, aparece um
menino com barriga grande vomitando
sangue. Aí se diagnostica esquistossomose, adquirida na infância, período
mais suscetível. E o conhecimento se
dá assim. Quando se chega numa área
com casos agudos frequentes, é certo
que ali a esquistossomose se instalou
recentemente.
y A partir desse trabalho, como foi o desenvolvimento de sua linha de pesquisa
em esquistossomose?
Continuamos a estudar a doença no
homem e a publicar os achados que
tivemos e que iam facilitar o estudo
de outros. Aparecia um detalhe, explorávamos um pouco mais, porque é
isso que se faz em ciência. Ao mesmo
tempo, íamos vendo outras doenças.
y O senhor trabalhou simultaneamente
com Chagas. Como foi?
As doenças parasitárias costumam ter
essa fase de instalação aguda. Mas Cha12 | maio de 2014
Se a carga parasitária for muito grande,
a resposta imunológica, mesmo modulada,
lenta e efetiva, deixa fibrose e lesões
vasculares obstrutivas
gas é diferente, não essencialmente,
mas quanto à manifestação. Publicamos no boletim da Fundação Gonçalo
Moniz, em 1955, com a colaboração de
Sonia Andrade, um trabalho bem extenso sobre a doença que foi bem estudada
por Carlos Chagas e o pessoal de Manguinhos [Fundação Oswaldo Cruz, no
Rio de Janeiro] e explorada aqui também por Adriano Pondé. Mas ela não
chamava muita atenção na Bahia. Em
nosso caso, estávamos estudando esquistossomose e vimos que uma linha
a ser explorada era a da patologia das
doenças parasitárias e, no que em particular me diz respeito, principalmente
quando praticando necropsias no Serviço de Patologia do Hospital Professor
Edgar Santos. Este hospital, quando foi
inaugurado, tinha condições tão boas
quanto as de qualquer hospital americano onde trabalhei. Havia facilidades para fotografias, microfotografias
e para cortes em congelação. Assim, em
relativamente pouco tempo, tínhamos
acumulado uma série de casos de indivíduos que morreram com manifestações
cardíacas devido à doença de Chagas.
Lendo o que já tinha sido publicado,
vimos que, em termos de patologia e
patogenia, havia ainda muita coisa a ser
explorada. Estudamos 22 casos, com o
intuito de explorar o quadro histopatológico da doença.
y Nessas autópsias para ver os danos
provocados por doença de Chagas, quais
órgãos vocês examinavam mais?
O principal era, e é, o coração. Os outros têm repercussões secundárias, de-
pendentes da falência cardíaca e dos fenômenos tromboembólicos. A maneira
como o parasita provoca a infecção tem
fatores imunológicos envolvidos: alguns
têm uma doença crônica, prolongada,
em outros ela tem curso mais agudo. Os
fatores imunológicos eram justamente
o que eu precisava estudar para esclarecer detalhes de vários estudos prévios.
y Nesse estudo o senhor falava de algumas dessas diferenças no coração dos
vários indivíduos autopsiados?
Definíamos o quadro patológico que
encontrávamos. A ideia era fornecer
detalhes morfológicos para um diagnóstico preciso na mesa de autópsia,
evidentemente a ser confirmado depois
com a microscopia.
y Quando vocês estudavam o músculo
cardíaco, o que encontravam?
Era a clássica miocardite crônica, uma
inflamação no coração com sinais de
que era progressiva e prolongada e que
vai destruindo o músculo e o deixando flácido.
y Professor, vamos falar de seus primeiros anos da vida e de como se encaminhou para a medicina e a ciência? Vamos partir do começo, maio de 1924. O
senhor é taurino.
Isso, taurino. Meu pai era funcionário
federal, de uma coletoria em Santo Antônio de Jesus. Tinha oito filhos, sendo que eu era o segundo. O pessoal da
minha geração, numa situação assim,
já sabia que teria que trabalhar logo.
Sendo o segundo filho, devia trabalhar
para ajudar a família. Conversando com
meu pai, ele disse: siga sua vocação,
veja o que quer fazer, o resto deixe comigo. Foi fundamental a orientação da
professora Áurea Bittencourt. Era uma
pessoa rígida, enérgica. Eu tinha 11 ou
12 anos, ainda em Santo Antônio, e ela
percebeu meu interesse, minha maneira de estudar. Eu gostava do método de ensino dela, me sentia melhor,
aprendendo. Ela era protestante, e numa das vindas a Salvador, conheceu o
colégio americano, que é o atual Dois
de Julho. Falou então com meu pai e
mostrou o estatuto. Ele veio a Salvador
e no caminho encontrou um amigo de
infância, o professor Manuel Peixoto,
que era então diretor do Ginásio Ipiranga, que ficava na Ladeira do Sodré,
na casa em que morreu Castro Alves.
Acabei indo para o Ipiranga, onde fiz
todo o meu curso ginasial.
y O senhor tinha um avô jornalista?
Sim, o meu avô materno, Antonio Mendes de Araújo, fundou e dirigiu um jornal quinzenal, em Santo Antônio de Jesus, por mais de 50 anos. Chamava-se
O Paládio e circulava no Recôncavo...
Ele escrevia, fazia discurso, era intelectualizado.
y E enquanto estudava no Ipiranga, onde o senhor morava?
Era interno no colégio, comia e dormia
lá. Quando cheguei tinha 13 anos exatamente e fiquei quatro anos interno.
No quinto ano, a família já tinha vindo, só meu pai ficou lá. Fiquei externo
um ano, e depois fui para o Ginásio
da Bahia, que já era no mesmo lugar
que depois se chamaria Colégio Central. Nessa época começou a divisão do
ensino médio em clássico e científico
– tinha até blusões diferentes. E eu
fiz dois anos, porque tinha feito cinco
anos no Ipiranga. Depois é que passou
a ser quatro anos de ginásio e três anos
do curso colegial.
Sim, foi no Ipiranga. Na realidade
foram leituras de divulgação científica, eu tinha um interesse em ciência em geral. Adorava filmes que eu
via de laboratório, com aqueles tubos saindo fumaça, vários filmes
em que sabia que de vez em quando apareceriam cenas de laboratórios. Era interesse em ciência mesmo. Li um livro sobre cientistas, de
Paul [Henri] de Kruif [microbiologista americano, 1890-1971]. Esse livro
[Caçadores de micróbios, de 1926, um
best-seller que inspirou, segundo a Wikipedia, muitos aspirantes a cientistas]
é interessantíssimo. Até lê-lo, eu via
os cientistas como seres sobrenaturais,
distantes, difíceis, tinha interesse em
ciência, mas não em fazer ciência. Aí
li o livro e tudo foi diferente: ele mostrava Pasteur, por exemplo, como um
sujeito comum, aproximava os grandes
cientistas da vida do homem normal,
comum. E mostrava o que as descobertas podem fazer e como se tornam
uma coisa muito interessante para o
indivíduo, um desafio intelectual.
y Seus outros irmãos seguiram carreira
científica?
Não, eu tinha três irmãos, um morreu
de acidente. Dos demais, um é advogado e outro é repórter fotográfico,
em Aracaju.
y Quantos anos o senhor tinha quando
leu o Paul Kruif?
Foi na escola de Dona Áurea, às vésperas de vir fazer o [exame de] admissão,
em 1937. Já lia divulgação científica,
mas com espírito esportivo, aos 11 e
12 anos.
y Como nasceu seu interesse específico
por patologia? Foi na época do laboratório?
Vamos voltar ao tempo em que meu
colega Alípio Castelo Branco leu em A
Tarde sobre a convocação para o concurso ao cargo de técnico de laboratório
no Instituto de Saúde Pública criado
por Mangabeira. Era no Canela. Mangabeira Filho tinha decidido montar
um laboratório de pesquisa dentro do
instituto. Preparou um curso para fazer
y Em sua casa tinha uma biblioteca?
Não, eu ia atrás da biblioteca pública e,
às vezes, quando sobrava um dinheirinho, comprava livros.
y Como foi o seu curso na Faculdade de
Medicina?
Achei que o curso era muito teórico.
Por isso, já no terceiro ano encontrei
uma oportunidade de trabalhar em
laboratório num novo instituto que
estava sendo organizado no governo
de Octa­vio Mangabeira. Fui aprovado
num concurso para técnico de laboratório e comecei a trabalhar em um
laboratório de bacteriologia. O filho
de Man­­gabeira, Mangabeira Filho,
que era médico e cientista, me procurou, viu que eu tinha interesse e
me perguntou se eu já tinha tido aula
de patologia. Disse então que ainda
ia começar. Na época o professor da
cadeira era o professor José Coelho
dos Santos, que de quando em vez
tinha problemas com os estudantes.
Leituras de divulgação científica inspiraram
minha ida para o campo da ciência. Até ler
Caçadores de micróbios, de Paul Kruif, eu
via os cientistas como seres sobrenaturais
y O que fez o senhor descobrir a medicina como um caminho? Foi ainda no
Ipiranga?
bahiaciência | 13
o treinamento do pessoal. Os técnicos
que passassem na seleção e tivessem
tendência e título podiam se inscrever no curso. Fiz isso e foi espetacular.
Mangabeira trouxe os melhores professores do Brasil na época, e o curso foi
completamente diferente dos blá-blá-blás teóricos a que estávamos acostumados: era entrar no laboratório e trabalhar. Enquanto trabalhávamos, íamos
sabendo das coisas, mandavam-nos
ler isso e fazer aquilo. Era informação,
prática de pesquisa, tudo articulado. O
curso durou dois anos e incluiu também patologia, e quem veio ensiná-la
foi Paulo Dacorso Filho, professor da
Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro, veterinário que se especializara
em patologia, com curso nos Estados
Unidos, e que acabou sendo o patologista que mais fazia diagnóstico em
biópsias de câncer, etc., para o pessoal
do Rio. Os professores de fora sempre
tinham um auxiliar e me informaram
que eu tinha que preparar o laboratório
e ficar auxiliando no curso.
y O Instituto chamava-se Gonçalo Moniz?
Ainda não, era chamado Instituto Oswaldo Cruz. Tinha um posto de vacinação, que vacinava contra raiva, e laboratórios de exames para os serviços
de saúde. Mangabeira Filho foi quem
surgiu com a ideia de fazer o instituto
de saúde pública, como é hoje o Lacen
[Laboratório Central de Saúde Pública
Professor Gonçalo Moniz]. Os exames
do estado passavam a ser feitos aqui
e, ao lado, teria um instituto de pesquisa ao estilo de Manguinhos, porque
sem este, em sua visão, o primeiro iria
atrofiar porque ficaria desatualizado.
O curso tinha estudantes e médicos
clínicos. Os melhores professores existentes naquela época no país vieram
ministrar as aulas – entre eles, Otto
Bier (bacteriologia), Samuel Pessoa (parasitologia), Hugo Souza Lopes (entomologia), Paulo Dacorso Filho (patologia) e Leônidas Deane (parasitologia).
y Como foi ter aulas com Samuel Pessoa?
Ao vê-lo, eu vi pela primeira vez um
14 | maio de 2014
Kruif mostrava Pasteur, por exemplo,
como um sujeito comum, aproximava
os grandes cientistas da vida do homem
normal, comum
pesquisador em ação. Ele foi influente para muita gente, principalmente
em São Paulo. Fazia pesquisa, ia ao
campo e entusiasmava todo mundo
com sua pesquisa. Meu primeiro trabalho publicado foi com ele, sobre a
filária [vermes nematoides]. Saiu na
revista O Hospital, muito conhecida
dos médicos na época, mas que hoje
já não existe.
y Na mesma época desse curso o senhor
estava terminando a faculdade e depois
foi para o exterior. Como essas coisas
se ligam e quanto tempo o senhor passou fora?
Dessa vez passei dois anos em New
Orleans, na universidade de Tulane.
Lá, me concentrei na rotina de patologia, não fazia nenhuma pesquisa em
especial. Ia para a sala de autópsias,
fazia os procedimentos. Antes, fizera
um estágio de seis meses em São Paulo, por sugestão do professor Dacorso,
algo intermediário. Fiz várias autópsias no Hospital das Clínicas da USP.
Samuel Pessoa me orientou a procurar o professor Constantino Mignone,
mas fiquei mesmo com Mário Rubens
Montenegro, que era um assistente na
época e depois veio a ser um extraordinário professor. Nos Estados Unidos, treinei inicialmente em técnicas
de autópsia. Um outro período, como
pesquisador, sob orientação do doutor
Emmanuel Farber [respeitado patologista canadense, instrutor de patologia
em Tulane no começo da carreira], e
depois voltei.
y O senhor já estava casado com a doutora Sonia?
Não, era noivo, mas me casei depois
que voltei. Após sua formatura em 1953,
Sonia ficou estagiando no Hospital das
Clínicas, como bolsista do CNPq.
y Quando o senhor voltou dos Estados
Unidos, foi direto para Ribeirão Preto?
Não, voltei para Salvador. Mas Octavio
Mangabeira não era mais governador e
tinha um grupo que começou uma divergência no instituto, o clima, que era
bom, ficou prejudicado. Nessa época fui
para Ribeirão. Quando voltei, vim para
o Hospital das Clínicas, como disse, fiz
livre-docência e continuei com os dois
empregos, de professor e de pesquisador.
Roberto Santos [ex-reitor da UFBA, ex-governador da Bahia] estava formando
então um grupo de ensino e eu participei
desse grupo. Ficamos num período bom,
de ambiente acadêmico de boa qualidade. Aí o próprio Roberto Santos me
comunicou haver uma inscrição para
um estágio nos Estados Unidos e perguntou se eu queria participar, já que
eu estava trabalhando com esquistossomose e ele podia conseguir um estágio
com o grande hepatologista Hans Popper. Esse trabalhava no Hospital Mount
Sinai, junto do Central Park, em Nova
York. Inscrevi-me, fui aprovado e fiquei
um ano lá, sob orientação do professor
Popper, estudando patologia hepática.
Foi muito bom.
y O senhor estudou então vários problemas do fígado.
Fernando Vivas
Estados Unidos. Houve um americano
que nos trouxe uma técnica de injetar
plástico nas veias do fígado e depois
dissolver o órgão no ácido, de forma
que ficava só o modelo, o que é muito bom para estudar as lesões vasculares que a esquistossomose provoca
no fígado.
y O senhor se aposentou quando da Faculdade de Medicina?
Em 1980. Quando saí, me integrei completamente aqui na Fiocruz em tempo integral. A pós-graduação em patologia foi uma conquista muito boa
que eu consegui com o auxílio de Luis
Macedo Costa, diretor da Faculdade de
Medicina, que facilitou a transferência
do curso aqui para a Fiocruz. Foi este
curso que ajudou a formar aqui vários
pesquisadores.
Sim. Nessa época, Popper publicou um
livro e me pediu um capítulo sobre esquistossomose hepática, o que fiz. É um
artigo didático, da patologia do fígado
em geral, principalmente como se apresentam as lesões vasculares. Depois eu
voltei para trabalhar mais especificamente com a patologia hepática. Comecei a estudar cirrose, hepatite, hepatite
associada à esquistossomose, juntando
o útil ao agradável, como dizem.
y O senhor formou outros patologistas
e pesquisadores em sua área. Como foi
essa experiência didática?
Para a revista que comemora o bicentenário da Faculdade de Medicina da
UFBA, pediram-me um capítulo no
qual eu destaco o trabalho de formação de grupos em patologia. Ficou tão
bom e animado esse trabalho, que recebemos estudantes de todas as partes
do Brasil. E até de fora, da Bélgica, dos
y Eu queria que o senhor falasse um pouco sobre a dificuldade de fazer pesquisa
científica no Nordeste.
Escrevi um artigo em 1987, “A pesquisa médica no Norte e Nordeste”,
para o Congresso de Cardiologia no
Pará. Eu digo o seguinte: a pesquisa científica depende de dinheiro e
os países mais ricos produzem mais
ciência e de melhor qualidade. No caso do Brasil, isso continua se refletindo nos estados do Sul e do Sudeste,
principalmente São Paulo, que tem
mais dinheiro para investir em pesquisa. Isso facilita não só a obtenção
de aparelhos, como o intercâmbio. O
pessoal, vendo que lá fora estão publicando trabalhos feitos com técnicas avançadas, vem e quer intercâmbio, correspondência e isso e aquilo.
Agora, fiz nesse trabalho uma defesa
do CNPq, onde fui convocado muitas
vezes para dar pareceres. Havia queixas, o Congresso estava interessado
em saber se havia discriminação, e
eu mostrei que não existia isso. Nos
grupos de avaliação, quando chegava
um trabalho do Nordeste, com boas
técnicas e bons resultados, causava
admiração e simpatia dos assessores,
ao contrário do que se possa pensar. w
bahiaciência | 15
artigo
Educação superior para a sociedade
tecnocientífica: universidade nova na Bahia
Naomar de Almeida Filho
N
os próximos anos, a Bahia receberá importantes investimentos estratégicos dos governos
federal e estadual: uma via férrea dedicada
ao transporte de minérios e grãos (Ferrovia
Oeste-Leste), dois portos de exportação, aeroportos internacionais, centros de logística e um conjunto
diversificado de parques industriais, principalmente nos
setores automotivo, petroquímico, estaleiros e energias
renováveis. Projetos de desenvolvimento regional dessa
natureza e outras possibilidades certamente demandarão
recursos humanos qualificados para planejamento, implantação, consolidação e, posteriormente, para a manutenção
dos empreendimentos e iniciativas decorrentes. Para isso,
será imprescindível a formação, urgente e em escala massiva, de mão de obra qualificada em nível universitário, tanto nas áreas acadêmicas quanto em carreiras profissionais
e tecnológicas pertinentes. Este conjunto de demandas
e oportunidades contrasta com o quadro de deficiências
educacionais e baixa cobertura de educação superior ainda observado no estado da Bahia, refletindo um contexto
nacional neste aspecto ainda bastante precário.
Não obstante, duas tendências de mudança ampla e
profunda podem hoje ser identificadas no cenário do ensino superior do Brasil: expansão com inclusão social. No
ano 2000, menos de 3% da população brasileira estava na
universidade. Desde então, a taxa de escolarização bruta
aumentou rapidamente, principalmente em instituições
públicas federais, com um crescimento de mais de 130%
entre 2001 e 2013. A primeira onda de expansão, promovida entre 2005 e 2010, resultou em 14 novas universidades e 126 campi de universidades e escolas técnicas federais, em sua maioria localizadas no interior. Em paralelo,
houve forte incentivo para combinar essa expansão com
ações afirmativas e outras políticas de inclusão social, seja como resultado de iniciativas autônomas por parte das
universidades públicas, seja como em função de novas leis,
regulamentos e normas. Na Bahia, tais vetores assumiram
a forma de cotas étnico-sociais combinadas com interiorização: em 2001, apenas 585 vagas públicas federais foram
ofertadas no interior do estado, em contraste com 2010,
quando mais de 11 mil vagas federais foram abertas.
16 | maio de 2014
O programa de expansão universitária da presidente Dilma também
foi planejado para contribuir para o
desenvolvimento econômico estratégico. Em três anos, 47 campi universitários e extensões de escolas técnicas
foram implementados em cidades
escolhidas como polos de desenvolvimento regional. Além disso, quatro
universidades estão sendo criadas
“É urgente a
formação em
em territórios ainda pouco atendidos
escala massiva
pelo ensino superior público. Como
de mão de obra
exemplo disso, podemos citar o terde nível
ritório baiano, anteriormente deuniversitário”
sassistido e agora contemplado com
duas das novas instituições federais
de educação superior.
Uma dessas instituições é a Universidade Federal do Sul
da Bahia (UFSB), localizada na região costeira onde os portugueses desembarcaram pela primeira vez no Brasil, ainda
um dos territórios mais desiguais e carentes do Nordeste
brasileiro. A concepção do currículo da nova instituição
prevê total compatibilidade internacional, com base em
ciclos de aprendizagem integrados a uma rede de colégios
universitários, destinada a alunos que se formaram em
escolas públicas localizadas em pequenas cidades, assentamentos rurais, aldeias indígenas e quilombos. Aproveitando
as instalações do sistema público de ensino secundário, os
colégios universitários estarão localizados em cidades com
mais de 20 mil habitantes e mais de 300 egressos do ensino médio. Cada ponto da rede de colégios da comunidade
contará com equipamentos de teleducação conectados a
uma rede digital de alta velocidade.
No primeiro ciclo, o modelo UFSB de Educação Geral é
baseado em cursos de três anos chamados de bacharelados
interdisciplinares, compreendendo uma abordagem inovadora que pode ser designada como um neo-quadrivium: línguas
modernas (minimamente, português e inglês), processamento de conhecimento instrumental (competências digitais e
habilidades conectivas), raciocínio lógico-interpretativo (uso
eficiente de estratégias analíticas e retóricas) e cidadania glo-
foto Fernando Vivas ilustração ana paula campos
bal (consciência eco-histórica). Sua plataforma pedagógica
baseia-se em três aspectos: primeiro, uma arquitetura curricular organizada em ciclos, com modularidade progressiva;
segundo, um regime letivo quadrimestral para a otimização
de equipamentos, instalações, pessoal e recursos financeiros;
terceiro, uma combinação de pluralismo educacional e uso
intensivo de tecnologias digitais para a educação superior
transformadora. O bacharelado interdisciplinar em ciência
e tecnologia será oferecido para aqueles que pretendem ser
treinados como profissionais, acadêmicos, pesquisadores e
desenvolvedores do campo tecnocientífico. Os graduados
que desejarem prosseguir para o segundo ciclo, visando a
carreiras acadêmicas ou profissionais, especialmente aquelas de base tecnológica, serão selecionados com base em
desempenho no primeiro ciclo.
Cursos de segundo ciclo serão ministrados em centros
de formação, com currículos inovadores e métodos ativos, equipes de ensino-aprendizagem compartilhado, uso
massivo de tecnologias digitais, forte ênfase na tutoria,
autoinstrução e foco na prática. Práticas pedagógicas serão estruturadas pelos seguintes formatos: aprendizagem
baseada em problemas concretos (ABPC), ajustada ao contexto e objetivos do curso; equipes de aprendizagem ativa,
formadas por grupos de dois/três alunos de cada ano, trabalhando em todos os níveis do campo de prática; estratégias compartilhadas de aprendizagem, em que os alunos de
cada turma são tutores de seus colegas de coortes menos
avançadas; atividades de avaliação orientada pela prática
para supervisão, coordenação e validação de conhecimento e tecnologias.
Hoje, no Brasil, a formação de profissões relacionadas
com ciência e tecnologia se dá em cursos lineares de graduação. Neste regime, entrando diretamente nos cursos
profissionais, estudantes ainda jovens e imaturos são forçados, muito cedo em suas vidas, a tomar decisões cruciais
de escolha de carreira. Por um lado, a dura competição para
entrar em cursos de maior prestígio social (por exemplo,
engenharia), geralmente após cursos preparatórios caros,
praticamente torna-os monopólio das classes abastadas,
cujos membros tendem a apoiar projetos individualistas de
formação profissional. Por outro lado, entre profissionais
do campo tecnocientífico, quase não há lugar para a formação geral necessária para uma visão humanista mais ampla
da sociedade, da cultura e da economia. Neste contexto,
currículos independentes, projetados para exclusividade,
tendem a ser menos interdisciplinares e mais especializados, alienando segmentos profissionais uns dos outros,
dificultando a formação de profissionais capacitados para
eficientemente trabalhar em equipe.
É certo que o desenvolvimento da Bahia terá como base
ferrovias, trens e portos para transporte de minérios, parques industriais e centros de distribuição de bens e serviços.
Porém, para torná-lo sustentável e socialmente impactante,
será preciso engajar e beneficiar preferencialmente a economia local, mediante programas de graduação em engenharia
e outras carreiras tecnológicas nos setores de transportes,
química, logística, computação, mineração, etc., visando à
formação de mão de obra local. Entretanto, para além do
desenvolvimento imediato, é preciso também identificar demandas específicas de propostas de formação, relacionadas
não somente ao crescimento econômico, mas também ao
desenvolvimento social e humano do estado da Bahia. Neste
caso, enquadram-se os campos da saúde, do desenvolvimento
ambiental sustentável e das economias criativas, nos campos das humanidades e das artes. Logicamente, todas essas
perspectivas justificam projetos de formação universitária de
base interdisciplinar, com pedagogias abertas, compatíveis
com tendências científicas, acadêmicas e tecnológicas mais
avançadas na sociedade tecnocientífica, na linha do projeto
político-pedagógico da UFSB. w
Naomar de Almeida Filho
MD, Ph.D., professor titular do Instituto de Saúde Coletiva da UFBA.
Reitor da Universidade Federal do Sul da Bahia.
bahiaciência | 17
capa
Um parque
para avançar
Depois de atrair multinacionais como IBM e Portugal
Telecom, Parque Tecnológico da Bahia prepara
expansão com centros de biotecnologia e energia
U
m enclave tecnológico capaz de
articular pesquisadores, empresas inovadoras e instituições de
ensino e pesquisa começou a funcionar em Salvador, em setembro
de 2012, e vai ganhar novas instalações para
multiplicar suas atividades até 2015. Dedicado
integralmente à pesquisa aplicada, o Parque
Tecnológico da Bahia já atraiu 37 instituições e
empresas inovadoras de tecnologia da informação e comunicação selecionadas em chamadas
públicas, reunindo multinacionais como IBM,
Ericsson e Portugal Telecom, empresas de software da Bahia, como a Softwell e a Jusbrasil,
e empresas nascentes na incubadora Áity, que
na língua guarani significa “ninho”.
O primeiro edifício do parque, o Tecnocentro, já está com sua capacidade preenchida –
lá trabalham hoje 450 pessoas. Vários prédios
e laboratórios vão surgir nos próximos meses
na área de 581 mil metros quadrados situada
na avenida Paralela, a 5 quilômetros do Aeroporto de Salvador. O principal deles é o Centro
de Biotecnologia, que envolve a construção de
18 | maio de 2014
um complexo de laboratórios, além de uma escola de iniciação científica e o Museu Mundo
da Ciência. O complexo vai ocupar uma área
de 26 mil metros quadrados e terá 13 espaços
interligados, com as instalações convergindo
para uma vista da Mata Atlântica. Já estão garantidos R$ 28,9 milhões do Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES)
para a segunda etapa do parque e R$ 23 milhões
do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação
(MCTI) e do governo da Bahia para a compra
de equipamentos dos laboratórios de pesquisa.
Um novo prédio para abrigar novas empresas de tecnologia da informação também está
previsto. A Petrobras, em coope­ração com a
Universidade Federal da Bahia (UFBA), vai implantar em breve um centro de pesquisa sobre
campos maduros de petróleo que ainda contêm
óleo, mas cuja viabilidade econômica esgotou-se
após a exploração intensiva. O Centro Integrado de Manufatura e Tecnologia (Cimatec) do
Senai terá um laboratório de bioengenharia,
voltado para pesquisa aplicada para a indústria,
principalmente os segmentos de equipamen-
gabriel pinheiro
Fabrício Marques
Os limites do parque
A área do Parque Tecnológico da Bahia divide-se em 83 lotes, sendo 61 privados e
22 públicos. Abaixo, a distribuição das instalações que devem estar concluídas até 2015
Já construído
Tecnocentro Implantado em uma área
de 25.900 metros quadrados, abriga empresas de
tecnologia da informação e comunicação,
desenvolve pesquisa em bioinformática,
biossensores e desenvolvimento de softwares
e dispõe de uma incubadora de empresas.
Futuras instalações
Laboratórios compartilhados Nove instalações serão utilizadas por diversas
instituições de pesquisa e universidades do país,
com plataformas de biotecnologia e 20 linhas
de pesquisas. Uma das principais vocações será a
descoberta de novos fármacos.
Petróleo Fruto de cooperação entre a Petrobras
e a Universidade Federal da Bahia (UFBA), o
Centro de Tecnologia em Energia e Campos
Maduros (Cetecam) será referência na pesquisa
sobre campos de petróleo que ainda contêm óleo,
mas cuja viabilidade econômica esgotou-se após
a exploração intensiva.
Museu Mundo da Ciência/ Escola de
Iniciação Científica Equipamentos científicos
e tecnológicos de áreas como eletromagnetismo,
robótica, mecânica, entre outras, serão
relacionados ao cotidiano dos alunos para
promover a aproximação com a ciência. Na escola
funcionarão oficinas profissionalizantes
destinadas prioritariamente a alunos da rede
pública de ensino.
Senai/Cimatec O Centro Integrado de
Manufatura e Tecnologia (Cimatec) do Senai
terá um laboratório de bioengenharia, voltado
para pesquisa aplicada para a indústria,
principalmente os segmentos de equipamentos
e tecnologias na área da saúde.
Laboratórios especializados Em parceria
com universidades, os laboratórios atuarão
nas áreas de nanotecnologia, bioengenharia e
biomecânica e certificação de equipamentos
médicos e painéis fotovoltaicos.
Vista aérea do
parque: complexo
de prédios
e laboratórios
vai surgir nos
próximos meses
bahiaciência | 19
tos e tecnologias na área da saúde. Futuramente, o Serviço Social da Indústria (Sesi) planeja
montar um centro de pesquisa para a saúde do
trabalhador. A sede da Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado da Bahia (Fapesb) também
vai transferir-se para o parque. O Plano Diretor
de Desenvolvimento Urbano do parque prevê a
expansão de seus domínios para uma área total
de 1,1 milhão de metros quadrados.“O interesse
do governo da Bahia em incrementar o parque
está expresso no orçamento do Estado de 2013”,
diz o deputado estadual Paulo Câmera, secretário
de Ciência, Tecnologia e Inovação da Bahia entre
2011 e 2013 e um dos artífices do parque. “Poucas
secretarias tiveram acréscimo de orçamento e a
de Ciência, Tecnologia e Inovação é uma delas,
com 227% mais de recursos em relação a 2012”.
P
ara as empresas associadas, a chance de
integrar um parque tecnológico traz benefícios imediatos, como a possibilidade
de usar a expertise de bons pesquisadores em
temas estratégicos, e também ganhos de longo
prazo, como a chance de interagir com outras
empresas e pesquisadores atuantes no parque
e de recrutar jovens pesquisadores para seus
quadros. “Nossa presença no Parque Tecnológico da Bahia visa captar e desenvolver o talento
local, assim como fomentar parcerias e colaborações tanto no âmbito público como privado”,
afirma Antonio de Farias Leite Neto, diretor
no Brasil da Indra, multinacional espanhola
que se instalou no Parque Tecnológico da Bahia
em setembro de 2012. “O objetivo é reforçar a
aposta da multinacional na inovação aplicada
tanto à melhora contínua de processos como ao
desenvolvimento de novas soluções e serviços,
traduzidas no incremento da qualidade, produtividade e competitividade.” A Indra é uma
das empresas-âncoras do parque, ocupando um
andar completo com 555 metros quadrados de
área, onde trabalham 70 funcionários, em sua
maioria de nível universitário das carreiras de
tecnologia da informação. A empresa mantém
no parque um centro de competência de telecomunicações, destinado ao desenvolvimento de
soluções para as operadoras do Brasil e internacionais, além de projetos nas áreas da mobilidade, smart cities e segurança. Também trabalha
em parceria com o Centro Universitário Jorge
Amado (Unijorge) na implantação de tecnologias para a inclusão digital e social de pessoas
com deficiência. A empresa tem uma rede de 75
20 | maio de 2014
laboratórios de software e centros de excelência
instalados em 45 cidades do mundo. No Brasil,
criou o Centro de Excelência Mundial para Tecnologias Energéticas na cidade de Campinas, no
interior paulista, no qual desenvolveu soluções
tecnológicas para a gestão da distribuição de
energia implantadas em empresas do Brasil e
em companhias de energia da República Dominicana, Colômbia, Venezuela, Peru e Argentina.
Outra empresa internacional a integrar o
parque, a Portugal Telecom Inovação Brasil,
braço de pesquisa e desenvolvimento do grupo Portugal Telecom, fixou-se no parque para
desenvolver serviços de redes inteligentes e
gestão de campanhas, além de elaborar promoções com base em comportamentos sociais. Já
o interesse da IBM Brasil foi criar no parque um
escritório e uma célula do Natural Resources
Industry Solutions Lab (NRIS Lab), laboratório
sediado em São Paulo e voltado para o desenvolvimento de soluções para as indústrias de
recursos naturais, como mineração e óleo e gás.
Em julho de 2012, três meses antes da inauguração oficial do parque, a empresa baiana Softwell
foi a primeira a instalar-se no Tecnocentro. A
companhia, que surgiu em 2004 e seis anos depois
ganhou o Prêmio Finep de Inovação na categoria
Pequena Empresa, cria ferramentas para simplificar os processos de desenvolvimento de software.
Seu principal produto é o Maker, plataforma que
Tecnocentro,
onde
trabalham
450 pessoas:
capacidade
preenchida
Nilton Souza
música – e fazem uso intensivo da tecnologia da
informação e comunicação. Oito propostas foram
selecionadas no final de dezembro e devem em
breve incorporar-se à incubadora. “Em um ano e
quatro meses de funcionamento, nenhuma empresa da incubadora deixou de existir, na contramão das estatísticas de mortalidade que o Sebrae
costuma divulgar”, diz Câmera. “Retiramos da
incubadora apenas uma empresa, porque não
cumpria seus compromissos. Temos uma visão
rígida a respeito disso”, afirma, referindo-se à
assessoria da fundação Certi, de Florianópolis,
que dá assistência técnica à incubadora Áyti. Segundo ele, o objetivo da incubadora é criar um
ambiente para que pequenas empresas surjam
e floresçam – e possam tornar-se grandes. “É
aquela história do Vale do Silício, que em meio
a uma grande quantidade de startups viu surgir
empresas como o Google”, diz. Ele se refere à
experiência pioneira da Universidade Stanford,
na Califórnia, no início dos anos 1950, em que
a articulação entre a universidade, empresas de
microeletrônica e instituições de pesquisa deram
origem ao Vale do Silício, o principal enclave de
empresas tecnológicas do planeta – e inspiração
para os mais de 900 parques tecnológicos espalhados pelo mundo.
Já são visíveis no parque parcerias e troca
de experiências que não poderiam ser previstas no início do projeto. Uma das empresas
incubadas, a Exa-M, tornou-se fornecedora de
componentes para o Sirius, novo acelerador em
fase de construção do Laboratório Nacional de
Luz Síncrotron (LNLS), em Campinas (SP). A
empresa entregou 42 instrumentos de monitoração e controle automático de temperatura.
Para desenvolver outros componentes do Sirius,
a Exa-M recorreu a outra empresa incubada, a
Imago. “Essa parceria possibilitou o início de
mais sete projetos que estão por se desenvolGrupos de pesquisa, doutores e mestres atuantes na Bahia
nas áreas consideradas prioritárias pelo Parque Tecnológico* ver, pois dependem da capacidade específica em
soldagem, o que já está sendo realizado através
Número de
Número de
Número de
de parceria com o Senai/Cimatec”, afirma AnÁreas estratégicas da SECTI
grupos
doutores
mestres
tonio Avelino da Rocha Junior, coordenador
Tecnologia da informacão e comunicação (TIC)
71
279
207
da Áity Incubadora de Empresas.
Energia
56
321
119
Outra empresa incubada, a Lisan Health &
Engenharia
25
123
79
Internet, firmou uma par­­ceria com o pesquisaBiotecnologia
38
360
101
dor norte-americano Scott Atlas, professor da
Saúde
66
381
217
escola de medicina da Universidade Stanford
Subtotal
256
1.464
723
e um especialista de renome em diagnóstico
Nº total de pesquisadores
4.012
2.501
de imagem de doenças neurológicas, que deverá se tornar sócio da startup quando ela gaFonte: Grupos de pesquisa do Diretório de Pesquisa do CNPq, Brasil, 2011. Número total de pesquisadores:
CNPq, 2010 *Alguns pesquisadores podem fazer parte de mais de um grupo de pesquisa
nhar mais musculatura. A Lisan criou o portal
utiliza uma metodologia de desenvolvimento
sem códigos, totalmente visual e que possibilita
a construção de sistemas para a web, de forma
mais simples e barata. Em dezembro passado, a
versão 3.0 do Maker foi lançada. “Trata-se do primeiro produto desenvolvido pela Softwell dentro
do parque”, diz Adriano Barbosa, coordenador de
serviços da empresa. “Nossa presença no parque
garantiu uma grande visibilidade para a empresa.
Já fechamos negócios com grandes companhias
que vieram ao parque em busca de soluções e
oportunidades e conheceram nosso trabalho”,
afirma Barbosa, citando um contrato recente
firmado com o conglomerado português Sonae.
Enquanto grandes empresas dedicam-se à
inovação de produtos elaborados e de maturação
mais longa, as startups incubadas no parque tentam viabilizar projetos de curto prazo, observa o
ex-secretário Câmera. Um exemplo é um aplicativo de telefone móvel, conectado on-line com as
linhas de ônibus, que está sendo desenvolvido pela NN Solutions. O sistema busca permitir que os
moradores de Salvador acessem, por meio de um
telefone celular, informações sobre as linhas de
ônibus que trafegam por um determinado ponto
de ônibus, escolham qual delas desejam utilizar
e solicitem a parada para embarque. “Um outro
exemplo é um produto intraoral que é moldado
na hora e ajuda a combater o ronco”, diz Câmera,
referindo-se à prótese desenvolvida pela empresa MK Innovare. Um novo edital da incubadora
atraiu 43 projetos de empresas que desenvolvem
produtos ou serviços inovadores em conteúdo
digital (softwares, aplicativos, games e multimídia), audiovisual (cinema, vídeo e animação) e
Vocações consolidadas
bahiaciência | 21
O
advento do parque foi resultado de um
cuidadoso processo de planejamento.
“O primeiro desafio foi identificar gargalos e entender por que a cooperação entre
empresas e pesquisadores tinha dificuldade de
vicejar na Bahia”, diz Leandro Barreto, coordenador executivo do parque. “Constatamos,
em primeiro lugar, que faltava justamente um
ambiente, um espaço físico vocacionado para
a cooperação.” O passo seguinte foi mobilizar
diversos tipos de ator para viabilizar a ideia.
O Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação teve um papel importante ao investir na
construção do Tecnocentro. A identificação de
grupos de pesquisa com bagagem e experiência para participar de projetos vinculados ao
parque foi um capítulo à parte. “Fizemos uma
prospecção muito forte nas universidades públicas para identificar grupos de pesquisa com
potencial de aplicação”, afirma Barreto.
A Bahia tem hoje mais de sete mil pesquisadores, sendo mais da metade deles doutores,
atuantes em quase 200 grupos distribuídos em
instituições nas diversas regiões do Estado. Dos
4.012 doutores atuantes no Estado, 1.083 desenvolvem pesquisa nas áreas prioritárias do Parque
Tecnológico, que são energia/meio ambiente e
engenharia; biotecnologia e saúde; e tecnologia
da informação e comunicação. A Bahia é o sexto
Estado com mais pesquisadores do país e o primeiro das regiões Norte e Nordeste.
“Mas não adiantaria montar uma estrutura
e mapear os grupos de pesquisa sem estimular
pesquisadores e empresas a trabalhar de forma cooperada”, diz Barreto. Para enfrentar o
problema, a Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado da Bahia lançou um programa cha-
Empresas e instituições instaladas no parque
Empresas incubadas no parque
1 Ibm Brasil
1 Nnsolutions Desenvolvimento de Sistemas Integrados
2 Indra do Brasil
2 Brunian
3 Portugal Telecom Inovação
3 Exa-M Instrumentação do Nordeste
4 Fiocruz
4 Mds Tecnologia da Informação
5 Proquigel/Unigel
5 Mk Serviços Odontologia
6 Softwell
6 Imago Desenvolvimento de Produtos
7 Jusbrasil
7 Maqhin Soluções Tecnológicas
8 Zcr
8 Oxenti Soluções em Tecnologia da Informação
9 Inpi
9 Couroclub Industrial
10 Ufba/Fraunhofer
10 Seo Bahia Soluções em Negócios
11 Ifba
11 Lisan Soluções em Internet
12 Senai/Cimatec
12 Fluxotécnica Equipamentos Industriais
13 Cetene
13 Viva Inovação Tecnológica
14 Lsi-Tec
14 Labwin Serviços Especializados
15 Ericsson Inovação
15 Tw2 Tecnologia
16 Irdeb
16 Dossier Digital
17 Prodeb
17 Makerplanet Informática
18 Unicamp/Ufba
18 Grupo Sal
19 Coelba
22 | maio de 2014
EDUARDO MOODY
Raduniverse, um canal exclusivo para médicos
que reúne especialistas, diretores de grandes
instituições e autores de livros científicos, entre
outros. O sistema de colaboração foi idealizado
pelos médicos fundadores da empresa, Cristiane Possobom da Rosa e Wilson Bruno Lima.
Os mais de oito mil médicos já cadastrados na
rede que tenham dúvidas sobre determinado
procedimento podem entrar no Raduniverse
e publicar sua pergunta. Um profissional com
conhecimento na área responde à dúvida do
colega. A participação é gratuita. O modelo de
negócio prevê receitas de publicidade e venda
de assinaturas premium, para os médicos, com
a oferta de mais produtos e serviços. Num segundo momento, o portal também vai oferecer
serviços de informação em saúde para o público
leigo, num formato que ainda está sendo definido. Especialista em radiologia, o agora empreendedor Wilson Lima já dedica boa parte de
seu tempo à empresa. “A satisfação de ver uma
inovação tomar corpo é fantástica”, afirma.
do Complexo de Equipamentos Dinamizadores,
um conjunto de laboratórios especializados e de
laboratórios compartilhados a serem utilizados
por empresas e pesquisadores, nas áreas de biotecnologia, nanotecnologia, energias limpas,
calibração de equipamentos, entre outros. “É
necessário criar toda a infraestrutura básica em
ensaios laboratoriais, clínicos e pré-clínicos para atrair pesquisadores e empresas. Montamos
laboratórios de padrão mundial de pesquisa,
que agora vão ser equipados pelo Estado e pelo
MCTI. “A gente espera que isso crie um círculo
virtuoso para atrair empresas e avançar rapidamente. As pesquisas no campo da biotecnologia
são de longo prazo e muitos dos pesquisadores
com projetos selecionados já têm relações ou vínculos com empresas interessadas nas aplicações
de seus estudos. Esperamos que o parque atraia
essas empresas”, completa Barreto.
Inaugurado
em setembro
de 2012, o
parque ofereceu
bolsas para
pesquisadores e
incentivos fiscais
mado ProParQ, oferecendo bolsas de até 36
meses de duração e com valores entre R$ 3 mil
e R$ 14 mil mensais, dependendo da titulação,
a fim de atrair pesquisadores para empresas
vinculadas ao Parque Tecnológico. “A intenção foi estimular pesquisadores a se inserir
nas empresas, com remuneração competitiva”,
afirma o coordenador do parque. A Prefeitura
de Salvador colaborou ao criar uma política fiscal específica para as empresas instaladas no
parque, com a redução da alíquota do Imposto
sobre Serviços (ISS) de 5% para 2% e isenção do
Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU).
“Mostramos ao prefeito que as empresas de base tecnológica geram receitas para o município
a médio e longo prazos”, diz Barreto, citando o
exemplo de Florianópolis, a capital catarinense,
cuja receita gerada por empresas tecnológicas
já supera a do setor de turismo. Um programa
da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação da Bahia, o Inovatec, financia a aquisição
de equipamentos científicos.
A ideia de iniciar o projeto do parque com
as empresas de tecnologia da informação e comunicação teve uma razão estratégica. “É mais
fácil atrair empresas de TI, pois elas dependem
basicamente de mão de obra qualificada e computadores, que estavam acessíveis”, diz Barreto.
Por isso, a aposta na biotecnologia ficou para a
segunda etapa do parque, por meio do chama-
N
o campo da energia, o parque vai abrigar um grande projeto de cooperação
entre a Petrobras e a Universidade Federal da Bahia (UFBA), que será referência na
pesquisa sobre campos maduros de petróleo.
Trata-se de um tema de interesse também para
a Bahia, pois os campos do Recôncavo se enquadram nessa categoria. O Centro de Tecnologia
em Energia e Campos Maduros (Cetecam) vai
desenvolver pesquisa com foco na possibilidade
de exploração desses campos. Abrigará núcleos
de recuperação de petróleo, de simulação computacional, de metrologia e de ensaios orgânicos e inorgânicos. A Petrobras vai investir R$ 25
milhões na construção de um prédio.
Já o museu de ciência e a escola de iniciação
científica, que têm projeto executivo e investimento garantido de R$ 14 milhões, buscam garantir que o parque se integre à cidade e estimule
crianças e jovens a seguir a carreira científica.
Equipamentos científicos e tecnológicos de áreas
como eletromagnetismo, robótica, mecânica,
entre outras, serão relacionados ao cotidiano
dos alunos para promover a aproximação com a
ciência. Na escola funcionarão oficinas profissionalizantes destinadas prioritariamente a alunos
da rede pública de ensino. “A intenção é dialogar
fortemente com a comunidade carente da cidade
e criar um ambiente que ajude a formar novos
pesquisadores”, diz Barreto. “Queremos criar
novas referências para os estudantes e mostrar
que, por meio da ciência, eles podem ter trajetórias diferentes das seguidas por seus pais.” ◗
bahiaciência | 23
Paisagem
soteropolitana:
fim de tarde na
baía de Todos
os Santos
24 | maio de 2014
luciano andrade
ciência
ambiente
Ameaça à
saúde da baía
Projeto mapeia fontes de
poluentes e correntes marinhas
na baía de Todos os Santos
Ricardo Zorzetto*
C
aía a noite de 17 de dezembro passado, uma
terça-feira, quando uma explosão ocorreu no
interior do navio Golden Miller, que recebia
um carregamento de gás propeno no porto de
Aratu, na região metropolitana de Salvador.
À explosão inicial, seguiu-se um incêndio que lançou parte
do combustível do navio no canal que liga a baía de Aratu
à imensidão de águas cor de esmeralda da baía de Todos
os Santos, a segunda maior do Brasil e porta de entrada
dos colonizadores europeus que chegaram à então colônia
portuguesa há pouco mais de 500 anos. Uma análise inicial
feita pelo Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos
(Inema), a agência ambiental da Bahia, indicou que o vazamento de combustível, apesar de aparentemente ser de
pequena proporção e das medidas de contenção tomadas,
fez aumentar nos dias seguintes a concentração de poluentes nas águas ao redor do porto. “Essa contaminação, ainda
que de pequeno porte, certamente vai prejudicar a atividade de quem vive da coleta de mariscos na região”, afirma o
químico Jailson Bittencourt de Andrade, pesquisador da
Universidade Federal da Bahia (UFBA) que há quase dez
*Versão atualizada de reportagem publicada em novembro de 2012
na revista Pesquisa FAPESP.
anos coordena o mapeamento e o monitoramento da poluição ambiental na baía de Todos os Santos.
Bem próximo ao porto, no canal que une a baía de Aratu
à baía de Todos os Santos, ficam alguns dos principais pontos de pesca e coleta de mariscos da região. Numa manhã
de outubro de 2012, durante uma visita de barco aos pontos
em que a equipe de Andrade regularmente capta amostras
de água e sedimentos para a análise de poluentes, cerca de
40 mulheres e crianças mariscavam em uma faixa de areia
exposta pela maré baixa. Elas desenterravam usando uma
colher ou apenas os dedos um pequeno molusco que chamam de chumbinho ou papa-fumo, pouco maior que a unha
do polegar. Levavam horas, trabalhando sob sol intenso,
para encher um cesto grande de mariscos, que, depois de
limpos, rendiam cerca de dois quilos e seriam vendidos a R$
17 para os comerciantes de pescados da região. Como têm
baixo valor comercial, o chumbinho e outros mariscos, como a lambreta e o sururu, são a principal fonte de proteína
animal de quase 15 mil famílias de pescadores e catadores
de moluscos da baía de Todos os Santos, contaram à época
os pesquisadores da UFBA. Vivendo abaixo da linha de pobreza, muitas dessas famílias se alimentam hoje de modo
semelhante ao dos primeiros seres humanos que milhares
de anos atrás ocuparam a costa do que viria a ser o Brasil.
“E essa dieta se mantém”, diz Andrade.
bahiaciência | 25
“Q
uem corre mais risco são as crianças”,
comenta a oceanógrafa Vanessa Hatje,
que acompanhou a visita aos pontos da
baía de Todos os Santos em que foram feitas as
medições. “É que a capacidade de diluir elementos químicos no organismo está diretamente
relacionada à massa corporal”, explica Vanessa,
que à época coordenava o Laboratório de Oceanografia Química da UFBA e era braço direito
de Andrade na primeira fase do Projeto Baía
de Todos os Santos. Planejado para seguir até
2038, esse projeto, do qual participam quase 50
pesquisadores, investiga as características físicas, biológicas, culturais e históricas da região e,
assim, contribui para a gestão sustentável dessa
baía, a segunda maior do país – menor apenas
que a de São Marcos, no Maranhão.
Entre 2006 e 2010, Vanessa, o oceanógrafo
Manuel Nogueira de Souza e Cláudia Windmöller, da Universidade Federal de Minas Gerais,
coletaram moluscos em 34 pontos da baía de
Todos os Santos. A análise química demonstrou que ao menos quatro elementos químicos
(arsênio, zinco, selênio e cobre) apareciam em
concentrações relativamente altas em mariscos e ostras. Os moluscos mais contaminados,
segundo artigo publicado em 2011 no Marine
Pollution Bulletin, haviam sido apanhados em
Aratu, próximo ao local em que as marisqueiras
trabalhavam naquela manhã de outubro, e no
estuário do rio Subaé, a noroeste dali.
26 | maio de 2014
Era até de esperar que fosse assim. A baía de Aratu, localizada cerca de 20 quilômetros ao norte de
Salvador, abriga um dos três portos
Pescadores e
mais movimentados da baía de Tocatadores de
dos os Santos. Aratu também está
cercada por indústrias químicas,
mariscos, que
petroquímicas, metalúrgicas e de
consomem frutos
alimentos. A menos de 50 quilômetros a nordeste dela, está instalado
do mar todos os
o polo petroquímico de Camaçari, o
dias, tornam-se
maior da América do Sul. Já no estuário do rio Subaé, no extremo nomais vulneráveis
roeste da baía de Todos os Santos,
a principal fonte de contaminantes
a desenvolver
foi por muito tempo a mineradora
inflamações
Plumbum. Desativada em 1993, ela
lançou por quase três décadas quantidades apreciáveis de chumbo, cádmio, arsênio e zinco no rio Subaé.
“Havia poucos estudos, quase todos de circulação restrita, sobre a
contaminação ambiental na baía”, conta Andrade, que coordena também o Instituto Nacional de
Ciência e Tecnologia de Energia e Ambiente. “As
pesquisas anteriores se baseavam em medições
pontuais, que usavam técnicas distintas; agora
Porta de entrada do Brasil
A baía de Todos os Santos, suas ilhas e
seus principais afluentes
mapa reprodução do livro baía de todos os santos – aspectos oceanográficos foto luciano andrade
Já faz algum tempo, porém, que é recomendável consumir com moderação os peixes e os
frutos do mar apanhados em Aratu, Itapagi,
Suba e em outras áreas mais industrializadas da
baía de Todos os Santos. Eles estão contaminados. Segundo análises conduzidas pela equipe
da UFBA, eles concentram alguns metais em
níveis superiores aos aceitos por autoridades
da saúde como a Agência Nacional de Vigilância
Sanitária. Muitos desses metais são elementos
químicos que, em concentrações bem baixas, são
essenciais para uma boa saúde, mas, em níveis
altos, podem ser tóxicos. Comer os pescados e
os moluscos de áreas contaminadas algumas
vezes na semana não chega a causar risco à saúde, afirmam os pesquisadores. Mas os pescadores e os catadores de mariscos, que consomem
frutos do mar quase todos os dias, tornam-se
mais vulneráveis a desenvolver problemas de
saúde associados à exposição contínua a elevadas concentrações de alguns desses metais.
Sob sol intenso:
mulheres
coletam
mariscos no
canal de Aratu
estamos estabelecendo protocolos que permitirão acompanhar a evolução no tempo”, diz o
químico, que anos atrás conduziu uma avaliação
da qualidade do ar na baía de Todos os Santos,
chamada de Kirimurê pelos tupinambás que
habitavam a região antes da chegada dos europeus.
H
á cerca de dez anos, seu grupo instalou
estações medidoras de poluentes em três
pontos: na rodoviária da Lapa, um movimentado terminal de ônibus no centro de Salvador; no porto de Aratu, onde há intenso transporte de cargas e minérios; e em Bananeira, uma
vila de pescadores com cerca de mil habitantes
na ilha de Maré. O resultado, de certo modo, surpreendeu. O ar da rodoviária era o mais poluído,
como alguns já imaginavam. Mas não se esperava que o ar em Bananeira pudesse ser quase tão
ruim quanto o do porto de Aratu, distante cinco
quilômetros. “Em algumas horas do dia, é como
se os moradores de Bananeira estivessem dentro
do porto”, disse Andrade, apontando para um
conjunto de casas entre plantações de banana,
enquanto conduzia o barco pelo canal que separa
a ilha de Maré do porto durante a visita de 2012.
Além de continuar a medir os níveis de contaminantes de forma sistemática e por um longo
prazo, os pesquisadores tentam compreender a
dinâmica de transporte e destino dos contaminantes na baía e o impacto sobre os organismos
vivos. Com Francisco Barros, do Laboratório de
Ecologia Bentônica da UFBA, Vanessa avaliou a
concentração de metais na água, nos sedimentos e na fauna dos três principais rios que deságuam na baía – o Jaguaripe, o Paraguaçu e o
Subaé. Eles verificaram que a Plumbum, mesmo
fora de operação há três décadas, ainda polui o
Subaé e áreas adjacentes. No inverno, a chuva
lava os reservatórios e as pilhas de escória da antiga mineradora e carrega mais contaminantes
para o rio. De modo geral, os metais dissolvidos
na água aderem a partículas em suspensão e se
acumulam progressivamente nos sedimentos
do fundo dos rios à medida que se caminha
para a foz. Em alguns pontos, a concentração
atinge níveis tóxicos para a fauna de bentos –
moluscos, poliquetas e alguns peixes.
“Em uma das estações no estuário do rio Subaé não encontramos seres vivos no sedimento”, diz Barros, que começava a realizar testes
para verificar se o desaparecimento dos bentos
era consequência da toxicidade do substrato ou
de um estresse natural daquele trecho do rio.
Como o aporte de água de origem fluvial é
pequeno se comparado ao volume total da baía,
a troca de água entre a baía e o oceano, por meio
da maré, determina em grande parte a capacidade de diluição e dispersão de contaminantes
e material particulado em suspensão. Na tentativa de compreender a circulação e o transporte de água e materiais para dentro e fora da
baía, o geógrafo Guilherme Lessa, especialista
em sedimentologia, iniciou o monitoramento
das correntes que circulam na baía de Todos os
Santos. Uma vez por mês ele percorre dez estações e mede as características físico-químicas
(salinidade, temperatura e material particulado) e coleta plâncton. Em três das estações,
um equipamento mais simples, do tamanho de
uma lanterna, registra continuamente informações sobre o material em suspensão e sobre
a salinidade e a temperatura da água. Assim,
espera-se caracterizar a direção e a velocidade
das correntes que movem as partículas no interior da baía em diferentes períodos do ano.
“Queremos verificar se a baía de Todos os Santos
está importando água e material particulado do
oceano ou exportando para ele”, explica Lessa.
Usando dados coletados em 2003, ele mediu
a circulação de água entre a baía de Aratu e a
baía de Todos os Santos. A análise preliminar
indicou que, no inverno, correntes mais profundas conduzem água da baía maior para a menor.
Já as águas de Aratu saem para a baía de Todos
bahiaciência | 27
1
2
fotos 1 ruy kikuchi / ufba 2 vanessa hatje / Ufba
Equipamento
para medição de
características físicoquímicas da água
(ao lado) e banco de
corais (acima)
1
fotos 1 reprodução mapoteca do itamaraty / mre 2 gal meirelles / uefs
os Santos por correntes superficiais – há indícios de que no verão esse fluxo seja invertido.
Ainda não é possível saber se o que Lessa viu
nessa área vale para a comunicação entre a baía
de Todos os Santos e o Atlântico. Para obter esse tipo de informação será necessário instalar
equipamentos que medem o fluxo de água em
dois pontos da baía, que complementarão as
informações que já vinham sendo coletadas.
Ele calcula que será preciso colher dados por
15 anos para mapear os ciclos de troca de água
entre a baía e o oceano.
Zelinda Leão e Ruy Kikuchi, geólogos da UFBA
que acompanham a saúde dos corais na costa brasileira, esperam que os dados sobre as correntes
marinhas na baía ajudem a esclarecer o que vem
ocorrendo com os corais. Na baía de Todos os Santos existem dois grandes bancos de corais: um na
região interna, próximo à ilha dos Frades; e outro em mar aberto, em frente à ilha de Itaparica.
Nos últimos anos, Zelinda e Kikuchi observaram
vários episódios de branqueamento dos corais.
Os corais perdem sua cor natural e se tornam
esbranquiçados quando algas microscópicas que
vivem em seu interior, as zooxantelas, morrem
Registro histórico e cultural
Enquanto parte da equipe de Jailson
conta Gal. Dessa etnografia da pesca
Bittencourt de Andrade se dedica a
nasceram o vídeo Pesca de mestres e a
conhecer os aspectos físicos e
série de fotos O peixe nosso de cada dia,
biológicos da baía de Todos os Santos,
exposta na comunidade dos pescadores.
a etnógrafa Gal Meirelles e o historiador
Com o sociólogo Milton Moura, da UFBA,
Caio Adan, ambos da Universidade
Gal trabalhou no registro fotográfico
Estadual de Feira de Santana, atuam,
e em vídeo dos festejos tradicionais
respectivamente, no registro de
da ilha de Itaparica que comemoram
características culturais que começam
a independência do Brasil.
a se perder e de informações históricas
desconhecidas do público.
Ela auxiliou ainda Caio Adan a se
embrenhar em arquivos e museus do
de dezenas de homens. Ou ainda uma
Brasil e da Europa. Em acervos na Bahia,
carta encontrada no arquivo do
comunidade Baiacu, na ilha de Itaparica,
no Rio de Janeiro, em Portugal e na
Itaramaty, no Rio, indicando a existência
e registrou o modo de vida dos
Espanha, ele teve acesso a quase 200
de um canal que não se conhecia na
pescadores e as diferentes técnicas de
mapas feitos entre os séculos XVI e XX e
península de Itapagipe. Esse canal, que
pesca artesanal usadas na baía de Todos
iniciou a documentação do patrimônio
não se sabe se foi de fato construído,
os Santos, um conhecimento que parece
cartográfico da baía de Todos os Santos.
facilitaria a navegação entre a região
Por quase cinco anos, Gal morou na
norte e o centro de Salvador.
não interessar às gerações mais novas.
Nesse material há preciosidades,
“Nas comunidades há falta de emprego
como um mapa de meados do século
e os jovens têm admiração pela vida
XVII mostrando como as redes eram
que as cartas se tornaram mais técnicas
em Salvador, mas, se vão para a capital,
dispostas na pesca do xaréu, peixe
e precisas. “Possivelmente para auxiliar
só conseguem bicos e subemprego”,
grande cuja captura exigia a participação
a navegação na baía”, explica o
28 | maio de 2014
A partir do século XIX, Adan notou
Pesca do
xaréu:
detalhe do
mapa Brasilia
qua parte
paret belgis,
de Georg
Marcgraf,
1647
ou são eliminadas – essas algas fornecem oxigênio e nutrientes que auxiliam os corais a produzir um esqueleto calcário. Embora nem sempre
signifique a morte do coral, o branqueamento
é indício de que algo não vai bem. Kikuchi suspeita de que o problema na baía de Todos os
Santos se deve à elevação global da temperatura da água do mar, a episódios de aumento de
partículas em suspensão, que turvam a água e
reduzem a penetração de luz, e possivelmente
à poluição química. Em 2011 os pesquisadores
observaram branqueamento em vários pontos
próximos ao porto de Salvador, que estava sendo dragado. Além disso, há quase uma década
constataram o desaparecimento de uma das oito
espécies nativas da costa brasileira que viviam
ali, o Mussismilia braziliensis. Mais recentemente, equipes da UFBA, da Uerj, da Universidade
Federal de Alagoas e da ONG Pró-Mar relataram
o espalhamento do coral-sol, espécie invasora
adaptada a ambientes turvos.
2
historiador, que planeja descrever
o material que reuniu e montar um
banco de dados na internet e torná-lo
disponível para outros pesquisadores.
Exibição na
praia: fotos sobre
o cotidiano
da pesca em
exposição para
a comunidade
ribeirinha
N
ão é de hoje que as águas e o ambiente no entorno dessa baía pagam um
preço alto por ela ter servido de porta
de entrada para o Brasil. Desde que a expedição do navegador português Gaspar de Lemos
aportou ali em 1˚ de novembro de 1501, Dia de
Todos os Santos na tradição católica, houve
sucessivas alterações. A fundação de Salvador
em 1549 por Tomé de Souza, enviado do rei
de Portugal para criar uma cidade-fortaleza e
iniciar a ocupação das terras do Novo Mundo,
forneceu os braços e os machados que transformaram em lenha e madeira a exuberante
mata atlântica, abrindo espaço para a cana e os
engenhos de açúcar, a unidade agroindustrial
mais avançada do Brasil colonial. A mudança
mais intensa, porém, ocorreria mais tarde, com
a descoberta de petróleo no Recôncavo Baiano
e a instalação em 1950 da refinaria Landulpho
Alves, no município de Mataripe, que levariam
o governo da Bahia a apostar na petroquímica
como modelo de desenvolvimento econômico.
Houve recentemente uma retomada no desenvolvimento industrial da região, com investimento em um novo polo metal-mecânico, na
ampliação de portos e na construção de estaleiros. “Nos últimos tempos se adotaram medidas
de controle para reduzir a emissão de metais,
mas pouco se avançou”, explicou Vanessa no
retorno da expedição pela baía. “Em vários pontos o esgoto doméstico ainda alcança os rios e a
baía sem tratamento.” Apesar desses problemas,
a baía de Todos os Santos ainda conserva áreas
bem preservadas, como a foz do rio Jaguaripe,
ao sul da ilha de Itaparica. Sua saúde, de modo
geral, é considerada bem melhor que a da baía
da Guanabara, no Rio de Janeiro, que ocupa uma
área três vezes menor e está rodeada por uma
população três vezes maior. Mas Vanessa teme
que não continue assim por muito tempo. Antes de o barco aportar na marina, ela lamentou:
“Acredito que as condições ambientais ainda vão
piorar muito antes de começar a melhorar”. ◗
Segundo Adan, uma avaliação inicial
dos mapas corrobora a ideia de que a
Artigos científicos
baía de Todos os Santos desempenhou
1. BARROS, F. et al. Subtidal benthic macroinfaunal assemblages in tropical estuaries: Generality amongst highly variable
gradients. Marine Pollution Bulletin. out. 2012.
função central na formação do Estado
da Bahia. Por muito tempo, inclusive,
ela foi compreendida como um espaço
mais amplo do que o delineado pelo
acidente geográfico de mesmo nome.
2. HATJE, V.; BARROS, F. Overview of the 20th century
impact of trace metal contamination in the estuaries of Todos
os Santos Bay: Past, present and future scenarios. Marine
Pollution Bulletin. jul. 2012.
3. SOUZA, M. M. et al. Shellfish from Todos os Santos Bay, Bahia,
Brazil: treat or threat? Marine Pollution Bulletin. out. 2011.
bahiaciência | 29
Agricultura
Intrusa
esfomeada
Pesquisadores estudam novos métodos de controle
da lagarta-comilona, praga dos campos no Brasil
Francisco Bicudo e Rodrigo de Oliveira Andrade
U
ma lagarta de apenas quatro
centímetros de comprimento, comum na Ásia, África
e Oceania, está causando
enorme dor de cabeça em agricultores
baianos e de outros estados produtores como Mato Grosso, Paraná, Goiás
e Minas Gerais. Com variações de cor
que vão de um verde bem vivo ao castanho, a Helicoverpa armigera – também
conhecida como lagarta-comilona –
tem destruído, indiscriminadamente,
plantações de soja, milho e feijão, entre muitas outras, provocando perdas
estimadas em R$ 2 bilhões apenas na
safra baiana de 2012-13.
Todo esse estrago levou pesquisadores
da Universidade Federal do Recôncavo da
Bahia (UFRB) a desenvolver um projeto
para tentar combatê-la de um modo mais
eficaz. A equipe de Flávia Silva Barbosa,
professora do Centro de Ciências Agrárias, Ambientais e Biológicas da UFRB,
iniciará testes no começo de junho com
um inseticida à base de sisal para tentar
30 | maio de 2014
controlar a praga. “Sabemos que não vamos eliminá-la. Mas é preciso reduzir os
danos e a população da Helicoverpa para
garantir a produção agrícola”, diz.
Os primeiros sinais da lagarta no
Brasil foram registrados no final de
2012. Um ano depois ela já ameaçava
mais da metade das áreas de produção
agrícola do país. Isso obrigou o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento a decretar estado de emergência
nas regiões atingidas, estabelecendo
medidas excepcionais de controle da
praga, como aplicações múltiplas de
inseticidas químicos e biológicos. Ainda não se sabe como a espécie chegou
ao Brasil. “Pode ter sido trazida numa
muda qualquer ou em plantas ornamentais. O fato é que encontrou aqui
as condições ideais para se desenvolver durante todo o ano”, explica Flávia.
Parecida com a Helicoverpa zea, que
ataca o milho, a lagarta-comilona no
início enganou os produtores, que
acreditavam lidar com uma praga já
Lagarta Helicoverpa
armigera já causou
prejuízo de
R$ 2 bilhões em
campos da Bahia
conhecida. Eles logo perceberam que
havia algo mais sério quando se depararam com a capacidade destrutiva do
bicho. “Só confirmaram que se tratava
de outra espécie quando a Embrapa
fez testes em laboratório e observou
uma ligeira diferença no órgão genital
masculino da H. armigera, em comparação com a H. zea”, explica Tamara
Leal, mestranda em ciências agrárias
na UFRB sob orientação de Flávia.
Ela conta que o apetite da lagarta-comilona chega ao ponto de ela atacar
plantas ornamentais e nativas – que
não são cultivadas – e até ervas daninhas. “Há casos relatados de canibalismo, inclusive”, diz. Nas plantações,
consome folhas, frutos, o caule e as
vagens. Tudo é alimento para a Helicoverpa, que leva em média trinta dias
para sair do ovo, virar lagarta, assumir
a forma de pupa e então se transformar
em mariposa.
Sua taxa de fecundidade é alta –
uma fêmea pode botar até mil ovos –,
assim como sua capacidade de dispersão, explica Tamara. Um adulto consegue voar até mil quilômetros em três
dias. Como se isso não fosse suficiente para atormentar os agricultores, a
lagarta-comilona desenvolveu resistência a inseticidas e até ao baculovírus,
microrganismo por muito tempo usado
como controle biológico de outra praga
das culturas de soja, a lagarta-da-soja
(Anticarsia gemmatalis). “Trata-se de
um problema agrícola difícil de resolver”, afirma Flávia.
agencia de noticias / embrapa
POSSÍVEL ESTRATÉGIA
Uma planta bastante conhecida dos
agricultores baianos, o sisal, pode ser
um aliado no combate e controle dessa
praga dos campos. O sisal contém compostos químicos com ação inseticida,
capazes de eliminar ácaros e moscas,
por exemplo. Em seu mestrado, Tamara
pretende avaliar se um inseticida ecológico à base de sisal seria eficiente para
reduzir as populações de H. armigera.
Ela planeja testar duas formulações:
uma obtida a partir do sisal fervido em
água e outra da planta misturada ao álcool. Em seguida, deverá aplicar o composto
diretamente na lagarta em suas diferentes fases de desenvolvimento, a fim de
verificar sua capacidade de combatê-la.
Em laboratório, também deve testar o
produto nas plantas atacadas pelo bicho
para ver se o inseticida provoca alguma
repulsa. Se os resultados forem positivos,
ela testará o inseticida biológico em culturas selecionadas próximas aos municípios
de Barreiras e Luiz Eduardo Magalhães,
interior do estado. “Vamos aproveitar um
produto típico da Bahia, dando destino
adequado ao que seria jogado no lixo.”
Os pesquisadores esperam que, além
de matar a lagarta, o sisal reforce os mecanismos de defesa naturais das plantas
e não elimine os predadores naturais da
lagarta-comilona, como vespas e joaninhas, muitas vezes mortas pelos agrotóxicos tradicionais. Estudo feito pela
Embrapa-Soja, coordenado pela pesqui-
sadora Clara Beatriz Hoffmann-Campo,
sugere ser fundamental preservar esses
e outros inimigos naturais da H. armigera. “Com o manejo adequado, a tendência é que as populações de inimigos
naturais cresçam. Estamos reforçando a
orientação para que o produtor monitore as culturas e não aplique inseticidas
indiscriminadamente”, afirma a pesquisadora num comunicado de imprensa
publicado no site da Embrapa.
Segundo a Embrapa, o crescimento
populacional de lagartas do gênero Helicoverpa e os prejuízos por elas causados à
agricultura são consequência de práticas
de cultivo equivocadas, como o plantio sucessivo de espécies vegetais hospedeiras
(milho, soja e algodão) em áreas muito
extensas e próximas associadas ao uso
inadequado de agrotóxicos. Flávia diz ter
consciência da dimensão do desafio e insiste em que é preciso pensar o problema
de forma global e articulada. Para ela, medidas pontuais e isoladas não vão funcionar para afastar a penetra indesejada. w
bahiaciência | 31
artigo
Educar para a integridade em ciência
Eliane S. Azevedo
D
uas diferentes práticas acadêmicas – uma,
tradicional, ensinar ciência, e outra, mais recente, ensinar integridade em ciência – foram-me possibilitadas por uma experiência de
45 anos no ensino da genética e da bioética.
Primeiro, durante 25 anos, ou seja, de 1968 a 1993, minha
experiência didática vinculou-se à disciplina de genética
médica, na Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia (UFBA). E nos 20 anos seguintes voltou-se à
bioética, na mesma instituição e na Universidade Estadual
de Feira de Santana (UEFS).
É desde esse já tão longo percurso que vejo o conhecimento em genética construído com vocabulário próprio
para descrever fenômenos biológicos, em condições usuais
e desviantes, usando terminologia específica para grande
número de enzimas, proteínas, doenças e síndromes. Práticas em laboratório e exame clínico de pacientes reforçam
o enriquecimento da linguagem e da aprendizagem com
termos genético-clínicos.
A aferição de conhecimentos no final do curso de genética
médica sugere fortemente que o aluno bem-sucedido está
apto a reconhecer e a encaminhar problemas de genética
na prática médica. A construção desses saberes ocorreu
fundamentalmente no âmbito do ensino da disciplina, uma
vez que o mundo (sociedade, cultura) não ensina genética.
Sejam quais forem os valores culturais do aluno, a aprendizagem da genética não encontra concorrência em seu
universo cognitivo ou em sua percepção moral do mundo.
De outro lado, vejo que o ensino da ética através da disciplina bioética e, em especial, do tema “integridade em
ciência”, além de exigir menor esforço do aluno por não
possuir uma linguagem com vocabulário específico – talvez a palavra axiograma seja a única novidade vocabular
–, dirige a oferta de conhecimentos ao universo moral do
aluno, já construído como fruto da cultura na qual se desenvolveu e atua. Em outras palavras, antes de ser aluno da
disciplina bioética, ele já o foi do mundo. Diferentemente
do que se dá em genética, o mundo ensina ética.
Assim, a aferição de conhecimentos ao final do curso
de bioética em nada assegura que o aluno nota dez tenha
simplesmente tramitado saberes através da razão, sem
32 | maio de 2014
qualquer mudança ou aprimoramento de valores morais. Aqui, o
professor tenta se aproximar de
um universo moral preexistente,
moldado pela cultura prevalente e
respectivos valores. As horas de aulas teóricas e as práticas discursivas
de casos de conflitos éticos têm o
extraordinário desafio de atingir o
axiograma do aluno, ou seja, o con“A desonestidade
em ciência
junto de seus valores morais, para
pode ser
aí semear inovada visão de mundo.
enfrentada de
O desafio que persiste é identiduas formas:
ficar a melhor prática pedagógica
preventiva e
para assegurar o sucesso no ensino
corretiva“
da ética em ciência, seja da bioética
em geral, da ética da pesquisa em
seres humanos, da ética da pesquisa em animais ou da integridade científica. A literatura bioética reflete justamente
essa preocupação.
Tenho me aventurado pessoalmente em algumas publicações sobre o tema e, não obstante os esforços, persistente
é o desejo de não querer acreditar que ética não se ensina
e, portanto, de não desistir de ensiná-la, mesmo sentindo
a desproporção entre a milenar herança cultural que construiu a sociedade ocidental e as 30 ou 90 horas de aulas que
em geral ministramos a cada turma.
Tomemos o Brasil como exemplo: somos herdeiros da
cultura hebraico-greco-romana aqui trazida pelos brancos
colonizadores, acrescida de contribuições da cultura indígena, através dos verdadeiros donos das terras, e da cultura
afro, para aqui trazida sob o ímpeto da exploração escravista. Deste tríplice encontro de etnias moldam-se o povo
brasileiro e sua identidade cultural. Pondo em destaque o
que interessa à integridade em ciência, reconhecemos que,
à semelhança de todo o Ocidente moderno, preservamos
impulsos de promoção pessoal gerados pela ganância de
lucro e ambição de poder-prestígio.
Estes dois motores de ação se fazem presentes também
no mundo da ciência, notoriamente nas últimas décadas,
reproduzindo na academia o vale-tudo da competição por
foto Fernando Vivas Ilustração ana paula campos
sucesso. Neste cenário, a desonestidade em ciência é usada
como ferramenta facilitadora de supostos sucessos alcançados pela via do menor esforço. Invenção de dados e de
pesquisa que não existem (fabricação), alteração de dados
existentes (falsificação), cópias indevidas de outros pesquisadores (plágios), ganhos dissimulados (conflitos de
interesse), etc., são condutas desonestas já identificadas.
Vamos exemplificar apenas com o fato de que em 1981
o governo dos Estados Unidos, o país maior produtor de
ciência no mundo, reconheceu que a má conduta em ciência havia se tornado problema de ordem pública. Nos anos
seguintes, várias ações foram desenvolvidas pelo governo
norte-americano, culminando com a criação do Escritório
de Integridade Científica (ORI, na sigla em inglês), órgão
governamental destinado a receber denúncias de má prática
científica e a investigá-las, divulgá-las e estabelecer as respectivas punições aos cientistas infratores. As conclusões
das investigações do ORI são de livre acesso na internet
através da publicação mensal da ORI-newsletter.
A partir dessa mesma época, vários países da Europa
criaram órgãos com fins de proteger a boa ciência. Não
apenas as instituições de ciência e governos, mas também
editores de revistas científicas.
No Brasil, a criação do sistema Conep-Ceps (siglas da
Comissão Nacional de Ética em Pesquisa e dos Comitês de
Ética em Pesquisa), destinado a preservar a ética na investigação com seres humanos, ocorreu só em 1996 – portanto,
20 anos depois da iniciativa dos Estados Unidos. E a criação
de uma comissão de integridade científica, há poucos anos,
também se deu em atraso, comparativamente a outros paí­
ses produtores de ciência.
Por outro lado, ainda que as ações de governo surgissem
com certa lentidão, pesquisadores brasileiros criaram em
1993 a revista Bioética, no Conselho Federal de Medicina –
com publicação ininterrupta há 20 anos –, e pouco depois,
em 1995, a Sociedade Brasileira de Bioética. Os dois eventos
sinalizam que alguns pesquisadores brasileiros mantinham-se relativamente atentos às questões da ética em ciência
que emergiam em países mais avançados.
Em 2009, Tavares-Neto e eu revelamos, em estudo publicado na revista da Associação Médica Brasileira, que 50% das
“instruções aos autores” de 20 periódicos da área médica, nível
A da Capes, exigiam que a pesquisa tivesse sido aprovada por
um CEP e 55% exigiam que os conflitos de interesse fossem
declarados, sendo que 40% indicavam consulta aos “Requisitos Uniformes para Manuscritos Submetidos a Revistas
Científicas”. Todavia, nenhuma das 20 revistas alertava nas
“instruções aos autores” sobre questões de fraudes, falsificações e plágios nos artigos a serem submetidos.
À semelhança de uma enfermidade (moral), a desonestidade em ciência pode ser enfrentada de duas formas: preventiva e corretiva. A ação corretiva vem sendo associada
a denúncias de fraude, falsificação ou plágio dirigidas a
órgãos especialmente criados para este fim e adequadamente capacitados a recebê-las, à semelhança do ORI norte-americano. A propósito, pesquisa publicada por Fang,
bahiaciência | 33
Steen e Casadevall em 2012, no peródico Proceedings of the
National Academy of Sciences (PNAS), demonstrou que o
percentual de artigos retratados (cancelados) em publicações do PubMed aumentou dez vezes entre os anos de 1975
e 2012. Estes mesmos autores demonstraram que cientistas desonestos preferencialmente publicam seus trabalhos
em revistas de alto fator de impacto, quando a má prática
é por fraude. Quando por plágio ou duplicação, as revistas
de médio impacto são as preferidas.
Sem negar a importância social da denúncia, verificação
e punição, sigo apostando na necessidade de encontrarmos
meios eficazes de educar para a boa ciência. Neste sentido,
publiquei em 2008 um artigo em livro de edição local (V
Dia da Bioética na UEFS), em que discutia a questão da integridade em ciência em cada passo da investigação científica experimental, ao longo das diversas etapas do método
científico. Comecei com a ideia da pesquisa, passando para a
busca bibliográfica, diretrizes do projeto, plano de pesquisa,
coleta de dados, codificação e armazenamento de dados e de
material, análise de resultados, interpretações da análise,
redação do trabalho para publicação, conclusões, autores,
colaboradores, agradecimentos e referências bibliográficas.
Para cada uma destas etapas descrevia as possibilidades
de má conduta intencionais ou por desconhecimento. Hoje,
convencida do impacto das novas tecnologias no impulso à
comunicação simplificada, ao modo dos Twitter, Facebook,
etc., e isso aliado ao fato de termos lido que os jovens retêm
melhor as informações em pequeno número de toques que
as informações discursivas, tendo a rever essa publicação
à moda mais atual de comunicação.
Assim, mantendo o esquema geral do artigo, podemos
simplificá-lo pondo ao lado de cada passo da metodologia
da pesquisa uma mensagem twitada daquilo que não deve
ser feito. Vejamos:
Planejamento da pesquisa:
“Não roube a ideia de outros”.
Coleta de dados:
“Não altere nem invente”.
Análise de resultados:
“Não manipule gráficos e tabelas”.
Redação:
“Não escreva mentiras nem plágios”.
Referências bibliográficas:
“Não force citar a si mesmo ou a sua revista”.
Comentários:
“Não exalte sua vaidade”.
Conclusões:
“Não promova sua ambição”.
Notas:
“Não omita conflitos de interesses”.
Se estiver atuando como revisor:
“Não abuse do poder de revisor”.
34 | maio de 2014
Finalmente:
“Não faça o que não pode defender de público”.
Assim, estamos mais uma vez tentando nos aproximar
de um desenho didático a ser assimilado pelo aluno. Nessa tentativa, não podemos esquecer que o que a sociedade
cobra e a cultura ocidental reforça é o sucesso profissional
a qualquer preço. Na década de 1980, em breve viagem aos
Estados Unidos, chocou-me ver uma charge em um jornal
local em Chicago, na qual uma fila de jovens de nariz empinado dizia a um único jovem destacado por uma aura de
santidade: “Eu fraudei, fraudei, fraudei... e hoje tenho um
escritório na 5ª Avenida. E você?”.
Infelizmente, valores desta natureza estão bem difundidos e também bem dissimulados, uma vez que o discurso
da honestidade é fortemente enfatizado por todos, mas...
não posto em prática na mesma proporção.
Os avanços da ciência na modernidade fizeram crescer
o número de pesquisadores e, consequentemente, a comunidade científica, trazendo para dentro dela a moralidade
prevalente em qualquer setor competitivo da sociedade.
Mesmo estando a ciência fundamentalmente comprometida com a verdade, tentando se aproximar dos reais
mecanismos e leis que regem a natureza em seus diversos
planos – biológico, físico, químico, social, planetário, cósmico, etc. –, ela não consegue manter-se como uma escola
de moral, como um dia a definiu o filósofo Mario Bunge.
Os rigores do método científico protegem a ciência de erros
inerentes à prática da investigação em si, mas é permeável
à manipulação desonesta do pesquisador.
A perda de confiança na ciência levaria a humanidade
ao caos psicológico gerado por profundos sentimentos de
insegurança, não apenas relativamente aos sistemas de
produção e consumo na área da saúde humana e animal
(medicamentos, vacinas, equipos médicos, alimentos, etc.),
mas também nas questões de construção, transporte, comunicação, aparelhos domésticos, produtos de limpeza,
cosméticos, etc. A ciência moderna já domina o mundo
em quase todos os setores. Consequentemente, dispor de
produtos de uma “boa ciência” já se configura como uma
forma de direito de todo cidadão e cidadã, em especial se
essa ciência é financiada com recursos públicos.
Finalmente, acreditamos que, pelo que a ciência significa
para as grandes potências econômicas e pelo futuro que ela
acena aos jovens, ações surgirão para o sufocamento da má
prática científica, pelo menos nos limites de se evitarem
tragédias humanas. w
Eliane S. Azevedo
Professora titular de bioética da UFBA.
Este artigo resulta da palestra “A construção moral da civilização ocidental e o
educar para a integridade científica no Brasil”, apresentada no workshop sobre
“Ética e integridade na ciência”, na Academia de Ciências da Bahia, em Salvador,
em 17/12/2013.
tecnologia
energia
A força
dos ventos
Potencial eólico do interior baiano supera a
capacidade de geração de energia das seis maiores
hidrelétricas do mundo juntas. Estado já soma
R$ 10 bilhões em investimentos no setor até 2017
Domingos Zaparolli
Zig Koch/SECTI/SEINFRA / CIMATEC-SENAI-BA
I
mpulsionada pela força dos ventos, a Bahia tem potencial para se
posicionar como o principal estado exportador de energia elétrica
do país. A constatação é do consultor em energia Paulo Emiliano
Piá de Andrade, da Camargo Schubert. Entre 2012 e 2013, Andrade esteve à frente de uma equipe de dez engenheiros que mapeou
a capacidade do estado de produzir energia eólica. “Detectamos que o
interior baiano é uma espécie de pré-sal dos ventos”, diz.
O trabalho da Camargo Schubert, que resultou no Atlas Eólico da Bahia,
concluiu que, utilizando a melhor tecnologia atual, com aerogeradores
instalados em torres com 100 metros de altura, e aproveitando ventos
que sopram a 7 metros por segundo (m/s), o estado reúne condições de
instalar turbinas capazes de gerar 70 mil megawatts (mw) de potência
elétrica, o que é dez vezes mais do que a Bahia produz hoje reunindo todas as fontes de geração disponíveis no estado. O total também supera
a potência instalada das seis maiores hidrelétricas em operação no mundo. Três Gargantas, na China; Itaipu, na divisa do Paraguai com o Brasil;
Tucuruí I e II, no Brasil; Guri, na Venezuela; Grand Coulee, nos Estados
Unidos; e a russa Sayano-Shushenskaya somam 66.929 mw.
A produção de 70 mil mw requer que uma área de 26.998 quilômetros
quadrados seja ocupada por torres eólicas. É uma grande extensão, que supera em seis vezes a Região Metropolitana de Salvador. Mas, como observa
Andrade, uma vantagem da energia eólica é que os parques aerogeradores
não exigem dedicação exclusiva do terreno, sendo compatível o compartilha-
Usina Guirapá,
em Guanambi,
parte do Complexo
Eólico Alto Sertão I
bahiaciência | 35
mento da área com outras atividades econômicas,
como a produção agropecuária, por exemplo. A
instalação de usinas geradoras no mar também é
viável, mas por um custo maior do que em terra.
Se a Bahia, mesmo assim, decidir explorar seu
potencial eólico offshore, instalando turbinas em
águas com até 50 metros de profundidade em
torres com 100 metros de altura e aproveitando
ventos a 7 m/s, somaria outros 77.400 mw à sua
capacidade eólica, informa a consultoria.
Em breve, estima-se que o potencial de geração elétrica com o vento será ainda maior.
A indústria de equipamentos eólicos já desenvolve aerogeradores a serem instalados a 150
metros de altura. Nessas condições, a equipe da
Camargo Schubert constatou que o potencial
eólico baiano chega a 195 mil mw com a ocupação de uma área em terra de 75.180 quilômetros
quadrados. Com essa capacidade podem-se
produzir 766 terawatt-hora/ano (twh/ano),
o que é praticamente uma vez e meia o total
de eletricidade que foi consumido em todo o
Brasil em 2012. No mar, as torres de 150 metros permitiriam a geração de mais 87.500 mw.
O potencial eólico baiano apontado no estudo leva em consideração apenas a ocupação
de áreas onde a instalação de parques aerogeradores não causa significativos impactos
ambientais. Exclui, por exemplo, regiões de
proteção ambiental integral, terras indígenas,
áreas urbanas ocupadas por obras de infraestrutura e ainda terrenos em que as condições
de solo não são adequadas.
O trabalho da Camargo Schubert destacou
sete regiões em terra que reúnem condições
privilegiadas para a instalação de usinas eólicas.
Utilizando-se apenas essas áreas, é possível a
geração de 44.300 mw em torres de 100 metros de altura. São elas: a região de Sobradinho,
Sento Sé e Casa Nova, que tem potencial para
6.200 MW; a região das serras Azul e do Açuruá, que tem uma capacidade para 7.600 mw;
o Morro do Chapéu, que pode receber equipamentos para a geração de 10 mil mw; a serra
do Estreito, onde o potencial é de 2.400 mw;
a serra do Tombador, com capacidade para 9
mil mw; a serra do Espinhaço, que pode receber equipamentos capazes de gerar 5.600 mw;
e a região que abrange Novo Horizonte, Piatã,
Ibitiara e Brotas de Macaúbas, onde podem ser
instalados parques capazes de gerar 3.500 mw.
“Todo o Nordeste brasileiro reúne boas condições para a geração de energia eólica, mas
36 | maio de 2014
nenhum estado apresenta o mesmo potencial
que a Bahia”, diz Andrade. Isso é consequência
de dois fatores, informa o consultor. Um é a
vasta extensão de áreas no estado propícias à
instalação de parques de geração, como o estudo demonstrou. O outro fator é a condição dos
ventos que sopram sobre a Bahia. A direção dos
ventos varia pouco, predominando o sentido
leste-oeste. No estado também predomina a
ocorrência de ventos com velocidades médias
elevadas, o que permite o uso de 45% a 55% da
capacidade dos aerogeradores. Para efeito de
comparação, na Alemanha, terceiro maior produtor eólico do mundo – com uma produção
de 32.300 mw –, aproveita-se entre 15% e 20%
da capacidade do equipamento.
Além disso, na Bahia os ventos extremos são
de baixa intensidade e frequência. Isso permite
que as turbinas eólicas sejam projetadas de forma
a privilegiar a performance energética, em vez
da robustez. “Poucos lugares no mundo reúnem
condições tão favoráveis”, diz Andrade. A Bahia
tem ainda uma vantagem comercial em relação
aos demais estados nordestinos, a maior proximidade com os centros consumidores de energia
do Sudeste, reduzindo o custo de transmissão.
Onde o vento sopra melhor
As principais regiões para investir em parques eólicos
1 Sobradinho, Sento Sé e Casa Nova
A região conta com ventos superiores a 7 m/s,
a 100 m de altura, e comporta uma capacidade equivalente a 6,2 GW em energia eólica. A
Usina Hidrelétrica de Sobradinho é um possível ponto de conexão ao sistema elétrico.
2 Região das serras Azul e do Açuruá
Na serra do Açuruá os ventos alcançam médias anuais de 8 a 9 m/s nas maiores elevações, a 100 m de altura. Na serra Azul os
ventos médios anuais são de até 8,5 m/s, a
100 m de altura. A região é cortada por uma
linha de transmissão de 230 kV, que interliga
as subestações de Irecê e Bom Jesus da Lapa.
Estima-se um potencial de cerca de 7,6 GW.
3 Morro do Chapéu
Os ventos médios anuais chegam a 9 ou 9,5
m/s nas melhores áreas. Parques eólicos já
estão em fase de projeto na região, onde é
prevista a instalação da subestação de Morro do Chapéu, a qual será interligada a uma
linha de transmissão de 230 kV. A capa­­­­cidade
potencial da área é de 10 GW.
4 Serra do Estreito
A serra do Estreito possui uma extensão
aproximada de 110 km, retilínea, razoavelmente plana na porção elevada e com rugosidade caracterizada por vegetação principalmente arbustiva, sobre a qual a velocidade do vento atinge 8 m/s, a 100 metros de
altura, nas melhores áreas. A subestações
mais próximas ficam nas cidades de Barra e
Xique-Xique, a 30 km e 70 km respectivamente, com conexões para 69 kV. O potencial é estimado em 2,4 GW em locais com
ventos acima de 7 m/s, a 100 m de altura.
5 Serra do Tombador
Os ventos médios anuais da região situam-se na faixa de 8 m/s, podendo alcançar 9,5
m/s em sítios específicos. Estima-se que
comporte uma capacidade para 9 GW em
energia eólica nos locais com ventos médios
superiores a 7 m/s, a 100 m de altura. A área
é próxima da subestação de Senhor do Bonfim, conectada ao Sistema Interligado Nacional através de uma linha de transmissão
de 230 kV.
Segundo maior produtor
Este conjunto de fatores favoráveis à geração
eólica já impulsiona uma série de investimentos
no estado. A Secretaria da Indústria, Comércio e Mineração (SICM) estima que até 2017
sejam realizados investimentos privados de
pelo menos R$ 10 bilhões, tanto na formação
de parques eólicos quanto na instalação de indústrias de equipamentos aerogeradores. Até
2009 a Bahia não contava com nenhum projeto no setor, apesar de as primeiras iniciativas
brasileiras na área datarem do início dos anos
1990. No final de 2013, porém, já eram 132 os
projetos de geração com contratos já negociados
em leilões promovidos pelo Ministério de Minas e Energia para o fornecimento em conjunto de 3.246 mw. Este total já posiciona a Bahia
como o segundo estado em contratação eólica
do país, atrás apenas do Rio Grande do Norte,
que tem projetos negociados em leilões federais
que somam 3.318 mw.
A rápida evolução da geração eólica baiana é
resultado de uma estratégia do governo do estado
que estabeleceu status de prioridade ao setor, informa a SICM. Entre as medidas adotadas desde
2010 estão a criação de uma Câmara de Energia,
responsável pela articulação do desenvolvimento
eólico do estado, e a criação de um grupo multi-institucional de suporte a empreendimentos, para facilitar o encaminhamento do licenciamento
ambiental e a regulação fundiária dos projetos.
Também foi desenvolvida uma estratégia para
adensar a cadeia produtiva dos aerogeradores,
incentivando investimentos industriais.
A expectativa da SICM é que a Bahia alcance
a liderança em geração eólica já no próximo leilão de energia do país, uma vez que investidores
privados já informaram ao governo estadual o
desenvolvimento de projetos para a produção
de mais 10 mil mw e assinaram protocolos de
intenções que sinalizam investimentos de R$ 16
bilhões. “A Bahia tende a se tornar o maior produtor eólico do país em no máximo dois anos”,
diz Clécio Elói, diretor da Casa dos Ventos, empresa que possui um dos maiores portfólios de
projetos de usinas eólicas do país. Atualmente
a Casa dos Ventos conta com parques eólicos já
operando ou em implantação que somam uma
capacidade de geração de 3.500 mw. Deste total,
460 mw estão em fase de construção na Bahia
em duas usinas, uma em Campo Formoso, que
entrará em operação em janeiro de 2016 com
1
mapa reprodução do livro baía de todos os santos – aspectos oceanográficos
4
2
6 Serra do Espinhaço
Destacam-se as proximidades das cidades
de Caetité, Pindaí e Guanambi. Nos melhores lugares, os ventos médios anuais podem
chegar a 9,5 m/s, e as áreas com ventos
médios superiores a 7 m/s, a 100 m de altura, podem comportar uma potência de
5,6 GW. Parques eólicos já em operação na
região são servidos pelas subestações de
Igaporã I, II e III e Pindaí II, com linhas de
transmissão de 230 kV e 500 kV.
3
5
7
6
7 Novo Horizonte, Piatã, Ibitiara e
Brotas de Macaúbas
O vento possui velocidade média anual
entre 7,5 e 8,0 m/s. A capacidade potencial
para a área é estimada em 3,5 GW em locais com ventos acima de 7 m/s, a 100 m
de altura. Atendendo a empreendimentos
eólicos já instalados na região, o sistema
elétrico conta com uma subestação em
Brotas de Macaúbas, conectada a uma
linha de transmissão de 230 kV. Ao sul,
a subestação de Ibicoara está conectada
em 500 kV.
Fonte: Atlas Eólico - Camargo Schubert
bahiaciência | 37
uma capacidade de geração de 180 mw, e outra
em Itaguaçu, prevista para operar no final de
2017 com 280 mw de potência. Os dois investimentos somam R$ 1,8 bilhão até 2017.
Elói relata que a companhia tem como
meta para os próximos dez anos estabelecer
parques aerogeradores no país que somarão uma
potência instalada de 10 mil mw, sendo que 3 mil
mw deverão ter operação da própria empresa e
7 mil mw deverão ser repassados para terceiros.
A Bahia ocupará posição central nessa expansão. No estado, a Casa dos Ventos já conta com
áreas preparadas, ou seja, aptas a participar de
leilões de energia, que podem receber turbinas
aerogeradoras capazes de produzir 4 mil mw. A
empresa também já desenvolve o projeto básico
para outras áreas no estado que somam um potencial para mais 2 mil mw. “A Bahia responderá
por mais da metade de nossa produção”, afirma.
“O Nordeste tem os melhores ventos do
mundo, mas o sudoeste baiano, onde concentramos nossos investimentos, é uma mina de
ventos perfeitos para a geração eólica”, diz Ney
Maron, diretor de sustentabilidade da Renova
Energia, companhia que administra o maior
empreendimento aerogerador em operação na
América Latina, o Complexo Eólico Alto Sertão
I, localizado entre os municípios de Caetité,
Guanambi e Igaporã. Inaugurado em 2012, após
investimentos de R$ 1,2 bilhão, o complexo tem
capacidade para 294 mw, energia suficiente para
abastecer 540 mil residências.
Na mesma região, a empresa investe mais
R$ 1,4 bi­lhão no Complexo Alto Sertão II, previsto para ser concluído em março deste ano,
com capacidade de 386,1 mw, energia que pode
abastecer uma cidade de 1,9 milhão de habitantes. A Renova Energia tem ainda dois outros projetos em desenvolvimento no estado já
comercializados em leilões federais de energia
ocorridos no final de 2013, informa Maron. Um
terá capacidade para gerar 159 mw e o outro,
183,9 mw.
Os investimentos em geração despertaram
o interesse dos fabricantes de equipamentos
eólicos em também se estabelecer no estado.
A paulista Tecsis, uma das maiores fabricantes
de pás para aerogeradores do mundo, anunciou
em 2013 um investimento de R$ 250 milhões
para montar uma fábrica em Camaçari, com
capacidade ainda não definida. Pércio de Souza,
presidente do conselho de administração, diz
que a companhia foi atraída para a Bahia pelo
38 | maio de 2014
potencial eólico e o posicionamento logístico estratégico do estado. “O Nordeste é a região com
maior potencial de crescimento na geração de
energia eólica. Além disso, a proximidade dos
portos de Salvador e Aratu é importante para a
logística e o fornecimento para outras regiões
do país e para o mercado externo”, diz.
A instalação da fábrica de pás é o último elo
que faltava para a Bahia completar toda a cadeia
de produção de aerogeradores em seu território.
As duas primeiras indústrias de turbinas da América Latina foram inauguradas na Bahia em 2011.
A espanhola Gamesa investiu R$ 50 milhões para
produzir 150 aerogeradores por ano em Camaçari
e agora está investindo R$ 100 milhões para capacitar a unidade a produzir, a partir de 2015, a
caixa de rotor das turbinas, as chamadas nacelles.
A outra fábrica inaugurada em 2011 foi da
francesa Alstom, também em Camaçari, após
investimentos de R$ 50 milhões. A unidade
entrou em operação com uma capacidade produtiva de turbinas capazes de gerar 300 MW de
potência, ou seja, cerca de cem aerogeradores
por ano, mas em 2013 a fábrica já tinha dobrado
Com o vento a favor
Principais investimentos da indústria
de equipamentos eólicos na Bahia
Gamesa
A empresa espanhola investiu R$ 50 milhões e produz aerogeradores em Camaçari desde 2011, com uma capacidade de produção de 150 unidades por ano. Em 2013, anunciou
um novo investimento de R$ 100 milhões para fabricar nacelles (caixa do rotor do aerogerador) com capacidade instalada de 400 MW/ano. A nova linha de produção entrará
em operação no início de 2015.
Alstom
A companhia francesa investiu R$ 50 milhões em uma fábrica em Camaçari. A unidade
entrou em operação em 2011 com uma capacidade para cem aerogeradores por ano.
Em 2013, a fábrica dobrou sua capacidade de produção para 200 turbinas.
Acciona
A espanhola Acciona foi inaugurada em março de 2013, em Simões Filho. A meta é produzir anualmente 135 cubos eólicos (peças que concentram as hélices das torres geradoras de energia).
Tecsis
A paulista Tecsis, uma das líderes mundiais na fabricação de pás para aerogeradores,
prevê investimentos de R$ 250 milhões em uma unidade em Camaçari, com previsão
para entrar em operação em 2015.
Torrebras
A Companhia espanhola inaugurou em 2013 a primeira fábrica de torres para aerogeradores da Bahia, em Camaçari, após investimentos de R$ 30 milhões. A unidade terá capacidade para produzir 200 torres por ano.
Fonte: empresas e SICM
Torres de 100
metros de altura
e ventos de
7 m/s permitem
a produção de
70 mil MW
sua capacidade de produção para 200 aerogeradores por ano, ou 600 mw de potência. A Alstom também inaugurou em 2013 uma fábrica
de torres em Canoas, no Rio Grande do Sul.
Zig Koch/SECTI / SEINFRA/CIMATEC-SENAI-BA
Localização estratégica
Pierre François Chenevier, diretor da divisão
Wind da Alstom, diz que Camaçari, além de ser
uma das áreas industriais mais importantes do
país, é estratégica para o mercado de energia eólica devido ao grande potencial de instalação de
usinas geradoras nas suas proximidades, tanto
na Bahia como em estados vizinhos. O executivo relata que a Alstom já tem sete contratos
de fornecimento de equipamentos eólicos no
Brasil. O primeiro, assinado em 2010, no valor
de 100 milhões de euros, foi com a Desenvix
para a instalação e manutenção por dez anos
de um complexo de 90 mw na Bahia, já em
operação. Na sequência vieram contratos com
a Brasventos, para três parques eólicos no Rio
Grande do Norte, outro com a Odebrecht Energia, para a instalação de parques aerogeradores
no Rio Grande do Sul, depois foi fechado acordo
com a Casa dos Ventos e com a Queiroz Galvão
(nos dois casos para projetos em andamento no
Nordeste) e, no final de 2013, com a Enerplan,
para instalações no Rio Grande do Sul. Também
no final do ano passado, a companhia fechou
uma parceria com a Renova Energia que está
sendo considerada a maior do mercado global
de energia eólica, que pode gerar 1 bilhão de
euros em pedidos para a instalação de projetos
que somam 1,2 gw.
No ano passado, a espanhola Acciona inaugurou em Simões Filho, na Região Metropolitana
de Salvador, uma fábrica com capacidade para
produzir 135 cubos eólicos por ano. São as peças
que concentram as hélices das torres geradoras
de energia. A meta da companhia para 2014 é
instalar no estado uma fábrica de montagem
de nacelles, o que permitirá a produção anual de
cem turbinas aw3000, o equipamento de maior
potência no portfólio da multinacional. Ainda
em 2013, a espanhola Torrebras inaugurou a primeira fábrica de torres para aerogeradores do
estado, também em Camaçari, após investimentos de R$ 30 milhões. A unidade terá capacidade
para produzir 200 torres por ano.
O preço da energia eólica já é bastante competitivo no Brasil. No leilão de energia do governo federal ocorrido em dezembro, o mwh
foi comercializado por R$ 119,03, quando foram
contratados 2.300 mw eólicos. O valor confirma a energia dos ventos como a segunda mais
econômica, atrás apenas da comercializada pelas grandes hidrelétricas do país, entre R$ 90 e
R$ 100 por mwh. Segundo a Associação Brasileira
de Energia Eólica (Abeeólica), o país conta com
uma capacidade instalada de 3.399 mw em 140
usinas eólicas e deve chegar a 8.700 mw até 2017.
Mas, entre os investidores em energia eólica na
Bahia, a aposta é que a força dos ventos do estado pode gerar resultados bem mais robustos. ◗
bahiaciência | 39
artigo
A inovação na Bahia
José de Freitas Mascarenhas
I
novar, em países que ainda não se desenvolveram plenamente, é a via de menor custo para superar obstáculos.
O problema é que a decisão do empresário de inovar
de forma sistemática depende não apenas de seu propósito, mas também de uma série de elementos que
precisam ser ordenados e articulados para que se consolide
um ambiente favorável à inovação. Apesar da reconhecida
importância das instituições de conhecimento e do governo,
o protagonismo da inovação é do empresário e sua motivação é essencialmente a natureza competitiva dos negócios.
Para que se concretize, o ambiente deve disponibilizar
instrumentos de financiamento e um regime tributário
diferenciado de apoio à inovação; um conjunto de equipamentos de alto desempenho na oferta de serviços de suporte ao desenvolvimento tecnológico; e, principalmente,
programas e instituições voltados à melhoria do sistema
educacional, focados no conhecimento e na educação para
o mundo do trabalho. Este esforço da sociedade é fundamental para ajudar a empresa inovadora, principalmente
se pequena ou média, sem recursos internos.
Os resultados da Pesquisa de Inovação Tecnológica (Pintec), de 2011, que traça um panorama geral da inovação no
país, mostram que um ambiente positivo estimula as inovações nas empresas. Este funciona como um catalisador
de iniciativas que reduzem a insegurança jurídica, com-
40 | maio de 2014
partilham o risco e mitigam
incertezas, incrementando a
taxa de inovação, os investimentos em atividades de
caráter inovativo e em pesquisa e desenvolvimento.
De 2000 a 2011, período
em que muitas iniciativas favoráveis à inovação começaram a amadurecer, o percentual de indústrias brasileiras
inovadoras saltou de 31,5%
para 35,7%. Pode-se depreender desse fato que as empresas nacionais estão despertando para a necessidade do
esforço da inovação para o desenvolvimento dos seus negócios e que os empresários estão respondendo positivamente
aos estímulos de incentivo ao empreendedorismo inovador.
Esses movimentos iniciais são importantes, afinal não
podemos esquecer que, de acordo com o Índice Global de
Inovação 2013, o Brasil ocupa apenas uma modesta 64ª posição no ranking das nações mais inovadoras – os dados fazem
parte do relatório elaborado pela Organização Mundial da
Propriedade Intelectual, Instituto Insead e Universidade
Cornell (EUA). Portanto, a questão da inovação impõe um
desafio relevante a ser superado para reduzir a distância
do país em relação às mais importantes e competitivas
economias do planeta.
O governo federal incorporou o tema aos seus discursos e
à política industrial, através do Programa Brasil Maior, repetindo como um mantra que é preciso “um foco mais centrado
em inovação”. E deu um passo importante aumentando o
volume de crédito concedido pela Financiadora de Estudos
e Projetos (Finep), para empresas inovadoras do país, que
chegou a R$ 6,3 bilhões em 2013. Este ano, a Finep estima
alcançar R$ 10 bilhões em financiamento da atividade.
Ainda que seja um problema nacional, a Bahia despertou
para a questão e vem dando passos (iniciais) no sentido de
melhorar a eficiência do ambiente propício à ocorrência do
esforço inovativo. No entanto, é preciso pisar no acelerador.
foto João Alvarez / FIEB ilustração ana paula campos
Os programas de apoio à inovação ainda não correspondem
à relevância do estado no cenário nacional.
No ano de 2013, a Federação de Amparo à Pesquisa do
Estado da Bahia (Fapesb) disponibilizou recursos no valor
de R$ 119,9 milhões, sendo R$ 86,3 milhões para fomento
à pesquisa e inovação no estado da Bahia e R$ 33 milhões
para formação científica. Do total, quase 71% são oriundos
do Tesouro Estadual e o restante, de parcerias federais.
Mas o ambiente vem se modificando. No último ano, a
Secretaria de Ciência Tecnologia e Inovação (Secti) implementou ações positivas, por meio de projetos da sua iniciativa, a exemplo do Parque Tecnológico, e abriu diálogo
com setores representativos do empresariado visando ao
melhor posicionamento da Bahia nesse campo.
A Federação das Indústrias do Estado da Bahia (Fieb)
colocou a inovação como uma das prioridades do seu programa de ação até 2013. Em 2010, criou o Fórum de Inovação da Bahia, que reuniu seu próprio quadro técnico,
representações do governo, das universidades e das empresas, e debateu temas relevantes, como a necessidade
de aumentar a formação de engenheiros, a utilização do
poder de compra do estado e a Lei de Inovação da Bahia.
Também implantou a Mobilização Empresarial pela Inovação (MEI) na Bahia, oferecendo, por meio do Instituto
Euvaldo Lodi, em parceria com a Finep e o Banco Interamericano de Desenvolvimento, programas de capacitação
empresarial para inovação; e renovou o seu Conselho de
Inovação e Tecnologia, suas políticas e seus quadros.
Outra iniciativa foi a elaboração de um Plano de Desenvolvimento Estratégico pelo Senai Bahia, que prevê a construção de novas unidades voltadas ao ensino e pesquisa,
bem como maior eficácia da política de difusão tecnológica
e de pesquisa aplicada. Tudo isso com o apoio do Instituto
Fraunhofer, do Instituto Alemão de Robótica e Inteligência
Artificial (DFKI), da Intel e outros, a fim de buscar permanentemente o estado da arte das tecnologias a serem utilizadas.
Desde 2002, quando inaugurou o Centro Integrado de
Manufatura e Tecnologia (Cimatec), o Senai Bahia passou a
se constituir um dos principais centros de desenvolvimento
de tecnologia do Senai no país e provedor de soluções para
a indústria baiana e também para a nacional. Atuando em
convênio com a CNI e Ministério
da Ciência, Tecnologia e Inovação,
o Cimatec é o responsável pelo desenvolvimento do programa Embrapii no estado, projeto que visa
ao desenvolvimento da inovação
junto a empresas brasileiras.
Atualmente, apenas no âmbito
da Embrapii, o Centro já trabalha
com 27 projetos aprovados de pes“De 2001 a 2011,
o percentual
quisa e inovação das empresas, no
de indústrias
valor global de R$ 74,2 milhões, tenbrasileiras
do outros cinco aguardando assiinovadoras saltou
natura em fase final e mais 12 em
de 31,5% para 35,7%”
fase de negociação avançada. Ainda desenvolve atividades buscando
viabilizar cerca de 58 projetos prospectados. Na área de educação, a Faculdade Senai Cimatec
obteve, em 2012, a maior média do Índice Geral de Cursos
(IGC), no Norte e Nordeste, segundo avaliação do Ministério
da Educação (MEC). Com média 3,69, superou instituições
tradicionais de educação superior na Bahia e em outros estados das regiões citadas. E aguarda a autorização do MEC
para implantar um Centro Universitário, o UNISenai.
Além disso, inaugurou em 2013 a expansão do Cimatec,
que agregou um Centro Nacional de Conformação Mecânica
e um Centro Nacional em Logística. Também instalou um
Centro de Supercomputação, o Instituto Nacional da Robótica e a primeira aceleradora do Senai. Está programado,
a partir deste ano, também o início da implantação de uma
rede de institutos de inovação (nos campos da automação,
química e conformação e soldagem) e de institutos de tecnologia (nos campos da construção civil e eletroeletrônica).
Todas elas são medidas importantes para implementar
uma política de desenvolvimento da inovação no estado visando, assim, superar o atraso ainda existente neste campo.
Como se vê, há trabalhos iniciados, mas ainda há muito
por fazer pela inovação na Bahia. w
José de Freitas Mascarenhas
Vice-presidente da Confederação Nacional da Indústria (CNI).
bahiaciência | 41
empreendedorismo
Nas fronteiras da
colaboração
Baiana de 23 anos cria rede social para troca de
serviços e experiências com base no escambo
Rodrigo de Oliveira Andrade
E
m meados de 2012, depois de
assistir a documentários sobre
redes de colaboração on-line e
modelos de economias alternativas, Lorrana Scarpioni, então com
21 anos, percebeu que poderia aplicar
à lógica das redes sociais a prática ancestral do escambo, possibilitando a
troca de serviços – sem envolver dinheiro – por meio de uma plataforma
virtual desenvolvida com base no conceito de economia colaborativa. Pouco
mais de um ano depois, em agosto de
2013, Lorrana transformou sua ideia em
uma possibilidade real e lançou a Bliive,
uma rede de troca de serviços em que
a única moeda válida é o tempo. Nela, internautas do mundo todo podem
compartilhar experiências em troca de
créditos, que são revertidos em outras
atividades que a pessoa queira fazer. A
plataforma, que à época de seu lançamento tinha 1.300 pessoas cadastradas
e outras 2 mil na lista de espera, conta
42 | maio de 2014
hoje com 16 mil membros espalhados
em mais de 55 países, entre eles Estados Unidos e Austrália.
Em abril deste ano, Lorrana foi listada entre os dez inovadores com menos de 35 anos em 2013 pela edição em
português da revista Technology Review,
do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). O objetivo da lista é
reconhecer o talento de jovens empreendedores e pesquisadores do Brasil e
selecionar os pré-indicados para a lista
internacional, que terá 35 nomes. O
processo seletivo contou com a avaliação de jurados nacionais e internacionais, além de consultas específicas
a especialistas de outras áreas.
Os pesquisadores, professores e empreendedores selecionados serão premiados por sua contribuição para a resolução de diversos problemas atuais.
Uma nova tecnologia de baixo custo
para a fabricação de dispositivos de análise microfluídicas a partir do papel,
próteses ortopédicas feitas de plástico
reciclado e até um método para acelerar o diagnóstico de doenças genéticas
raras estão entre as contribuições de
alguns dos selecionados. “Validar uma
ideia ou um modelo de negócio no Brasil é um desafio”, conta Lorrana. “Ser
reconhecida pelo MIT como uma das
dez principais jovens empreendedoras
do país mostra que estamos no caminho certo.” A cerimônia de premiação
aconteceu no dia 13 de maio, na Federação das Indústrias do Estado do Rio
de Janeiro, no Rio de Janeiro.
PRIMEIROS PASSOS
Lorrana nasceu em Salvador, Bahia. De
família de classe média, morou em Esplanada até os quatro anos, quando se
mudou para a capital paranaense com os
pais. Lá se formou em relações públicas
na Universidade Federal do Paraná (UFP)
e em direito pelo Centro Universitário
Unicuritiba. Hoje divide um apartamen-
foto r. Junior
Inovação:
baiana está
entre 35 jovens
empreendedores
da Technology
Review, do MIT
to com outras duas amigas em Ponta
Grossa, município a 103 quilômetros de
Curitiba. Lorrana sempre foi determinada – e teimosa, ela diz. Afirma ser perseverante, sobretudo, em meio às adversidades. Desde cedo quis empreender.
Ainda na adolescência se apaixonou pela
possibilidade de desenvolver projetos sociais. A ideia de criar a rede colaborativa
surgiu nos últimos anos da graduação.
“Depois de assistir àqueles documentários, pensei em criar uma rede social
que unisse a lógica dos bancos de tempo tradicionais à possibilidade de poder
trocar serviços com um grande número
de pessoas e registrar essas experiências
para serem vistas e compartilhadas por
seus contatos”, explica.
A viabilização da ideia não foi fácil.
Lorrana contou com a ajuda de um de
seus professores de direito, que entrou
como sócio no negócio, contribuindo
com a administração dos trâmites jurídicos. Em seguida, investiu o dinheiro que
seria usado em sua festa de formatura
para contratar um programador para a
concepção da rede social. Após meses
de reuniões, negociações e a própria escassez de recursos financeiros, ela conseguiu mais dois sócios. Hoje a startup
conta com uma equipe de seis pessoas.
A ideia de usar o tempo como moeda
de troca surgiu na década de 1980, no
Japão, chegando à Europa na década de
1990, onde se popularizou. São várias
as organizações que hoje oferecem serviços pelo sistema de banco de tempo
no mundo. É o caso da TimeBanks, dos
Estados Unidos, e da Timebanking, do
Reino Unido. No caso da Bliive, a lógica
é diferente. Lorrana explica que, por
meio do banco de tempo, o usuário
pode oferecer seus serviços a outras
pessoas. Em troca, recebe créditos, ou
TimeMoney, a moeda da rede social.
Esses créditos podem ser trocados pelos serviços de que o usuário precisa
ou queira fazer, e que outras pessoas estejam oferecendo na plataforma.
“Com isso, possibilitamos a troca não
só de serviços profissionais, mas também de experiências e conhecimento
entre internautas.” A ideia parece estar dando certo. Até janeiro deste ano,
foram realizadas mais de 5 mil trocas,
com mais de 26 mil horas oferecidas.
A Bliive é gratuita e não permite propagandas. Lorrana explica que o faturamento da startup vem de parcerias com
estabelecimentos comerciais, que são
indicados pela rede social para que seus
usuários se conheçam pessoalmente e
façam a troca dos serviços de maneira
segura. “Oferecemos também uma plataforma corporativa”, diz. A proposta é
desenvolver uma rede social exclusiva
para cada empresa, nos mesmos moldes da plataforma original. “Empresas
que tenham interesse em montar uma
rede colaborativa interna de troca de
tempo para seus funcionários podem
contratar o serviço. Assim, promovemos a troca de serviços e experiências
entre os próprios funcionários, favorecendo a integração das equipes.” Já as
parcerias com ONGs ajudam a ampliar
o potencial da startup, possibilitando
que o usuário obtenha créditos por
meio de trabalhos voluntários.
Em 2013, Lorrana foi nomeada Global Shaper, iniciativa do Fórum Econômico Mundial de uma rede global
de jovens entre 20 e 30 anos com potencial para futuros papéis de liderança. Em 2014, a Bliive foi selecionada,
entre dois mil concorrentes, para ser
uma das 30 empresas do programa de
aceleração Sirius do governo do Reino Unido. Isso permitirá que parte da
equipe receba ajuda financeira e consultoria por um ano para consolidar
a rede social na Europa. “Iremos para
a Escócia em junho deste ano”, conta
Lorrana. Ainda há muito o que fazer,
ela reconhece, “mas é bom saber que
existem pessoas que sabem reconhecer
as tendências relacionadas à dinâmica
da economia colaborativa”, diz. w
bahiaciência | 43
cultura
história
Sombras do passado
Os quilombos e as revoltas dos escravos entre os séculos
XVII e XIX inauguraram a luta pela liberdade e plena cidadania
empreendida até hoje pelos negros no Brasil Claudia Izique
A
escravidão deslocou para o Brasil algo
em torno de quatro milhões de africanos entre o século XVI e meados
do século XIX. Quando o tráfico foi
interrompido, em 1850, o país tinha se tornado
o destino de quase 45% dos negros aportados
na América e entrava para a história como a nação a receber o maior número de trabalhadores
cativos da África em todo o mundo.
Na primeira metade do século XIX, Salvador e Rio de Janeiro tinham se transformado
em “pequenas Áfricas” incrustadas nas duas
maiores cidades de um país que se emancipava e que começava a construir sua identidade
política, econômica e cultural.
A relação tensa entre escravos e senhores,
as manifestações de revolta e o intercâmbio
entre elementos de culturas tão distintas são,
há mais de 30 anos, objeto de pesquisa do historiador baiano João José Reis, da Faculdade
de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
44 | maio de 2014
Doutor pela Universidade de Minnesota,
Reis enxerga o escravo como um “agente de
sua história”. “Mesmo quando se acomoda, o
escravo decide em grande medida os rumos
de sua história.”
Perscrutou experiências individuais e coletivas para reconstituir a história de personagens
como Domingos Pereira Sodré, um sacerdote
africano que, liberto, se transformou, ele próprio, em senhor de escravos, lançando mão de
artifícios que incluíram a feitiçaria. Reis chama
essa modalidade de estudo de micro-história
social. “Essa perspectiva, como a da história
social mais convencional, não é necessariamente uma ruptura com a metodologia marxista,
embora não se trate mais de um marxismo estruturalista, preocupado em pensar a história
como estruturas que enquadram sem piedade
os sujeitos e, mais ainda, o indivíduo.”
Essa visão pauta boa parte de sua obra traduzida em livros publicados por editoras do porte
de Companhia das Letras e Brasiliense, um de-
Sem título, Johann Moritz Rugendas, c.1830s – Recife, capital de Pernambuco, meados da década de 1820
les premiado com o Jabuti (A Morte é
uma Festa). Recebeu também o Prêmio
Literário Casa de las Américas (O Alufá
Rufino, em parceria com Flávio Gomes
e Marcus Carvalho), o Haring (A Morte é uma Festa) e Choice Outstanding
Academic Title, da American Library
Association (Death is a Festival). Assina,
ainda, meia centena de capítulos em
publicações de referência em estudos
da escravidão e outros tantos artigos
em revistas brasileiras e estrangeiras.
Professor visitante nas universidades norte-americanas de Michigan,
Princeton, Harvard, Brandeis e Texas
e na École de Hautes Études en Sciences Sociales, na França, este baiano
nascido no bairro da Ribeira, em Salvador, dedicou atenção especial aos movimentos de resistência escrava, desde
a formação de quilombos até revoltas
como a dos malês, tema de seu livro
Rebelião Escrava no Brasil: A História do
Levante dos Malês em 1835, lançado em
1986 pela Editora Brasiliense e reeditado, revisto e ampliado em 2003 pela
Companhia das Letras.
O quilombo, ele sublinha, foi um
movimento “típico” dos escravos.
Constituído por até milhares de pessoas, alguns quilombos – como o de
Palmares, por exemplo, uma espécie
de “federação” de diversos mocambos
– eram formados majoritariamente não
só por escravos africanos, mas também
por soldados desertores, aventureiros,
vendedores e até índios. Palmares resistiu durante quase cem anos, ao longo
do século XVII, às várias expedições
militares. A maioria dos quilombos, no
entanto, formados por poucas centenas
de pessoas, tinha vida bem mais curta.
Ali os escravos se escondiam, plantavam, colhiam, negociavam alimen-
tos, armas e munições e reinventavam
tradições ao manter laços com outros
grupos sociais. Também assaltavam viajantes, atacavam povoados e sequestravam escravas para “melhorar a demografia predominantemente masculina
do quilombo”, conforme escreveu Reis
no artigo Quilombos e revoltas escravas
no Brasil, publicado na Revista USP, na
edição dezembro/fevereiro de 1995/96.
O objetivo do quilombola era sobreviver fora do sistema escravista. Ainda
que não se configurassem “como ameaça efetiva à escravidão”, os quilombos
passaram a representar “uma ameaça simbólica importante, povoando o
pesadelo de senhores e funcionários
coloniais, além de conseguir fustigar
com insistência desconcertante o regime escravista”.
As revoltas se tornaram mais frequentes a partir do fim do século XVIII.
bahiaciência | 45
46 | maio de 2014
arquivo pessoal
Eram uma manifestação clara de rejeição à escravidão, mas com o objetivo de
reformá-la, e não destruí-la, ressalva
Reis. Não por coincidência, cresceram
junto com a expansão das áreas dedicadas à agricultura de exportação, com
a intensificação do tráfico de escravos
e com a difusão dos movimentos pela
independência do país e as ideias abolicionistas, já no século XIX.
O fator demográfico favorecia a revolta: nos últimos 40 anos do tráfico
chegaram ao Brasil 31% dos quase cinco
milhões de africanos importados ao longo de três séculos, ele esclarece. Mas o
fato de esses escravos, em determinados
contextos, terem origem no mesmo grupo étnico foi fundamental para reforçar
a identidade coletiva ante a hegemonia
dos senhores. Essa foi a centelha que
acendeu a revolta dos malês, africanos
muçulmanos da nação nagô, ocorrida na
noite de 24 para 25 de janeiro de 1835,
em Salvador, e violentamente reprimida: cerca de setenta morreram em combate, quatro foram fuzilados, dezenas
açoitados e presos e os libertos suspeitos deportados para a África.
Seguiu-se um período de “calmaria
imperial”, como ele diz, até 1857, quando novamente os nagôs se rebelaram,
desta vez contra o Estado. Cinco anos
depois de abolido o tráfico e 14 anos
antes da Lei do Ventre Livre, a maioria dos negros de Salvador, escravos
ou não, trabalhava na rua, ou entre a
casa e a rua, como ressalva Reis. “Carregavam de tudo: pacotes grandes, pequenos, do envelope de carta a grandes
caixas de açúcar, tinas de água e fezes,
tonéis de aguardente e gente em cadeira de arruar”, ele conta no artigo A greve negra de 1857 na Bahia, publicado na
Revista da USP, edição nº 18, de 1993.
Pagavam a semana – ou diária – ao senhor, podendo embolsar a diferença,
que, em alguns casos, lhes permitia
comprar a alforria.
Naquele ano, uma legislação municipal passou a exigir que os ganhadores
– como eram chamados – precisariam
de licença concedida pela Câmara para trabalhar. Além do custo da licença,
A religião serviu de canal para a
formação de novas identidades no Brasil
e em outras regiões da América
de 2 mil réis, teriam que pagar taxa
adicional de 3 mil réis por uma chapa
de metal com o número da inscrição
a ser obrigatoriamente utilizada no
pescoço. Os libertos deveriam também apresentar fiadores idôneos que
“se comprometessem pelo comportamento futuro deles”.
A nova lei, afirma Reis, foi uma iniciativa do poder público para disciplinar e vigiar o trabalho negro no espaço
público. “Os negros eram temidos, em
primeiro lugar, porque eram muitos.”
Os ganhadores, organizados em cantos
– grupos etnicamente delimitados que
ofereciam seus serviços em áreas determinadas da cidade –, foram à greve.
Contaram com o apoio indireto da Associação Comercial, que se mobilizou
contra os prejuízos da não circulação
de mercadorias, protestando junto ao
presidente da Província. “O presidente,
como os comerciantes da Associação,
era adepto do liberalismo econômico, o
que diversas vezes os opunha à Câma-
ra, mais intervencionista”, explica Reis.
A taxa foi suspensa e a chapa de metal
desonerada, mas não abolida. E a greve
continuou. Durou, ao todo, uma semana, quando os negros – sem a chapa de
metal no pescoço – retomaram o trabalho. A legislação acabou sendo revogada.
Na avaliação de Reis, o passado escravista imprimiu no país a marca do
racismo ainda hoje consignada na distribuição de renda, no acesso à educação, representação política, entre
outras mazelas. O passado, como ele
diz, ainda faz sombra sobre o presente.
“A liberdade é um processo de longa
duração que teve início quando ainda
vigorava a escravidão legal, em que os
escravos resistiam à sua condição por
meio da negociação, das fugas, dos quilombos, das revoltas, do engajamento
na luta abolicionista, mas também da
conquista da alforria e da formação de
uma população livre afrodescendente
numerosa, que antes mesmo da abolição pelejava pela plena cidadania e
continuou a fazê-lo após a abolição. E
permanece a batalhar nesse sentido.”
Na entrevista a seguir, concedida
por Reis à revista Bahiaciência, ele fala
sobre os movimentos de resistência de
escravos entre os séculos XVII e XIX,
avalia o papel da religião na construção
de identidades africanas e analisa a inserção do negro na sociedade baiana.
❙ Do ponto de vista da manifestação política, qual é a grande diferença entre
os quilombos do século XVII e as rebeliões da primeira metade do século XIX?
Os quilombos são diferentes das revoltas, não importa o período em que
aconteceram. Enquanto os quilombos
representam um afastamento da sociedade escravista – embora muitas vezes
por meio do ataque e, noutras, da negociação –, as revoltas significaram uma
ruptura mais radical, violenta, mesmo se localizadas e efêmeras, como,
por exemplo, a revolta de um grupo de
escravos de uma fazenda ou engenho
contra um feitor ou um senhor particularmente cruel. Ou seja: na revolta
há pouca margem para a negociação.
No entanto, estas são diferenças mais
de escala do que de natureza. Pode-se
argumentar que o quilombo é também
uma revolta, uma forma de resistência
à escravidão. Muitas vezes a revolta
leva à formação de quilombos, como
parece ter sido o caso de Palmares. Na
Bahia, algumas revoltas tiveram, como
parte da sua estratégia, a formação prévia de quilombos. Deve-se, no entanto,
considerar que nem toda revolta e muito menos o quilombo tiveram projetos
abolicionistas.
❙ Quais as características dos movimentos de escravos no século XIX e no que
eles se diferenciavam dos movimentos
dos séculos XVII e XVIII?
O Brasil conheceu poucas revoltas escravas antes do século XIX, pelo menos
revoltas que tivessem deixado indícios
na documentação. Mas podemos dizer
que os quilombos prevaleceram absolutos como a modalidade mais frequente
de resistência coletiva nos séculos XVII,
XVIII e XIX, sendo que neste último
período as revoltas vieram a se somar
a eles. Embora elas acontecessem em
todo o Brasil, foram mais frequentes no
Nordeste, particularmente na Bahia,
onde muitas delas se caracterizaram
por terem sido tocadas, ou pelo menos
lideradas, por escravos muçulmanos.
Não se tem notícia de nenhuma rebelião muçulmana fora dessa província
ou mesmo fora do Brasil, na América escravista. Mas no Maranhão, por
exemplo, no seio da Balaiada, aconteceu um movimento escravo muito
significativo em termos do número de
pessoas envolvidas, sob a liderança de
um liberto, Cosme Bento das Chagas,
que se intitulara “tutor e imperador da
liberdade”. Foi um movimento muito
maior do que, por exemplo, a Revolta
dos Malês, na Bahia, e tinha um projeto claramente abolicionista, o que
não se vislumbra tão claramente no
movimento baiano. Foi na Bahia, contudo, onde aconteceu o maior número
de revoltas escravas, um ciclo de mais
de trinta levantes e conspirações entre
1807 e 1835. A razão para isso foi a concentração de um volume muito grande
de escravos da mesma nação africana,
no caso, particularmente, haussás e iorubás (chamados nagôs no Brasil), que
tinham sido cativos de guerra. Ou seja,
os rebeldes baianos eram guerreiros na
África. Na segunda metade do século
XIX, sobretudo nas regiões cafeeiras
do Sudeste do Brasil, as revoltas adquiriram um teor mais explicitamente
abolicionista, especialmente nos anos
que antecederam a abolição, em 1888.
❙ As rebeliões cresceram com a expansão das áreas dedicadas à agricultura
de exportação, o aumento do tráfico e
os movimentos pela independência,
junto com a ideologia liberal, conforme o senhor já escreveu. Estes fatores
também estariam na origem da Revolta
dos Malês, em 1835? A Bahia foi a região das Américas que
mais recebeu cativos de terras islamizadas da África, regiões que hoje correspondem ao norte da Nigéria, o vas-
to território haussá. Lá aconteceu, a
partir de 1804, um jihad, uma guerra
santa muçulmana cujos prisioneiros,
de ambos os lados, foram abastecer os
entrepostos do tráfico controlados por
negreiros baianos no golfo do Benim,
a chamada Costa da Mina. Tivemos,
então, um primeiro ciclo de revoltas e
conspirações capitaneadas pelos haussás, entre 1807 e 1816, aproximadamente. O segundo ciclo, dos anos 1820 até
1835, foi protagonizado pelos nagôs,
que chegaram em grande número nesse período, embora já estivessem bem
representados entre os escravos baianos
desde o início do século. Os nagôs que se
rebelaram na Bahia tinham sido vítimas
de conflitos internos no país iorubá,
especificamente no reino de Oyó, onde
existia uma comunidade muçulmana pequena, mas ativa, que se aliou à liderança pagã que contestava a autoridade do
rei. Esses muçulmanos de origem iorubá
eram os malês, termo que vem de imale
e significa precisamente muçulmano na
língua iorubá. Os haussás islamizados
eram mussulmis. Porém, nem toda revolta nagô foi liderada por muçulmanos; a
maioria, provavelmente, o foi por adeptos da religião dos orixás, se quisermos
entender na chave religiosa esses levantes, uma chave que nem sempre abre
as portas para a compreensão desses
movimentos. Além disso, tal como na
África, muçulmanos e não muçulmanos
se uniram em muitas dessas revoltas,
como no caso da de 1835, que, embora
tivesse sido claramente concebida e liderada por nagôs islamizados (malês),
também contou com a participação de
não muçulmanos. Aliás, o grito de guerra ouvido nas ruas de Salvador em 1835
era etnicamente delimitado – “Viva nagô” – e não era de natureza religiosa.
❙ Como, no âmbito da pax da segunda
metade do século XIX, compreender
a greve de 1857? Como o escravo gravitava entre o trabalho informal e a
escravidão?
A greve de 1857 foi um protesto contra o
controle que o Estado pretendeu impor
sobre os grupos de trabalho informal,
bahiaciência | 47
chamados cantos, que reuniam ganhadores de rua de acordo com suas nações.
Naquela altura, a imensa maioria dos
escravos africanos na Bahia era nagô,
mais de 70% pelo menos. Então, pode-se
dizer tranquilamente que foi, mais uma
vez, um movimento principalmente nagô, como o foi o levante de 1835. A greve
parou todo um setor importantíssimo
para o funcionamento de Salvador, que
era o de carregar gente e coisas de um
lado para outro, de cima para baixo da
cidade. Mas foi um movimento pacífico,
feito por libertos e escravos, estes por
sinal apoiados por seus senhores que
também se opunham à interferência do
Estado na maneira como essa espécie de
trabalho informal estava organizada: o
escravo de ganho saía para trabalhar na
rua e no final da semana prestava contas ao senhor do valor contratado; tudo
que excedia esse valor o escravo podia
embolsar. Parte desse valor era amiúde
poupada para ser investida na compra
da alforria. Com frequência, o ganhador nem morava com o senhor, “vivia
sobre si”, morava, comia e vestia-se com
recursos próprios, embora continuasse
propriedade de outrem que consumia a
maior parte do que ele ou ela ganhava,
e sem que o senhor contribuísse para o
grosso das despesas com a manutenção
de seu escravo.
❙ A religião e a cultura teriam sido guardiãs da identidade e fator contribuinte
para a diferenciação do negro do resto
da sociedade? Isso explicaria o fato de
as manifestações culturais e religiosas terem sido alvo privilegiado da repressão?
Sim, a religião funcionou como poderoso
fator na construção de identidades africanas no tempo da escravidão, fossem o
islamismo, o catolicismo ou as religiões
mais propriamente “étnicas”. Todas elas
serviram de canal para a formação de
novas identidades no Brasil e em outras regiões escravistas das Américas.
Porque as identidades de origem foram
inevitavelmente refeitas sob a pressão
da escravidão num ambiente estranho
e em geral hostil. Os nagôs, os angolas,
48 | maio de 2014
os jejes e mesmo os haussás – que aqui
mantiveram o termo identitário original – não eram povos unificados sob
a mesma estrutura política na África.
Serviram-se de línguas comuns ou aparentadas para se reconhecerem como semelhantes no Brasil, mas confirmaram
tais convergências institucionalmente,
por meio de associações religiosas como
as irmandades católicas, os grupos muçulmanos e os terreiros de candomblé.
Contudo, essas instituições, todas elas,
embora umas mais que outras, também
funcionaram como instrumentos de negociação, de diálogo e de inserção na
nova sociedade. Os alufás muçulmanos,
os pais e mães de terreiro adivinhavam,
curavam, faziam “trabalhos”, etc. para
uma clientela que variava do africano
nato ao português rico. As autoridades
mesmas tinham uma relação ambígua
com as religiões africanas e seus líderes,
porque oscilavam entre a repressão e a
tolerância e, em alguns casos, a adesão.
Alguns governantes temiam que a religião africana fosse a antessala da rebelião; outros consideravam que a religião
garantia a paz nas senzalas rurais e urbanas. Mesmo as irmandades católicas
eram periodicamente alvo de desconfiança de que não estivessem cumprindo
o papel de apaziguar as tensões sociais
através da adoção da religião oficial. E
tinha razão quem assim pensava. O negro Cosme do Maranhão, por exemplo,
era devoto e lutava em nome de Nossa
Senhora do Rosário. Enquanto isso um
alufá muçulmano podia cuidar de um
branco enfeitiçado por um pai de santo,
e este, por sua vez, podia curar o marido impotente de uma senhora branca.
❙ Quais são as novas visões e interpretações do processo da escravidão que
suas pesquisas estão abrindo? Qual a
principal diferença entre a sua visão da
escravidão e a de autores como Fernando Henrique Cardoso, em Capitalismo
no Brasil Meridional?
Sou parte de uma geração que renovou o estudo da escravidão ao eleger
estudar a experiência escrava, ou seja,
colocar o escravo como agente, e não
paciente, de sua história. Desde meados
dos anos 1980 essa perspectiva cresce
e frutifica. Em geral tem sido rotulada
sob a denominação de história social da
escravidão. Minha contribuição tem enfatizado a questão da resistência, mas
ultimamente venho fazendo história
social a partir de experiências individuais – chame-se isso micro-história
social. Em todo caso, essa perspectiva, como a da história social mais convencional, não é necessariamente uma
ruptura com a metodologia marxista,
embora não se trate mais de um marxismo estruturalista, preocupado em
pensar a história como estruturas que
enquadram sem piedade os sujeitos e,
mais ainda, o indivíduo. Eu não nego a
força das estruturas e meus trabalhos
sempre levam em conta, por exemplo,
o processo de formação de classe. Nesse
sentido, o marxismo inglês, sobretudo
a obra de Edward Thompson, influenciou e ainda influencia grandemente a
historiografia da escravidão no Brasil.
Essa perspectiva acentua o papel da
experiência coletiva e individual dos
escravos no desdobrar do processo histórico. Isso não existe no marxismo encontrado em obras como a de Fernando
Henrique, em sua fase marxista-weberiana desse livro que você citou, ou
no marxismo ainda mais rígido de um
Jacob Gorender, por exemplo. Nesses
autores a primeira – e às vezes a última – definição do escravo é como coisa
cuja vontade apenas reflete a vontade
do senhor. Em suas diversas modalidades, a historiografia da escravidão
hoje insiste em que, mesmo quando
se acomoda, o escravo decide em grande medida os rumos de sua história:
acomoda-se porque quer, acomoda-se
como estratégia, e amiúde acomoda-se
porque conseguiu desenvolver relações
positivas com senhores que negociam
os termos da escravidão.
❙ Como o senhor enxerga a inserção do
negro hoje na sociedade baiana? Há
sombras ainda da escravidão?
O Brasil é uma sociedade racista; é racista a seu modo, mas é. As estatísticas
Jogar Capoeira - Danse de la guerre, Johann Moritz Rugendas, 1835
Hoje, no
Brasil, não é
preciso
remontar à
escravidão
para explicar
certos tipos
de racismo
da desigualdade racial são eloquentes.
Nesse sentido, a desigualdade está consignada na distribuição de renda, no
acesso à educação e à representação
em cargos públicos, no desempenho no
mercado de trabalho, nos números de
jovens assassinados e de pessoas atrás
das grades, na representação na mídia,
nos índices todos de desenvolvimento
humano e nas atitudes cotidianas. A
origem mais remota disso é a experiência da escravidão. O passado não passa
tão facilmente: ainda faz sombra sobre o presente. Mas o racismo tem vida
independente, ou seja, se renova com
seus próprios pés. Quero dizer que não
é preciso sempre remontar ao escravismo para explicar o racismo. Aliás, no
Brasil de hoje, não é preciso remontar
à escravidão para explicar certos tipos
de racismo, como aquele de que é vítima
o imigrante nordestino em São Paulo.
❙ E como se desenvolve o trabalho no
grupo de pesquisa que o senhor coordena na UFBA? Quantas e quais pessoas
envolvidas?
Nosso grupo de pesquisa tem o nome de
“Escravidão e invenção da liberdade” e
nele discutimos e pesquisamos tanto a
história da escravidão como a do pós-abolição. Concebemos que a liberdade
não foi declarada em uma data: 1888.
É um processo de longa duração que,
aliás, teve início ainda quando vigorava
a escravidão legal, quando os escravos
resistiam à sua condição por meio da negociação, das fugas, dos quilombos, das
revoltas, do engajamento na luta abolicionista, mas também da conquista da
alforria e da formação de uma população
livre afrodescendente muito numerosa,
que antes mesmo da abolição pelejava
pela plena cidadania e continuou a fazê-lo após a abolição. E permanece a batalhar nesse sentido. São todas questões
que interessam ao grupo. Somos cerca
de três dezenas de pesquisadores e estudantes, estes em geral nossos orientandos na graduação, no mestrado ou
no doutorado. O grupo está baseado na
UFBA, mas seus membros pertencem
também a outras universidades – no Estado e fora da Bahia – , os quais se reúnem regularmente para discutir suas
pesquisas individuais.
❙ O senhor certa vez declarou que não
crê em solução para as desigualdades.
Acha que iniciativas como as cotas na
universidade pública, em projetos culturais, iniciativa recente do Ministério
da Cultura, ou em concursos públicos
podem ser o início de um processo que
leve à redução das desigualdades?
Todas essas medidas adotadas pelo Es-
tado, no âmbito nacional e local, são ótimas. Sou enfaticamente a favor das cotas e outras políticas de ação afirmativa.
Quando disse não ser otimista quanto a
uma solução definitiva para as desigualdades, não quis dizer que devêssemos
simplesmente cruzar os braços e deixar
as coisas como são. Expressei apenas
meu desencanto em relação à morosidade das políticas corretivas que, felizmente, foram aceleradas nos últimos
anos e ganharam o apoio até de certos
setores mais conservadores da política
e da sociedade, estes quiçá pensando em
melhorar seu desempenho eleitoral ou
em estimular a paz social. Não importa:
o jogo de interesses é inevitável, ninguém é santo. Importa que tenha havido
avanços. As cotas e outras medidas não
vão acabar com o racismo, elas estão aí
para combater seus efeitos. Acabar com
o racismo representaria uma revolução
mental mais difícil de ser alcançada do
que uma revolução social. Com a inevitável ascensão social do negro, com
sua saída do lugar em que a mentalidade racista o colocou, o racismo poderá até recrudescer, mas pelo menos os
negros estarão numa posição melhor
para reagir. É melhor ser discriminado
por ter conseguido morar num edifício
de luxo do que porque ainda mora num
barraco. ◗
bahiaciência | 49
sociedade científica
Memória
bem guardada
O Instituto Geográfico e Histórico da Bahia comemora
120 anos com cursos, palestras e lançamento de livro
Neldson Marcolin
S
alvador tinha 174.412 habitantes em 1890, de acordo com o
recenseamento da época. A
maior parte da população era
analfabeta e havia poucas instituições
de ensino superior, como as faculdades
de Medicina e de Direito. Alguns anos
depois, em 1894, um grupo de intelectuais baianos, quase todos médicos e
advogados, se mobilizou para publicar
em 5 março nos jornais da capital uma
convocação pública para a instalação de
um órgão cultural atuante. A ideia era
criar um associação que pudesse reunir
documentos e objetos ligados à geografia e história do Brasil e, em especial, da
Bahia, que se encontravam espalhados
em mãos de particulares com o objetivo
de resguardá-los e montar um acervo,
zelar pela biografia de suas personalidades e produzir artigos e ensaios. Após
oito dias, em 13 de maio, foi lançado
o Instituto Geográfico e Histórico da
Bahia (IGHB), que acaba de completar
120 anos, como queriam seus 134 sócios
efetivos fundadores – como guardião da
memória e agente cultural ativo.
50 | maio de 2014
O IGHB mirou-se no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB),
criado no Rio de Janeiro em 1838. Os
fluminenses, por sua vez, tiveram como
modelo o Instituto Histórico de Paris.
Antes da Bahia, foram criadas instituições congêneres em Pernambuco, Alagoas e Ceará. São Paulo fundou o seu no
mesmo ano do baiano, em 1894. Hoje,
há um total de 23 institutos históricos
estaduais e 52 municipais. De acordo
com Arno Wehling, presidente do IHGB,
os institutos históricos e geográficos
são instituições acadêmicas diferentes
das estritamente profissionais como
as universidades, centros de pesquisa e
órgãos públicos de gestão patrimonial
como arquivos, bibliotecas e museus.
Seus objetivos são “abrir as portas a
diferentes agentes científicos e culturais, como professores, pesquisadores
universitários ou não, ensaístas, colecionadores, além de editar textos científicos, consolidar, inventariar e ampliar
seus acervos, de modo a se constituírem
em centros de referência documental”.
O IGHB nasceu cinco anos depois da
Proclamação da República no vácuo do
fotos IGHB
Sede do IGHB
hoje (esq.) e nos
anos 1920, quando
foi inaugurada:
necessidades
iguais às de outros
monumentos
arquitetônicos
Instituto Histórico da Bahia, fundado
em 1855, mas desativado depois de 13
anos sem alcançar seus propósitos. A
nova instituição desenvolveu-se bem,
não sem enfrentar dificuldades para se
manter nas décadas seguintes, apesar
do apoio inicial recebido das elites econômica e política do estado e da bela sede erguida em 1923. “Vamos superando
os obstáculos e estamos sempre lutando
para não ficarmos presos ao passado”,
diz Consuelo Pondé de Sena, presidente
da instituição conhecida como a Casa
da Bahia. “Pelo contrário, continuamos
muito ativos e olhando para o futuro.”
As comemorações do dia 13 parecem
dar razão a ela. Desde o começo do ano
ocorrem cursos, palestras e mesas-redondas sobre os mais diversos temas –
de futebol à história da Bahia. Algumas
personalidades de destaque no estado
foram escolhidas para receber a Medalha do Mérito do instituto. Além disso,
houve o lançamento do livro Instituto
Geográfico e Histórico da Bahia – origem
e estratégias de consolidação institucional (1894-1930), resultado da tese de
doutorado de Aldo José Morais Silva
defendida na Universidade Federal da
Bahia (UFBA). Outros eventos comemorativos marcam o mês de maio: o
seminário internacional “Portugal e
Brasil: interfaces entre história, memória e patrimônio” (dia 27) e o curso
sobre iconografia musical (dias 28 e 29).
No segundo semestre, o destaque será
o VI Congresso de História da Bahia.
Para acompanhar a programação, basta
acompanhar o site www.ighb.org.br.
mapas e cartas
A riqueza do IGHB está no seu acervo. A
maior coleção de jornais baianos, do século XIX até hoje, a coleção cartográfica
mais numerosa – e já digitalizada – do
estado e os 30 mil títulos da biblioteca
Ruy Barbosa são uma amostra do que foi
amealhado até hoje. Há também arquivos de personalidades como o de Theodoro Sampaio – presidente do instituto
entre 1922 e 1927 – e o de Braz do Amaral e joias como manuscritos de Castro
Alves e cartas de Antônio Conselheiro.
“Esse material é importante não só
para preservar a memória, mas também para permitir a pesquisa documental de estudantes, professores e
pesquisadores profissionais que buscam no instituto informações que as
bibliotecas das universidades não têm”,
explica Edivaldo Boaventura, sócio e
orador oficial do instituto. Ele diz que
a população de Salvador sempre foi
próxima da Casa da Bahia, a instituição mais antiga do estado. O IGHB é
o guardião do Pavilhão 2 de Julho, no
Largo da Lapinha. É lá que estão os
principais símbolos da maior festa cívica do estado, o Caboclo e a Cabocla,
ícones da participação popular nas lutas pela independência na Bahia, que
tiveram fim em 2 de julho de 1823.
O ex-governador e presidente de
honra do IGHB, Roberto Santos, conhece bem o valor do instituto para a
cultura do estado. “Membros titulares
desta casa têm realizado e fomentado estudos e pesquisas reconhecidos
como de máxima importância para a
compreensão da nossa realidade passada, atual e futura”, disse ele em seu
discurso durante as comemorações do
dia 13. “E têm patrocinado eventos que
revelam, inequivocamente, o sentido
construtivo da contribuição institucional à nossa identidade.”
Embora as qualidades do IGHB sejam
conhecidas, os recursos são suficientes
apenas para sua manutenção essencial.
O governo estadual paga água, luz e salários dos funcionários. Os diretores
não são remunerados. “Em 2014, nossa sede completará 91 anos e muitos
dos equipamentos estão obsoletos ou
desgastados pelo uso contínuo”, escreveu Consuelo Pondé em artigo recente.
“Nossas necessidades são iguais à de
outros monumentos arquitetônicos,
que precisam de constantes reparos e
substituições.” Algumas restaurações
são feitas com recursos próprios, mas
falta dinheiro, por exemplo, para restaurar parte da coleção da pinacoteca,
pintar o prédio e substituir as cortinas
confeccionadas ainda em 1993.
No intuito de conseguir recursos,
Consuelo enviou correspondência solicitando a atenção de empresários baianos. A verba teria de ser repassada pelo
programa Fazcultura e deduzida dos
impostos cobrados das empresas. “Essa
medida ajudaria a tornar viável alguns
dos nossos projetos e a assegurar a sobrevivência da instituição”, diz ela. w
bahiaciência | 51
Apresentação
da Orquestra
Juvenil da Bahia
em agosto
de 2013,
na Igreja de
São Francisco,
em Salvador
52 | maio de 2014
fotos Tatiana Golsman
S
oaria estranho dizer que o projeto
Núcleos Estaduais de Orquestras Juvenis e Infantis da Bahia (Neojiba)
vem protagonizando uma revolução
silenciosa no cenário sóciocultural
brasileiro. Porque essa revolução, a rigor, não é
nem poderia ser silenciosa: ela brota da prática
musical de 980 crianças e jovens, com reverberações por todo o estado, numa germinação artística inédita no país. Algo que vem chamando
a atenção de especialistas de várias partes do
mundo. Portanto, trata-se de uma revolução
feita de sons. Massa de sons. Mas também se
trata de uma silenciosa revolução de mentalidades, em busca de uma sociedade mais justa,
mais democrática, mais harmônica.
“Não vamos ficar fazendo espetáculo”, avisa
o maestro Ricardo Castro, 49 anos, um baiano
de Vitória da Conquista que provou da celebridade internacional a partir dos anos 1980,
como pianista, e hoje comanda essa revolução
silenciosa. “Espetáculo é o que vem fazendo boa
parte das orquestras jovens pelo mundo. Definitivamente, não é o nosso caso.” A declaração
convicta, irredutível até, aconteceu numa das
pausas de ensaio da Orquestra Jovem da Bahia
– a Yoba, sigla em inglês para Youth Orchestra
of Bahia – dias antes da partida do conjunto
para sua primeira turnê nos Estados Unidos.
Com 140 integrantes, a Yoba se apresentou em
fevereiro deste ano em cinco estados americanos:
Califórnia, Indiana, Arizona, Missouri e Flórida.
Ao todo, foram 12 concertos em 11 cidades, com repertório sinfônico de peso (obras de Tchaikovsky,
Stravinsky e Ravel, por exemplo) e composições de
autores nacionais (entre eles, Villa-lobos e Zequinha de Abreu). Também aproveitará para trocar
experiência com outras orquestras jovens nessas
localidades. Depois voltou ao Brasil para mais um
semestre de trabalho, quando então partirá novamente, desta vez rumo ao verão europeu: será
a orquestra residente do Festival de Montreux
de 2014, em julho, na Suíça, de onde saltará para
mais concertos na Itália e Inglaterra.
Haja fôlego – é agenda digna de orquestra
de porte internacional. Então, como o maestro
insiste em dizer que o foco de todo este traba-
inclusão social
Todos os
sons de
uma
revolução
silenciosa
Conjunto de orquestras envolve
980 crianças e adolescentes numa
iniciativa inédita no país
Laura Greenhalgh*
No Teatro Castro
Alves, em 1º de
fevereiro: participação
do pianista francês
Jean Yves Thibaudet
(à frente, ao lado
do maestro Ricardo
Castro) na última
apresentação antes
da turnê nos EUA
bahiaciência | 53
lho não é a exibição pública, não é o concerto?
Elucidar este ponto talvez seja a chave da compreensão do Neojiba, um laboratório socioeducativo inspirado no El Sistema, o bem-sucedido
modelo venezuelano de consolidação da cidadania de jovens e crianças, através da prática
musical coletiva. No Brasil, o modelo aterrissou
em 2007 pelas mãos do próprio Castro, impressionado com o que viu na Venezuela, numa de
suas passagens pelo país como pianista.
F
undado em 1975 pelo economista e musicista José Antonio de Abreu, o El Sistema
hoje conta com 350 mil participantes e já
semeou cerca de 180 orquestras jovens pelo país.
Já o Neojiba, uma organização social tratada como prioridade pelo governo baiano, prepara-se
para atender 2.700 participantes até o fim de
2014, reunidos não apenas em orquestras, mas
também em formações de câmara e música coral.
Os números absolutos do programa, realizado
em âmbito estadual, sempre serão menores que
os venezuelanos, de âmbito nacional. Mas o fato é que hoje o El Sistema olha para o Neojiba
como o seu rebento mais vigoroso.
O maestro Ricardo Castro não se cansa de
repetir: “Aqui a música é o meio, não o fim”.
Desde que foi tocado pela vitalidade do modelo
venezuelano, tem insistido naquilo que considera ser o objetivo último do Neojiba: preparar
crianças e jovens para os desafios do mundo
de hoje, num ciclo de superações e descobertas
pessoais que os farão mais conscientes, mais
concentrados e mais confiantes nas próprias
capacidades. Se a música acaba entrando definitivamente em suas vidas, ótimo. Mas é tão
somente a boa decorrência do processo.
“Quando você ensina gramática da língua portuguesa para uma criança, você não cobra dela
que seja um escritor no futuro, certo? Então,
por que eu cobraria de um praticante de violino
que venha a ser um solista ou mesmo um virtuose?”, compara Castro. Este tipo de cobrança
foi descartado desde os primórdios do projeto,
quando o pianista-maestro contou com o apoio
decisivo do então secretário estadual de Cultura da Bahia, Márcio Meirelles. Ambos tomaram
para si a decisão de formar o El Sistema baiano.
Cerca de 90% dos 980 participantes do Neojiba vêm de camadas mais carentes da população. Os 10% restantes saem da camada alta e
são admitidos sem restrição. Porque o projeto
não adota – ao contrário, rejeita – o conceito
54 | maio de 2014
de “inclusão social”. Nele se fala
em “integração social”. Algo que
se constrói nas vivências do dia a
dia, como quando os jovens insA ideia é que
trumentistas se juntam para ir à
o Neojiba
praia, independentemente de serem pobres ou ricos, de viverem na
mantenha-se
periferia ou nas zonas mais ricas.
aberto a todos os
Ou quando se cotizam para alugar
um pequeno apartamento em Salsegmentos da
vador, dividindo não só despesas,
população,
mas também a rotina de disciplina e tenacidade de um músico em
operando sempre
formação. “Nós colocamos esses
meninos para tocar juntos logo que
na perspectiva
chegam. Isso acaba levando a uma
da integração
paz social até incomum em nossa
sociedade”, festeja Castro. A ideia é
que o Neojiba mantenha-se aberto
a todos os segmentos da população,
operando sempre na perspectiva da
integração.
Hoje o maestro também festeja a transferência do projeto da Secretaria Estadual de Cultura, onde nasceu, para a Secretaria Estadual de
Desenvolvimento Social e Combate à Pobreza,
onde se encontra. Esta guinada administrativa
não só possibilitou um aumento de 40% no orçamento do Neojiba – estava em RS$ 4,5 milhões/
ano e vai para RS$ 7 milhões em 2014, volume
de recursos que compreende não só o repasse
do governo baiano, mas também parcerias, doações e patrocínios –, como ainda garante que o
compromisso primordial do programa seja mantido. De novo, não se trata de formar músicos,
mas sim cidadãos, através da atividade musical.
Em sete anos de expansão contínua, o Neojiba
passou a demandar uma estrutura administrativa mais complexa. Sua gestão foi entregue à
Associação de Amigos das Orquestras Juvenis
e Infantis da Bahia (Aojin) e do Neojiba – acompanhada de perto por um conselho de administração presidido pelo médico Roberto Santos,
ex-governador da Bahia e fundador da Academia
de Ciências do estado. Santos e seus conselheiros
atuam como verdadeiros embaixadores do programa. Tem sido algo fundamental para a captação de recursos e o estímulo de novas parcerias.
BELEZA COMO META
Como se sabe, os venezuelanos saíram na frente,
há quatro décadas, ao identificar que a prática
musical coletiva opera transformações profundas
Tatiana Golsman.
The Granada
Theatre, em
Santa Bárbara,
Califórnia:
uma das escalas
da turnê, em
17 de fevereiro
no indivíduo, especialmente quando em fase de
formação e, mais ainda, em situação de vulnerabilidade. Hoje é possível pinçar iniciativas que
guardam alguma similaridade em zonas socialmente instáveis, como Afeganistão, por exemplo, ou em certos países da África. E mesmo em
cidades desenvolvidas da Europa, cujas sociedades têm sido contaminadas por crescente onda
de xenofobia, não raro expressa na aversão aos
imigrantes. Caso de Berlim e Londres, com bons
programas musicais de caráter socioeducativo.
O
El Sistema, contudo, estruturou a possibilidade de reação. Uma proposta pedagógica concreta, aplicável a diferentes
realidades e ancorada no desenvolvimento pessoal a partir da experiência musical compartilhada. Perguntado por que a música tem se mostrado
uma experiência tão estruturante, eis a resposta
de Castro: “Porque é uma linguagem universal
que transcende os sentidos e as emoções, e isso
acontece em diferentes lugares, sob diferentes
condições. Porque promove um desenvolvimento
incomum das sensibilidades do indivíduo. Porque
abre possibilidades únicas de diálogo. A música
desperta valores estéticos, comportamentais,
humanos. Feita em grupo, então, faz com que o
coletivo compartilhe determinadas regras para
atingir uma só meta, a beleza. Isso acaba transformando não só os jovens músicos, mas também
aqueles que vivem ao seu redor”.
Como diz o próprio Abreu, no premiado documentário Tocar y Luchar, sobre o El Sistema,
quem percebe a harmonia estruturante da música começa a perceber, e a acessar, a harmonia
interna do ser humano. No Neojiba, são recorrentes os relatos de crianças e jovens sobre como suas vidas foram transformadas desde que
começaram a tocar em grupo. Levantamento
socioeconômico encomendado pelo projeto revelou que, entre os participantes, havia muitos
jovens que moravam em favelas, alguns até em
casas de papelão.
“Sem música, minha vida seria em preto
e branco. A menina que entrou no Neojiba
há quatro anos, para tocar viola, hoje é outra pessoa. Que toda Salvador e todo o Brasil
desfrutem dessa experiência”, conclama Luiza
Santos, 20 anos. “Acho que nunca vou largar
o Neojiba. Por toda a vida quero estar ligado
a ele, como músico e cidadão”, projeta Yuri
Azevedo, 21 anos, prêmio de regência do Festival de Inverno de Campos do Jordão, hoje
se aperfeiçoando em Maryland, nos Estados
Unidos. Primeiro músico da família, Yuri é
visto como grande promessa do pódio no Brasil. Vale lembrar que a sensação do mundo da
regência, atualmente, é o venezuelano Gustavo Dudamel, justamente saído das fileiras
do El Sistema. Dudamel encontra-se à frente
da Filarmônica de Los Angeles, como diretor
artístico e regente titular.
bahiaciência | 55
Assim como aconteceu a Yuri, centenas de
jovens têm se beneficiado do empurrão inicial
do projeto e de todo um conjunto de condições
que lhes permite a continuidade da experiência. O Neojiba garante não só o instrumento de
eleição do próprio participante, como também
todo o material didático, aulas individuais, alimentação e auxílio-transporte. Há casos de bolsas integrais, também – hoje são mais de 160.
As famílias desses músicos, que antes nunca haviam colocado os pés em salas de concerto, passam a frequentá-las – em contato, e
em igualdade de condições, com famílias que
visitam até salas internacionais. O efeito propulsor do projeto se faz sentir na comunidade.
Até o aproveitamento escolar dos integrantes
do Neojiba tende a melhorar, sem falar na espantosa evolução em línguas estrangeiras: o
espanhol, por exemplo, tornou-se língua fluente entre eles, em virtude da convivência com
músicos e pedagogos venezuelanos. O inglês
se desenvolve em viagens ou no contato com
professores e solistas estrangeiros, que vêm
atuar no programa. Até o alemão, tão importante no mundo e na literatura da música clássica, tem sido aprendido em aulas dadas por
voluntários. E as apresentações? Até o final
de 2012, foram 240, para um público de mais
de 150 mil pessoas. Sempre estiveram lotadas.
1
1
1 Orquestra Castro Alves,
no Teatro Vila Velha, em
Salvador, sob regência de
Yuri Azevedo, em 2012
2 e 3 Aulas da Orquestra
Pedagógica Experimental
em 2010
4 Orquestra Sinfônica
Juvenil da Bahia, no
Auditório Claudio
Santoro, em Campos do
Jordão, em julho de 2010
2
EFEITO REVERBERADOR
Se a beleza é meta, a busca da excelência é compromisso. Não se trata de fazer música de forma amadorística, mas de acordo com padrões
de qualidade, elevados constantemente. “Isso
provoca um despertar de mentalidade. Esses
meninos percebem que, bem preparados, a música será para eles uma porta de acesso a um
mercado de trabalho interessante. Ou seja, eles
sentem que há futuro naquilo que fazem agora”, explica Castro. Não é por acaso que, hoje,
boa parte dos alunos de música da Universidade Federal da Bahia já é oriunda do Neojiba.
A busca da excelência também se nota na presença regular de professores estrangeiros, vindos
de instituições renomadas, como o Conservatório de Genebra ou a Juilliard School of Music, de
Nova York, ou de orquestras de primeiríssima
linha, como a Filarmônica de Berlim, a Suisse
Romande, a Concertgebouw de Amsterdã. Há
casos de solistas que inclusive pedem para vir a
Salvador, para trabalhar com os “neojibas”. Como a celebrada violinista japonesa Midori, cuja
56 | maio de 2014
3
4
fotos Tatiana Golsman
carreira internacional estourou aos 11 anos, na
Filarmônica de Nova York, sob a batuta de Zubin
Mehta. “Esses professores de fora chegam atraídos pela vitalidade do projeto e pelos encantos
da Bahia, claro. E nós temos muita satisfação
em acolhê-los”, diz o maestro.
Assim a revolução pela música vai se articulando em diferentes formações – além da Orquestra Jovem da Bahia, o projeto estruturou a
Sinfônica Juvenil 2 de Julho (J2J) e a Orquestra
Castro Alves (OCA), com 90 e 80 músicos respectivamente; a Orquestra Pedagógica Experimental (OPE), que oferece capacitação musical
para a faixa de 7 a 15 anos – o limite etário de
participação acontece aos 28 anos –; e ainda um
coro com 40 vozes. Sistemicamente, também
estão sendo implantados núcleos de prática
orquestral e coral não só em Salvador e região
metropolitana, mas também em outras regiões
do estado – como Trancoso, por exemplo, que se
consolida como polo musical, com forte apoio
da iniciativa privada. Assim como novos grupos
aparecem a partir de iniciativas da própria comunidade, caso do município de Conceição do
Coité, que já pode se orgulhar da sua Orquestra
Santo Antonio. Ou da cidade de Serrinha, onde
brotou a Orquestra do Sisal. Ou ainda de Teixeira
de Freitas, sede da Orquestra da Paz . O Neojiba se faz presente em todas estas iniciativas.
SONHO DA CASA PRÓPRIA
Hoje as atividades do projeto se concentram basicamente no Teatro Castro Alves, em Salvador,
mas o grande sonho é vir a ter sede própria, com
todos os equipamentos necessários para dar conta de um sistema que se diferencia justamente na
expansão sem limites. “Ainda não conseguimos
ter a nossa casa e isso faz uma falta tremenda”,
pondera o maestro Castro. Soluções de espaço
vão surgindo a partir das demandas. É o caso do
ateliê de luteria, cujo coordenador pôde aprender na Suíça a arte da construção e do restauro
de instrumentos. Este centro funciona hoje em
casa doada pela fotógrafa Anna Mariani e de lá
saem instrumentos de cordas e percussão. Numa
parceria com a Braskem, o centro desenvolveu
toda uma linha de instrumentos de plástico,
mais leves e de manutenção barata, ideais para
a iniciação musical de crianças.
À medida que a prática musical avança, jovens músicos começam a ensinar aqueles que
sabem menos, e assim por diante, de tal forma
que hoje pelo menos 50% dos integrantes da
Sinfônica Jovem da Bahia já dão aulas. “E vão
ensinar mesmo. Contamos com essa generosidade, que é fundamental para manter a roda
girando”, explica Castro. Essa transferência
do saber adquirido cria um sentido de coesão
muito forte nos grupos, pois todos ali estão
se desenvolvendo juntos, cada dia mais e melhor, uns estimulando outros. É uma vivência
radicalmente oposta à cultura do conservatório, rígida, exclusivista, parece que feita para
moldar músicos de competição.
É
essa coesão interna que permite aos
“neojibas” encarar desafios de enorme
responsabilidade, como tocar em salas
de prestígio no exterior – citando algumas:
Queen Elizabeth Hall e o Royal Festival Hall,
em Londres, ou o Centro Cultural de Belém,
em Portugal – ao lado de solistas do porte dos
pianistas Lang Lang e Maria João Pires ou do
violinista Schlomo Mintz. “Posso garantir que
esses meninos, muitos deles nascidos e criados
em favelas, comportam-se como lordes num
Queen Elizabeth Hall. Sabem perfeitamente
onde pisam”, orgulha-se Castro.
Para o maestro, o projeto já foi muito além
daquela aposta original que fez em 2007, no
auge de sua trajetória como pianista, ele, um
dos aclamados vencedores do Concurso Internacional de Piano de Leeds, na Inglaterra – concurso que, vale ressaltar, é a chancela definitiva
para uma carreira de vulto. Em conversa com
esta autora em Londres, alguns meses atrás, ao
ser admitido como membro da Royal Philharmonic Society, Castro lembrou que, ao vencer
as provas de Leeds, em 1993, sentiu-se como
se tivesse chegado ao topo do Himalaia, “mas
profundamente sozinho”. Entrou de cabeça no
circuito internacional dos pianistas top class,
continuando a se sentir sozinho. Até assumir
para si a ideia de que a música erudita não pode ser uma experiência solitária, dirigida a um
público de privilegiados. E assim o aclamado
intérprete, ainda hoje professor da Haute École
de Musique de Lausanne, na Suíça, optou por
reduzir suas aparições, para dedicar o máximo
de seu tempo, e de suas energias, ao projeto
musical que criou e ainda quer ver deslanchar
mais. Numa conversa informal, foi possível ouvi-lo numa confissão banhada em alegria: “Não
fiz pela minha carreira solo o que tenho feito
pelo Neojiba”. Brasileiros lhe serão eternamente gratos por isso. ◗
*Colaborou Liana Rocha
bahiaciência | 57
charge
58 | maio de 2014
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200.000
0
2º
1º
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3º
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13º
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HORAS ÍGNEAS
Eu sôrvo o haxixe do estio…
E evolve um cheiro, bestial,
Ao solo quente, como o cio
De um chacal.
Distensas, rebrilham sôbre
Um verdor, flamâncias de asa…
Circula um vapor de cobre
Os montes – de cinza e brasa.
Sombras de voz hei no ouvido
– De amôres, ruivos, protervos –
E anda no céu, sacudido,
Um pó vibrante de nervos.
O mar faz mêdo… que espanca
A redondez sensual
Da praia, como uma anca
De animal.
II
O Sol, de bárbaro, estangue,
Olho, em volúpia de cisma,
Por uma côr só do prisma,
Veleiras, as naus – de sangue…
III
Tão longe levadas, pelas
Mãos de fluido ou braços de ar!
Cinge uma flora solar
– Grandes Rainhas – as velas.
Onda por onda ébria, erguida,
As ondas – povo do mar –
Tremem, nest’hora a sangrar,
Morrem – desejos da Vida!
IV
Nem ondas de sangue… e sangue
Nem de uma nau – Morre a cisma.
Doiram-se as faces do prisma
Mulheres – flôres – num mangue…
(In Re-visão de Kilkerry,
Augusto de Campos, 1970)
Pedro Kilkerry
(Santo Antonio de Jesus, BA;
1885-1917)
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