A MASSAGISTA E A TRAVESSIA DE SUA DOR MAL DITA
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Márcia Amaral Bonna
Psicóloga. Bacharel em Comunicação Social
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Tv. Conselheiro Furtado, 2391/1009 Belém (PA) 66040-100
Ercília Maria Soares Souza
Psicanalista. Mestranda em Psicologia Clínica e Social na
Universidade Federal do Pará. Professora/Supervisora
do Curso de Psicologia da Universidade da Amazônia
[email protected]
Tv. Pariquis, 2999/507 Belém (PA) 66040-320
Resumo: O
presente artigo tem como objetivo analisar através de fragmentos clínicos, os sentidos
produzidos por uma mulher frente à sua dor. Trazida à psicoterapia inicialmente, pela perda da mãe e
pelos temores de sua própria morte, afirmara que só faltaria às sessões, caso estivesse com enxaqueca, a
qual nomeava como a “maldita dor”. As faltas faziam parte de seu atendimento: falta às sessões, falta de
palavras, falta de um “amor”, que foram escutadas atentamente para depois serem articuladas com
conceitos como histeria, dor, Édipo, feminilidade, entre outros. No decorrer do atendimento, a paciente
tropeça nos seus ditos ou nas suas falhas, e isso nos permitiu acesso a seu mundo e à obscuridade de suas
mal ditas dores. O propósito deste texto é transitar pelas palavras ditas, traduzidas e silenciadas de uma
mulher que como massagista tentava aplacar dores corporais de outros, ao mesmo tempo em que buscava
saber das suas próprias dores, dando-lhes significados.
Palavras Chaves: Histeria, Dor, Édipo, Feminilidade.
A MASSAGISTA E A TRAVESSIA DE SUA DOR MAL DITA
1. Maria e sua história
Maria filha mais velha de uma prole de oito irmãos, casada,
mãe de dois filhos, profissão massagista. Contou ser infeliz no casamento de
muitos anos, afirmando não sentir mais “nada” pelo marido. Porém,
permanecia casada “porque ele, apesar de bruto é um bom pai” e provinha a
família. A sua insatisfação com a vida, com o trabalho e com o amor era
constantemente expressa na demanda: “Quero ser amada, quero ser tocada,
quero ser cuidada”.
No início dos atendimentos psicológicos, justificou futuras
faltas avisando que não compareceria ao tratamento apenas quando estivesse
com enxaqueca, sua “maldita dor”. Aqui se produziu uma das principais
metáforas desse atendimento: uma maldita dor que gradativamente se revelou
em uma dor mal dita, quando as letras ainda não formavam palavras, ou
quando ainda inexistiam sentidos, ela faltaria às sessões.
Chegou aos atendimentos carregando sua angústia num (an)dor
florido, onde a cada palavra dita, silenciada ou encenada deixou cair suas
perdas. Relatou que desde cedo passou muita miséria: “de fome à
humilhação”. A morte da mãe lhe trouxe ao atendimento. Contou que após
esta perda começou a sentir “agonia, medo de morrer, dor no peito e um
grande vazio”. Afirmou que a enxaqueca se tornou freqüente e quando lhe foi
perguntado desde quando padecia dessa dor, respondeu que desde criança, e
completou dizendo, que não podia adoecer, porque cuidava dos irmãos, e só
era cuidada quando tinha a “maldita dor”.
Contou que seu pai saiu de casa quando tinha apenas um ano,
sentindo este acontecimento como seu primeiro abandono. Aos quinze anos,
procurou e achou este pai e mais uma vez sentiu-se abandonada por ele, pois o
mesmo a “rejeitou”, dizendo ter outra família e afirmando que nada tinha a lhe
dizer. Pouco tempo depois, o pai morreu. Houve outras perdas significativas:
perdeu o primeiro filho quando este tinha um ano de idade, afirmando que
após esta perda “nunca mais foi a mesma”. Seguiu pela vida. Engravidou mais
duas vezes e após a terceira gravidez relatou que começou a “sangrar muito”,
os médicos lhe disseram que não havia outro “jeito” e tiveram que extirpar-lhe
o útero. Disse ter sentido um misto de alegria e tristeza: “alegria por não mais
sangrar” e tristeza por ter perdido o lugar que guardou seus filhos. No decorrer
do processo terapêutico, a paciente sofreu mais uma perda: alguém com quem
disse ter vivido uma “louca paixão”. Soube dias depois, e chorava esta perda
dizendo que “nem ao menos teve tempo de se despedir”.
Toda vez que Maria contava sobre suas perdas, percebemos
que as associava à perda de sua casa, onde havia morado dezesseis anos, mas
tinha vendido recentemente. O que estaria afinal perdendo? De que casa
falava? Que segredos guardava? Que fantasias lhe percorriam quando dizia:
“cada canto tinha uma história”?
2. Compreensão Teórico-Clínica
Freud (1895) dizia que o indivíduo histérico foi considerado
maldito por povos antigos, sendo exorcizado e lançado em fogueiras. Após
seus estudos, a compreensão da doença tornou-se mais adequada e os
sintomas antes aprisionados ao somático e as encenações passaram a ser
considerados como desejos recalcados.
A neurose histérica é descrita como tendo modificações
fisiológicas do sistema nervoso podendo ocorrer ataques compulsivos,
paralisias, distúrbios da atividade sensorial e contraturas. Freud (1895, p. 26),
afirmava:
Eu sem dúvida, consideraria histérica, uma pessoa na qual uma
ocasião para uma excitação sexual despertar-se sensações que
fossem preponderante ou exclusivamente desagradáveis; e o faria
fosse ou não a pessoa capaz de produzir sintomas somáticos.
E Maria falava de suas dores, recontando suas histórias dizia
que cuidava de todos os irmãos para sua mãe trabalhar e só era “olhada”
quando adoecia “das dores de cabeça”. Então, ter dores ganhou um
significado: era pela dor que obtinha um lugar privilegiado de atenção, quiçá
de afeto.
Ao perceber o funcionamento da paciente, não discutíamos
suas resistências, mas escutávamos e interpretávamos suas palavras, mesmo
quando chegava atrasada às sessões dizendo que estava em algum lugar
sempre interessante, como se quisesse provocar um incômodo, como se não
estivesse priorizando o tratamento. Sem questioná-la, detínhamo-nos a escutála, deixando-a tropeçar nos seus ditos ou nas suas falhas e assim apontá-las,
para transitarmos em seu mundo e na obscuridade de suas mal ditas dores.
Nasio (1997) afirma que “são quatro as circunstâncias que, se
forem súbitas, desencadearão a dor psíquica ou a dor de amar” (p. 37): o luto,
o abandono, a humilhação e a mutilação. Maria chegou ao atendimento logo
após a perda da mãe, carimbando seu corpo e sua alma de dores e medos.
Percorrendo sua estrada no sentido inverso, conseguiu encontrar a criança que
diz ter sido abandonada, a menina humilhada na sua própria imagem, a
adolescente rejeitada por um pai que lhe manda “tomar outro rumo” por não
ter nada a lhe dizer e, a mulher mutilada quando lhe tiram o útero para parar
de sangrar. Que sangue seria esse? Quantas feridas estavam difíceis de
cicatrizar? O sangue derramado jamais volta à ferida!
Berlinck (1999) entendendo a metapsicologia da dor faz
algumas reflexões e afirma: “que o humano habita na dor” (p. 9). Foi através
da palavra que Maria pôde simbolizar suas dores, às vezes tão difíceis de
serem expressas que mostrava nas atuações o indizível de suas perdas. Porém,
ao fazer-nos de semblante a paciente, ela reconhece: “aqui (referindo-se ao
setting) não é lugar de fazer coisas e sim de dizer coisas”.
Freud (1921) afirma que “a identificação é conhecida da
Psicanálise como a mais precoce manifestação de uma ligação de sentimentos
com uma outra pessoa” (p. 146), e ao pensarmos naquilo que Maria dizia,
percebemos sua identificação com a mãe, como objeto causador de amor, ódio
e angústia. No início do tratamento ressaltou que a mãe era uma “heroína”;
mais tarde, quando começou a travessia de suas dores pela palavra,
reconheceu que a mãe não foi “tão maravilhosa” quanto pensava. Disse que se
sentia sobrecarregada de responsabilidades e desejava ter sido mais cuidada. E
destacou que levava “surras de palavras”.
Compreendemos Maria na sua dor angustiada que a deprimia,
oscilando entre a euforia e a depressão, queria ser correspondida em seus
anseios e desejos e continuou a repetir: “quero ser amada, cuidada, olhada”.
Jerusalinsky (2002) teoriza que a mãe é aquela que engendra, acolhe,
aconchega, nutri, interpreta o choro do bebê, coloca-se como espelho, como
modelo, abre caminho para a entrada do pai, e vai, aos poucos, dividindo seu
filho com os outros, aprendendo o difícil exercício de distanciar-se por amor,
para que aquele ser, aos poucos cresça por si mesmo e prescinda cada vez
mais dela. De acordo com os ditos de Maria, percebemos que foi investida
precariamente, seu clamor foi entendido como um pedido infantil de ser
amparada e ser aceita sem restrições; não se sentiu censurada, reprovada, algo
que pudesse lhe dar limite, contorno. Queria dividir sua dor e solidão, estava
constantemente dando mais do que recebia e querendo sempre mais. Escolhia
para suas relações amorosas quem não a amava, garantindo seu estado
permanente de insatisfação, apegando-se a sua dor para sobreviver aos
períodos fantasísticos que a espreitavam.
Tamponou a falta do pai com os vínculos amorosos
clandestinos, vividos e repetidos desde sua meninice; pedia incessantemente
para ser tocada, acarinhada. Não por acaso, tocava e acarinhava através de sua
profissão: massagista; contornando o corpo do outro num ir e vir de
oferecimentos.
Aplacava suas dores convertendo-as para enxaquecas ou
euforia exacerbada, talvez para defender-se dos inconfessáveis desejos
inconscientes. Valorizava a estética, em sua palavra “bem”. Quem era esse
bem? Do que tratava esta mulher?
Na sua última investida amorosa, a paciente ainda que
titubeante, foi ao encontro de outro alguém para amar. Com esse achou que
seria aquele, “♪o terceiro que a Tereza deu a mão... ♫”, mas em poucos
encontros, disse que não “valeu a pena” e ressaltou que “nunca mais” iria
encontrá-lo. Sentiu “asco” por tê-lo beijado. E dizia que não sabia como o
desejou.
A histérica julga que a insatisfação assegura uma falta, e esta
falta é a sua garantia de continuar desejando. Não satisfazendo seu desejo, ela
se protege de um gozo ameaçador. Este gozo é imaginado enquanto algo
terrível, que põe em risco o ser, pois este seria devorado ou engolfado pelo
Outro. Nasio (1991) diz:
(...) o problema consiste em evitar a qualquer preço qualquer
experiência que evoque de perto ou de longe um estado de plena e
absoluta satisfação. Esse estado, de resto impossível, é pressentido
pelo histérico, no entanto, como o perigo supremo de um dia ser
arrebatado pelo êxtase e gozar até a derradeira morte (p. 16).
Podemos afirmar que a histérica encarna bem a fórmula do
desejo do Outro, pois como meio de evitar ser puro objeto para o desejo do
Outro, ela também pode desejar por procuração, identificando-se com um
homem que deseja outra mulher. Pensamos que tal identificação possa ter uma
articulação no último envolvimento relatado pela paciente, uma vez que no
jogo de sedução que teve, o parceiro amoroso falava da própria mulher,
colocando-a num “pedestal”. Dizia ele a Maria: “ela é bonita, folgada, tem
carro, empregados e tudo o mais”. Logo, Maria fantasiou e ressaltou que era
“tudo o que queria...”.
Seria a homossexualidade tão propalada na histeria? Observada
nos ditos da paciente? Afinal esta outra mulher sempre suscitaria o desejo da
histérica e identificando-se com o homem, este poderia servir de mediador
para o seu desejo, como se assim fosse mais seguro desejar e
conseqüentemente mais fácil garantir a sua insatisfação. Pois, como saberia
Maria de todos os encantos que a tal mulher teria se não fosse ao encontro
deste homem?
Freud (1905) nos fala que: “o enigma contraditório suscitado
pela histeria... [É] o par de opostos constituído por uma necessidade sexual
excessiva e uma rejeição exagerada da sexualidade” (p. 157). Às voltas com a
sexualidade, Maria procurou erotizar as relações que estabelecia, buscando
aventuras amorosas, na reviviscência de antigas paixões ou na busca de novos
amores. No vínculo transferencial se contorce em trejeitos (sedutores?),
estica-se, toca-se, massageia-se, tentando fisgar sua terapeuta de maneira
arcaica, para sucumbir a seu jogo de sedução. Quando cortada em suas
encenações, portanto, interditada nas suas atuações, zangava-se. Aqui
reeditava a menina, que em sua forma imatura não sabia dizer o quanto queria
afeto, e, portanto, adoecia, no caso, irritava-se, colocava em atos furiosos suas
mágoas.
Reiterava no início do processo terapêutico, seu amor à mãe,
aos poucos percebeu que também a odiava. Maria reconheceu, por exemplo,
que sua mãe “não era tão boa assim” e que sentiu “raiva” da sua mãe por
“ter deixado os filhos assistirem tantas coisas”, como suas brigas com os
companheiros e os maus tratos pelos quais passou. No processo transferencial,
num jogo de desvelamento e ocultamento, de atualizações de sentimentos
ambivalentes disse-nos que fomos “tudo de bom”, e certamente também
fomos tudo de mau. Nasio (1993) nos ajuda a esclarecer esse jogo quando diz
que:
Por isso, a expressão lacaniana sujeito-suposto-saber significa que o
analista assume inicialmente, o lugar de destinatário do sintoma, e
depois, mais a diante, o de causa dele.
(...) Quando o analista diagnostica a neurose do seu paciente, ele sabe
que faz parte do sintoma que está diagnosticando. Em suma, o
fenômeno da suposição acompanha todos os acontecimentos dentro
de uma análise. Assim, não existe acontecimento doloroso que não
seja ‘interpretado’ pelo paciente cujas palavras sofrimentos e crenças
foram envolvendo, pouco a pouco, a pessoa do analista (p. 16).
Abandonada pelo pai, portanto barrada em seu intento de
completude, Maria seguiu seu caminho na busca de satisfações em suas
relações afetivas. Aqui pensamos na trajetória da histérica marcada pela
tormenta da insatisfação do seu desejo: identificada com o sofrimento de não
saber quem era, Maria, reviveu seu Édipo, aprisionando-se em triângulos
amorosos. Para ela restou o lugar de excluída, daquela que é sempre rejeitada,
fracassada, daquela que não tem certeza de sua identidade sexual.
A paciente em sua queixa de abandono do pai, falou de sua
posição como mulher: no momento em que a menina procurou no pai um
significante do feminino, que permitisse, através do ideal do Eu, chegar a um
desenlace edípico, o pai se eclipsou, pois só poderia responder apontando para
um significante fálico, já que não há significante do feminino. O pai de Maria
esteve ausente para lhe revelar o segredo do feminino.
Queria ter um pai, uma vez que jamais possuiu um, eis uma das
sínteses de Maria. Isso nos fez pensar que em seus envolvimentos amorosos,
esteve à procura de alguém que operasse a função paterna. Nesse lugar de
vítima, Maria resistiu em reconhecer alguma satisfação. Ela não poderia ser
feliz enquanto tivesse uma fantasia a persegui-la: ter um pai. Tentou buscar
uma saída, colocando-se na dialética: ficar pequena, menina, passiva,
dominada, sobretudo na busca de significantes que lhe faltaram nos seus
registros iniciais, clamando pelo olhar das figuras parentais, ou, se colocar
como mulher desejante, impulsionada a um papel ativo na relação com o
outro.
Após mais uma busca de completude amorosa se decepcionou,
e gritou: “Só quero ter paz, paz, entendestes?” Escutamos um pedido
de pais e, ao ser comunicada do que foi escutado, ela confirma que foi o pai
que lhe faltou na vida. Este foi perdido na infância, achado, rejeitando-a na
adolescência. Na “adultice” teve a ilusão de ter encontrado este pai na figura
do marido, o qual, afirmava ser um “frouxo”. E na incansável busca de quem
lhe interditasse, colocou no lugar da falta e na crença impossível do
reencontro primordial, amores que perdeu ou foram perdidos na sua
insatisfação. Maria frustrou-se e prometeu vingar-se.
Kehl (2004) quando teoriza sobre ressentimento, pontua que ao
ficarmos ressentidos, vitimizados, desejamos causar no outro a mesma dor que
estamos sentindo, e, que o sentimento que subjaz é a vingança. O ressentido
não se reconhece como vingativo, atribui ao outro a responsabilidade pelo que
lhe faz sofrer, estabelecendo uma dependência infantil em seus vínculos,
esperando sempre proteção, prêmios e reconhecimentos da sua submissão.
Dentro
da
perspectiva
desta
autora,
Maria
teria
duas
possibilidades: “preferir ser protegida ainda que subjugada – a ser livre, mas
desamparada” (p. 21), porém responsável por seus atos e pelos efeitos
decorrentes dos mesmos.
Quem sabe Maria pôde se interrogar por quem era desejada? E
a quem ela desejaria? E nessa formulação, ou poderia investir em saber o
quanto continuava vivendo a triangulação edípica, identificando-se tanto com
o pai quanto com a mãe, ou poderia criar uma alternativa e tentar desvendar
quem era e o que queria...
A enxaqueca não mais compareceu como desculpa de suas
faltas, comprometeu-se com o processo terapêutico e incluiu-se nos seus atos,
não apenas culpabilizando o outro, mas também enxergando e chorando os
desacertos de suas responsabilidades. A paciente se mostrou então, enlaçada
no vínculo transferencial, e começou a percorrer suas dores autorizando-se
saber sobre seus conflitos e através de sua fala, acessar o processo de luto pela
mãe, pelos amores, bem como pela falta do pai.
Na travessia do sintoma, percebemos o funcionamento de
Maria, ora como Maria das dores ora como Maria das graças. Fazendo a
trajetória de uma para outra, todas as vezes que suas palavras transbordaram
causando-lhe sofrimento, defendeu-se assentada no humor, o qual se revelou
como uma saída para as “dores da alma”.
As palavras de Maria fizeram-nos pensar nos versos de Milton
Nascimento, quando musicou sua poesia “Travessia”:
♫ Quando você foi embora
fez-se noite em meu viver
Forte eu sou,
mas não tem jeito,
hoje eu tenho que chorar.
Minha casa não é minha
nem é meu este lugar
Estou só e não resisto,
muito tenho pra falar... ♫
No processo terapêutico compreendemos o quão difícil foi a
elaboração de seus lutos e sua resistência para falar das perdas. Mesmo sendo
aquela que cuidava de todos os irmãos, portanto “forte e corajosa”, teve que
chorar, reconhecendo que não foi e ainda não era a dona de sua própria casa.
Seu pranto acordou seus abandonos: riu, chorou, gritou, percebeu que estar só
era uma certeza, e aí começou a falar...
Foi um tempo de muda! Se para os pássaros é o tempo que
trocam de plumagem, portanto, um tempo difícil, para Maria, foi um tempo de
enfrentamento, revisitação e superação. No tempo dito de muda, Maria
clamou paz. Escutamos pais, mas nesse tempo, ao chamá-los constatou que é
a falta e a incompletude o que de mais real existe em cada um dos humanos.
Com a falta, teria que viver e se fortalecer; sabendo que a primeira palavra, o
primeiro olhar, o contorno e a forma que os braços a fizeram humana, não
mais teria. Porém, outras palavras poderia escutar, falar ou silenciar, outros
olhares poderia endereçar, como corpos e almas poderia tocar, contornar.
Desde que no investimento dos seus cuidados com o outro fosse capaz de se
tornar sujeito e intérprete do inconsciente, escutando a priori, suas dores,
amores e dissabores; conhecendo o pior e o melhor de si. Buscando
compreender sobre o que versavam seus ditos através da linguagem falhada,
sonhada e recalcada.
Maria chegou ao atendimento queixando-se da “maldita dor”,
hoje não mais seria lançada em fogueiras. Sabemos que através do tratamento
analítico pôde exorcizar seus fantasmas pela palavra, porém bem ditas as
palavras dos povos antigos quando compreendiam os histéricos como
“malditos”. Maria foi “seguindo pela vida (...) querendo amar de novo”, quem
sabe ressignificando a surra de palavras que levou na infância e que chorava
até então. Elaborando, decodificando os ditos, que faltaram ou excederam e
que a ela se apresentaram apenas como matéria-prima para fabricar sua
maldita dor, talvez podendo transmutá-la em bem ditas palavras.
Referências
BERLINCK, M. T. (org). Dor. São Paulo: Escuta, 1999.
FREUD, S. Estudos sobre a histeria. In: Edição Standard Brasileira das Obras
Completas de Freud (ESB). Rio de Janeiro: Imago, 1996, v.VII. (Original
publicado em 1895).
_________. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: Edição Standard
Brasileira das Obras Completas de Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996 v. VII.
(Original publicado em 1905).
__________. Psicologia das massas e análise do eu. In: ESB. Rio de Janeiro:
Imago, 1996 v. XVIII. (Original publicado em 1921).
JERUSALINSK, J. Enquanto o futuro não vem - a psicanálise na clínica
interdisciplinar com bebês. Salvador: Ágalma, 2002.
KAUFMANN, P. Dicionário Enciclopédico de Psicanálise - O Legado de
Freud a Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.
KEHL, M. R. Ressentimento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.
Nasio, J.D. A Histeria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991.
________ 5 Lições sobre a Teoria de Jaques Lacan. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1993.
________ O livro da dor e do amor. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
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