Universidade Federal do Rio de Janeiro
Faculdade de Letras
Comissão de Pós-Graduação e Pesquisa
A POÉTICA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN,
LIRISMO DE UM CAMINHADOR
DAYENNY NEVES MIRANDA
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2014
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Faculdade de Letras
Comissão de Pós-Graduação e Pesquisa
A POÉTICA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN,
LIRISMO DE UM CAMINHADOR
DAYENNY NEVES MIRANDA
Tese Doutoral submetida ao
Programa de Pós-Graduação em
Letras Neolatinas da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, como
requisito para obtenção do Título de
Doutor em Letras Neolatinas
(Literaturas Hispânicas).
Orientadora:Profª. Doutora Mariluci da
Cunha Guberman.
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2014
2
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Faculdade de Letras
Comissão de Pós-Graduação e Pesquisa
A poética de Raúl González Tuñón, lirismo de um Caminhador
Dayenny Neves Miranda
Orientadora: Professora Doutora Mariluci da Cunha Guberman
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em
Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como
parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Letras
Neolatinas.
Banca examinadora: 25 de fevereiro de 2014
_____________________________________________________
Profª. Doutora Mariluci da Cunha Guberman (Presidente)
_____________________________________________________
Profª Doutora Cláudia Heloísa I. Luna - PPG Letras Neolatinas/UFRJ
_____________________________________________________
Profº Doutora Diana Araújo Pereira – UNILA/PR
______________________________________________________
Profª. Doutora Ximena Antonia Díaz Merino – UNIOESTE/PR
______________________________________________________
Profº. Doutor Antonio Ferreira da Silva Júnior – CEFET/RJ
______________________________________________________
Profª Doutora Sônia Cristina K. Reis – PPG Letras Neolatinas/UFRJ (Suplente)
______________________________________________________
Profª Doutora Ana Cristina dos Santos – UERJ (Suplente)
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2014
3
RESUMO
A POÉTICA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN, LIRISMO DE UM CAMINHADOR
Dayenny Neves Miranda
Orientadora: Profª Drª Mariluci da Cunha Guberman
Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de PósGraduação em Letras Neolatinas, da Faculdade de Letras, da Universidade
Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Doutor em Letras Neolatinas (Estudos Literários
Neolatinos – Literaturas Hispânicas).
A presente pesquisa consiste em analisar criticamente a poética do escritor
argentino Raúl González Tuñón, nas seguintes obras: El Violín del Diablo
(1926), La Calle del Agujero en la Media (1930), La Rosa Blindada (1936);
Todos Bailan. Los Poemas de Juancito Caminador (1935), Hay Alguien que
Está Esperando. El Penúltimo Viaje de Juancito Caminador (1952); Antologias:
Poemas de Raúl González Tuñón Antología, sel. de Héctor Yánover (1962),
Raúl González Tuñón Poemas de Buenos Aires, sel. de Luis Osvaldo Tedesco
(1983), Poemas de Raúl González Tuñón Antología Poética, ed. de Héctor
Yánover (1989), Raúl González Tuñón Poesía Reunida, compilação: Adolfo
González Tuñón e Eduardo Álvarez Tuñón (2011). A relevância dessa análise
se deve à significativa produção poética que envolve a temática da imagem
citadina, sob a ótica surrealista, e da imagem social durante a Guerra Civil
espanhola. Destaca-se a personagem Juancito Caminador, que evidencia o
aspecto autobiográfico da obra poética tuñoneana. Pela participação ativa do
poeta na Vanguarda argentina, tratou-se também da contextualização de
González Tuñón nesse movimento. Pelo fato de sua poesia apresentar
características do surrealismo, pesquisou-se não só essa estética, mas
também como se constrói a imagem surrealista das cidades de Buenos Aires e
Paris e a atuação de suas personagens. Pela participação do poeta na Guerra
Civil espanhola, verificou-se, em sua poesia social, como se revelam as
imagens bélicas do conflito espanhol e suas representações humanas. Este
estudo ainda apresenta uma comparação entre a imagem poética e a imagem
fotográfica da guerra ocorrida na Espanha. Pela intrigante presença de
Juancito Caminador, buscou-se, em algumas obras do escritor argentino,
investigar a representação dessa personagem como a possível construção
autobiográfica do poeta.
Palavras-chave: poesia, cidade, Guerra Civil espanhola, autobiografia
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2014
4
RESUMEN
A POÉTICA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN, LIRISMO DE UM CAMINHADOR
Dayenny Neves Miranda
Orientadora: Profª Drª Mariluci da Cunha Guberman
Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de PósGraduação em Letras Neolatinas, da Faculdade de Letras, da Universidade
Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Doutor em Letras Neolatinas (Estudos Literários
Neolatinos – Literaturas Hispânicas).
La presente investigación consiste en analizar criticamente la poética del
escritor argentino Raúl González Tuñón, en las siguientes obras: El Violín del
Diablo (1926), La Calle del Agujero en la Media (1930), La Rosa Blindada
(1936); Todos Bailan. Los Poemas de Juancito Caminador (1935), Hay Alguien
que Está Esperando. El Penúltimo Viaje de Juancito Caminador (1952);
Antologías: Poemas de Raúl González Tuñón Antología, sel. de Héctor
Yánover (1962), Raúl González Tuñón Poemas de Buenos Aires, sel. de Luis
Osvaldo Tedesco (1983), Poemas de Raúl González Tuñón Antología Poética,
ed. de Héctor Yánover (1989), Raúl González Tuñón Poesía Reunida,
compilação: Adolfo González Tuñón e Eduardo Álvarez Tuñón (2011). La
relevancia de ese análisis se debe a la significativa producción poética que
envuelve la temática de la imagen citadina, bajo la óptica surrealista, y de la
imagen social durante la Guerra Civil española. Se destaca el personaje
Juancito Caminador, que evidencia el aspecto autobiográfico de la obra poética
tuñoneana. Por la participación activa del poeta en la Vanguardia argentina, se
trató también de la contextualización de González Tuñón en ese movimiento.
Por el hecho de su poesía presentar características del surrealismo, se
investigó no sólo esa estética, sino también cómo se construye la imagen
surrealista de las ciudades de Buenos Aires y de Paris y la actuación de sus
personajes. Por la participación del poeta en la Guerra Civil española, se
verificó, en su poesía social, como se revelan las imágenes bélicas del conflicto
español y sus representaciones humanas. Este estudio presenta aún una
comparación entre la imagen poética y la fotográfica de la guerra ocurrida en
España. Por la cuestionadora presencia de Juancito Caminador, se buscó, en
algunas obras del escritor argentino, investigar la representación de ese
personaje como una posible construcción autobiográfica del poeta.
Palabras clave: poesía, ciudad, Guerra Civil española, autobiografía
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2014
5
ABSTRACT
A POÉTICA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN, LIRISMO DE UM CAMINHADOR
Dayenny Neves Miranda
Orientadora: Profª Drª Mariluci da Cunha Guberman
Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de PósGraduação em Letras Neolatinas, da Faculdade de Letras, da Universidade
Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Doutor em Letras Neolatinas (Estudos Literários
Neolatinos – Literaturas Hispânicas).
The present research consists critically to analyse poetical of the
Argentine writer Raúl González Tuñón, in the following works: El Violín del
Diablo (1926), La Calle del Agujero en la Media (1930), La Rosa Blindada
(1936); Todos Bailan. Los Poemas de Juancito Caminador (1935), Hay Alguien
que Está Esperando. El Penúltimo Viaje de Juancito Caminador (1952);
Anthologies: Poemas de Raúl González Tuñón Antología, sel. of Héctor
Yánover (1962), Raúl González Tuñón Poemas de Buenos Aires, sel. of Luis
Osvaldo Tedesco (1983), Poemas de Raúl González Tuñón Antología Poética,
ed. of Héctor Yánover (1989), Raúl González Tuñón Poesía Reunida,
compilation: Adolfo González Tuñón and Eduardo Álvarez Tuñón (2011). The
relevance of this analysis must to the significant poetical production that
involves the thematic one of the urban image, under the optical of the surrealist,
and the social image during the Spanish Civil War. She is highlighted
personage Juancito Caminador, who evidences the autobiographic aspect of
the tuñoneana poetical work. For the active participation of the poet in the
Argentine Vanguard, it was also about the contextualização of González Tuñón
in this movement. For the fact of its poetry to present characteristics of the
surrealism, searched not only this aesthetic one, but also as it constructs to the
surrealist image of the cities of Buenos Aires and Paris and the performance of
its personages. For the participation of the poet in the Spanish Civil War, it was
verified, in its social poetry, as to the warlike images of the Spanish conflict and
its human representations show. This study still it presents a comparison
between the poetical image and the photographic image of the occured war in
Spain. For the intriguing presence of Juancito Caminador, one searched, in
some works of the Argentine writer, to research the representation of this
personage as the possible autobiographic construction of the poet.
Keyword-: poetry, city, Spanish Civil War, autobiography
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2014
6
Dedicatória
A
Deus, pela vida e pela benção de me conceder saúde e força. Agradeço
por ter me agraciado com a presença de pessoas tão especiais durante minha
vida, mesmo aquelas que não estão mais presentes. Por ter ouvidos minhas
orações, e foram tantas. E, principalmente por sua fidelidade e amor
incondicional. Tenho orgulho de ser chamada sua filha e de poder chamar-te
meu Pai!
Ao meu esposo Leonardo, pelo amor demonstrado, pela paciência, pelo seu
apoio e por sua absoluta compreensão. Agradeço por acreditar em mim, por
me motivar quando queria desistir. Peço desculpas por não ter te
acompanhado nos últimos meses por conta deste estudo.
À minha mãe, por me amar e por me ajudar em tudo que eu precisava. Por ter
feito minha matrícula na Faculdade de Letras e pelos conselhos de sempre
prosseguir nos estudos. Eles me ajudaram a chegar até aqui!
Que Jesus os abençoe. Amo vocês!!!
7
Dedicatória Especial
Querida Orientadora Profª. Drª. Mariluci Guberman,
E
stava em meus últimos anos de graduação, fazendo a disciplina
FUNDHISP. Entreguei um trabalho sobre a poesia de Sor Juana Inês de la
Cruz e fui comunicada de que a professora queria falar comigo. Pensei que
meu trabalho poderia ter ficado ruim. Para minha surpresa, a senhora tinha
gostado e me convidou para integrar seu grupo de pesquisa. Aceitei
imediatamente, sem querer saber se teria bolsa ou não, o que eu queria era
aprender e, pela primeira vez, alguém acreditou em mim, alguém me deu uma
oportunidade e me olhou. Achava que iria passar pela faculdade como uma
página em branco, mas a senhora me ajudou a construir uma emocionante
lauda lírica.
Lembro-me perfeitamente do dia em que distribuiu os autores e me
disse: leva esse livro para casa, leia essa primeira poesia e me diga o que você
acha. Foi nesse dia que conheci a poesia de Raúl González Tuñón e me
encantei. Sua sensibilidade a levou a dar-me o autor que seria perfeito para
mim, e daí por diante a identificação com o universo hispânico só cresceu.
Professora Mariluci, por ser uma excelente profissional, mas acima de
tudo por ser esse excepcional ser humano, agradeço por sua dedicação e
motivação incansável, por sua paciência infinita e por sua confiança em mim e
nesta pesquisa. Agradeço pelos livros emprestados, por sua obstinação em me
ajudar a conseguir novos suportes teóricos e novas bibliografias que me
auxiliaram nessa escritura, pelas longas horas de reuniões, pela primorosa
correção, enfim, espero seguir com a especial escola que Deus me presenteou,
a escola “Gubermaniana” de ser. E, assim, ter para com meus alunos o mesmo
respeito e carinho que tem comigo.
Nossa caminhada nunca terminará, pois sempre serei sua fiel escudeira,
a caminhadora que caminha contigo, aquela que está sempre disposta a
aprender mais e mais. A senhora sempre será minha eterna PROFESSORA!
8
Agradecimentos
A
o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq) pelo amplo subsídio financeiro que me foi concedido, o qual me
possibilitou aprofundar minhas pesquisas e concluir o presente estudo.
Ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da UFRJ, pelo
suporte técnico e incentivo acadêmico durante o curso.
Ao Professor Dr. Alcmeno Bastos, por sua compreensão e sabedoria,
que me ajudou a entender um pouco mais sobre literatura fantástica.
Ao Professor Dr. Antonio Ferreira da Silva Júnior, por seu conhecimento
e simplicidade. Agradeço a participação no Exame de Qualificação e as
sugestões dadas após a leitura detalhada de parte do estudo.
À Profa. Dra. Débora Ribeiro Lopes Zoletti, por seu exemplo de
humildade e participação no Exame de Qualificação, proporcionando
importantes considerações teóricas para esta pesquisa.
À Coorda. Profa. Dra. Sonia Reis, pelo exemplo de profissionalismo e
dedicação.
À Profa. Dra. Ângela Correa, pelo apoio nos momentos turbulentos, pela
paciência e, principalmente pela grande simplicidade e humildade em dividir
com o outro e entendê-lo.
À Profa. Dra. Marília Santanna Villar, por suas observações nas
ocasiões do Colóquio de Pós-Graduação em Letras Neolatinas.
A todos os meus professores da Faculdade de Letras/UFRJ e, em
especial, ao Setor de Espanhol e ao de Literatura Hispano-Americana.
À Profa. Titular Dra. Isis Fernandes Braga, que, com seriedade e
competência, expandiu minhas ideias na Pós-Graduação com uma importante
base teórica durante o curso “A fotografia, espelho da sociedade”, realizado na
Pós-Graduação da Escola de Belas Artes da UFRJ, contribuindo para a
tessitura do quarto capítulo da minha dissertação, intitulado “A imagem da
Guerra Civil espanhola”. Destaco também a pronta dedicação em sugerir e
acrescentar informações essenciais sobre a fotografia, consequentemente
sobre a imagem, que foram pertinentes à análise.
9
Agradecimentos Especiais
A
todos meus familiares, principalmente Tio Ignácio e Tia Felicidade
pelo seu carinho e pelo constante incentivo moral e financeiro durante a
graduação.
Ao meu amigo Antonio, pela amizade e incentivo, e por ter me
proporcionado o acesso a alguns recursos bibliográficos durante a pesquisa.
Ao meu grande amigo Heitor, pelas horas de terapia impagáveis, por me
fazer sorrir quando na verdade queria chorar. Agradeço pelos risos e presença
em momentos de angústias e, principalmente por aguentar os meus devaneios.
À minha amiga Jamille, por suas orações, palavras de incentivo e
carinho que me acalmaram nos momentos de desespero.
A minha amiga Aline, por sua ajuda, compreensão e torcida. Peço
desculpas por tê-la abandonado nos últimos meses de finalização desse
estudo.
As minhas amigas Bárbara e Fabiana, pelo auxílio na correção do texto
e pontuações adequadas, além de seu apoio e compreensão nos momentos
em que eu precisava.
Aos meus amigos do trabalho, especialmente Edimar, Luciana, Viviane
Mury, Vera, William, Verinha, Vaninha e Edson, que me aconselharam e me
apoiaram em todos os momentos.
10
MIRANDA, Dayenny.
A poética de Raúl González Tuñón, lirismo de um caminhador.
Dayenny Neves Miranda. – Rio de Janeiro: UFRJ, 2014.
xiv, 291.: il.; 30 cm.
Orientadora: Mariluci da Cunha Guberman.
Tese (Doutorado) – UFRJ / Faculdade de Letras / Programa de PósGraduação em Letras Neolatinas, 2014.
Referências bibliográficas: f. 265-273.
1. Poesia. 2. Cidade. 3. Guerra Civil espanhola. 4. Autobiografia. I.
Guberman, Mariluci da Cunha. II. Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação em
Letras Neolatinas. III. Título. A poética de Raúl González Tuñón,
lirismo de um caminhador.
11
Sinopse
Análise crítico-literária da obra poética do
escritor
argentino
Raúl
González
Tuñón.
Abordagem da Vanguarda Argentina, bem como
dos percursos realizados pelo autor. Ênfase
para a análise da imagem citadina e surrealista
e da imagem social na Guerra Civil espanhola.
Abordagem
da
personificação
de
Juancito
Caminador à luz da autobiografia. Estudo dos
símbolos populares de Buenos Aires, Paris, do
conflito bélico espanhol e da presença de
Juancito Caminador.
12
M
e había ocurrido el nacer y el vagabundear
adolescente
-cuando era chico miraba llover y me gustaban los
agrios dulces
[…]
y cuando de pronto me vi corriendo delante de la
muerte
-estaba trémulo, solo en la soledad de los Llanosla vida me pareció tremendamente deliciosa y
tremendamente,
verdaderamente peligrosa.
Raúl González Tuñón
13
Sumário
Introdução ........................................................................................................ 17
O INÍCIO DA CAMINHADA
A VANGUARDA ARGENTINA E RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN
1- O passeio da poesia pela modernidade: As Vanguardas Argentinas
.......................................................................................................................... 30
2- O Caminhar citadino de um poeta ............................................................... 47
2.1- Em Buenos Aires............................................................................ 47
2.2- Em Paris ......................................................................................... 60
2.3- Nas cidades espanholas ................................................................ 65
CAMINHANDO PELAS URBES MODERNAS
AS MÚLTIPLAS IMAGENS LÍRICAS DE UM CAMINHADOR
3- Transitando pela imponência da imagem .................................................... 78
3.1- O desfilar da imagem surrealista portenha .................................... 85
3.2- O primeiro caminhar: Buenos Aires, a cidade do espetáculo ........ 88
“Eche veinte centavos en la ranura” ........................................... 89
“Música de los puertos”............................................................... 95
“Adiós a Buenos Aires” ............................................................. 102
“Poetango de la Belle Époque” ................................................. 114
“Motivo para una cajita de música” ........................................... 127
3.3- Pelas ruas parisienses em constante exaltação lírica ................. 135
3.4- O segundo caminhar: Paris, a cidade do êxtase ......................... 138
14
“Las viejas catedrales” .............................................................. 139
“Poema del Boulevard Saint Michel” ........................................ 147
“La calle del paso de la Mula” ……………......................……… 154
4- O impacto imagético da Guerra Civil espanhola ....................................... 162
4.1- A defesa da República Espanhola .................................................... 162
4.2- Percorrendo as imagens bélicas da Espanha de 1936 ..................... 165
4.2.1- As imagens fotográficas da guerra ........................................... 167
4.2.2- O terceiro caminhar: as cidades espanholas do caos .............. 176
“La libertaria” ............................................................................. 177
“Cuidado que viene el Tercio” ................................................... 185
“Domingo Ferreiro” ................................................................... 190
O ÚLTIMO PERCURSO
O TRANSEUNTE JUANCITO CAMINADOR
5- A personificação na poesia ........................................................................ 203
5.1- O poeta e a personagem ................................................................... 209
5.2- O último caminhar: O caminhador no espaço poético ...................... 219
“Juancito Caminador” .......................................................................... 220
“Canción para vagabundos” (Que compuso Juancito Caminador) ..... 231
“Canción que compuso Juancito Caminador para la supuesta muerte de
Juancito Caminador” ........................................................................... 237
“El poeta murió al amanecer” .............................................................. 244
Conclusão ...................................................................................................... 253
15
Bibliografia ..................................................................................................... 265
Anexos ........................................................................................................... 274
Fotos e caricaturas ................................................................................... 274
Poemas analisados .................................................................................. 275
Capas das 1ª ed. dos livros ...................................................................... 290
16
Introdução
Iniciamos nossa caminhada pela poética de Raúl González Tuñón
realizando um levantamento das obras publicadas pelo escritor. Foram ao total
21 livros de poesia, 1 livro teórico, 6 antologias poéticas (4 publicadas em vida)
e 4 obras de teatro, fora as incontáveis matérias jornalísticas, notas críticas,
entre outras, publicadas nos jornais em que trabalhou. Nesta vasta produção,
podemos identificar as distintas fases do poeta, que, influenciado por seu
tempo, retratou em sua lírica a realidade a que o homem do século XX estava
submetido.
No Mestrado, durante uma fascinante caminhada pela historiografia
poética da Argentina, pude aprender, através dos textos estudados, a
importância das manifestações culturais e artísticas produzidas em Buenos
Aires. Este momento, em que visualizei o imaginário portenho, revelou-me o
esplendor do canto poético do escritor argentino Raúl González Tuñón (19051974): a representação simbólica da cidade, suas ruas e formas, como um
corpo imaginário, e as relações sociais conflitantes. Em minha Dissertação de
Mestrado, foram abordadas poesias de duas localidades distintas, as quais
abarcam duas etapas também díspares de sua obra poética: a surrealista, de
Buenos Aires, e a social, da Espanha. No entanto, outras fases da poética
tuñoneana não foram contempladas, pela exiguidade do tempo de Mestrado.
A fim de dar continuidade aos estudos iniciados anteriormente no curso
de Mestrado em Letras Neolatinas, Literaturas Hispânicas, sob a orientação da
Profa. Dra. Mariluci da Cunha Guberman, retomamos a pesquisa passada para
17
aprofundar e ampliar nossa discussão e análise. Interessou-nos, nesta nova
etapa, investigar o modo como o poeta argentino em questão emprega, em sua
produção poética, a imagem da capital francesa e como se constitui a questão
da personificação do autor em sua obra. Além de Paris, são abordadas
também a capital da Argentina e algumas cidades da Espanha durante a
Guerra Civil. Cabe ressaltar a importância do poeta argentino no universo
literário, pois ele percorreu diversos países, como Brasil, França, Espanha e
grande parte da América do Sul e da Ásia, expressando poeticamente o que
observou nesses lugares: na Argentina, ampliou seu universo de conhecimento
e, a partir das inúmeras viagens, estreitou os temas de suas poesias, como a
cidade, as viagens, as revoluções, a aventura e o cotidiano.
O cerne da investigação sobre as poesias tuñoneanas traduziu-se pela
representação das cidades, pela constituição da imagem citadina, pelo olhar do
sujeito-lírico para a urbe, por sua memória e, também, pela representação de
Juancito Caminador (possível construção autobiográfica) em sua obra.
Em contato com as obras de Raúl González Tuñón, interessei-me pela
poética e estratégia de sua poesia, que conseguem exprimir simultaneamente
o real e o imaginário. Entretanto, deparei-me com um problema: a escassa
divulgação da vida e da obra de González Tuñón no Brasil; inclusive, seu nome
é pouco conhecido por pesquisadores brasileiros. Esse fato foi um desafio que
me impulsionou a buscar e a aprofundar meus estudos sobre esse autor.
Nos últimos anos, na Argentina, a obra tuñoneana passou a ser
revisitada, sendo fonte de inspiração para grandes autores contemporâneos,
como Juan Gelman. Assim começaram a reeditar alguns dos livros de Raúl
González Tuñón e, inclusive, em 2005, houve uma homenagem no centenário
18
de seu nascimento, juntamente com um concurso de poesia que levou seu
nome, além da mostra de um vídeo sobre seu poema, “Juancito Caminador”,
entre outras homenagens.
Nesta Tese de Doutorado, foram abordadas algumas poesias de Raúl
González Tuñón compreendidas no período de 1926 a 1974, dos seguintes
livros: El violín del diablo (1926); La Calle del Agujero en la Media (1930); La
Rosa Blindada. Homenaje a la insurrección de Asturias y otros poemas
revolucionarios (1936); Todos Bailan. Los poemas de Juancito Caminador
(1935); Hay alguien que está esperando. El penúltimo viaje de Juancito
Caminador (1952); Poemas de Raúl González Tuñón Antología, seleção de
Héctor Yánover (1962); Raúl González Tuñón Poemas de Buenos Aires,
seleção de Luis Osvaldo Tedesco (1983); Poemas de Raúl González Tuñón
Antología Poética, edição de Héctor Yánover (1989); Raúl González Tuñón
Poesía Reunida, compilação de Adolfo González Tuñón e Eduardo Álvarez
Tuñón (2011).
Selecionamos, nessas obras, poemas que tratam das cidades de Buenos
Aires, Paris e algumas da Espanha, além dos poemas que abordam a figura de
Juancito Caminador. Essa seleção levou em conta a limitação do corpus desta
pesquisa, pois se contemplasse toda a produção poética de González Tuñón
não terminaria em tempo determinado pelas instituições reguladoras. São
poemas que abarcam outras cidades e países como Brasil e Cingapura.
Percebemos a importância da cidade em sua produção e, para este fim,
tratamos de como o poeta observa, sente e registra o espaço urbano e seus
símbolos, que se imprimiram em sua memória. Ao pensarmos no olhar do
19
poeta em relação à cidade, tornaram-se necessários os estudos sobre o olhar e
a imagem, bem como sobre a memória, a qual possibilita o registro literário.
Esta pesquisa divide-se em três partes: (1) O início da caminhada. A
Vanguarda argentina e Raúll González Tuñón; (2) Caminhando pelas urbes
modernas. As múltiplas imagens líricas de um caminhador e (3) O último
percurso. O transeunte Juancito Caminador.
Na primeira parte, intitulada O início da caminhada. A Vanguarda
argentina e Raúl González Tuñón, faz-se referência ao início da peregrinação
do poeta e contém dois capítulos: no primeiro, elaboramos uma breve
contextualização do poeta na Vanguarda argentina e, no segundo, um
panorama de sua biografia. Por selecionar a cidade como objeto de estudo,
torna-se indispensável o conhecimento de como a capital argentina, bem como
a capital parisiense e as localidades espanholas foram apreendidas pelo olhar
do autor, e o que essas urbes significaram para ele.
A obra de Raúl González Tuñón, participante ativo de movimentos
artístico-literários que fizeram parte da Vanguarda argentina, como Florida e
Boedo, exige a contextualização do poeta nessa época tão fértil para o mundo
artístico argentino. Com esse fim, pesquisamos, no capítulo 1, as Vanguardas
argentinas (ZANETTI, 1980/1986); (GARCÍA FELGUERA, 1993) e os
manifestos da Vanguarda (OSORIO, 1988); (SCHWARTZ, 1995), que são
necessários para que tenhamos uma melhor compreensão e dimensão de suas
obras poéticas.
Raúl González Tuñón (1905-1974) nasceu em Buenos Aires, filho de
imigrantes espanhóis; sua mãe faleceu quando ele ainda era criança e tinha
sete anos; seu pai, operário, morreu atropelado por um ônibus com pouco mais
20
de cinqüenta anos. González Tuñón foi jornalista e poeta, mas pode-se dizer
que foi mais poeta que jornalista.
Desde a infância, González Tuñón viveu cercado de magia e política.
Sua casa, no bairro Once, estava próxima à Praça do Once, que era um lindo
bosque, de onde partiam as famosas manifestações socialistas sempre no dia
primeiro de maio. Já sua imaginação era despertada pelos sons dos apitos dos
trens e pelos constantes passeios ao porto na companhia de seu avô materno.
A esse contexto histórico do autor foi dedicado o capítulo 2 desta tese,
intitulado “O caminhar citadino de um poeta...”, e subdividido em: “Buenos
Aires”, “Paris” e “Cidades espanholas”. Nesses subcapítulos, fazemos um
breve estudo do poeta em seus momentos argentino, parisiense e espanhol.
Na segunda parte, denominada Caminhando pelas urbes modernas. As
múltiplas imagens líricas de um caminhador, analisa-se a construção da
imagem poética tuñoneana nas urbes acima citadas.
Para esse fim, apresentamos o capítulo 3, intitulado “Transitando pela
imponência da imagem”, que está subdivido em quatro subcapítulos. No
primeiro subcapítulo, “O desfilar da imagem surrealista portenha”, aportamos à
questão da estética surrealista em Buenos Aires. Para tanto, tomamos como
modelo os estudos sobre o conceito surrealista de PAZ (1983). No segundo, “O
primeiro caminhar: Buenos Aires, a cidade do espetáculo”, a partir da seleção
de cinco poemas, analisamos as imagens surrealistas da capital portenha e
como elas atuam nesses poemas do escritor argentino.
Percebe-se a importância da cidade (LYNCH, 1999) em sua produção e,
por isso, tratamos de como o poeta observa e sente o espaço urbano, como o
registra e como esse espaço e seus símbolos (ELIADE, 1991) se imprimem em
21
sua memória. Ao se pensar no olhar do poeta em relação à cidade, tornaramse necessários os estudos sobre o olhar (NOVAES, 1988) e a imagem
(SAMAIN, 2005, VILLAFAÑE, 2002).
Raúl González Tuñón, como quase todos os poetas de sua época,
participou da corrente surrealista, por isso algumas de suas poesias apontam
para a transformação do homem através da liberação do subconsciente. Como
verificamos no poema “Eche veinte centavos en la ranura”, do livro El violín del
diablo, o poeta parte do real e ingressa subconscientemente em sua infância,
com o propósito de vivenciar de novo uma etapa feliz de sua vida, através de
uma linguagem lúdica.
O porto, ambiente constantemente cantado na lírica tuñoneana, foi
ressaltado na análise do poema “Música de los puertos”, no qual o poeta
expressa seu particular gosto pelos diversos sons produzidos nesse ambiente
plural, bem como pelos lugares mais recônditos e pelos símbolos que mais o
instigaram a escrever sobre esse baixo mundo portenho, tão ignorado pelas
camadas sociais mais altas, mas que provocou a González Tuñón,
estimulando-o a dar forma a esse mundo em suas páginas literárias,
carregadas de experiências mundanas.
Seu particular gosto pelos submundos portenhos, pelo cotidiano desses
lugares, por suas gentes e por seus estabelecimentos emblemáticos, fizeram
de González Tuñón um cancioneiro citadino, e isso pode ser percebido por
meio da análise do poema “Adiós a Buenos Aires”, onde o eu lírico se despede
da cidade através de um suave e detalhado passeio por suas ruas.
Na composição poética, “Poetango de la Belle Époque”, do livro La
veleta y la antena, o poeta se posiciona como o cancioneiro da cidade,
22
evocando de maneira fantasiosa e criativa os espaços por onde passou. Com o
seu rememorar, ele propicia ao leitor a imersão em sensações nostálgicas e
irreais, exaltando todo o ambiente citadino de forma quase que universal.
No contexto surrealista, encontramos o poema “Motivo para una cajita
de música”, do livro A la sombra de los barrios amados, em que o eu lírico
exalta o cotidiano e o bairro, revelando seu amor pela cidade, por seus locais.
Como um excelente observador, o poeta descreve nostalgicamente o ambiente
citadino. Nesses versos o sonho será o mecanismo empregado para provocar
o lúdico, simbolizado pela “caixinha de música”.
No terceiro subcapítulo desta tese, intitulado “Pelas ruas parisienses em
constante exaltação lírica”, abordamos o desenvolvimento do Surrealismo
tuñoneano em Paris e suas influências. No quarto e último subcapítulo,
denominado “O segundo caminhar: Paris, a cidade do êxtase”, analisamos três
poemas que abordam essa metrópole, investigando, por meio da observação
poética do autor, como está construída a imagem tuñoneana da capital
francesa, seus símbolos, sua gente.
No capitulo 4, “O impacto imagético da Guerra Civil espanhola”, a poesia
lírica surrealista cede espaço para o estudo da poesia social de Raúl González
Tuñón. Esse capítulo está dividido em “A defesa da República espanhola”,
parte em que fazemos um breve estudo sobre o movimento republicano na
capital espanhola durante o enfrentamento com as tropas do General Francisco
Franco, e em “Percorrendo as imagens bélicas da Espanha de 1936”. Este
último subdivido em “As imagens fotográficas da guerra” e “O terceiro
caminhar: As cidades do caos na Espanha”.
23
Para trabalhar a imagem do caos, empregamos o estudo de
CALABRESE (1994), no qual o autor discorre sobre o conceito de objeto fractal
aplicado à literatura. Este conceito foi amplamente empregado na pesquisa
durante a discussão sobre a imagem poética e a imagem fotográfica.
Por trabalhar com algumas fotografias bélicas, fez-se necessário o
estudo da construção da fotografia de guerra (SOUSA, 1998), desde o seu
princípio até o que se chegou com a Guerra Civil espanhola, quando se
empregou, neste trabalho, fotografias de um importante fotógrafo espanhol
desse período: Agustí Centelles (1909-1985).
O primeiro poema, que inaugura a série de análises sobre a Guerra Civil
espanhola, trata de “La Libertaria”. Nessa composição, o eu lírico deixa
expresso sua comoção diante de um acontecimento brutal que marcou o
cenário mundial: a morte de uma jovem de 13 anos durante um confronto entre
os soldados e os mineiros asturianos. Esse poema também se assemelha a um
hino republicano, pois toda sua métrica garante o ritmo durante sua leitura.
O segundo poema abordado é “Cuidado, que viene el Tercio”. Nessa
composição, o autor usa seus recursos poéticos para, através do eu lírico,
alertar a população perante a constante ameaça. Também, por sua rima e
disposição de seus versos, cria-se uma composição muito semelhante a um
tipo de marcha comprometida com a guerra. Apesar de manter propostas
surrealistas, não podemos deixar de destacar outro marco importante em sua
obra que é o caráter social como tema frequente em alguns de seus livros.
Destacamos também o poema “Domingo Ferreiro”, pertencente ao livro Hay
alguien que está esperando. El penúltimo viaje de Juancito Caminador, que
denuncia os desmandos e crueldades praticadas na época da Guerra Civil
24
espanhola. Devido à publicação de quatro obras voltadas para essa temática,
não poderíamos deixar de abordar as cidades espanholas na época do conflito
bélico na Espanha.
Na terceira parte desta tese, intitulada O último percurso. O transeunte
Juancito Caminador, aborda-se a representação dessa personagem na obra
poética de Raúl González Tuñón.
No derradeiro capítulo 5, “A personificação na poesia”, tratamos a
questão da autobiografia nos poemas tuñoneanos a partir dos estudos de
Philippe Lejeune (1994) e da Revista Anthropos (1991). São dois seus
subcapítulos. O primeiro, “O poeta e a personagem” aborda a construção da
personagem, a relação entre um e outro, seus pontos consonantes e
dissonantes. No segundo, “O último caminhar: o caminhador no espaço
poético”,
foram
analisados
quatro
poemas
relacionados
a
Juancito
Caminhador, com o propósito de averiguar a representação deste como uma
possível personificação autobiográfica.
No primeiro poema, intitulado “Juancito Caminador”, a partir da
apresentação da personagem e sua trajetória verificamos as possíveis
confluências existentes entre ela e seu criador, bem como sua particular
relação com o espaço físico da cidade e seus elementos, a fim de confirmar
essa personagem como uma provável personificação do autor na obra.
Em “Canción para vagabundos” (Que compuso Juancito Caminador),
buscamos dados que comprovassem a experiência autobiográfica como o
exercício pretendido pelo autor, ao atribuir a Juancito a autoria desse e de
outros poemas, como também de “Canción que compuso Juancito Caminador
para la supuesta muerte de Juancito Caminador”, onde o próprio, de forma
25
irônica pressupõe a sua morte. Esse “poder” manifestado pela personagem
está vinculado ao livre poder criador do poeta em dar voz e forma a esta que
poderia ser o seu reflexo “flaneante”.
No último poema analisado, “El poeta murió al amanecer”, verificamos o
cumprimento do pleno exercício do pacto autobiográfico existente entre autorpersonagem-sujeito poético, empregado no texto em questão, como forma de
testificar Juancito Caminador como um intento tuñoneano de se tornar
eternizado em seus versos poéticos, na forma como gostaria de ser
reconhecido pelos futuros leitores de sua obra.
Os problemas sociais e políticos sempre estiveram no centro da ação e
da reflexão de González Tuñón, assim como também a consciência de que a
poesia deveria acompanhar os processos históricos. Apesar de possuir livros
premiados, de integrar vários movimentos de suma importância na arte literária
e de ter convivido com grandes nomes da literatura mundial, como Pablo
Neruda, Jorge Luis Borges, Federico García Lorca e Miguel Hernández, suas
poesias, até bem pouco tempo, eram pouco divulgadas. Talvez tanto
esquecimento não seja casual, em se tratando de alguém cuja voz política se
deixou escutar muito longe dos círculos oficiais. Por convicção e eleição
própria, sua conduta foi transgressora do poder instituído e, por isso, ficou à
margem. Seus poemas retratam essa marginalidade.
Em uma entrevista ao escritor e crítico argentino Horacio Salas,
González Tuñón elege seus livros prediletos, El violín del diablo, 1926; La calle
del agujero en la media, 1930 e La rosa blindada, 1936. O primeiro relata suas
andanças juvenis no porto, nos subúrbios, no baixo mundo portenho, tema de
toda obra, onde descreve como ninguém esse lado marginalizado de Buenos
26
Aires, como os cafetões e os cabarés de marinheiros, prostitutas, ladrões e
canalhas; o segundo, aduz ao deslumbramento que Paris lhe causou com suas
mulheres, esquinas, bares e boemia; o terceiro, um livro que reúne algumas
ideias políticas da época, González Tuñón se converte em ante-sala da
sangrenta Guerra Civil espanhola.
Percebemos que Raúl González Tuñón não se acovardava perante o
sistema político e que nunca deixou de cantar a alma humana em seus versos.
O autor considerava pertinentes todas as formas de expressão e todos os tipos
temáticos, sua única preocupação era que respeitassem o desejo primeiro do
espírito humano, a fidelidade ideológica. Afirma González Tuñón em seu
autorretrato (1997:42) “Para mí todas las formas, todos los temas son válidos.
Lo importante es que respondan a un impulso auténtico”.
Rául González Tuñón não tinha problemas em ser considerado pouco
rebuscado, pelo contrário, gostava disso. Segundo o autor (1997:42), “um
poeta popular puede devenir poeta culto, pero difícilmente a la inversa”. Para o
autor, mais importante que se enclausurar em uma biblioteca, é ir para a rua e
vivenciar a cidade, beber o conhecimento que ela oferece, desfrutar do seu
prazer, entregar-se à urbe e permitir o embriagar-se dela, para assim retratá-la
de forma fiel e sensível.
O objetivo de González Tuñón, durante sua caminhada em busca da
forma perfeita entre vida e ofício, era fazer-se entender, levar para o outro sua
beleza poética. Cantar o amor e a vida. Doar-se em verso e prosa. Entregar
sua alma à sua lírica...
27
O INÍCIO DA CAMINHADA
A VANGUARDA ARGENTINA E RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN
28
1. O PASSEIO DA POESIA PELA MODERNIDADE: AS
VANGUARDAS ARGENTINAS
llí estaba la gente de Florida, que
representaba una inquietud, la
búsqueda de nuevas formas expresivas.
[…] Igualmente respetable era la
inquietud social del grupo Boedo. Ambos
son dos grupos interesantes de la
pequeña historia literaria porteña.
A
Raúl González Tuñón
29
O INÍCIO DA CAMINHADA
A VANGUARDA ARGENTINA E RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN
1 – O passeio da poesia pela modernidade: As Vanguardas Argentinas
Durante o início do século XX, o movimento vanguardista se associou
diretamente ao Modernismo Hispano-Americano do final do século XIX, que
teve como expoente o escritor nicaraguense Rubén Darío. Escritores de ambos
os períodos apresentavam-se como homens do novo século, declarando uma
literatura fruto de um presente histórico, marcado por intensas transformações,
e negando toda uma estética tradicionalmente denominada como padrão e
emblema da elite. Inaugura-se um novo tempo, um novo pensamento se forma;
agora, o momento é de Modernidade. Enunciada através de um dualismo
incessante, ora tradicional ora revolucionária, essa nova perspectiva passa não
somente a surpreender e extasiar, mas também a negar movimentos artísticoculturais anteriores aos seus, iniciando, desta forma, o que Octavio Paz
(1989:17) escritor, poeta e critico mexicano, chamou de “tradição da ruptura”.
Autor de inúmeros livros, Octavio Paz é referência quando se trata do
conceito de modernidade. Em La otra voz, ele afirma que a modernidade
“começa como uma crítica à religião, à filosofia, à moral, ao direito, à história, à
economia e à política. A crítica é sua principal marca distintiva” (PAZ, 1990:32
T.A). Com a modernidade, as artes passaram a ser críticas de si mesmas, a
pensar e serem repensadas enquanto participantes da crítica do mundo. As
polêmicas ideias nascidas da crítica como a democracia, a separação entre a
Igreja e o Estado, o desaparecimento dos privilégios da nobreza, a liberdade de
crenças e opiniões, se difundiram rapidamente por quase todos os países
30
europeus e pelos Estados Unidos e foram por estes, compartilhadas. Contudo,
no final do século XIX, as grandes cidades de nossa civilização começam a
sofrer uma profunda crise que afetou tanto as instituições sociais, políticas e
econômicas como o sistema de crença e valores. Assim, o século XX se inicia
com essa crise da modernidade, caracterizada pela incerteza diante dos
valores e ideias que formaram a modernidade.
Em meio a esse contexto de modernidade, surgem as novas linguagens
artísticas, que agora priorizam a arte como reflexão. Outrora as artes tinham
como função a contemplação estética e eram destinadas às camadas mais
altas da sociedade. Com a modernidade, elas se resignificam, tornando-se
ação de uma coletividade. A nova poesia passa a representar o reflexo da
realidade e o poeta passa a ser o crítico do real, empenhando-se em registrar
por meio de sua linguagem artística “as descontinuidades e intermitências da
consciência e dos sentimentos humanos”. (PAZ, 1990:40-41. T.A.)
A poesia moderna tem como cerne a reflexão, fazer pensar e expressarse por meio da harmonização das palavras, construindo a noção de revolução.
Assim para Paz (1990:60), a nova poesia passa a unir-se à ideia de revolução
e esta transforma-se no “mito central da modernidade”. A revolução, agindo
como ruptura, como crítica aos valores tradicionais, propicia ao poeta estar em
consonância com sua época. Para Raúl González Tuñón, o poeta deve sempre
estar comprometido com o momento no qual se vive, por isso para ele a poesia
deve expressar “el encuentro de la armonía con su tiempo” (1976:10)
A poesia de González Tuñón expressa liberdade formal, audácia,
imaginação, as quais são também reveladoras de uma poesia em ação, enfim
31
de uma poesia revolucionária. Em seu único livro teórico La literatura
resplandeciente, o poeta tece o que para ele significa a poesia (1976: 141):
La poesía es una e indivisible. El poeta que dice:
“Esto que hago es circunstancial, para cumplir con
mi tiempo; en cambio, debo cuidar la poesía mía,
íntima...” es un divagador, un farsante.
El verso ¿cómo? ¿De acuerdo a las rígidas
preceptivas? ¿En total desacuerdo? El verso libre,
mejor. La rima, si viene y sin abusar de ella. ¿El
soneto? Una cosa linda, restringida. Lo hicieron
muy bien los italianos y sus geniales imitadores
españoles. Creemos que no los han superado. ¿El
soneto? Un cofre. ¡Hay que poner muchas cosas
adentro!
Mejor
desbordarse,
inundarse,
deparramarse (aunque no tanto).
El hecho de que rechacemos una poesía
ultradesquiciada –en general malas copias de
viejas experiencias- no justifica a los campeones
del sonsonete. Poetas hay que merecen el elogio
de los críticos parroquiales porque publican libros
llamados diáfanos y de rimas fáciles. Ni unos ni
otros. Ni los ultradesquiciados de trivial
conformismo en el fondo, ni los que se sujetan a
las preceptivas baratas y jamás rompieron el vidrio
de la ventana de una academia... (GONZÁLEZ
TUÑÓN, 1976:141).
Desta forma, González Tuñón reafirma sua crença em uma poesia que
provoque a crítica no outro, que cause uma revolução com suas formas e
conteúdos e que possibilite a inovação do ato de criação, enfim uma poesia
que esteja dirigida a re-invenção de um mundo através da palavra e da
reflexão.
Ao olhar o objeto, apreendemos dele um significado e o retemos em
nosso íntimo particular. A poesia enquanto objeto permite-nos pensar e
processar seus vocábulos a partir de associações imagísticas. Segundo Paz
(1990:136. T.A.) “Ela é a memória feita imagem e a imagem transformada em
voz [...] e essa voz é a voz do homem que está adormecido no fundo de cada
homem”. A poesia exercita nossa imaginação e assim nos ensina a reconhecer
as diferenças e a descobrir as semelhanças, pois só ela é capaz de trazer à
32
tona essa imagem singular que grita no silêncio. Só ela possibilita libertar
nossos sentidos da percepção original.
Segundo Octavio Paz (1990:49. T.A.) “a poesia moderna, desde seu
nascimento, foi simultânea afirmação e negação da modernidade”. Por meio
dessa negação e afirmação, a poesia moderna construiu seus alicerces e
fomentou o surgimento de inúmeros movimentos artístico-literários tanto na
Europa quanto na América Hispânica.
A partir do século XX novas expressões artísticas irrompem na América
Latina, ocasionando uma divergência entre o Modernismo Hispano-americano
e o ressoar dos primórdios do que viria a ser o movimento das Vanguardas,
que inovadoramente marcaram as tendências artística-literárias dos anos 20.
De um lado, o grupo dos pós-modernistas, que primava pela simplicidade lírica,
pela musicalidade e condenava o prosaísmo sentimental; do outro lado,
estavam os mais radicais, os vanguardistas, que, adeptos da ruptura e da
renovação da arte até suas últimas possibilidades, buscavam a liberdade
artística, exaltavam a plasticidade e a espacialidade dessa nova estética: a
Vanguarda. (In: GUBERMAN, 2009:27)
O termo vanguarda origina-se do francês avant-garde, que se refere, no
contexto militar, a todo deslocamento de uma força que vai para frente do
restante em ação ou ataque. Essa palavra já era utilizada no século XIX para
se referir às tendências progressistas da época. A primeira menção registrada
encontra-se no ensaio de O. Rodrigues, L’artiste, le savant et l’industriel (1825),
porém sua abrangência ao conjunto de movimentos artísticos, que inovou o
século XX, só acontece a partir do período bélico. Por isso, foi amplamente
33
utilizada para definir o período artístico e literário que antecedeu a Primeira
Guerra Mundial e inovou a época de entreguerras.
A Vanguarda surge na Espanha diante de um cenário político e social
decadente,
estabelecido
pela
crise de
1898.
O primeiro
movimento
vanguardista na Espanha foi inaugurado por Ramón Gómez de la Serna ao
publicar El concepto de la nueva literatura em 1908. Em meio ao conceito de
Gómez de la Serna, também se desenvolveu o Ultraísmo em 1918. Este
aspirava a uma arte liberada dos empecilhos da razão, uma literatura que
funcionasse como um jogo disparado e afortunado, sem regras que limitassem
a imaginação do poeta.
Na América Hispânica, a vanguarda poética surge durante a Primeira
Guerra Mundial (1914-1918) e a Revolução Mexicana (1910), porém, nesse
início de movimento, os poetas parecem ignorar esses dois grandes conflitos
políticos, detêm-se na estética e decidem avançar na linguagem através da
metáfora, que será a grande fonte de inspiração desses escritores.
Como já dito, o movimento de vanguardas marcou as novas tendências
artísticas do século XX. Esse movimento primava pela plasticidade e pela
espacialidade. Como uma crítica aos valores tradicionais do Modernismo de
Rubén Darío1, o início do século XX representou um período de profundas
mudanças na história literária e artística tanto dos países hispano-americanos
como dos países europeus.
Os diversos movimentos de vanguarda, nascidos tanto em solo europeu,
quanto em solo hispano-americano apontavam para uma mesma direção: a
ruptura com o tradicional. Devido à pluralidade de tradições influenciadas por
1
Rubén Darío, poeta e prosador nicaragüense (1867-1916), foi o iniciador e o máximo representante do
Modernismo literário em língua espanhola, um estilo rico em musicalidade, que pretendia inovar a arte
poética.
34
diversos fatores (sociais, culturais, políticos, econômicos e tecnológicos), os
movimentos de vanguarda tiveram várias ramificações na Europa: Cubismo,
Expressionismo, Futurismo, Dadaísmo, Ultraísmo, Surrealismo. Na América
Hispânica, as vanguardas irrompem quase simultaneamente em diferentes
países,
embora
com distintas denominações (Criacionismo
no
Chile,
Estridentismo e Contemporâneos no México; Ultraísmo, Martínfierrismo e
Surrealismo na Argentina).
As vanguardas hispano-americanas podem ser divididas em duas fases.
A primeira com os movimentos Criacionista, Ultraísta e Estridentista, que
parecem culminar em 1926, quando se publica a antologia Indice de la nueva
poesía americana, que contribuirá para a segunda fase da vanguarda, o
Surrealismo.
O momento inaugural das vanguardas na América Hispânica teve
origem no Chile, em 1914, através da leitura do manifesto Non serviam, do
poeta chileno Vicente Huidobro. Os alicerces estéticos desse texto, que fundam
o Criacionismo, vinculados ao exercício da leitura pública, fazem dele o
primeiro exemplo daquilo que se postulou chamar de Vanguarda da América
Hispânica. Neste e em outros manifestos, surgem os principais conceitos
criacionistas de Huidobro, segundo Schwartz (1995:75): “uma arte autônoma e
antimimética”. Declara o manifesto (In: SCHWARTZ, 1995:203):
No he de ser tu esclavo, madre natura; seré tu
amo. Te servirás de mi; está bien. No quiero y no
puedo evitarlo; pero yo también me serviré de ti.
Yo tendré mis árboles que no serán como los
tuyos, tendré mis montañas, tendré mis ríos y mis
mares, tendré mi cielo y mis estrellas.2
2
Manifesto lido por Vicente Huidobro no Ateneo de Santiago do Chile, em 1914, e reproduzido em Jorge
Schwartz, Vanguarda Latino-Americanas, p.203.
35
Verifica-se nessa nova estética a busca pela verdadeira criação poética.
Huidobro exalta o poeta criador e condena o imitador. Dessa forma, Huidobro
expõe seu desejo de fazer uma poesia criada por si mesmo e, portanto,
diferente de toda a que já foi feita, ou seja, não quer imitar, mas sim criar uma
nova realidade. Ele mesmo afirma em seu poema, intitulado “Arte poética”
(1976): Por qué cantáis la rosa, ¡oh, Poetas! Hacedla florecer en el poema.
Com essas palavras, o autor sintetiza o Criacionismo, pois ele critica
nitidamente a ideia da arte como imitação da natureza.
A partir das acepções vanguardistas do Criacionismo, jovens escritores
espanhóis (Rafael Cansinos Assens, Guilhermo de Torres, etc) inovam
lançando em 1918 o primeiro manifesto Ultraísta, intitulado Ultra. Esse
manifesto também irá influenciar Jorge Luis Borges, que por estes anos se
fazia presente na Espanha.
Segundo Guberman (2009:39), “é por intermédio de Jorge Luis Borges
que o movimento ultraísta adentra na América Hispânica, inicialmente na
Argentina, em 1921, com a publicação do manifesto Ultraísmo, na revista
Nosotros”. Este se caracterizava pelas seguintes propostas estéticas (In:
SCHWARTZ, 1995:109): 1) redução da lírica ao seu elemento primordial: a
metáfora.; 2) supressão das frases de recheio, dos nexos e dos adjetivos
inúteis.; 3) abolição dos trabalhos ornamentais, do confessionalismo, da
circunstanciação, das prédicas e da nebulosidade rebuscada.; 4) síntese de
duas ou mais imagens em uma, ampliando desse modo a sua faculdade de
sugestão.
A entrada oficial da Argentina no conturbado mundo da vanguarda
ocorre também com a publicação (em 1921 e 1922) dos dois números da
36
revista mural Prisma, afixados nos muros de Buenos Aires, da revista Proa e
dos livros Veinte Poemas para ser Leídos en el Tranvía (1922), de Oliverio
Girondo, e Fervor de Buenos Aires (1923), de Jorge Luis Borges que, após
tantos anos no exterior, redescobre sua cidade natal e, influenciado por esse
fato, publica seu primeiro livro de poemas, Fervor de Buenos Aires, no qual se
verifica a influência da estética ultraísta. Seu estusiasmo pelo movimento
Ultraísta espanhol foi, segundo Schwartz (1995:105), o “catalisador na
formação da vanguarda Argentina”.
O momento político que a Argentina presenciava era propício às
transformações. Em 1926, com sua eleição à presidência da República,
Hipólito Yrigoyen consegue abalar as forças oligárquicas e principia um
governo de reformas sociais que concederá à classe média almejar, pela
primeira vez, a possibilidade de uma real participação na vida nacional. O
governo de Yrigoyen também foi caracterizado, no ano de 1918, por uma
respeitável reforma universitária, que provocou a mudança do sistema
educacional argentino e ressoou por toda América Latina. Do mesmo modo, o
pós-guerra e a Revolução Russa trouxeram grande influência ideológica para
os intelectuais e para a constituição do gosto literário.
A partir de 1922, toda ebulição intelectual argentina desencadeia uma
explosão de manifestos, editoriais, folhetos e, principalmente, revistas. Tais
instrumentos propiciaram maior dinamismo ao espírito de ruptura dos grupos
vanguardistas. Nessa década, a Argentina presenciou o surgimento de oitenta
e três novas revistas. Toda essa variedade multiforme refletia as polarizações e
as tendências que não demoraram a se apresentar. São exemplos os binômios
37
nacional/cosmopolita e poesia pura/poesia engajada, que determinaram os
perfis ideológicos das revistas.
Após Prisma, a primeira dessas revistas foi Proa, organizada em sua
primeira fase (1922-1923) por Borges, Eduardo González Lanuza e Francisco
Piñero. Se Prisma e Proa foram as precursoras das revistas de vanguarda, foi
com Martín Fierro (1924-1927) que o movimento de fato se consolidou na
Argentina.
Além dos manifestos, muitas dessas revistas eram dirigidas por Oliverio
Girondo e Jorge Luis Borges. Segundo Óscar Collazos (1977), “em 1924 o
Ultraísmo chegou a seu ápice”. Borges e outros escritores retomam a revista
Proa na sua 2ª etapa; enquanto isso surge a publicação mais revolucionária da
vanguarda argentina: a Revista Martín Fierro dirigida por Evar Méndez e
Oliverio Girondo como mentor intelectual. Essa revista, que já existia desde
1904, dirigida por Alberto Ghiraldo, e apresentava tendências anarquistas, foi a
mais representativa da vanguarda portenha, devido à sua íntima relação com
as propostas revolucionárias de inovação total da arte, bem como pelo caráter
polêmico que matizava a revista. De acordo com Evar Méndez,
MARTÍN FIERRO aparece quase exclusivamente
como um jornal de poetas, e em suas páginas
registrou-se o mais fiel reflexo do movimento
literário de nossa juventude durante os últimos
anos, no que havia de mais vivente e moderno e
mais vinculado com a poesia, e precisamente a
nova poesia. (In: OSORIO, 1988:232).
Segundo Jorge Schwartz (1995:105), o impacto das informações das
novas tendências e o caráter polêmico dos temas apresentados definiram
Martín Fierro como um divisor de águas na cultura argentina. A revista possuía
38
uma função crítica, criadora e informativa, o que significou um abandono quase
total dos critérios tradicionais.
Oliverio Girondo, principal representante do movimento martinfierrista,
como se assumisse o papel de anunciador da nova estética portenha, escreve
o Manifesto Martín Fierro, publicado pela primeira vez no quarto número da
revista, em 15 de maio de 1924. Nesse manifesto, Girondo condena a arte
mimética e afirma que existe a capacidade de cada um criar sua verdadeira e
única arte:
Diante do mimetismo que eles demonstram...
Diante da incapacidade de contemplar a vida sem
escalar as estantes das bibliotecas… Martín Fierro
tem fé em nossa fonética, em nossa visão, em
nossas maneiras, em nosso ouvido, em nossa
capacidade digestiva e de assimilação. (In:
SCHWARTZ, 1995:115-116).
O nome Martín Fierro recobra a obra do escritor argentino José
Hernández, poema épico que canta o regionalismo portenho sob a figura do
gaucho Martín Fierro, ídolo da raça argentina e símbolo das riquezas
tradicionais provenientes de seu país. Ao contrário de Hernández, contudo, os
representantes da Martín Fierro não intencionavam transformar a revista num
protagonista contemporâneo de um exasperado nacionalismo portenho,
conforme os escritores românticos do século XIX, tão pouco outorgar tal tema
como lema de sua geração, recusa claramente explícita em seu manifesto (In:
SCHWARTZ, 1995:115) “Diante da ridícula necessidade de fundamentar o
nosso nacionalismo intelectual, insuflando valores falsos que à primeira
alfinetada murcham como porquinhos”. O intento dos martinfierristas era o de
contribuir na propagação da arte universal com o que se tinha de mais
39
nacional: a forma de expressão e o discurso argentino. Logo, a eleição do
nome, mais do que reportar a todo esse espírito moderno de construção e
afirmação da identidade nacional, se originou para exprimir que a voz, da qual
se utilizariam suas páginas, era genuinamente argentina.
Dentre todas as polêmicas contidas em suas páginas, destacam-se os
confrontos entre os grupos literários Boedo e Florida, pólos antagônicos da
intelectualidade argentina. Esses grupos surgiram de uma grande bipolarização
intelectual formada em Buenos Aires no inicio do século XX: de um lado, o
grupo popular Boedo, representado por escritores de acentuado localismo e
com propostas literárias socializantes; do outro, o grupo elitista Florida,
representado por escritores de exacerbado cosmopolitismo e favoráveis a uma
aproximação entre a Argentina e os mais importantes centros intelectuais e
culturais da Europa.
Florida e Boedo nomeiam ruas de Buenos Aires, localidades com
características sociais totalmente díspares. A primeira é uma das vias mais
importante da capital argentina, localizada numa região elegante e comercial; a
outra se localiza nos arredores da capital, nos subúrbios onde os habitantes
são na maioria imigrantes e proletários.
Apesar da acepção das duas correntes ser pouco precisa e a distinção
entre ambas por vezes confusa, elas estão bem representadas. Do lado de
Florida estão os martinfierristas, como: Oliveiro Girondo, Eduardo González
Lanuza, Evar Méndez, Jorge Luis Borges, etc, todos reunidos ao redor de uma
série de publicações que abrange desde a folha mural Prisma e as revistas
Proa (1ª e 2ª fases) até, sobretudo, a Martín Fierro (2ª fase). Esta foi a mais
cosmopolita e renovadora das revistas argentinas do período. Em suas
40
páginas, seus organizadores primavam pela incondicional marca da nova
estética artística, utilizando-se da ironia, do sarcasmo e do humor, aliados à
expressão metafórica ressaltada, principalmente, nas poesias.
No lado oposto, empenhados na literatura como meio apropriado de
refletir e alterar os rumos da sociedade, estão Roberto Mariane, Leonidas
Barletta, Álvaro Yunque e os irmãos Tuñón. Seus modelos são o realismonaturalismo, a literatura russa e a revista Clarté. Seu entusiasmo está na
narrativa comprometida com a realidade, que procura descrever um mundo
recém-saído do caos da Primeira Guerra Mundial e que tem na Revolução
Russa um modelo de evolução social. O grupo possui como instrumento de
comunicação cultural as revistas Renovación, Los Pensadores, Claridad e La
Campana de Palo.
Para Jorge Schwartz (1995), apesar da polêmica entre os dois grupos,
existem autores que não pertencem a nenhum dos grupos e são de difícil
classificação, como Roberto Arlt, ou aqueles que participaram em revistas de
ambos os grupos, como Álvaro Yunque, representante de Boedo, que escreveu
para Proa, ou Rául González Tuñón, para Martín Fierro. Contudo, poderíamos
afirmar que Raúl González Tuñón compartilhava mais da estética do grupo
Florida, pois utilizava amplamente a ironia, o humor e o sarcasmo na maioria
das construções metafóricas de seus versos líricos. No entanto, por sua
condição social, localista e até ideológica defendia também uma literatura
provocadora da reflexão, que fosse capaz de mudar os rumos da sociedade
através do emprego da realidade como meio de evolução social. Daí, ele
mesmo afirmar em seu autorretrato (1997) que o homem deveria estar
comprometido com seu tempo, que sua arte deveria acompanhar e retratar os
41
acontecimentos mundiais. Por isso mesmo, o título de uma de suas antologias
poéticas,
Diálogo
del hombre
con
su
tiempo
(1965),
representa
o
comprometimento de González Tuñón com sua época.
Boedo e Florida discutiam também sobre a preocupação com o idioma
espanhol, ou melhor, com a língua “argentina”. Esta contestação tem sua raiz
no século XIX, acendida pelas tendências nacionalistas dos anos 20. “A Martín
Fierro tem fé em nossa fonética”, afirma Oliverio Girondo no Manifesto Martín
Fierro. Já os autores boedistas consideram imprescindível agregar à língua
literária as influências do enorme contingente de imigrantes dos anos 20 e
protestam contra a maneira como são classificados pelo grupo Florida, que os
define (In: SCHWARTZ, 1992:15) “filhos da espanholada, da italianada, da
russalhada, que escrevem mal, sem estilo porque escrevem como ouvem falar
nas ruas”. A procedência de ordem social do conflito entre Boedo e Florida
reflete de forma clara, no sistema dos sons articulados, tais crenças
diferenciadas.
Outra polêmica ocasionada pela Martín Fierro foi a repercussão dada ao
artigo intitulado “Madrid, meridiano intelectual de Hispanoamérica”, publicado
no jornal madrilenho La Gaceta Literaria (abril de 1927), no qual o escritor
Guillermo de Torre, integrante do Ultraísmo espanhol e colaborador de várias
revistas de vanguarda latino-americana, critica a influência francesa e italiana
na cultura hispano-americana, enaltecendo o eixo Madri–América Hispânica
como o único intercâmbio possível entre seus antigos colonizados. Vejamos o
trecho extraído do livro de Jorge Schwartz (1992:103):
Pois chegou o momento de manifestar claramente
o nosso critério. Não podemos mais contemplar
com indiferença essa constante captação latinista
42
das juventudes de fala espanhola, esse desfile
enorme de estudantes, escritores e artistas em
direção à França e Itália, elegendo tais países
como centro de suas atividades (sem ao menos se
dignarem tocar num ponto espanhol) ou
considerando nosso país campo de turismo
pitoresco. Daí então a necessidade urgente de
propor e exaltar Madri como o meridiano
intelectual da Hispano-América. A nosso ver, as
novas gerações de estudantes e intelectuais
deveriam romper a corrente equivocada de seus
antepassados, aprestando-se a penetrar na
atmosfera intelectual da Espanha, certos de que
aqui podem encontrar não apenas uma acolhida
cordial mas até mesmo uma atenção autêntica –
mais desinteressada e eficaz do que a que
encontram em Paris, por exemplo, representada
por meia dúzia de hábeis aproveitadores do
latinismo.
Em meio a esta declaração desafortunada e preconceituosa, ocorre uma
indignação geral na América Latina, que apesar de desejosa pela inovação da
arte, possuía uma forte consciência patriótica. Logo, coube a Jorge Luis Borges
a publicação em Martín Fierro de um protesto ardente e anticolonialista,
denominado “Madri, ¿meridiano intelectual de Hispanoamérica? Sobre el
meridiano de una gaceta”, publicado no número 42 da revista Martín Fierro de
10 de julho de 1927. Vejamos um trecho extraído de Jorge Schwartz
(1992:105):
A sediciosa nova geração espanhola nos convida
a estabelecer em Madri (!) o meridiano intelectual
desta América. Todos os motivos nos incitam a
recusar com entusiasmo o convite. Hei de opinar
numa só página de caderno; não os esgotarei.
[...]
P.S. Não quero ser indigno de minhas lembranças
nem pretendo me fazer forasteiro nas que sei
guardar de Madri; mas o momento não é de
salamaleques, é de verdades.
Borges, assim como todos os representantes da intelectualidade
argentina, não tinha a intenção de eliminar a cultura espanhola das tradições
43
portenhas, tão pouco menosprezá-la, mas jamais se condenaria a um
colonialismo indireto conforme o pretendido por Torre. Já afirmavam os
martinfierristas em 1924, em seu manifesto (In: SCHWARTZ, 1995:116):
“MARTÍN FIERRO acredita na importância da contribuição intelectual da
América, prévia tesourada a todo cordão umbilical”.
Está claro que o manifesto Martín Fierro representou a consolidação do
movimento vanguardista argentino, e que a questão do caráter nacional
suscitada na literatura deu inicio a um debate permanente nas letras latinoamericanas; entretanto, por motivos políticos a revista deixa de circular em
1927.
A incessante busca por romper com os antigos conceitos e tradicionais
formas artísticas do Romantismo do século XIX foi a força motriz que
impulsionou os pensadores e intelectuais desde o Modernismo de 1880 até as
Vanguardas do século XX. Essa ideia de ruptura empregada como objetivo de
renovação da arte foi a norteadora da trajetória artística hispano-americana
desde José Martí até Jorge Luis Borges. Nomes como Rubén Darío, Oliveiro
Girondo, Evar Méndez, Vicente Huidobro e Raúl González Tuñón também
devem ser recordados como importantes defensores da expressão da
modernidade e realizadores das grandes rupturas e novas fundações artísticoliterárias do início do século XX.
Enfim, a Modernidade, período de negação e inovação, refletia no
homem a angústia diante da incerteza de se entregar a uma nova vida
estabelecida nos padrões de uma ideologia revolucionária. O medo do
desconhecido, de não saber aonde todas essas mudanças chegariam ou o que
poderiam ocasionar, fizera aflorar no homem um sentimento de insegurança. O
44
progresso avassalador, que destruía tudo a sua volta em favor da
modernidade, determinou a ideologia do inicio do século XX e propiciou o
surgimento da nostalgia, sentimento corrente em muitas obras poéticas.
45
2. O CAMINHAR CITADINO DE UM POETA...
Y
O que anduve y anduve
sé cuán emocionante es partir y
volver
en los años fecundos de aventura y de
lucha.
“Ivonne de Galais” - Raúl González Tuñón
46
2 – O caminhar citadino de um poeta...
Ah, yo te enseñaré a sentir, a caminar, a cantar a la ciudad.
Raúl González Tuñón
2.1- Em Buenos Aires
Sabe-se que a biografia utilizada como a única maneira de valorizar a
obra de um autor não é pertinente muito menos adequada. Entretanto, para o
estudo da poesia de Raúl González Tuñón, a relação existente entre a vida e a
obra pode permitir uma leitura mais elucidativa, já que o conhecimento da
biografia proporciona o entendimento de certas alusões em seus poemas.
González Tuñón nasceu em 29 de março de 1905 na rua Saavedra 614,
do bairro do Once, em Buenos Aires, Argentina. Foi o sexto de sete irmãos de
uma família de imigrantes espanhóis. Junto a sua família também viviam seus
avós maternos e duas tias.
Certa vez o autor expressou, em entrevista ao escritor argentino Horacio
Salas (entrevista que deu origem a um livro), um resumo de sua vida, rico em
detalhes, anedotas e opiniões, que formam “o outro lado” de seus poemas. Ou
seja, comentou sobre as pessoas, os acontecimentos e os lugares que o
estimularam a transformá-los em matéria poética. Entre todas as recordações,
provavelmente as que são mais significativas e que o próprio autor declarou
como decisivas em sua trajetória poética são as referências a seus dois avôs:
Mirá, creo que el hecho de haber nacido oyendo
los pitazos de una estación de ferrocarril, el haber
ido todos los domingos durante mi infancia al
puerto a comer pescaditos fritos con mi abuelo
Manuel Tuñón, y las historias que me contaba mi
47
padre sobre mi otro abuelo, el imaginero,
incidieron en mi vida extraordinariamente. Porque
mi amor por los puertos y el vagabundaje y los
viajes me vienen de ahí. Y en mi sangre y en mi
poesía siguen presentes. El imaginero, que es
Juancito Caminador,[...]. Y el poeta social, que
sería, de algún modo, Manuel Tuñón. (In:
Recordando a Tuñón, 1997:28).
Durante toda sua infância, o autor viveu junto a seu avô materno,
Manuel Tuñón, um mineiro asturiano que trabalhava como metalúrgico na
antiga casa Snockel - palavra corrente em seus poemas - e que era socialista
como o seu pai. González Tuñón atribui a esse avô sua filiação às causas
populares e políticas e, segundo ele, todo esse deslumbramento foi despertado
enquanto criança (In: ZANETTI, 1980/1986: 123): “yo tenía nueve años cuando
mi abuelo me llevó por primera vez a una manifestación. Yo estaba fascinado”.
Essa diferenciação entre seus dois avôs inaugura as duas vertentes de
sua obra, que a crítica tratou de caracterizar, como poeta lírico e poeta social.
E o próprio autor afirma (In: ZANETTI, 1980/1986: 123): “en mí coexisten las
dos constantes que existen en mi obra y en mi vida: la poesía como diálogo del
hombre con su tiempo y como aventura total del espíritu, continúan
configurando nuestra actitud, al margen de todo sectarismo”. O percurso de
González Tuñón pode ser identificado por quatro vocábulos: jornalista, viajante,
poeta e militante (do partido Comunista).
Raúl González Tuñón está longe de ser um poeta imêmore no contexto
da
literatura
argentina,
entretanto,
sua obra
é pouco divulgada.
O
reconhecimento que se realiza de sua produção geralmente não provem da
crítica oficial. Por todos os motivos, esta situação um tanto quanto marginal é a
que dificulta sua inclusão nos grupos Florida ou Boedo, cuja vinculação a um
ou a outro permanece ambígua. Ao percorrer os textos sobre a polêmica, seria
48
simples elaborar uma lista de autores que o situasse em um ou outro grupo.
Para se estabelecer conexões entre Florida ou Boedo, deve-se considerar os
poemas de El violín del diablo e Miércoles de Ceniza, que foram produzidos
durante o período em que os grupos disputavam o cenário literário.
Dos mais de vinte e cinco publicados por González Tuñón, é mínima a
proporção que se poderia vincular à discussão. Sua maior produção se une à
outros acontecimentos literários e/ou políticos.
Considerando as inúmeras
declarações do próprio autor, torna-se notória sua filiação aos Martínfierristas.
Compartilha com eles o interesse pela pratica poética, a ruptura contra todo
academicismo, especialmente contra os clichês modernistas sustentados pela
literatura oficial, a valorização da imagem e da metáfora, a atitude lúdica, o
exercício do verso livre e o aparente abandono da rima. A estes elementos
poder-se-ia somar a atração que exerciam as correntes européias de ruptura
nesses jovens. A maioria destes participava da redação de Martín Fierro e
pertencia a famílias da oligarquia ou relacionadas a ela, enquanto González
Tuñón, filho de imigrantes espanhóis, era vinculado ao proletariado urbano.
Além de sua atividade de jornalista, mantinha com a cidade, com seu povo,
com sua língua, outra relação. Essa procedência, essa atenção com
personagens marginais e carentes, certamente foi uma das causas que o levou
a imprimir outro rumo a sua produção.
No grupo Boedo, González Tuñón afirmou ter bons amigos, com os
quais compartilhou encontros de café e com os que chegou a colaborar na
revista boedista Conducta, somente em 1942, quando já tinha terminado a
disputa. As atividades sociais e políticas sempre estiveram no cerne de sua
ponderação, assim como a consciência de que a poesia deveria acompanhar
49
as evoluções históricas; por isso, não é incoerente que o tenham associado ao
grupo Boedo.
Tanto sua atividade poética quanto seu trabalho como jornalista
começam quase que concomitantemente entre 1922 e 1925. Seu primeiro
poema foi publicado em Caras y Caretas3. Após essa publicação colabora nas
revistas Inicial e Proa e, por fim, integra ativamente a redação de Martín Fierro.
A partir de 1925 inicia efetivamente seu trabalho no periódico Crítica e,
depois em La Nación, El Hogar, Mundo Argentino e, em 1948, no Clarín. De
todas essas publicações foi no diário Crítica que sua carreira jornalística
começou, pois foi onde o autor registrou suas mais relevantes recordações.
Com uma aguçada percepção, seu diretor, Botana4, logo percebeu o espírito
aventureiro e livre de González Tuñón, afirmando: “Este Raúl [...] es un pajáro y
hay que tratar de tenerlo siempre afuera”. Esta precisa observação de Botana
permitiu que o poeta viajasse, como correspondente do diário, a Tucumán
(1927), Brasil (1931), Chaco paraguaio durante a guerra em 1932, Patagônia
(1933). Suas vivências nesses lugares serviram de estímulo para sua produção
poética.
Seu primeiro livro, El violín del diablo, surge em 1926 graças a seu irmão
Enrique, também escritor, que tinha enviado os originais a um concurso
organizado por Manuel Gleizer5 para jovens escritores. O livro ganha o
3
Foi um semanário argentino publicado entre os anos de 1898 a 1941. Foi fundado por Eustaquio
Pellicer e foi extremamente popular, sobretudo na primeira época dirigido por José Sixto Álvarez. Em seu
desenho destacavam-se as imagens de grande qualidade e em seus textos combinava o humor com o
jornalismo mais comprometido, que acompanhou a construção da Argentina moderna e deu conta dos
fenômenos políticos, sociais e culturais que atravessaram o país.
4
Natalio Félix Botana Millares, empresário jornalístico uruguaio radicado em Buenos Aires, nasceu em 8
de setembro de 1888 e morreu em 7 de agosto de 1941 em um acidente de carro. O jornalista uruguaio
fundou o diário Crítica em 15 de setembro de 1913. O Jornal possuía um tom sensacionalista e chegou a
ser um dos mais vendidos do país. Deixou de ser editado em 1962.
5
Nascido em 5 de junho de 1889, imigrante da Rússia, Manuel Gleizer chegou à Argentina por volta de
1900; foi camponês, vendedor ambulante e livreiro. Em 1918, com 29 anos, passa a viver no bairro Villa
50
concurso e como prêmio é publicado. Nessa obra, o poeta aborda os
submundos portenhos e a periferia, retratando ternamente essa Buenos Aires
de pensões, cafetões, cabarés, marinheiros, prostitutas, ladrões e canalhas.
Livro de quarenta e nove poemas que descrevem suas perambulações juvenis
no porto, nos subúrbios e nos cortiços.
Em El violín del diablo encontra-se um poema escrito quando González
Tuñón tinha pouco mais de quinze anos, portanto, em 1920. Esta composição
poética, intitulada “Eche veinte centavos en la ranura”, é considerada pela
maioria dos críticos como a mais brilhante de seu início de carreira. Nesse
poema o autor evoca a zona portuária de Buenos Aires, onde com intensa
atividade diurna e noturna existiam insólitos estabelecimentos, nos quais
abundavam salões de novidades: no hall se encontravam máquinas, em que ao
se colocar a moeda de vinte centavos e girar uma manivela, viam-se paisagens
de países distantes, que despertavam o sonho de viajar, fotografias de artistas
e postais um tanto quanto pornográficos. Foi esse clima alucinante, como
afirma o escritor, que o inspirou a escrever o poema:
Fui al Paseo de Julio muchas veces y un día ya
me deslumbró, me emocionó totalmente. Fue Eche
veinte centavos en la ranura. En esos parques de
diversiones increíbles, surrealistas antes del
surrealismo, había de todo. […] Salí totalmente
fascinado. Había una cantina muy atorranta y
simpatiquísima y allí me metí para reunir esos
elementos que me habían impresionado. Era un
repentista. (In: Recordando a Tuñón, 1997:32).
Com essa declaração e esse poema, Raúl González Tuñón antecipa o
Surrealismo, como também ocorreu com o poeta peruano César Vallejo. A obra
Crespo. Após três anos de compra e venda de livros, Gleizer abre pela primeira vez as portas de sua
livraria, La Cultura. Em 1922 fundou uma editora que entrou para a história por marcar o rumo da
literatura argentina dos anos vinte. Manuel Gleizer, grande impulsor das letras argentinas, morreu em 3 de
março de 1966.
51
abarca descrições do mundo marginal: a mulher mais gorda do mundo, o anão,
as tristezas do circo, os portos… O grotesco, a paródia gestual de um mundo
desprezado, que encantou a literatura da época, se opõem aos salões
resplandecentes da belle époque. Essa temática social cujos reflexos
contemporizaram o período de entre-guerras marca o início poético de
González Tuñón e o seduz: o mundo canalha e menosprezado, que o poeta
vislumbra, torna-se envolvente.
O livro atinge um modesto êxito, Rául González Tuñón passa a ser
notado nos ambientes literários, atinge a redação do jornal Crítica, que, no
âmbito jornalístico, outorgava status de elite da modernidade a quem dele
participava.
Sobre El violín del diablo vale ressaltar a opinião de Macedonio
Fernández, quando o jurado que devia julgar os prêmios municipais à nova
geração, que esperava algum reconhecimento, considera o seguinte:
El violín [...] seguirá siendo lo que es: una realidad
poética de primera agua, un gran libro de un
notable poeta, henchido de belleza, de originalidad
y de gracia expresiva [...] Raúl González Tuñón,
con o sin el premio, es una de las figuras más
vigorosas de la nueva generación literaria. (In:
SALAS,
Cuadernos
Hispanoamericanos,
2005:111).
Segundo González Tuñón, essa espontaneidade e as inspirações com
que o mundo visível o presenteavam refletiram-se em seus livros posteriores.
Em contrapartida a atividade jornalística também o seduzia, já que a imprensa
argentina conheceu a maior liberdade de expressão do país entre os anos
1918 e 1930, o jornalismo possibilitava ao poeta estar atento às vivências e aos
problemas do país e do mundo.
52
Buenos Aires vivia um momento de apogeu do teatro nacional, do circo,
dos tangos, do jazz norte-americano. Os poetas, principalmente, González
Tuñón vivia com uma extraordinária intensidade e enaltecia a cidade, ao
mesmo tempo que cantava a alma do portenho. Foi por essa época que o
poeta se interessou pela composição musical, o tango, que, após ter sido
reconhecido no exterior, tinha retornado a seu país com um intenso glamour e
valorização. González Tuñón, que como Ricardo Güiraldes e Oliverio Girondo,
era um grande bailarino, não podia excluir-se do ar de época que pairava sobre
a cidade, onde os compassos das orquestras, bem como a voz de Carlos
Gardel, presenteavam as caminhadas noturnas dos escritores por esse espaço
citadino. Assim, decide escrever alguns tangos exaltando a urbe em constante
processo de transformação, embora também marcasse, em algumas canções,
a nostalgia do deslumbramento primário por essa capital.
Em 1928, Raúl González Tuñón ganha o Prêmio Municipal com seu
segundo livro Miércoles de Ceniza, obra que retrata suas experiências durante
o ano que percorreu a região argentina de La Rioja6. Nessa produção literária o
autor descobre o seu país, ou melhor, o interior de seu país e realiza um
reconhecimento de si próprio, bem como da história da Argentina. Com poucas
variações da obra anterior, o livro continua com a mesma temática, salvo a
incorporação do tango como tema protagônico de diversos poemas. Era
evidente: a música de Buenos Aires, depois de ter conquistado as capitais
6
La Rioja é uma cidade da Argentina e capital da Província de La Rioja. Está localizada na porção centrooriental da província. A cidade foi fundada, em 1591, pelo nobre espanhol Juan Ramírez de Veleasco, na época
governador da província de Tucumán, que batizou a nova cidade de “Todos los Santos de la Nueva Rioja”, em
homenagem à sua terra natal na Espanha. Em 20 de maio de 1591, foi instalada a prefeitura e traçou-se o tecido
urbano citadino. Por ter sido uma das primeiras cidades fundadas na região e devido ao isolamento geográfico,
até hoje, a localidade conserva características coloniais tanto da arquitetura quanto das antigas tradições.
53
européias, retorna com sua aura de triunfo, contribuindo para sua maior difusão
e popularidade.
Com o valor da premiação, González Tuñón convida seu grande amigo,
o também poeta Sixto Pondal Rios, a viajar para a Europa, mais precisamente
para Paris, em 1929. Da experiência vivida na capital francesa, frutificará o seu
terceiro livro La calle del agujero en la media (1930). Esta etapa da vida de
Tuñón será aclarada no próximo subcapítulo.
González Tuñón está diante de uma Buenos Aires em processo de
transfomação. Como jornalista se lança em direção aos espaços marginais,
onde estão as notícias interessantes, os desconhecidos, como ele afirma em
seu quarto livro El otro lado de la estrella (1934:151):
Conheço
desgraçados,
errantes,
seres
anacrônicos, traseiros cansados, rotos e levados a
lugares inimagináveis. O mundo das cidades
passa, indiferente, ao lado desses seres. As
cidades os tragam. Ninguém vê suas lágrimas,
nem ouve sua absurda linguagem, nem vê a surda
gargalhada que contrai seus rostos quando
explode a loucura, nem lê a simples nota policial
que fala de cadáveres encontrados no rio. Nossa
profissão, que é uma das mais amargas, sempre
nos colocou em contato com essa gente.(...) (Ibid,
In SARLO, 2010:282)
Logo, devido a seu ofício de jornalista, sua sensibilidade se direciona
para a percepção dos marginais sociais, do povo mais carente vítima das
transformações urbanas, dos limites da metrópole que cincunda o porto. Sua
cidade é a dos pobres, dos oprimidos, dos contraventores, dos marinheiros em
viagem, das prostitutas, das pessoas que estão à margem e que ninguém vê.
Desta forma, a poesia portenha ganha uma nova forma pictórica, diferente dos
costumbristas e da mitologia urbana que Borges estava inventando. Os
54
armazéns, o tango e o compradrio ainda são relatados em seus dois primeiros
livros, mas vão perdendo força devido à falta de referências às tradições, pois,
como se sabe, ele era filho de imgrantes espanhóis pobres, que foram viver em
um bairro carente das tradições locais.
Em Buenos Aires, próximo ao porto, proletários, estudantes e
desempregados ocuparam antigos imóveis criando a Villa Desocupación, e
González Tuñón foi designado pelo jornal a contar o que acontecia naquele
lugar. Figurando entre o povo, escreveu uma grande reportagem sobre essas
vidas, intitulada “La ciudad del hambre”. Também quando organizaram uma
passeata em protesto, González Tuñón esteve com eles enquanto a polícia
atirava e batia na população, que corria entre suas casas de papelão. Como
reação imediata, Raúl González Tuñón fundou na capital argentina, em 1933, a
revista Contra e publicou seu poema “Las brigadas del choque”, uma espécie
de arte poética e discurso ideológico, que define seu posicionamento contra a
burguesia e contra a guarda civil. Por causa desse poema é preso, solto após
pagar fiança e processado. Após esse acontecimento, viaja para Espanha e lá
tem conhecimento de sua sentença: dois anos de prisão condicional por
incitação à rebelião, o que gera, imediatamente, um manifesto de protesto
redigidos por seus companheiros. Assiste, em Paris, ao Primeiro Congresso de
Intelectuais para a Defesa da Cultura e retorna à Argentina. A revista
desaparece após a publicação de cinco números.
González Tuñón, quando esteve no Brasil, na revolução liderada por
Getúlio Vargas, escreveu quase todo seu quarto livro, El otro lado de la estrella,
que seria publicado anos mais tarde, em 1934. Por isso, o poeta não acreditava
na poética nacionalista e afirmou (In: Recordando a Tuñón, 1997: 33): “La
55
poesía es internacional, porque cuando más nacional es, más internacional se
torna”. Nesta obra, González Tuñón continua esta mesma fase de sua poesia:
o verso amplo que chega a se fundir com a prosa. Ainda escreve um dos seus
melhores poemas de amor, “Lluvia”, dedicado a sua primeira esposa Amparo
Mon: “Te quiero con toda la ternura de la lluvia. Te quiero con toda la furia de
la lluvia. Te quiero con todos los tambores de la lluvia. Te quiero con todos los
violines de la lluvia”.
Em 1935 publica seu quinto livro, Todos bailan, poemas de Juancito
Caminador, uma espécie de “personificação” do poeta, imaginado a partir de
uma etiqueta de whisky Johnnie Walker, onde se via uma personagem com
bastão e um chapéu caminhando pelo mundo. Certo de seu ofício como poeta,
González Tuñón canta agora não somente o amor e a vida descomprometida,
mas também os homens dispostos a uma atitude de solidariedade e de
combate. Seus poemas alertam para o clima de pré-guerra europeu, o apogeu
do jazz, os gangsters dos Estados Unidos, ou seja, já preparavam o leitor para
o advento de sua poesia social.
Após passar alguns anos na Espanha, o escritor regressa a sua pátria e
segue suas viagens pela América Latina. Viaja por Guadalupe, Martinica, Lima
e Valparaiso, onde permanece por algum tempo. Em 1940 morre sua primeira
esposa Amparo Mon, com quem havia se casado em 1935. Em 1941 publica
sua décima obra, Canciones del tercer frente, que reúne quatro livros: Himnos
y canciones, A nosotros, la poesía, Las calles y las islas e Los caprichos de
Juancito Caminador. O escritor dedica essa obra aos amigos que fez pelo
mundo, e nela segue a presença da personagem Juancito Caminador. Ainda
em 1941 se muda para o Chile onde vive até 1945. Na terra de Pablo Neruda
56
funda o diário El siglo, escrevendo duas colunas diárias, dando continuidade ao
seu estilo mordaz e irreverente. Enquanto isso, na Argentina de 1943, explode
a reforma populista com o governo peronista.
Ainda no Chile, em 1943, publicou Himno de pólvora, com poemas e
textos em prosa, cujo tema central trata dos feitos da guerra, e a belíssima
Elegía en la muerte de Miguel Hernández. Após o conflito bélico espanhol, sua
poesia será um entrelaçado, onde o social e o político se entrecruzarão com
uma atitude lírica gerida pela nostalgia e pela ternura. Afirma o poeta:
Creo que todo tiempo por venir será mejor. Creo,
sí, que en el tiempo pasado […] siempre hay algo
que fue mejor, entrañable, que es lo que merece
perdurar y forma la base sutil de ese sentimiento
tan puro que es la nostalgia. […] Creo que no es
uno el que se mete en la época, es la época la que
se mete en uno, con sus ráfagas puras e impuras.
(In: Recordando a Tuñón, 1997: 36)
Em terra chilenas, no ano de 1944, conhece uma outra mulher: Irma
Falcón, em um comitê de ajuda à França da Resistência. Apaixonam-se e
vivem juntos por cerca de um ano. Contudo dois anos após a implementação
da política populista da Argentina peronista, o poeta decide regressar a Buenos
Aires, em 1945, deixando Irma. Porém uma parte sua ficava no Chile: um ano
depois, 1946, nascia Aurora Amparo, sua filha.
Em 1945 publica seu Primer Canto Argentino. Essa composição poética
está estruturada em quatro partes, nas quais se alternam a história passada e
a presente, uma espécie de canto geral das lutas do povo argentino. É a etapa
de acentuação política na obra de González Tuñón, portanto, pode-se dizer
que o acento está colocado na poesia e que os sonhos, a vida cotidiana, a
magia são quase imperceptíveis perante seu discurso político.
57
No início dos anos cinqüenta, Raúl González Tuñón conhece outro amor
de sua vida: Nélida Rodríguez Márquez, que o acompanharia até sua morte.
Casa-se com ela, em 1952, e publica Hay alguien que está esperando. Nesse
livro, como os que se sucederão, o autor retoma o lirismo dos primeiros
poemas e recorda as pessoas queridas já ausentes.
Em Todos los hombres del mundo son hermanos (1954), o poeta volta a
buscar os objetos poéticos que o arrebataram no início de sua carreira. Desta
forma, reaparecem em seus poemas o bairro, o tango, o porto e sua vida
pessoal; embora nenhum desses elementos deixassem de ser aludidos em
suas composições, eles se encontravam mais discretos e menos evidentes.
A la sombra de los barrios amados (1957) constitui uma etapa de síntese
da poética tuñoneana, retomando os objetos e os lugares que o deslumbraram
quando jovem. Também escreve poemas em homenagem às pessoas com
quem vive ou viveu. Nessa fase sua poética, totalmente consolidada, reflete o
convívio harmonioso do poeta social com o poeta lírico.
A partir de então sua vida transcorre em pleno exercício poético.
Admirado pelos jovens poetas, surpresos com a sua generosidade, seu
tratamento sempre amável com os que se iniciam nessa profissão, um grupo
juvenil, próximo à estética de González Tuñón, formou uma aliança literária
chamada “El pan duro”, que funcionou do ano de 1955 a 1957. Desta coligação
surgirá o primeiro livro de Juan Gelman: Violín y otras cuestiones, em que
González Tuñón escreve o prólogo, e José Luis Mangieri criará a editora La
Rosa Blindada, na qual serão publicadas algumas das últimas produções de
Raúl González Tuñón.
58
Entre 1945 e o ano de sua morte, o escritor vive em Buenos Aires,
porém sua disposição para as viagens o leva em 1953, 1958 e 1971 a
participar de diferentes celebrações na União Soviética. Também viaja para La
Habana em 1963 onde forma o corpo de jurado de poesia para o Premio Casa
de las Américas. Na primeira dessas viagens, além de conhecer a União
Soviética, como integrante da primeira delegação cultural, visita Varsóvia,
Praga, Pequim e Shangai. Anos mais tarde viaja como convidado especial ao
Primeiro Congresso de Escritores de Ásia e da África, percorrendo ainda
Moscou, Estocolmo, Amsterdam e Genebra.
A ultima década de vida de Raúl González Tuñón foi intensamente
produtiva: Demanda contra el olvido (1963), Poemas para el atril de una
pianola (1965), Crónicas del país de nunca jamás (1965), El rumbo de las islas
perdidas (1969), La veleta y la antena (1969) e dois livros póstumos La
literatura resplandeciente (1976) e El banco en la plaza (1977).
Diferente dos seus outros livros, La literatura resplandeciente (1976) é
um texto teórico onde o autor desenvolve o conceito de “realismo romântico” ,
pois essa era a denominação que ele atribuía a sua estética literária. O termo
substantivo, e por isso central, é o do realismo ao que se acrescenta o
qualificativo romântico. Inverter a ordem seria alterar a proposta do poeta. Este
conceito parte da compreensão de que todo grande escritor reflete a sua época
e, portanto, é realista. Para fazê-lo, usa fatos cotidianos, situações da vida e os
transforma em linguagem literária, imprimindo a marca pessoal do autor. É uma
composição de vocábulos que remetem a uma época específica, porém
poderia ajustar-se a todas, inclusive a atual. Para González Tuñón houve
59
realistas românticos em todos os tempos. Ainda nesse livro, inclui várias
crônicas.
Raúl González Tuñón também chegou a produzir obras de teatro. No
total foram quatro: Reunión a medianoche (La casa de remate) em 1934, La
calle donde yace el corazón (El desconocido), escrita durante a década de
trinta, mas incluída em seu último volume, Dan tres vueltas y luego se van, em
colaboração com Nicolás Olivari em 1934 e La cueva caliente em 1957.
O escritor também produziu quatro antologias poéticas, uma delas
publicada pela editora Losada em 1974, Antologia poética de Raúl González
Tuñón; antes havia organizado: La luna con gatillo (1957), em dois volumes,
Diálogo del hombre con su tiempo (1965), seleção breve que inclui poemas
escritos entre os anos de 1925 e 1964; nesse mesmo ano, Poesía de Raúl
González Tuñón.
Em 1968 é premiado pela Fundación Argentina para la Poesía, com o
“Grand Premio de Honor”. Em 1970 lhe é outorgado um prêmio pela Fundación
Odol, que premiava, a cada dois anos, poetas novos e antigos da Argentina.
Em 1972 recebe o Grand Premio de Honor de la Sociedad Argentina de
Escritores (SADE). Na noite anterior a sua morte escreve seu último poema.
Estava por completar setenta anos e parte no dia 14 de agosto de 1974 para se
encontrar com Federico García Lorca, Miguel Hernández, Amparo Mon, seu
irmão Enrique e seu avô socialista, para caminhar pelo céu, pintando-o de
poema e de revoluções...
2.2- Em Paris
60
Como todos os jovens poetas da época, González Tuñón sonhava em
conhecer a Europa, mais precisamente Paris, por esta ser o berço da
intelectualidade literária europeia. Contudo, por ser de origem humilde, o
escritor não possuía qualquer recurso financeiro que lhe possibilitasse chegar à
Europa. Então, por volta de 1928, Tuñón participa do “Concurso Municipal de
Poesia” e seu segundo livro ganha o concurso. Com esse dinheiro, o poeta
convida seu amigo Sixto Pondal Ríos e, em 1929, os dois partem em direção à
cidade luz.
Realiza a viagem em um barco espanhol chamado Cabo Palos, que em
seu percurso ia parando nos portos de algumas cidades. Foi assim que
González Tuñón conheceu: Santos, Rio de Janeiro e, depois toda a costa
espanhola, as Canárias, Alicante, Málaga, Valência, Barcelona e, por fim,
Marselha e Paris. Sua experiência na cidade parisiense provocará um grande
amadurecimento não só em sua obra, mas também nele mesmo enquanto
homem.
O dinheiro do prêmio acabou rapidamente. Assim, para permanecer na
França, ele e Pondal enviavam notas ao jornal Crítica, que pagava a eles o
mesmo valor que o La Nación, um valor alto em comparação a este prestigiado
jornal. Mas, até o dinheiro chegar, passaram muitas necessidades, fome, e
muitas vezes, eram socorridos pela generosidade do correspondente do jornal
Crítica na Europa, Edmundo Guibourg, que lhes dava de comer.
Essa viagem foi um marco para sua poesia. Sua trajetória pelo Velho
Mundo tem duração de um ano; percorre algumas cidades espanholas, mas se
estabelece realmente em Paris. Nessa cidade vincula-se a círculos literários e
entra em contato com o Surrealismo. Apesar de não ter um profundo
61
conhecimento da estética surrealista, o autor já possuía inúmeros poemas que
se inseriam nessa corrente. González Tuñón não acreditava ser um surrealista
nato, mas suas poesias apontavam para a liberação livre do inconsciente
humano, permitindo que muitos críticos, entre eles Héctor Yánover (In: SALAS,
1975:170) afirme: “Raúl como ninguém viveu sua aventura e seu tempo. Como
ninguém o testemunhou. Foi surrealista, ainda sem sabê-lo, nosso melhor
surrealista. Foi surrealista, foi mágico. É mágico”. E segue sua pontual
observação sobre o estilo tuñoneano de ser e escrever, “Sempre esteve – tal
como agora- com os jovens, porque ele é jovem. Sempre esteve com a
revolução porque todo poeta é a revolução”7.
Da experiência vivida na cidade francesa surge, no mesmo ano (1930),
seu terceiro livro La calle del agujero en la media, no qual exerce uma
versificação menos formal e amplia o verso livre. Sua poesia ganha liberdade e
desprende-se de costumes poéticos passados como os versos rítmicos
alexandrinos. Desta forma escreve poemas, como “La cerveza del pescador de
Schiltiheim”, “La calle del agujero en la media” e “Escrito sobre una mesa de
Montparnasse”, que muitos críticos consideram sua melhor composição poética
e que integra o conjunto de trabalhos mais representativos da vanguarda latinoamericana de inícios do século XX.
Nesse último poema González Tuñón
expressa seu deslumbramento por Paris, sua sensação de solidão e comenta
(2005:28): “Vengo de Buenos Aires, digo a mis amigos desconocidos, de
Buenos Aires que es tres veces más grande que París y tres veces más
pequeña.” Em toda sua obra poética percebe-se um argentino apaixonado por
7
Raúl como nadie vivió su aventura y su tiempo. Como nadie lo testimonió. Fue surrealista, aún sin saberlo,
nuestro mejor surrealista. Fue realista, fue mágico. Es mágico. Siempre estuvo – tal como ahora- con los
jóvenes, porque él es joven. Siempre estuvo por la revolución porque todo poeta es la revolución.
62
Paris, por suas mulheres, por suas esquinas, por sua boemia, enfim pelo
Surrealismo.
Entretanto a Paris que extasiou o poeta, não é só aquela que também
encantou a outros poetas latino-americanos, aquela dos lugares mais
elegantes e renomados. A Paris tuñoneana vai mais além, penetra no profundo
do que toda cidade tem, no que a faz ser totalmente uma cidade, mas que aos
olhos da maioria dos estrangeiros não se mostra, ou não lhe agrada: seu
subúrbio. Por isso, González Tuñón pode afirmar em suas poesias uma Paris
autêntica e real, uma cidade de todos, ricos e pobres, uma cidade totalizante.
Em uma carta que Raúl González Tuñón escreve para seu irmão Enrique,
desde Paris, em novembro de 1929, ele declara sua experiência parisiense e
faz uma crítica aos literários que falam de Paris como se realmente a
conhecessem, mas que só andaram na Paris do glamour: (In: ORGAMBIDE,
1998:235-236):
Puede hablar de París quien ha sabido pulsar su
vida multiforme, quien vive como simple y oscuro
ciudadano en esta ciudad adorable. Creo que a mi
regreso llevaré una lección de entusiasmo y de
modestia. Al contrario de ciertos literatoides
latinoamericanos que vuelven a su país hablando
de todo sin haber salido del gran boulevard o el
bullicio elegante de alguna boîte – que a mí
también me gusta, aunque prefiero los barrios
proletarios como Menilmontant, el bal mussette de
la plazuela de Contrescarpe, las tabernas y las
carnicerías de la rue Mouffetard, la plaza du
Tertre, y la plaza Blanche – donde es “toujours
dimanche”, las ferias ambulantes y el camión
cocina donde, siguiéndolo barrio tras barrio, como
apenas por dos francos y me queda para un buen
“coup de rouge”, un tinto francés maravilloso... [...]
Guibourg y Daniel Schweitzer, me hicieron
conocer casi todos los barrios de las “Puertas” de
París.
63
Ainda nesta carta, podemos perceber suas impressões e algumas de
suas reflexões políticas e estéticas: sua admiração pelo comunismo, sua dura
crítica aos escritores argentinos mais afortunados, que conseguiam o desejado
sucesso na cidade luz usando meios obscuros, como a influência da
Embaixada ou a compra de críticos baratos, seu particular gosto por grandes
escritores franceses como Apollinaire, Zola, Mallarmé, Cézanne, Baudelaire,
Rimbaud, Aloysius Bertrand, sua opção pelo realismo e seu descobrimento e
reconhecimento da estética surrealista.
Suas andanças por Paris o comovem, o colocam constantemente em
reflexão sobre si mesmo e sobre o mundo e, ainda que o apogeu do
Surrealismo já tivesse passado, ele havia deixado um limite preciso: um antes
e um depois na poesia moderna. A Paris de 29 respirava um “ar de
surrealismo”, era possível vislumbrá-lo em cada canto da cidade e Tuñón o
absorve, embriaga-se dele e o exerce em sua obra.
Os símbolos da modernidade como o cinema e o jazz abrem o caminho
de temas e formas que seguirão em toda sua obra. É nesta etapa que ao eu
central da poesia se acrescenta a presença de uma segunda pessoa: “los
camaradas”, os proletários, as mulheres que o encantam, um amigo
saxofonista, o vendedor de globos, etc. Além disso, sua posição política ainda
não está totalmente solidificada.
Por fim, após passar um ano na capital francesa, González Tuñón
retorna a Buenos Aires devido ao fechamento irregular do diário Crítica, pelo
então presidente General Uriburu, o qual havia chegado ao poder através de
um golpe militar aplicado no governo de Hipólito Yrigoyen. Como Tuñón sentia
uma profunda gratidão pelo diretor do jornal, Natalio Botana, ao qual devia
64
muito, pois era tratado pelo mesmo como se fosse um filho, ele decide não se
filiar a nenhum outro periódico da época e viaja para o Brasil.
A capital francesa representa para o poeta seu sonho concretizado, seu
deslumbre juvenil. Nela, ele pôde afirmar seu ofício de poeta e ser
“lúdicamente” endossado por muitos de seus autores favoritos, principalmente,
Baudelaire e seu flâneur, com os quais o autor demostrava profunda
identificação. A Paris tuñoneana é a Paris de um estrangeiro, mas ao mesmo
tempo é a Paris de um “legítimo” europeu, que procurou concretizar em sua
poesia uma cidade estonteante com raios de luminosidade que revelam uma
realidade com algo de surreal.
2.3- Nas cidades espanholas
Esta etapa corresponde à segunda fase da obra de González Tuñón.
Nela o poeta assinala sua confiança no papel do artista como indivíduo dentro
da sociedade e indica a mobilidade do escritor, membro do Partido Comunista,
que aceitava a doutrina do mesmo, sem contudo abandonar o olhar crítico
pessoal de sua poesia, acreditando que o poeta deve estar sempre muito
consciente de suas convicções e sentimentos.
González Tuñón, por ter vivenciado o processo político do peronismo 8,
na Argentina, e observado a lentidão das mudanças sociais, tratou de mostrar
8
Peronismo é a denominação dada genericamente ao movimento nacional justicialista criado e liderado a
partir do pensamento de Juan Domingo Perón eleito presidente da Argentina em 1946, 1951 e 1973.
Perón possuía um governo popular apoiado pela Igreja, pelo Exército e pelo Movimento sindical, e
baseava-se num forte nacionalismo, centralizado no poder do Estado. Perón ainda contava com o carisma
da primeira-dama, Eva Perón. Apesar disso, seu governo mostrava-se autoritarista e punia de forma
severa quem fizesse críticas ao governo.
65
em sua poesia civil e heróica o caminho a seguir e o exemplo dos grandes
lutadores. Os versos de González Tuñón possuem uma qualidade lírica
exemplar, bem como a identificação sensível do autor com os temas que
aborda. O político e o poeta vivem em busca de um mundo melhor. Foi um
fervoroso militante antifascista e participou de alguns acontecimentos políticos
europeus, como a greve dos mineiros de Asturias (1935) e a Guerra Civil
espanhola (1936-1939). Toda sua obra composta nessa fase toma como tema
fundamental esses dois eventos. Ao visualizar os confrontos ocorridos em
terras espanholas, durante os anos que ali permaneceu, o poeta foi arrebatado
por um sentimento comovedor, que o levou a escrever La rosa blindada (1936),
Ocho documentos de hoy (1936), Las puertas del fuego (1938) e La muerte en
Madrid (1939).
Em sua segunda viagem à Europa, em 1935, Raúl González Tuñón
chega à Espanha pela primeira vez, ainda que antes tivesse estado em vários
portos desse país. Essa foi uma viagem de lua de mel, após seu casamento
com Amparo Mon, sua primeira esposa. De acordo com o autor, sua segunda
viagem corresponde ao que ele chamou de memorável em sua vida de poeta,
de jornalista, de homem do seu tempo, foi a que mais deixou marcas em suas
experiências. Viveu por quase um ano na capital espanhola, e conforme suas
palavras (In: Recordando a Tuñón, 1997:37):
Viví en constante estado de exaltación lírica, pero
también de exaltación civil. Me encontré allí (ya en
Buenos Aires había escrito el poema “La
Libertaria”) y fui a saludar a La Pasionaria9 y ella
9
Isidora Deolores Ibárruri Gómez (também conhecida como La Pasionaria) foi uma líder comunista
espanhola. Nasceu em Gallarta, uma localidade de Biscaia (província do País Basco) na Espanha, em 9 de
dezembro de 1895. Em 1918 escreve seu primeiro artigo assinado com o pseudônimo de La Pasionaria,
que a acompanha a vida toda. Em 15 de abril de 1920, filia-se ao Partido Comunista espanhol, no qual
permaneceria por toda sua vida, e o qual presidiria a partir de 1960. Ela distinguiu-se durante a Guerra
66
me contó- minuciosamente- todo el drama de
Asturias, me sentí tremendamente tocado.
Assim que chega à Espanha, González Tuñón, que já tinha conhecido a
Federico García Lorca em Buenos Aires, entra em contato com ele e com
Pablo Neruda, na época Cônsul do Chile naquele país. O escritor argentino ao
saber de sua condenação na Argentina, por incitação à rebelião, ganha a
solidariedade dos poetas espanhóis, Vicente Aleixandre, Rafael Alberti, Miguel
Hernández e León Felipe, que assinam um manifesto de protesto, levado por
César Vallejo para Paris, onde o ratificam também André Gide, André Malraux,
Louis Aragon, Jean Cassou, entre outros.
Imediatamente González Tuñón se associa ao mundo intelectual
madrilenho e se comove intensamente com a repressão do levantamento de
Asturias. A ideologia se unia nesse caso à origem de seu avô asturiano, que
despertou seu sentimento revolucionário, expresso nos poemas “Recuerdo de
Manuel Tuñón” e “La copla al servicio de la revolución”: Este último registrado a
seguir.
En Mieres nació mi abuelo,
mi abuela en Pola de Siero.
La capital de mi sangre
se debe llamar Oviedo.
O poema autobiográfico “La copla al servicio de la revolución”, expressa
a identificação irrestrita avô-poeta através de comparações, que levaram
González Tuñón ao mundo do combate e da poesia.
Civil espanhola, na oposição ao General Franco. Exilou-se na URSS após a vitória de Franco, e regressou
a Espanha em 1977. Faleceu em Madri em 1989.
67
Esse confronto dos mineiros asturianos, em 1935, impressionou o poeta,
posto que jamais tinha visto uma realidade tão violenta e cruel, nem mesmo
durante os anos em que foi correspondente do diário Crítica. O resultado desse
choque com a realidade foi a elaboração poética, esta vez dura e combativa de
La rosa blindada em 1936, onde, a partir de um tema bélico a poesia se
expressa tanto em verso rimado quanto em longos períodos de verso livre e
prosa. Essa obra reúne todos os elementos fundamentais da “épica” de
González Tuñón, ações heróicas dos mineiros com suas mulheres e filhos, a
história de Aída La Fuente morta em um vale mineiro de Asturias e poemas
onde anteciparia o sangrento levantamento de Franco.
A península estava em ebulição: o enfrentamento entre esquerda e
direita era iminente e chegaria em julho de 1936. González Tuñón começa a
escrever La rosa blindada. Esse livro foi o precursor da poesia social na
América Latina, visto que não se tinha notícias de obras poéticas desse cunho
antes da publicação do referido livro. Raúl González Tuñón também seria o
responsável pela transformação na poesia de Miguel Hernández, em direção a
uma temática mais enraizada com sua circunstância política, conforme afirma o
autor Andrés Sorel no seu livro Miguel Hernández, escritor y poeta de la
revolución
(1976).
Conforme
González
Tuñón
(In:
CUADERNOS
HISPANOAMERICANOS, 1978:97),
Miguel Hernández [...] continuaba la línea de una
retórica muy brillante. [...], pero trabajaba dentro
de las formas tradicionales hispánicas. Él me oyó
discutir alguna vez con Neruda. Yo estaba muy
dolido por el drama de la cuenca minera […] Yo
reiteraba aquellas palabras de Jacques Roumains,
el gran poeta haitiano […] La frase es de su
ensayo La poesía como arma, y expresa: “Hay
momentos en la historia del mundo en que la
poesía deviene un arma, puede y debe convertirse
en un arma”. Miguel me dio una cita en una
68
tabernita […] Tenía los ojos llenos de preguntas.
Yo insistía en la posibilidad de una eventual
interpretación poética en determinados hechos
sociales, y le insistía en que el caso es buscar la
forma que corresponda mejor al contenido […]. No
sé si aquel día Miguel quedó convencido, aunque
más tarde tuve motivos para pensar que sí.
A poucos meses do regresso de González Tuñón a Buenos Aires,
explode a Guerra Civil na Espanha. Na Argentina reinava o autoritarismo e o
poeta era observado pelo governo. Após publicar Ocho documentos de hoy,
onde reunia parte de seu trabalho solidário com a República espanhola, teve
conhecimento do assassinato de Federico García Lorca e decidiu que seu lugar
seria na Espanha. Consegue, então, que La Nueva España, um jornal
republicano editado em Buenos Aires, o enviasse como correspondente de
guerra. Dessa experiência surgiram Las puertas del fuego e La muerte en
Madrid. Nesse último livro dedica o poema “Muerte del poeta” a seu grande
amigo García Lorca. Abaixo está um dos trechos do poema (In: GONZÁLEZ
TUÑÓN, 1976:131):
¡Qué muerte enamorada de su muerte!
¡Qué fusilado corazón tan vivo!
¡Qué luna de ceniza tan ardiente
en dónde se desploma Federico!...
Como jornalista, conservou a mesma comoção nas notas que enviara a
El Diario de Buenos Aires, e ao jornal republicano La Nueva España, para os
quais fora designado correspondente a fim de noticiar tais confrontos. Nessa
função, visita as frentes de Jarama e Utrera, testemunha a defesa de Madri,
percorre Barcelona e Valência participa ativamente do “Segundo Congreso
69
Internacional en Defensa de la Cultura” e do “Congreso de Intelectuales
Antifascistas” em Valência, em 1937. Nesta época, um fato marca
profundamente a vida do poeta das revoluções: em 1935, Federico García
Lorca, León Felipe e, sobretudo, Miguel Hernández, que segundo o poeta o
seguiu, sabiam que ele estava escrevendo os poemas de La rosa blindada;
imediatamente, León Felipe organizou um ato no Ateneu de Madri, durante o
qual González Tuñón leu os poemas mais combativos do livro em questão.
Conforme o escritor argentino, ao terminar sua leitura, aproxima-se uma jovem
de luto e pede-lhe uma cópia da composição poética “La Libertaria”, alegando
ser irmã de Aida La Fuente, a protagonista do poema. Passam-se dois anos e
González Tuñón volta à Espanha como correspondente, de acordo com suas
próprias palavras (In: Recordando a Tuñón, 1997:38):
[...] se realizan en Madrid un homenaje a los
periodistas de todo el mundo que estábamos allí.
Era un acto con el folklore de los distintos países
representados. En una de esas, el acto termina
con un coro solemne que canta La libertaria. Me
quedé impresionado con eso. No dijeron quién era
el autor. Fui al escenario dispuesto a decirlo, pero
una lamparita me iluminó. […] en lugar de decir
que yo era el autor, pregunté quién era el autor.
Me dijeron: “Un autor desconocido, autor
anónimo”. ¡Autor anónimo! ¡A los 32 años!
Ao contrário de outros poetas para os quais a militância adquiriu um
papel primordial, González Tuñón pôde fugir à doutrina a golpes de poesia.
Inclusive seus artigos em jornais comunistas revelam sua lucidez e seu espírito
crítico.
É fundamental confrontar os poemas sociais com o prólogo de
González Tuñón em La rosa blindada, no qual ele define o que deve ser
poesia:
70
Y si una pretensión tengo es la de ser un poeta
revolucionario, la de haber abandonado esa
especie de virtuosismo burgués decadente, no
para caer en la vulgar crónica chabacana que
pretende ser clara y directa y resulta ñoña, sino
para vincular mi sensibilidad y mi conocimiento de
la técnica del oficio a los hechos sociales que
sacuden al mundo. Sin que lo político menoscabe
a lo artístico o viceversa, confundiendo, más bien,
ambas realidades en una., (In: GONZÁLEZ
TUÑÓN 1962:12)
Ainda
no
prólogo,
González
Tuñón
explica
que
uma
poesia
revolucionária deve conter três características, para ser autêntica:
1º Cuando poesía y revolución se confunden, son
consubstanciales […]. Es decir no menoscabando
la poesía en sí, haciéndola perdurable por su
contenido estético además de su contenido
humano.
2º Cuando el contenido social corresponde a la
nueva técnica. No se trata de negar el proceso
poético […], pero resulta absurdo componer hoy
poemas ceñidos a tal o cual regla formal.
3º Pero no hay que confundir técnica nueva […]
con travesuras gramaticales, etc., o poemas sin
ritmo […]. Porque, generalmente, esa actitud
poética que fue una reacción saludable contra el
academismo, está reñida con ese ritmo de
marcha, de himno […] que debe tener casi
siempre el poema revolucionario. Llamo “técnica
nueva” al conocimiento y a la superación de todas
las técnicas, a la desenvoltura que nos da ese
conocimiento, a la libertad de tonos, ritmos,
imágenes, palabras, y a lo que siempre tuvieron
los poetas de cada época creadora,[…] a lo que
sigue la línea poética que nació con la primera
palabra pronunciada por el hombre en la tierra: a
la personalidad de un poeta. (In: GONZÁLEZ
TUÑÓN 1962:13/14)
Já foi dito anteriormente que La rosa blindada e La muerte en Madrid
correspondem ao período de aproximação de González Tuñón à Espanha e à
Guerra Civil, e que nessa época sua poesia sofre uma profunda transformação.
No seu primeiro momento ficaram a exaltação do eu e de seu mundo; no
segundo, que trata da poesia bélica, não se dissipam essas características,
71
mas se incorporam de outra maneira: o eu lírico se direciona para o outro,
transformando-se em um sentimento universal.
Em La rosa blindada, o poeta recorre à narrativa e, em La muerte en
Madrid, insere estrofes populares da guerra em forma de epígrafes. Esta
eleição implica uma mudança em sua concepção poética, sobre a qual adverte
no prólogo. A transformação identifica-se com a problemática espanhola:
utilizar a narrativa ou as estrofes é inscrever-se em uma tradição; neste caso,
tipicamente popular, é dar conta da Espanha ainda que não se a nomeie. Raúl
González Tuñón afirma (In: ZANETTI, 1980/1986:134): “Si quiero llegar al
pueblo español debo partir de él, de su lenguaje, de sus tradiciones, y por ello
elige el romance o las coplas”. A narrativa não é o único registro empregado
por González Tuñón, abundam os poemas compostos com quartetos ou
tercetos octossilábicos. Contudo o poeta conserva o gosto e a liberdade de
empregar diversos tipos de estrofes em um mesmo poema ou o verso livre ou o
poema em prosa. A rima também preserva a mesma independência.
É considerável o papel de pioneiro que exerce Raúl González Tuñón
entre os poetas espanhóis dessa época. O episódio sobre a difusão que teve
seu poema “La Libertaria” serve de exemplo. O poeta se empenhava em
descobrir uma forma poética significativa que amalgamasse e acompanhasse
os processos históricos.
A carta que o poeta mexicano Octavio Paz envia ao sobrinho de Raúl
González Tuñón aborda essa importante influência que a poesia tuñoneana
gerou, tanto nos poetas hispano-americanos quanto nos poetas espanhóis
(In:ORGAMBIDE, 1997:119):
72
México D. F., 12 de noviembre de 1993
Sr. Eduardo Álvarez Tuñón
… Aún está viva en mi memoria la tarde en que lo
conocí, en julio de 1937, en Madrid. Me lo
presentó mi compatriota Sequeiros, en las
vísperas del Congreso de Escritores para la
Defensa de la Cultura. Él ya era un consagrado y
me impresionó ese hombre suave y firme, que
había escrito los más encendidos poemas sobre el
pueblo español. Recuerdo haberlo oído leer “La
libertaria”, ese poema en el cual todos los oficios
de España confluyen como un rezo. Para esa
generación escribir poesía combativa era escribir a
la sombra de Raúl González Tuñón. Es el Rubén
Darío de la poesía social y no cometo una herejía
si afirmo que España en el corazón de Neruda y
España aparta de mí este cáliz, de Vallejo, no
hubieran podido ser sin La rosa blindada. […]
Desconozco su restante producción, pero
recuerdo que Luis Cernuda me dijo que era
también un importante poeta lírico.
Todo me aleja de aquellos años, pero en mi
biblioteca guardo La rosa blindada porque es un
hito.
Lo saluda,
Octavio Paz
O estudo de certos vocábulos que se repetem e adquirem outro
significado dentro da obra tuñoneana, constituindo um campo semântico, é
essencial para que se elabore uma adequada análise crítica de sua produção.
Um bom exemplo é o caso do livro La rosa blindada, em que é notória a
conjunção de formas tradicionais e formas modernas. Nele o substantivo “rosa”
adquire outro significado que, somado ao adjetivo “blindada”, remete ao campo
da guerra. Essa é uma das construções marcantes da poética de González
Tuñón, sendo fácil localizá-la em diferentes momentos. A metáfora nucleadora,
“rosa blindada” abriga signos aparentemente antagônicos, visto que “rosa”
representa a vida, e “blindada” o que não pode ser visto; portanto, a anulação
da vida, a morte. Este jogo antitético pode ser apreciado na produção
tuñoneana. Segundo o autor, em Conversaciones con Raúl González Tuñón
73
(1975:135), afirma ao escritor Horacio Salas que não tinha medo de repetir-se
em seus poemas: “Pienso que citar varias veces el barco en la botella, las
cajitas de música, las veletas, no es repetirse, sino seguir moviéndose en
medio de los símbolos que siempre he amado”.
Raúl González Tuñón assiste ao surgimento das milícias populares. Vive
nas ruas e seu coração está em guerra. Observa as crianças mortas por um
bombardeio. Blinda a rosa. Saúda o quinto Regimento. Marcha com os
voluntários. Descobre o caos. Conhece La Pasionaria. Sua poesia é um
registro fiel: a morte de García Lorca, os tanques de guerra, os aviões, a morte
de Antonio Machado... Toda a Espanha está nele, nessa poesia em ação a
serviço do combate contra o fascismo. Enlutada. Rebelde. Revolucionária.
Guerreira. Em um trem, no caminhão de soldados, entre os estampidos das
bombas e a conversa sincera dos companheiros, Raúl González Tuñón
escreve seus poemas. Canta. Conta. Resplandecem as evidências da
destruição (In: “Algunos Secretos del Levantamiento de Octubre”, GONZÁLEZ
TUÑÓN, 1936:18):
Donde el carbón se junta con la sangre
y la ametralladora bailarina
lanza sus abanicos de metralla
donde todo termina.
Em meio ao choque, à desordem do espaço citadino, surge a melhor
poesia social de Raúl González Tuñón, a que se alimenta do imediato, da
indignação perante a realidade urgente do compromisso civil e da paixão
individual. A poesia que carrega o ritmo compadecido da guerra e a experiência
74
vital de sensações vis (In: “Muerte de Antonio Machado” e “La Libertad”
GONZÁLEZ TUÑÓN, 2011:187/184):
miran crecer aromo, mirto y parra
y entre los huesos la raíz del grito;
para su tumba campo de granito
y el polvo de oro para su guitarra.
------------------------------------------------Hay que ser piedra o pura flor o agua
conocer el secreto violeta de la pólvora,
haber visto morir delante del relámpago,
conocer la importancia del ajo y el espliego,
haber andado al sol, bajo la lluvia, al frío,
haber visto un soldado con el fusil ardiente,
cantando, sin embargo, la Libertad querida.
Esse importante poeta, que procurou amalgamar sua vida à sua obra,
como se as fusionasse para alcançar a perfeita composição poética, a que
aflorasse no leitor a diversidade de sentimentos que se tem e que por vezes se
esquece em uma gaveta. Esse bravo autor, enunciador do bem e do mal, da
fantasia e da realidade, que proporciona ao leitor abrir essa gaveta e dela tirar
sua bandeira, pode ser lembrado conforme suas próprias palavras (In: “El
Poeta Murió al Amanecer”, GONZÁLEZ TUÑÓN, 1983:26):
Fue un poeta completo de su vida y su obra.
Escribió versos casi celestes, casi mágicos,
de invención verdadera,
y como hombre de su tiempo que era,
también ardientes cantos y poemas civiles
de esquinas y banderas.
75
CAMINHANDO PELAS URBES MODERNAS
AS MÚLTIPLAS IMAGENS LÍRICAS DE UM CAMINHADOR
76
3. TRANSITANDO PELA IMPONÊNCIA DA IMAGEM
P
or ser tan nacional proyectó su
estatura
a la morena América y al París que en
Europa
es la rosa del mapa.
Su voz fue el instrumento, voz Gardel,
voz mañana,
voz para la memoria de un cielo con
ventana.
“El cantor” - Raúl González Tuñón
77
CAMINHANDO PELAS URBES MODERNAS
AS MÚLTIPLAS IMAGENS LÍRICAS DE UM CAMINHADOR
3 – Transitando pela imponência da imagem
Como já dito anteriormente, a arte moderna surgiu de uma ruptura com
os ideais sociais, culturais, ideológicos do século XIX, que propiciaram o
surgimento de diversos movimentos de vanguarda na Europa do século XX e,
quase que simultaneamente, também na América Latina. A primeira
manifestação vanguardista na América Hispânica foi o Criacionismo. Este era
um movimento marcado pela ruptura com a arte mimética: para os criacionistas
a poesia não deve ser mimética, mas sim criação pura.
Com o descobrimento da fotografia, no século XIX, modifica-se o
sentimento da verdadeira arte, pois para expressar a arte mimética já existe
esse novo invento. Daí a grande repulsa da arte como cópia da natureza.
Nessa fase o mais importante era a expressão do sentimento perante a
natureza, ou seja, o que interessava era o que ela despertava no poeta, não
mais o reflexo do real, e sim o que se apreende desse real.
O Criacionismo de Huidobro, influenciado por Paul Valèry, preocupa-se
com a imagem poética. A poesia, que em 1888 com Darío se transformara em
palavra-música, com o poeta chileno volta-se para a plasticidade e funda a
palavra-pintura. Em seu poema “Canción Nueva”, Huidobro (1976) ilustra o
Criacionismo, pois faz uma espécie de canto à poesia inovadora. Ele utiliza um
conjunto de elementos e princípios teórico-poéticos que oferecem uma
percepção de suas concepções: “La primera condición del poeta es crear, la
78
segunda, crear, y la tercera, crear”. Por meio da preocupação com a
plasticidade das imagens e do movimento no poema, Huidobro insere efeitos
estéticos que proporcionam à obra o surgimento de uma poesia-pintura,
valorizando o aspecto visual.
A partir desse movimento, surgiram dois mais, o Ultraísmo espanhol e o
argentino, ambos vistos por Vicente Huidobro como imitações de seu
Criacionismo. Após a publicação, em Madri, do manifesto Ultra (1918), por
autores como Guillermo de Torre, Rafael Cansinos Assens entre outros, Jorge
Luis Borges em 1921, influenciado por esse manifesto Ultra, lança o movimento
Ultraísta em Buenos Aires. Nesse texto, o autor comenta a chegada de uma
nova estética, a qual tinha como objetivo mudar o panorama literário, por isso
faz uma critica à estética Modernista, afirmando que: “la belleza Ruberiana es
cosa madura y colmada [...] y por esto es una cosa acabada, concluida”;
portanto, é preciso haver mudança na arte literária.
Para o movimento ultraísta, a poesia deve ser múltipla, possuir vários
significados e, por isso, seu elemento primordial é a metáfora. A autonomia
desta é o principal objetivo de Ultra, como se pode observar:
Nossa arte quer superar esses artifícios de sempre
e descobrir facetas insuspeitadas no mundo.
Temos sintetizado a poesia em seu elemento
primordial: a metáfora, à qual concedemos uma
máxima independência, mais além dos joguinhos
daqueles que comparam entre si coisas de forma
semelhante, equiparando um circo à lua. Cada
verso de nossos poemas possui sua vida
individual e representa uma visão inédita. O
Ultraísmo tende assim à formação de uma
mitologia emocional e variável. (In: GUBERMAN,
2009:40)
As propostas estéticas ultraístas para a nova forma poética eram
denotar a negação, e seu objetivo com tal negação era o de despir a arte como
79
forma de alcançar a “poesia pura”. Essa proposta de “poesia pura” já havia sido
discutida anos antes pelo poeta francês Paul Valéry (1896). A partir de um
ensaio de fundamental valor para a literatura européia, Valery, inaugura um
novo conceito para a poesia. Este deveria contrapor a pureza da poesia ao
absurdo da existência humana.
Sequencialmente ao Ultraísmo surge o Martínfierrismo na Argentina a
partir da publicação da revista Martín Fierro, em 1924. Esta, que já existia
desde 1904, dirigida por Alberto Ghiraldo, apresentava tendências anarquistas
e, em 1924, irrompe em solo portenho a segunda fase (1924-1927) dessa
revista, sob a direção de Evar Méndez, propondo a renovação estética. É
nesse período, mais precisamente em seu quarto número, que se lança o
“Manifiesto Martín Fierro”, elaborado por Oliveiro Girondo, e que identificou o
perfil vanguardista desse grupo.
Além de Martín Fierro (1924-1927) e da publicação Revista Oral, que
registrava as tendências do grupo Florida, outras revistas tiveram participações
especiais para a solidificação do movimento vanguardista argentino, como, por
exemplo, as que arrolavam as tendências do grupo de Boedo: Los pensadores
(1922), Revista del Pueblo (1926) e Los Nuevos (1924). Já alguns livros que
marcaram a consolidação da vanguarda, são Coplas, de Luis L. Franco,
Exposición de la Actual Poesía Argentina (1923), dirigido por César Tiempo e
Pedro J. Vignale.
A Vanguarda foi uma estética, uma linguagem, uma visão do mundo, ou
seja, se funda e se rompe com a intenção de mudar a realidade. Em 1924
surge uma nova linguagem na poesia, que permite ao poeta utilizar livremente
as palavras, as ideias e as associações. Trata-se da segunda fase da
80
Vanguarda, o Surrealismo, fundado por André Breton, em Paris, com a
publicação do Primeiro Manifesto Surrealista.
A palavra surrealismo foi criada em Paris, em 1917, pelo escritor
Guillaume Apollinaire, que a empregou para descrever a inovação artística, que
não poderia ser descrita como “surrealista”, no sentido hoje atribuído ao termo.
No entanto, no manifesto que lançou o movimento surrealista, Breton adotou
essa palavra, “nomeando de surrealismo o novo modo de expressão de que
dispomos e que gostaríamos de apresentar aos nossos amigos”. Breton,
(1985:58) define “Surrealismo” da seguinte maneira:
Substantivo, masculino. Automatismo psíquico
puro pelo qual se propõe exprimir, seja
verbalmente, seja por escrito, seja de qualquer
outra maneira, o funcionamento real do
pensamento. Ditado do pensamento, na ausência
de todo controle exercido pela razão, fora de toda
preocupação estética ou moral.
A escritura automática, a expressão verbal, seja através do poema ou
através da prosa, constitui um dos patamares angulares do Surrealismo. Breton
utilizou o vocábulo surrealismo para descrever as práticas literárias e artísticas
dele próprio e de seus “amigos”. Iniciada em Paris, na década de 20, terminou
por abranger a poesia, a pintura, a prosa, a escultura, a fotografia, o cinema e o
intervencionismo. Inicialmente, o Surrealismo se restringiu à arte literária e só
depois se estendeu para as artes visuais com Surrealismo e Pintura, escrito em
1925 por Breton.
Em 1924,
no
Manifesto
do
Surrealismo,
Breton
conceituou
o
automatismo psíquico puro como a prática artística surrealista mais importante,
o principal caminho de acesso ao maravilhoso. A definição proposta por Breton
enfatiza a natureza absoluta do automatismo surrealista: poesia, pintura, prosa,
81
deveriam se originar do encadeamento das primeiras palavras ou imagens que
ocorressem à mente.
O despertar da escrita automática fez emergir no homem a sublimação
mais genuína do “mundo das imagens”. Ele pode “soltar do seu mais íntimo
interior todos os simulacros aprisionados no recôndito de sua mente. Segundo
Breton (1924), em seu Manifesto do Surrealismo, o poeta francês Pierre
Reverdy, escrevera outrora (In: BRETON, 1985:52):
A imagem é uma criação pura do espírito.
Ela não pode nascer da comparação, mas da
aproximação de duas realidades mais ou menos
remotas.
Quanto mais longínquas e justas forem as
afinidades de duas realidades próximas, tanto
mais forte será a imagem – mais poder emotivo e
realidade poética ela possuirá...etc.
O homem por não possuir domínio sobre seu inconsciente confere
independência às imagens quiméricas. Essas imagens surrealistas, assim
como as imagens dos entorpecentes, são autônomas, ou seja, não mais são
evocadas
pelo
homem,
mas
se
lhe
oferecem,
espontaneamente,
despoticamente. O homem não pode mandá-las embora, porque a vontade não
tem mais força e não mais governa a consciência. Nesse momento, as
imagens surrealistas assumem o papel de “protagonistas da história”.
O surrealismo possibilitou ao homem do século XX superar todos os
condicionamentos de ordem social, cultural e histórica que lhe eram impostos,
levando-o a refugiar-se na única camada não contaminada, o inconsciente e
suas imagens. Por isso mesmo, Octavio Paz afirma (1983:34) que o
Surrealismo é uma atitude do espírito humano, cujo propósito é subversivo:
82
“abolir esta realidad que una civilización vacilante nos ha impuesto como la
sola y única verdadera”.
As imagens oníricas possibilitam certos arquétipos para esta subversão
da realidade. E não somente as oníricas; outros estados similares desde a
loucura como a sonolência, ocasionam ruptura e reacomodações da nossa
visão do real. É no eclodir do inconsciente que as imagens adquirem poder e
se tornam indissolúveis como as palavras.
Ao longo dos anos 20, o Surrealismo foi uma sucessão de encontros,
vernissagens, publicações e lançamentos. Como um apelo em favor da
renovação das atividades surrealistas, Breton escreveu um segundo manifesto
do Surrealismo em 1930, no qual relata as dificuldades experimentadas pelos
movimentos e insiste em sua visão do surrealismo como um caminho rumo a
um mundo mental de infinitas possibilidades, enfatizando a obsessão do
primeiro manifesto pelo irracional, o espontâneo e o inconsciente.
Neste segundo manifesto do Surrealismo, a vanguarda reafirma seu
caráter de questionadora dos valores estéticos e se inicia como um movimento
de luta contra a ordem social estabelecida, principalmente contra toda estrutura
de poder centralizador.
Na América, todas as mudanças sociais impostas pela vida moderna
impulsionaram imperativamente a atualização da poesia, a qual só poderia ser
alcançada por meio da fusão de elementos cotidianos que adentravam
progressivamente na vida diária do homem, através de imagens inéditas que
se apresentavam à sociedade a partir dos costumes, da moda e dos inventos
científicos do novo tempo, além da internacionalização de novos pensamentos
filosófico-sociais como as doutrinas de Marx e da revolução social da Rússia.
83
Todo um século de dominação de uma classe havia sido deixado para
trás, a poesia abandonara as formas literárias antigas e lançava-se,
audaciosamente, nesse novo século que se apresentava como motivador da
conquista da liberdade de expressão através de uma simplista visão do
universo que a pusesse a salvo da antiga ditadura estética.
As novas descobertas científicas, as novas formas de vida, enfim, as
novas realidades sociais e mecânicas tornam-se novas fontes imagéticas para
poesia. A originalidade de imagens se apresenta espontaneamente na poesia
com os novíssimos descobrimentos e mudanças da realidade cotidiana. A
imagem social adquire força e toma posse do espaço lírico antes mais
frequentado por uma imagem romântica do mundo real.
Segundo o escritor Jorge Carrera Andrade, Halina Izdebska, no seu
comentário de L’Espirit Nouveau sobre a poesia russa atual, enumera a
acessibilidade da poesia às massas, os meios democráticos de expressão, o
sentimento da solidariedade cósmica e o misticismo às avessas ou ateísmo
como características dessa atual lírica. Essas linhas podem-se aplicar em geral
à poesia de vanguarda.
O vanguardismo latino-americano apropria-se dos novos valores, propõe
fazer da poesia um fator da vida, parte integrante do cotidiano citadino. Nessa
nova poesia vanguardista o “eu” limitado cede espaço para o conjunto social. A
imagem poética passa a exprimir os desejos da coletividade. O sentimento de
solidariedade com o mundo, devido ao cosmopolitismo, está admiravelmente
presente nas poesias desta segunda etapa do Surrealismo.
A poesia de vanguarda latino-americana persegue rumos mais amplos,
busca um toque mais humano e mais livre e orienta-se para uma estética de
84
conteúdo social. A partir da apropriação da imagem da cidade, de seus
elementos e arquétipos, a poesia vanguardista assume o papel de protagonista
do século XX retratando, vastamente em suas páginas o homem e a
Cosmópolis. Os dilemas sociais, os anseios e expectativas deste indivíduo para
com o novo mundo, irão impulsioná-lo gradativamente para a crise existencial
humana da pós-modernidade.
Em suma, segundo o teórico Jorge Schwartz (1995), o movimento
surrealista foi muito mais que uma corrente estética e um movimento artístico,
ele revelou algo que nem mesmo André Breton podia prevê: uma atitude
surrealista. Todos os artistas e escritores que se envolveram com o
Surrealismo pregavam muito além de apenas uma estética, eles o vivenciavam
diariamente, bebiam, respiravam e se expressavam a partir do conceito
surrealista. Suas prontidões e formas de ver a realidade eram surrealistas. A
credulidade de que o Surrealismo mudaria o mundo foi o lema desses grandes
artistas e escritores do início do século XX.
3.1- O desfilar da imagem surrealista portenha
O escritor argentino Aldo Pellegrini foi o responsável por organizar o
primeiro grupo surrealista em Buenos Aires em 1926. Autor da primeira
Antología de la Poesía Surrealista, apreciada por Breton, ele divulgou essa
prática para outros escritores argentinos da época. Conforme Pellegrini, o
Surrealismo:
85
Promove a manifestação espontânea da
imaginação por meio do automatismo, o material
dos sonhos, e os estados crepusculares,
mediúnicos e delirantes. Desta maneira consegue
derrubar as fronteiras entre a ficção e a realidade,
e desencadear aproximações insólitas entre
10
elementos originariamente afastados ou opostos.
É notório que Raúl González Tuñón, na Argentina, pertenceu à geração
de Jorge Luis Borges, Oliveiro Girondo, Roberto Arlt, Ricardo Güiraldes, entre
outros, compreendendo assim a corrente surrealista. Na poesia, junto a
Borges, González Tuñón foi um dos poetas que desenvolveu com mais coesão
o tema urbano, porém a diferença está na abordagem tuñoneana que focaliza
mais o papel do ser humano, sobretudo o do homem pobre na cultura citadina,
situando-os no seu espaço social e no seu trabalho. Como uma constante,
desenterra os elementos de uma mitologia urbana (o bohêmio, a prostituta, o
cantor, etc.), onde o simples, o popular, possui o papel protagônico.
Raúl González Tuñón elabora suas poesias de temática urbana a partir
da observação de espaços comuns, como o porto, a rua, o cortiço, o circo...
Passa a descrever esse mundo, em seus poemas, localizando o leitor na
Buenos Aires da época em questão, seus costumes e as peculiaridades dos
grupos sócio-econômicos oprimidos. Seu amor pelo povo operário, assim como
sua fé na possibilidade de mudança e transformação social tornam sua poesia
única.
Essa atitude de tomar uma grande cidade como tema poético não tinha
antecedentes literários na América Latina. Até o século XIX, era quase
desconhecida, um dos primeiros que se atreveu a dedicar uma obra total à
10
Promueve la manifestación espontánea de la imaginación por medio del automatismo, el material de los
sueños, y los estados crepusculares, mediúmnicos y delirantes. De esta manera consigue derribar las fronteras
entre la ficción y la realidad, y desencadenar aproximaciones insólitas entre elementos originariamente
alejados u opuestos.
86
grande metrópole foi o renomado poeta francês Charles Baudelaire, o qual
descreveu Paris com enorme fervor. Na Argentina, à partir do escritor Evaristo
Carriego, com seu poema “La canción del barrio”, o subúrbio de Buenos Aires,
espaço da cidade, ingressou na literatura como tema poético habitual.
Seguidores dessa temática, os jovens poetas da década de vinte, entre eles
González Tuñón, decidiram revelar a cidade mediante palavras, contribuindo a
edificar uma mitologia portenha, que não estivesse somente povoada de
personagens baderneiros, de cortiços e de casas pouco conceituadas. A nova
poesia teria que resgatar do esquecimento a simplicidade, a população
trabalhadora, o clima peculiar e familiar dos bairros e ruas, enfim, o cotidiano
da urbe moderna. Raúl González Tuñón foi um dos poucos poetas que
assumiu esta temática citadina ao longo de toda sua obra, tanto que alguns
poemas desse cunho aparecem inclusive em seu livro póstumo El banco de la
plaza (1977) e, segundo o seu mais expressivo biógrafo Héctor Yánover (In:
CUADERNOS HISPANOAMERICANOS, 1978:101) “quien no lo ha leído no ha
leído poesía argentina”.
As poesias de González Tuñón exercem uma influência singular quando
se escondem nas dobras da memória, aglutinando-se com o inconsciente
coletivo ou individual. Nesse território do Surrealismo encontram-se poemas
como “Eche veinte centavos en la ranura”, “Escrito sobre una mesa en
Montparnasse”, “Poetango de la Belle Époque”, “Motivo para una cajita de
música” e as inúmeras andanças de “Juancito Caminador”, poemas que
contribuem para fundamentação da modernidade literária na poesia argentina
do século XX.
87
Nessa liberação do inconsciente, isto é, nesse automatismo psíquico
dos poetas foi que surgiram poesias de suma importância para toda a literatura
mundial. O Surrealismo foi a libertação do pensamento mais íntimo, que
possibilitou, principalmente, para González Tuñón o desabrochar de sua
produção literária. É importante ressaltar que antes mesmo da chegada da
corrente surrealista na Argentina, o autor já elaborava composições dentro
dessa linha poética. Exemplo disto é o seu poema “Eche veinte centavos en la
ranura”, escrito pelo poeta aos 15 anos de idade, ou seja, em 1920. Esse
movimento literário foi o marco da obra tuñoneana e, a partir dele, foram
desenvolvidas outras formas de expressão, surgiram novas correntes de cunho
social que também arrebataram o escritor argentino, mas a imagem surrealista
nunca se fez ausente em suas obras.
3.2- O primeiro caminhar: Buenos Aires, a cidade do espetáculo
Yo los invito a conquistar al provenir.
Raúl González Tuñón
Na primeira parte deste estudo, será tratada a cidade de Buenos Aires.
Raúl González Tuñón foi um dos melhores observadores e amantes dessa
urbe: bairros, personagens típicas dos locais mais marginalizados dessa
capital, como o porto, predominam em sua poesia. O autor, ao mesmo tempo
que aborda o cosmopolitismo, observa atentamente os acontecimentos políticosociais que ocorrem na cidade argentina, bem como no mundo.
88
Raúl González Tuñón é um poeta citadino, pois opta por tomar como
elemento primordial de sua lírica sua própria cidade e as de outros países.
Seus temas preferidos foram “os submundos portenhos”, o que levou Jorge
Luis
Borges
a
considerá-lo
conforme
Nora
Domínguez
(In:
Zanetti,
1980/1986:128) “o outro poeta suburbano”, na dedicatória de Luna de enfrente.
Embora haja muitos temas que coincidam com os da produção de Borges
como, por exemplo, a valorização dos bairros, dos armazéns, dos instrumentos
musicais, a obra de Raúl González Tuñón, durante muito tempo esteve
marginalizada: ele não conseguiu, como a maioria dos poetas, um significativo
reconhecimento em vida.
“Eche veinte centavos en la ranura”
O poema “Eche veinte centavos en la ranura”, de sua autoria e que
compõe El violín del diablo (1926), é uma sensível retratação do porto de
Buenos Aires e de suas personagens típicas, construídas no poema através de
arquétipos11 e alegorias12, formando um mundo de metáforas.
Em “Eche veinte centavos en la ranura”, o eu lírico flutua entre o real e o
sonho. Por meio do real ele regressa à infância criando assim dois grandes
campos semânticos, que, nesse poema, formam parte das imagens poéticas
de uma cidade: circo e porto. Esses campos semânticos figuram como
alegorias da vida. Para entendê-los é necessário lançar mão do conhecimento
11
[arquétipo] modelo de seres criados; padrão; exemplar; que serve de modelo; original. In: Dicionário
Brasileiro da Língua Portuguesa (1993).
12
[alegoría] [serve] para expressar poeticamente um pensamento, a partir de comparações ou metáforas
[e] se estabelece uma correspondência entre elementos imaginários. Tomadas literalmente, as alegorias
oferecem um sentido insuficiente, mas este se [completa] com o sentido do contexto. (In: BERISTÁIN,
1992. T.A.).
89
de mundo, assim teremos suporte para comprovar que ambos despertam em
cada um de nós sensações e recordações similares:
A pesar de la sala sucia y oscura
de gentes y de lámparas luminosa
si quiere ver la vida color de rosa
eche veinte centavos en la ranura.
Y no ponga los ojos en esa hermosa
que frunce de promesas la boca impura.
Eche veinte centavos en la ranura
si quiere ver la vida color de rosa.
El dolor mata, amigo, la vida es dura,
y ya que usted no tiene hogar ni esposa
si quiere ver la vida color de rosa
eche veinte centavos en la ranura
O poema “Eche veinte centavos en la ranura”, divide-se em seis partes.
Na primeira, o sujeito poético se dirige ao leitor tentando persuadi-lo a fugir do
real e entrar num mundo de fantasias, na “vida color de rosa” (vv. 3, 8 e 11). Há
um jogo de antíteses, como claro x escuro no primeiro e segundo verso, puro x
impuro no sexto e sétimo verso, além de duas grandes metáforas
nucleadoras13 do poema, que são: vida cor de rosa x vida dura. A poesia está
apoiada nestas duas grandes metáforas nucleadoras, nas quais se inserem
outras, como o porto e o circo. Essas metáforas harmonizam toda a
composição poética, imprimindo um sentido explícito. Feita a leitura da estrofe,
percebe-se também a representação sutil de um ambiente de luxuria, onde se
encontram mulheres livres do porto, cafetões e outros tipos:
Lamparillas de la Kermesse,
títeres y titiriteros,
volver a ser niño otra vez
y andar entre los marineros
de Liverpool o de Suez.
13
[Metáfora nucleadora] [Las] metáforas ligadas a los elementos primitivos y a la experiencia común, se
prestan de una manera peculiar al proceso de rejuvenecimiento de la imagen por el empleo de otra
metáfora tomada del mismo campo semántico. In: LE GUERN (1985).
90
Na segunda parte do poema há uma nítida regressão por parte do eu
lírico ao mundo infantil, que se comprova principalmente no verso “volver a ser
niño otra vez”. Surge ao final um novo espaço lírico que será predominante em
toda a obra, o porto. A criação desse espaço poético é comprovada através de
um recurso muito utilizado pela poesia tuñoneana, denominado por Nora
Dominguez (1980/1986) de nominação. Nesse caso, a nominação se deu pela
citação de “Liverpool o de Suez”, que apesar de serem lugares distantes da
realidade argentina, conseguem estabelecer um clima de familiaridade, pois
ambos são portos:
Teatrillos de utilería.
Detrás de esos turbios cristales
hay una sala sombría:
Paraísos artificiales.
Na terceira parte, o sujeito poético através de metáforas, retoma o porto
de modo realista: um lugar onde se tira proveito, onde as futilidades
predominam, nada é tão nítido nesse local, até mesmo os cristais, que lá se
encontram, não são claros e escondem um mundo sem luz, escuro, onde
trabalham mulheres escravizadas que, por meio da sedução, criam a ilusão
desse falso paraíso:
Cien lucecitas. Maravilla
de reflejos funambulescos
¡Aquí hay mujer y manzanilla!
Aquí hay olvido, aquí hay refrescos.
Pero sobre todo mujeres
para los hombres de los puertos
que prenden con alfileres
sus ojos en los ojos muertos.
No debe tener esqueleto
el enano de Sarrasani,
que bien parece un amuleto
de la joyería Escasany.
91
Salta la cuerda, sáltala,
ojos de rata, cara de clown
y el trala-trala-trálala
ritma en tu viejo corazón.
Estampas, luces, musiquillas,
misterios de los reservados
donde entrarán a hurtadillas
los marineros alucinados.
Y fiesta, fiesta casi idiota
y tragicómica y grotesca.
Pero otra esperanza remota
de vida miliunanochesca...
A quarta parte foi dividida em quatro estrofes. Na primeira, o eu lírico
retrata o porto, agora não mais distante da realidade argentina, por se tratar do
próprio porto de sua cidade. Entretanto, esse ambiente poético, que é tão
característico de algumas cidades, não tem nada de belo à primeira vista. O
sujeito poético revela literalmente todo cotidiano de impureza, promiscuidade e
mistério que envolve o porto:
Cien lucecitas. Maravilla
de reflejos funambulescos
O primeiro verso inicia com uma expressão luminosa, mas os reflexos
que são produzidos por essa luz não iluminam, não trazem vida, somente
escuridão e morte. No porto existem mulheres, bebidas, esquecimentos,
recordações e marinheiros que procuram essas mulheres desesperançadas
para se satisfazerem. Tudo isto é expresso pelo eu lírico através de um sublime
jogo de metáforas que dá mais amplitude à imaginação do leitor.
Na segunda estrofe, o sujeito poético cria uma atmosfera circense, ao
trazer à tona seus pensamentos de criança, relembrando o circo que um dia viu
nesse lugar. Para atribuir a essa parte um caráter verossímil, o poeta emprega
palavras que simbolizam lugares reais nessa sociedade, como “Sarrasani e
Escasany”. Esta é mais uma das características da poética tuñoneana, e se
92
denomina, conforme Nora Domínguez (1980/1986) auto-referência. Além de
utilizar o vocábulo “clown” da língua inglesa para manter a rima e o vínculo com
a imagem do circo, também emprega, nessa parte, a carnavalização das
personagens, embora o anão e o palhaço sejam verdadeiros arquétipos.
Na terceira e quarta estrofe, o eu lírico volta à realidade e continua
retratando esse ambiente periférico portenho. Ainda sobre um olhar realista, ele
deixa subentendido todo o “poder” que a vida marginal exerce nos homens,
criando um ar misterioso ao redor desse espaço. Lugar este onde nem tudo é
revelado, onde a sedução impera e cria uma falsa ilusão de felicidade, através
de festas que iludem os homens, levando-os a uma vida de prazeres.
Na quarta estrofe, a intertextualidade apresenta-se através da expressão
“vida miliunanochesca”, uma alusão ao livro das Mil e uma Noites, enfatizando
ainda mais essa vida de prazeres que é o sonho da maioria dos seres
humanos. A imagem criada neste momento do poema é um cenário vivo
mentalizado a partir de referenciais, como bordéis, prostíbulos e lugares
semelhantes a esses. Nesses lugares ocorrem festas fúteis e grotescas, onde,
muitas vezes, os homens por um momento feliz de prazer levam para suas
mulheres, como um presente amargo, enfermidades. Percebe-se, nesse
momento, que o poeta com o artifício da linguagem conseguiu produzir uma
imagem bem definida, capaz até de revelar um “aspecto social” (In: LYNCH,
1997:5). Embora o ambiente seja repudiado pela sociedade, por seu papel
negativo, é a partir dessa negatividade que se espelha o poema:
¡Qué lindo es ir a ver
la mujer
la mujer más gorda del mundo!
Entrar con un miedo profundo
pensando en la giganta de Baudelaire...
93
Nos engañaremos, no hay duda,
si desnuda nunca muy desnuda,
si barbuda nunca muy barbuda
será la mujer
Pero ese momento de miedo profundo...
¡Qué lindo es ir a ver
la mujer,
la mujer más gorda del mundo!
Na penúltima parte, o sujeito poético retorna ao circo e imagina certa
personagem desse lugar. Só que agora ele trata essa personagem de forma
grotesca. O poeta novamente joga com a intertextualidade quando cita “la
giganta”, elemento também da composição poética “A giganta” de As Flores do
Mal, do poeta francês Charles Baudelaire (1985:149). Esse elemento, por sua
vez, cria um elo entre sonho e fantasia, imprimindo um pouco de erotismo à
obra, já que nesse poema um homem passeava pelo corpo desnudo da
giganta.
Em toda essa parte há a alusão à personagem do circo, “la mujer más
gorda del mundo”, que causa curiosidade e espanto em todos os homens.
Assim, pode-se afirmar que essa mulher por despertar imaginação e fazer
parte da fantasia circense é mais um dos arquétipos tuñoneanos.
Y no se inmute, amigo, la vida es dura,
con la filosofía poco se goza.
Si quiere ver la vida color de rosa.
Eche veinte centavos en la ranura
Na última parte, o eu lírico volta a se dirigir ao leitor e, mais uma vez, o
convida a entrar nesse mundo de sonho e fantasia, em que tudo é alegre e
perfeito. O poeta afirma que com filosofia pouco se aproveita a vida e que para
vivê-la intensamente é necessário experimentá-la, senti-la, deixar-se levar por
94
ela sem medo. A vida cor de rosa que o sujeito poético vem oferecendo ao
longo do poema é uma fuga do real para o imaginário do prazer.
O poeta empregou muitas metáforas nesse poema por acreditar,
certamente, na força semântica dessa figura de linguagem, a metáfora, um
elemento capaz de unir o real e o sonho. O porto simboliza a “vida dura”, pois o
trabalho é árduo, as pessoas que circulam são na maioria marginalizadas,
quase tudo de mais baixo e promíscuo se encontra no porto. Já o circo
simboliza a vida de sonho e fantasia, de brincadeiras e esperanças, “vida cor
de rosa”, que leva o homem a retornar a sua infância e sonhar com uma vida
melhor. Tanto o porto quanto o circo surgem como imagens da cidade e, em
algum momento, vistas aos olhos sensíveis de um autor, podem se transformar
em poesia, sendo configuradas como alegorias da vida, por fazer parte das
fantasias que cada indivíduo guarda em sua memória.
Em cada um desses espaços poéticos se encontram pessoas comuns a
esses lugares, que servem portanto para caracterizá-los: no porto, estivadores,
marinheiros, mulheres livres; no circo, palhaços, anões, mulheres barbudas...
Todas essas personagens não só se constituem como arquétipos, mas
também como alegorias da ilusão, visto que através delas o homem pode viver
o real ou regressar à infância e sonhar em ser feliz...
“Música de los puertos”
O poema “Música de los puertos”, pertencente ao seu primeiro livro de
poesias intitulado El violín del diablo (1926), é uma evocação a sonoridade
peculiar e particular da diversa musicalidade existente no porto. Em uma longa
e única estrofe poética, o poeta propaga sua lírica à semelhança de uma
95
balada rítmica, a fim de representar toda a musicalidade portuária de uma
forma intensa e singular.
Em meio a um lugar transitório, o sujeito do poema observa atentamente
os sons originais que perambulam pelas redondezas do cais e provocam
constantes mudanças nesse ambiente aglutinador de sonhos e desesperanças:
Música de los puertos siempre igual
y distinta.
Banderas con iguales colores
para todos los ojos
iguales y distintos.
Proa de la esperanza. Jugo de nostalgia.
Enamorada de todos los caminos.
Mujer. Entregadiza y sabia.
Te estiras a lo largo de los muelles
o entras en los recovecos de las almas.
Inclinas tu cansancio en las tabernas
o te cuelgas de las ventanas
huérfanas de pedazos de cielo
en la desesperanza.
Os cincos primeiros versos do poema se referem à diversidade na
unidade que há dentro do ambiente portuário, pois o mesmo acolhe e recebe
pessoas de inúmeras procedências, com cultura e visões de mundo diversas
que encontram na música uma possibilidade de fraternidade, a partir de uma
linguagem universal que é a melodia.
O escritor argentino Jorge Luis Borges (1921:115), em seu texto La
metáfora, define a mesma como “uma identificação voluntária de dois ou mais
conceitos distintos, com a finalidade de gerar emoções”, sendo assim as
metáforas “Proa de la esperanza” e “Jugo de nostalgia” simbolizam
sentimentos angustiantes, pois na primeira metáfora a esperança está posta
em último plano, já que a proa se encontra na parte dianteira da embarcação e
na segunda, a nostalgia se encontra na forma “suco”, líquida, ou seja,
liquidificando-se, esvaindo-se devido sua fluidez. Desta forma, a música age
96
como propulsora da esperança e da nostalgia, por quanto desperta no homem
emoções a partir de alguma melodia.
Enamorada de todos los caminos. Mujer. Entregadiza y sabia. Nos
versos 7 e 8, o sujeito lírico humaniza a música, pois além de denominá-la
como mulher ele atribui à mesma características humanas. A imagem
privilegiando o afetivo é uma das características da poética tuñoneana.
Segundo o escritor Kevin Lynch (1997) em seu texto “A Imagem do
Ambiente”, cada pessoa possui inúmeras associações com alguma parte de
sua cidade, e a imagem de cada um está impregnada de lembranças e
significados. Essas imagens não são somente de elementos visuais, concretos
e determinados. Cada ser humano, ao longo de sua vida, é capaz de aglutinar
milhões de imagens visuais e, também, sensoriais. Nos versos 9 e 10, “te
estiras a lo largo de los muelles o entras en los recovecos de las almas”, notase que a música admitida como “sujeito humanizado”, não só transita por
espaços físicos e integrados à cidade, como “muelles” (cais do porto), mas
também invade espaços menos acessíveis, como o espaço emocional através
da metáfora “recovecos de las almas”, (caminhos das almas). A música é
capaz de cumprir o papel de instigadora e integradora da imagem visível e
invisível, pois, ao se ouvir uma melodia, que se assoma ao indivíduo, este
imediatamente a transfere para seu espaço emocional, resumindo o lugar à
emoção por meio desse objeto abstrato que é a música. Isto não significa que
exista um espaço dual, mas sim um só e mesmo espaço que, por um lado, é
exterioridade e, por outro interioridade, particular manifestação “in-tensa” do
“ex-tenso”, como afirma o escritor Fernando Aínsa (1998) em “Del espacio
97
mítico a la utopia degradada: los signos duales de la ciudad en la narrativa
latinoamericana”.
O professor Carlos Azambuja (2003), em seu texto “A Aurora da
Imagem”, afirma que as imagens se constroem primordialmente pela sensação
de uma presença, não importa se concreta, verdadeira ou não. Esta é a
condição para a sua própria formação e deve ser distinta de nós mesmos, os
seus observadores. Logo, a ideia de música dos portos permite ao leitor mais
atento percebê-la como fruto da experiência de se fazer contato, encontrar algo
que o afeta a ponto de ser sentido dentre o conjunto de todas as outras coisas
que o envolvem. Dessa forma, a partir de vivências noturnas dentro do eixo
cidade-porto, o eu lírico mais uma vez cria imagens surreais por meio da
humanização da melodia portuária, ao se referir à “mujer”: “Inclinas tu
cansancio en las tabernas o te cuelgas de las ventanas huérfanas de pedazos
de cielo en la desesperanza”, nos versos 11, 12, 13 e 14. Essa emoção e ação
tipicamente humana atribuída a elementos não humanos, forma uma imagem
que transmite a sensação de desilusão e abandono, ratificada pelos
substantivos “cansancio” e “desesperanza”.
Nas tabernas a música sempre se faz presente e, geralmente, seu
funcionamento começa à noite e termina na madrugada, quando, cansados, os
músicos pendem de seus instrumentos para descansar e pensam na vida que
se segue e em seus projetos particulares. Os desejos dos homens estão
aludidos nos versos acima citados através de dois símbolos: “ventanas
(janelas)” e “cielo (céu)”. Segundo o Dicionário de símbolos (CHEVALIER,
2002: 512), a janela “enquanto abertura para o ar e para luz, significa
receptividade”, ou seja, eles esperam, porém esta aspiração do homem
98
representada pelo vocábulo céu (significando “a consciência, o absoluto das
aspirações do homem, como a plenitude da sua busca, como o lugar possível
de uma perfeição do seu espírito[...]” (In: CHEVALIER, 2002: 230)) não
transmite esperança, porque as janelas são órfãs de pedaços de céu, são a
própria desesperança. Logo, a imagem sensorial é a da melancolia, imagem
esta que é bem peculiar à música, já que a mesma pode suscitar no homem
lembranças de um tempo perdido.
Música de los puertos siempre igual
y distinta.
Políglota. Tus velas
se izaron a los vientos más extraños.
Patio sonoro, evocador y bueno
para los hombres que no saben patios.
No tienes ni cabellos ni manos.
Eres sonido nada más.
Entras despacio, convincente.
Avivas el fuego de una pipa
y desarrugas una frente.
Música de los puertos siempre igual y distinta. Políglota. Tus velas se
izaron a los vientos más extraños. Nos versos 15, 16, 17 e 18, o sujeito-poético
reafirma a intercontinentalidade da música portuária, denominando-a de
poliglota e configurando nesta característica toda liberdade rítmica que a
música transmite. Ela é a única capaz de ser igual, pois sua construção está
explicitamente vinculada aos sons e, ao mesmo tempo diferente, devido à
melodia particular de cada cultura. É nessa diversidade da unidade que a
música se torna universal e concomitantemente nacional; assim como a poesia,
que quanto mais nacional, tanto mais internacional se torna, de acordo com as
próprias palavras de González Tuñón: “La poesía es internacional, porque
99
cuando más nacional es, más internacional se torna”(In: ORGAMBIDE,
1997:33).
Como já afirmado anteriormente, ao longo da poesia, o eu lírico
humaniza a música, mas também a revela apenas como som, nos versos 21 e
22, “No tienes ni cabellos, ni manos. Eres sonido nada más”. Para ele, embora
a música também possa assumir forma personificada, humanizada em
sentidos, ela também é presença abstrata, não possui nenhuma característica
física.
Nos versos que se seguem, o eu lírico cria uma atmosfera nebulosa, a
partir da construção de uma imagem musical penetrante e persuasiva que
entra sorrateiramente e convence, no verso 23, “Entras despacio, convincente”.
Essa imagem transmite ao leitor uma agradável visão ilusória de que, através
da música, tudo se transforma, até mesmo os ânimos, versos 24 e 25, “Avivas
el fuego de una pipa y desarrugas una frente”.
Música de los puertos.
Muchas y una.
Pirata que te robas los espíritus
y los llevas de un muelle hacia otro muelle.
Faro invisible y guiador de oídos.
Rompes un ademán o apagas un cuchillo,
o transformas una blasfemia en padre-nuestro.
Ya vengas tormentosa y lúgubre
o ya pierdas tu tono siniestro.
Música de los puertos. Muchas y una. Uma vez mais, o eu-poético usa o
paralelismo da diversidade na unidade para afirmar a característica única da
música, aquela que trabalha com varias realidades de uma forma singular, para
atingir as emoções.
100
Nos versos seguintes, o eu-poético cria uma imagem móvel, fluida e
lírica para exaltar o som melódico do porto. A partir de símbolos, como “pirata”
e “cais do porto (muelle)” e das metáforas “farol invisível, guiador de ouvidos”, o
poeta atribui à música o poder de manipular nosso espírito, nosso imaginário
por meio do real, do som. Versos 28 e 29, “Pirata que te robas los espíritus y
los llevas de un muelle hacia otro”. A música, personificada na forma de pirata
rouba o espírito humano. Se por um lado, os piratas são os ladrões dos mares,
que costumam roubar objetos valiosos; por outro lado, o “pirata da poesia”
objetiva roubar o que há de vital no ser humano, sua alma, e levá-la de um
lugar a outro. Essa mobilidade espacial pode ser entendida como uma
mobilidade sensorial, imaginária, pois é o “pirata-música” que conduz essa
mobilidade a partir do primeiro cais, tomado como foco da realidade em que
está inserido o homem e, do segundo cais como o destino final, o imaginário. É
por meio do real que o homem atinge o imaginário e a música é o meio capaz
de realizar essa transição. Além de transportadora da realidade para o
imaginário, a música está colocada em posição de norteadora da alma
humana, verso 30 “Faro invisible y guiador de oídos”, pois o farol que aí está é
invisível, ou seja, o farol não guia pela visibilidade real, mas sim pela
“visibilidade imaginária”, pelos sentidos humanos. É por meio do ouvir que ele
norteia o espírito do homem.
Rompes un ademán o apagas un cuchillo, o transformas una blasfemia
en
padre-nuestro,
nestes
versos,
o
poeta
coloca
a
música
como
transformadora da realidade. Ela é capaz de modificar o ambiente (“rompes un
ademán”), já que acaba com formalidades, de apaziguar situações de perigo
(“apagas un cuchillo”), pois, conforme o Dicionário de símbolos (Chevalier,
101
2002:414), “o símbolo da faca é, frequentemente, associado à ideia de
execução, de morte, vingança[...]” e até de transformar palavras grosseiras em
vocabulário imaculado (“transformas una blasfemia en padre-nuestro”).
Os últimos versos encerram uma imagem totalizadora da música, que,
ao longo do poema, o poeta vem detalhando. Para ele, a melodia portuária
pode ser traduzida numa imagem transitória de tensão e melancolia “Ya
vengas tormentosa y lúgubre”, a se dissolver (“o ya pierdas tu tono siniestro”)
numa imagem agradável. Toda diversidade da música do porto, toda tensão e
melancolia, deságua na harmonia, na unidade rítmica que age como
modificadora da realidade, transportando o individuo a “outra realidade” mais
agradável e feliz. Percebe-se que em todo o poema o poeta joga com
percepções e sentimentos caóticos que se dissipam em sensações prazerosas,
ou seja, percebe-se que a partir do caos emerge a beleza poética e, conforme
González Tuñón (1976: 143): “La poesía es ese maravilloso equilíbrio entre la
armonía y el caos”.
‘‘Adiós a Buenos Aires’’
A composição poética ‘‘Adiós a Buenos Aires’’ a ser analisada,
pertencente ao livro El violín del diablo (1926), foi selecionada por se tratar,
como o título sugere, de uma saudação à cidade. A poesia está divida em 9
estrofes, com números de versos dissonantes e um verso livre. Nela, encontrase um sujeito lírico que canta meticulosamente cada ambiente citadino do seu
cotidiano em tom de partida. As imagens poéticas construídas ao longo das
102
estrofes permitem ao leitor transitar por cada local mais tradicional da capital
argentina e senti-la em completude nessa época áurea do início da
modernidade urbana.
Como um cantor apaixonado, o eu lírico caminha pelos versos do poema
exaltando e ressaltando uma Buenos Aires com características particulares.
Declarando seu amor por essa urbe ele, imagisticamente, vai construindo, no
decorrer da leitura poética, imagens citadinas que de forma ambivalente
cumprem um papel social e ao mesmo tempo emocional. A partir dessa
imagem indissociável, percebe-se que o sujeito poético e a cidade se fundem
em uma só forma, como se se tornassem uma única e mesma Imagem. Já não
vive o sujeito sem a cidade, já a cidade não existe sem o sujeito. Ambos estão
imbricados, ambos são dependentes de si mesmos.
¡Adiós, Buenos Aires!
Por que te quiero tanto me voy por los caminos
para envolver recuerdos
en la cinta hiladora de la soledad.
Supe encontrar tus ríos de silencio
pero tropiezo siempre
con tus Niágaras de bullicio.
Y supe andar sintiéndome, creándome
un Buenos Aires dentro de mí mismo.
Na primeira estrofe da poesia encontramos uma imagem emocional,
carregada de afetividade, pois o eu lírico, ao se despedir, declara seu amor
pela cidade. Porém, essa não é uma despedida tradicional, mas sim uma
despedida com sentido de partida ao íntimo interior dessa urbe, com o intuito
de imersão nas profundezas dela, para conhecê-la na plenitude do seu âmago.
Por isso, o poeta declara: “Por que te quiero tanto me voy por los caminos para
envolver recuerdos en la cinta hiladora de la soledad.” Ele afirma que vai pelos
103
caminhos dessa cidade para envolver recordações na fita fiadora da solidão.
Logo, ele quer ter experiências para guardar consigo mesmo, na sua solidão
poética e a metáfora “cinta hiladora de la soledad”, será a forma empregada
por ele para retê-las.
Na segunda estrofe, o sujeito do poema ingressa mais profundamente
no íntimo citadino. Ele afirma (“Supe encontrar tus ríos de silencio pero tropiezo
siempre con tus Niágaras de bullicio.”) que soube encontrar o profundo silêncio
da cidade, mas sempre tropeça nas suas intensas inquietações. A partir das
metáforas “tus rios de silencio”/ teus rios de silêncio e “tus Niágaras de bullicio”/
tuas “cataratas” de inquietação, verifica-se que o eu-poético atribui qualidades
humanas à cidade (silêncio/inquietação), outorgando a ela status de “ser vivo”.
Num grau de intimidade ímpar, nos versos “Y supe andar sintiéndome,
creándome/ un Buenos Aires dentro de mí mismo”, percebe-se o quanto o
sujeito do poema está inserido no cotidiano da cidade, o quanto ele e a sua
musa, a cidade, são cúmplices, pois agora ele a absorveu a tal ponto que ela
passou a existir na existência dele próprio. Ambos se fundiram em uma única
Imagem.
Pode-se dizer que a Imagem instalada dentro da poesia resulta do que
surgiu do encontro entre o sujeito e o objeto e, segundo o professor Carlos
Azambuja (2003: 3):
Ela é, portanto, formada a partir de tudo aquilo que
um sujeito pode perceber sobre um objeto que se
apresenta, ou seja, se faz presente para este
mesmo sujeito. A Imagem é assim, fruto da
experiência de se fazer contato, encontrar algo
que nos afeta a ponto de ser destacado dentre o
conjunto de todas as outras coisas que nos
envolvem. Perceber imagens é, portanto, uma
constante produção de diferenciação.
104
Assim, essa Imagem indissociável será refletida em toda a construção
do poema, onde o sujeito (poeta) e o objeto (a cidade) mutuamente envolvidos
estão em contínuo processo de resignificação.
Nas estrofes abaixo, percebe-se que o poeta ao olhar para dentro de si,
para a cidade contida nele próprio, encontra imagens que lhe são afetivas,
imagens que fazem parte da sua vida social; desta forma ele exalta o seu
invisível pelo visível que lhe é significativo, pois “é possível ver o invisível, que
o visível está povoado de invisíveis a ver”. (In: NOVAES, 1988:32).
En la boca, cafés de camareras.
Frivolidad amena por Florida
y en las pistas livianas de tus patios
guitarras encendidas.
Historias en el mundo más anciano
de tus calles- y la emoción de hierro
de tus puentes, tus grúas y tus tráficos
y en los poemas de tus rascacielos…
Allá una fiesta en torno de la lámparaaquí un Hotel “Las Palmas” siniestro
revuelo de murciélagos de calma.
Y más allá una novia
rezando su rosario de soledades
en el rincón de un pueblo,
pueblo con una luna grande,
con una luna grande en los cabellos.
“En la Boca, cafés de camareras.”, a partir deste primeiro verso da
terceira estrofe, o sujeito-poético inicia seu percurso pelas localidades mais
conhecidas e frequentadas da capital argentina (La Boca e Florida). Pela
experiência do olhar, que segundo Marilena Chauí (In: NOVAES, 1988:33) é,
ao mesmo tempo, sair de si e trazer o mundo para dentro de si, ele consegue
exprimir toda a sua visão integradora da sociedade na qual está inserido.
Em seus versos poéticos “Frivolidad amena por Florida/ y en las pistas
livianas de tus patios/ guitarras encendidas”, ele desenha mentalmente e
105
emocionalmente uma Buenos Aires desconhecida para muitos, porém
reconhecida por todos. Por meio dos substantivos “Florida, pátios, guitarras”
(Florida/quintal/violão) o poeta transmite esse reconhecimento popular, pois a
rua Florida é a mais tradicional rua de Buenos Aires, onde se encontra tudo; O
quintal é um elemento primordial para a cultura portenha, visto que era nesse
ambiente onde aconteciam as melhores festas de milongas; e o violão é
representante emblemático do maior patrimônio imaterial argentino, o tango.
Já com o emprego dos adjetivos “frivolidad amena, livianas, encendidas”
(superficialidade agradável/leves/intensas), o poeta marca com sutileza as
características de cada um desses espaços citadinos. Cada pessoa é um ser
no mundo e o mundo é no ser, singular. Cada indivíduo tem seu olhar próprio
para o mundo e o mundo para ele, contudo os elementos simbólicos de cada
cultura permitem ao indivíduo certo reconhecimento mutuo e, assim ao se
reconhecer no objeto, ele se reconhece a si mesmo e aos outros, num
constante processo de unidade cultural.
Nos quatros primeiros versos da quarta estrofe, o eu lírico destaca a
passagem do tempo de outrora: “Historias en el mundo más anciano de tus
calles” ao tempo moderno nos versos 2, 3 e 4 (y la emoción de hierro/ de tus
puentes, tus grúas y tus tráficos/ y en los poemas de tus rascacielos...),
imagens da modernização da cidade, pois a chegada “dos metais”, pontes,
gruas, tráficos e dos altos edifícios, emocionam o sujeito poético ao ponto de
ele comparar a cidade a uma poesia. Para González Tuñón as cidades e seus
elementos como: ruas, monumentos, pessoas, músicas, rotina..., sempre o
comoveram, o impulsionaram ao canto poético. Sua admiração e o desejo de
ser/estar na urbe, de se integrar a ela fizeram com que ele vivesse em plena
106
harmonia com esse espaço geográfico e o traduzisse ao ápice de suas
emoções líricas.
Dos versos 5 ao 9 da quarta estrofe, o poeta trabalha com três
perspectivas. Por meio dos advérbios de lugar (Allá, aquí) e da locução
adverbial (y más allá) ele estabelece uma relação de imagens que revelam não
só lugares existentes (Hotel Las Palmas) como também hábitos citadinos
(fiesta y una novia rezando su rosario). Nesses três olhares para a cidade o eu
lírico se põe na condição de espectador, como se ele estivesse olhando em
todas as direções e observando as características emocionais de cada uma
delas: nas festas ao redor da luz, alegria; no hotel, possivelmente abandonado,
“siniestro revuelto de murciélagos de calma” (sinistro vôo de calmos morcegos),
terror; a noiva rezando seu rosário de solidão, tristeza. E nesse “suburbio” do
povo (en el rincón de un pueblo) onde a noiva está rezando, vê-se retratada
uma imagem de esperança. Esta seria uma possível alusão a “luna grande”,
término empregado pelo poeta espanhol Federico García Lorca em seu livro
Romancero Gitano, pois para García Lorca “luna grande” representava
esperança. Desta forma o poeta recupera esta expressão para designar a
esperança portenha através dos versos (pueblo con una luna grande/ con una
luna grande en los cabellos.)
Luna Park- puñetazos que se rompen
en las cornetas radiotelefónicasy la vulgaridad grasienta y fofa
de tus pobres burgueses extranjeros.
Y a pesar de tartufos y cretinos,
el río allá, - ¡magnífico de olas!
Maipú Pigall – pintura en los espíritus
y pose hasta en las almas…
pero un color, mucho color subido
y Alsina y Maldonado y las Barracas
en un temblor de tangos compadritos
Y allá, el río magnífico.
107
Y el silencio dormido de tus calles más solas.
Na quinta estrofe, o eu lírico segue descrevendo os ambientes mais
particulares de Buenos Aires.
A partir da citação de lugares ícones da
Argentina como: Luna Park, Maipú Pigall, Alsina, Maldonado, Barracas, se
estabelece com o leitor uma relação de reconhecimento, já que o emprego
deste artifício ocasiona um efeito de verossimilhança. Muitas são as imagens
citadinas refletidas no olhar atento e sensível do poeta e muitos são os
sentimentos despertados pela unicidade dessas imagens. O sujeito do poema
não nos priva de nenhuma sensação, e ao plasmar suas imagens ele desperta
em nós leitores uma Buenos Aires que só um legítimo portenho conheceria.
Desta forma, nós, meros espectadores de sua lírica, como que enfeitiçados
pelo apelo emocional de suas imagens sensoriais, imergimos em seus versos e
nos sentimos co-participantes na construção de sua imagem citadina. Nós
passamos a ser dela e ela nossa, cria-se uma identificação que nos outorga,
temporariamente, a condição de cidadãos dessa cidade. Só a poesia é capaz
de aflorar nossos sentidos, pois só ela é capaz de penetrar na essência de
nossa alma.
Ainda nessa estrofe, a partir do quinto verso, o sujeito do poema segue
expondo as imagens citadinas que permeiam seu mundo, um mundo que é ao
mesmo tempo marginal e magnífico: “Y a pesar de tartufos y cretinos, el río
allá, - ¡magnífico de olas!”. O lado marginal está representado pelos “tartufos e
cretinos” (impostores e cretinos). Deve-se recordar que “tartufo” é o nome de
uma comédia francesa de Moliére de grande êxito. Nela, tartufo é um grande
mentiroso e enganador. Já o lado magnífico está revelado por meio da imagem
108
do rio, um rio que é intocável e esplendoroso, pois está lá (allá), o Rio de La
Plata. Este simboliza a vida, pois dele se recebe seu alimento mais precioso, a
água.
Nos versos 7, 8 e 9: “Maipú Pigall- pintura en los espíritus y pose hasta
en las almas…pero un color, mucho color subido”, através de sutil jogo de
palavras, o eu lírico cria uma imagem de sedução e usando também o recurso
da auto-referência ele sinaliza este particular local que era o luxuoso cabaré
Maipú
Pigall,
onde
os
grandes
nomes
do
tango
realizavam
suas
apresentações, suas composições musicais, onde dançavam de maneira mais
íntima, enfim onde as notas dos instrumentos musicais, como se fossem
pinceladas do pintor, fluíam até se assomarem à perfeita harmonia da melodia,
para eclodir em tango, em pintura audível. Por meio da analogia “pintura en los
espíritus” e “pose hasta en las almas”, ele destaca a importância deste
ambiente, o qual penetrava no interior de seus freqüentadores para se refletir
como imponente obra de arte. Contudo, esse ambiente de garbo e elegância,
emblemático para a geração da época, também apresentava um lado mais
frívolo e envolvente “pero un color, mucho color subido”, que quer dizer, mas
uma cor, muita cor intensa, forte e atrevidamente sedutora. Desse modo, a arte
musical e a arte da sedução se unem em um mesmo espaço, tornando-se uma
imagem dual que marca tanto o espaço físico, geográfico como um espaço
emocional, afetivo.
Nos versos 9, 10, 11 e 12, o sujeito do poema segue seu percurso pelos
confins de Buenos Aires ressaltando outros lugares onde se ouviam e tocavam
tangos como Alsina, Maldonado e as Barracas. Ambos eram clubes de bairros
portenhos que competiam com os grandes salões de tango a exemplo de
109
Maipú Pigall. A imagem poética revelada para essas localidades são de locais
mais simples onde muitas vezes o tango despertava provocações entre seus
praticantes, por isso o poeta cita: “en un temblor de tangos compadritos” (em
um temor de tangos que buscam briga, que provocam). Em meio a toda
discrepância desses lugares (Maipú Pigall e os clubes de bairro) o rio, “Y allá,
el río magnífico”, continua lá, intocável, fiel integrante da composição do
imaginário portenho. Essa imagem sugerida pela repetição das palavras “rio” e
“magnífico” sinaliza a importância da identificação dos argentinos com o rio, o
quanto ele é referência emblemática para a população, pois conforme palavras
do professor Carlos Azambuja (2003:5), “é fundamental na sensação de uma
imagem que a sua presença, nos afete, faça-se sentir e, com isso, produza
sentido”. Por isso, a imagem do rio é tão substancial e integradora para os
habitantes da cidade.
O verso livre também é um recurso estilístico muito usado na poética de
González Tuñón. Em “Y el silencio dormido de tus calles más solas”, o sujeitolírico reflete a imagem noturna da cidade, uma vez que as ruas estão a sós,
silenciosas e adormecidas. É interessante observar que as ruas (calles) da
cidade funcionam como se fossem os vasos comunicantes de um lugar a outro,
de um bairro a outro... elas atuam como caminho para a observação, como elo
de percepção das imagens citadinas. O poeta ao olhar por meio delas percebe
diferentes realidades e as transfere para sua lírica, por isso ele é capaz de
olhar em todas as direções e trazer localidades diversas para dentro de seu
objeto impalpável, a poesia.
Y esas cuatro mujeres
y esas cuatro pensiones
(y esos recuerdos locos de mi infancia
110
vestidos de tambores
que suenan siempre al borde de mi alma).
Y un narguilo en el turbio rincón de un café turco
Y un narquile en el turbio rincón de un café turco
Las paredes de un año que dejó entrar el frío
por los cuatro costados
por los cuatro puntos cardinales del vicio:
lo bello, lo sublime, lo ridículo y lo sombrío.
Na sexta estrofe, por meio de indagações indiretas o sujeito do poema
se interroga a si mesmo buscando sentido para algumas imagens citadinas de
seu cotidiano. Ao mesmo tempo em que ele estabelece uma relação com o
tempo presente, ele também alude a uma época de sua vida, a infância,
criando um paralelismo entre o tempo atual e o tempo passado. Percebe-se
que a infância é instigadora, pois suas recordações loucas estão sempre
repercutindo como um eco em sua alma. O retorno a infância é algo muito
comum nas poesias iniciais de Raúl González Tuñón, pois é nela que ele busca
o íntimo e o sensível de seu eu mais puro, para retratar em sua lírica. Ela
funciona como uma imagem propulsora do subconsciente. Muitas são as
poesias desse primeiro livro cuja temática aponta para o mundo infantil do
poeta.
Na sétima estrofe, o eu-poético segue com suas indagações expondo
por meio do seu olhar as imagens citadinas que o seduzem. Ele joga com a
tradução da palavra “narguilo” que em árabe é conhecida por “narquile,
ressaltando a diferença entre a cultura moura e a cultura argentina. Sabe-se
que, entre outras coisas, uma parede serve de proteção contra o meio externo.
Nos versos 3, 4, 5 desta estrofe, o eu lírico cria uma alusão de não proteção,
pois as paredes que deveriam proteger deixaram entrar o frio por todos os
lados, em todas as direções. Desta forma, a imagem construída é a de um
111
sujeito que está experimentando a cidade de forma plena, viciando-se nela, por
isso ele expressa sentimentos tão antagônicos como o belo e o ridículo, o
sublime e o sombrio. Ele, como um experimentador citadino, se vê imerso em
tudo o que a cidade lhe apresenta: “Las paredes de un año que dejó entrar el
frio por los cuatro costados por los cuatro puntos cardinales del vicio: lo bello, lo
sublime, lo ridículo y lo sombrio”.
Observador atento da urbe que o contagia, o sujeito do poema, na oitava
estrofe, alude a uma imagem devastadora, porém peculiar para a sociedade,
principalmente artística, da época:
(Posada de la Desolación: dos hombres que
llevaban la mano a las narices,
abufandados de desconfianzay un polvo amargo como la desgracia…
Luego, una ausencia de maravedises
con una ausencia de esperanza.
A voz que emana do objeto, ou seja, a imagem suscitada evidencia a
postura crítica desse sujeito-lírico, pois põe no visível o que o vocábulo
“Desolación” evidencia, fazendo ser o que é dito. Desta forma, a imagem
refletida no poema é a imagem da droga, da cocaína e o que ela provoca na
vida do ser humano. Toda a visão do eu-poético aponta para um olhar
reflexivo, que analisa criticamente o consumo da droga, por isso o uso de
parêntesis inicial, destacando essa estrofe das outras. O uso da palavra
“Posada”- pousada, também faz referência a esse momento em que o poeta
pousou o seu olhar sobre esta determinada imagem a registrando em sua
memória. O eu lírico descreve esta estrofe como se estivesse diante de uma
cena urbana. É possível perceber o ato de usar a droga, “llevaban la mano a
112
las narices, abufandados de desconfianza- y un polvo amargo” (levavam a mão
aos narizes, cheios de desconfianza- e um pó amargo) e a consequência desse
uso, “como la desgracia... Luego, una ausencia de maravedises con una
ausencia de esperanza” (como a desgraça… Logo, uma ausência de dinheiro
com uma ausência de esperança). A construção dessa imagem poética está
enraizada no olhar aguçado do poeta que provoca, instiga e evoca o objeto,
que se apresentando é tomado de assalto pelo uso da memória.
Yo ya recuperé mis entusiasmos
en la tienda del sol.
¡Adiós Buenos Aires!
Me voy a las montañas de los guías
y a los llanos de los rastreadores
para volver con guías en el alma
y rastreadores en el corazón.
A última estrofe revela uma imagem restauradora. O olhar do poeta,
após ter percorrido a madrugada e ter registrado várias imagens em sua
memória, agora olha para o nascer do dia com entusiasmo, “Yo ya recuperé
mis entusiasmos en la tienda del sol”. É como se após embriagar-se com a
cidade, ele agora fosse despertado com um novo vigor, um novo estado de
ânimo que o impelisse a seguir adiante, amalgamando ainda mais experiências
com esse objeto que provoca e evoca sua íntima voz poética. Em tom de
despedida dessa alta madrugada, o sujeito do poema estabelece uma nova
caminhada para essa urbe. Ele afirma “Me voy a las montañas de los guías y a
los llanos de los rastreadores para volver con guías en el alma y rastreadores
en el corazón”, ou seja, ele vai buscar orientação e pistas em todos os lugares
dessa cidade, dos mais altos aos mais baixos (montanhas e planícies), para
assim poder retornar com a alma centrada e o coração cheio de vivências.
113
Por fim, percebe-se que o eu lírico construiu toda a imagem poética
baseado na descrição sensorial/emocional/visual de Buenos Aires. Ele transita
por toda a cidade desde zonas mais elitizadas como Maipú Pigall, Luna Park e
Florida a lugares mais humildes como Alsina, Maldonado e Barracas. Como um
cantor citadino, ele evoca múltiplas imagens que se convergem nele mesmo e
a partir dele recobram sentido para fundir-se em uma única Imagem, onde
observador e observado se conjugam mutuamente em constante fluir de
resignificação. Assim, Raúl González Tuñón propaga sua crença de que o
homem está no mundo e o mundo está no homem, ambos são Imagens
indissociáveis e estão comprometidos com seu tempo, experimentando e
amplamente sendo experimentados.
“Poetango de la belle époque”
O poema “Poetango de la belle époque” a ser analisado a seguir, foi
extraído do livro La veleta y la antena de 1971, a penúltima obra poética de
Raúl González Tuñón. Tanto A la sombra de los barrios amados (1957), como
La veleta y la antena constituem uma etapa de síntese da obra tuñoneana.
Como afirma a escritora Nora Domínguez:(1980/1986:130. TA)
… nesta etapa convivem em uma situação de
equilíbrio o chamado poeta social e o mais
individual. É, talvez, sua etapa mais homogênea;
nas anteriores havia em todos os casos um livro
que destacava sobre os outros, aqui não se pode
fazer essa distinção.
114
Em La literatura resplandeciente (1976), seu único livro teórico,
González Tuñón desenvolve, como afirmado anteriormente, o conceito de
realismo romântico, o qual, segundo ele, deve estender todas as artes,
inclusive a poesia. Segundo ele (1976:10):
No hablamos de arte puro, de arte por el arte y
tampoco proponemos un arte de propaganda,
decimos
sencillamente
arte,
simplemente
literatura, que cuando es auténtico no es ni ha sido
jamás evasión, sino reflejo y aun invención. […].
Un arte, una literatura, en fin, que considerando
todos los matices, los caminos infinitos, la vasta
geografía de la realidad y la imaginación, tiene sus
raíces en la tierra y de ésta asciende “flamboyant”
(como la pintura abstracta del chileno Vargas
Rosas) enviada hacia la altura, hacia el futuro. No
nos gustan las clasificaciones, pero lo
designaríamos como realismo romántico.
Contudo, este conceito se fortalecerá nesta etapa de conjunção entre
fantasia e consciência, que são os espaços a que nos remetem La veleta y la
antena. Raúl González Tuñón utiliza o substantivo realismo acrescentando a
ele o qualificativo romântico. Para o autor, houve realistas românticos em todas
as épocas. O escritor argentino afirma:
Eso que tiene el arte auténtico: la realidad (no su
copia, mediocre, además, y de inspiración
libresca) el hecho humano y el artista que lo
interpreta, lo desentraña, lo explica, lo muestra, lo
da vuelta, si se quiere, lo inventa, pero siempre
real, humano y aún demasiado humano. Y
absolutamente en proyección universal. (De “El
camino” en Hay alguien que está esperando,
1952)
Em “Poetango de la belle époque”, percebe-se a presença desse
conceito mesclado ao Surrealismo. O título do poema sugere esse realismo
115
romântico. O eu lírico, para marcar seu envolvimento total com a poesia, joga
com as palavras numa apreciável junção de poeta + tango, criando assim um
neologismo que nomeia o poeta como um cantor e, no caso de González
Tuñón, um cantor da cidade. Essa identificação com a música é revelada pelas
palavras do próprio autor em seu texto auto-retrato (In: ORGAMBIDE, 1997:33)
quando afirma: “porque no soy un químico del verso sino un cantor, en el
sentido más neto de la palabra”.
Em quase toda sua obra, percebe-se a marca da musicalidade, tanto
que muitas de suas poesias foram transformadas pelo Quarteto Cedrón em
canções, especialmente em tangos, como é o caso de “Eche veinte centavos
en la ranura”, “Juancito Caminador”, “La Libertaria”, entre outras.
Este poeta-cantor também faz menção à corrente à qual pertence, ou
seja, apresenta sua filiação literária, no caso, à La Belle Époque. Esta foi uma
época na história da França, que começou no fim do século XIX e durou até a
Primeira Guerra mundial. A belle époque foi considerada uma era de ouro da
beleza artística e intelectual, marcada por profundas transformações culturais,
que se traduziram como novos modos de pensar e viver o cotidiano. Ao se
intitular “poetango de la belle époque”, o sujeito do poema atribui a seus versos
toda a grandeza daquele período áureo da arte literária. Ele evoca para sua
poesia todo o glamour que rodeia este período de inovação, emblematizando e
embelezando, desta forma, sua lírica.
O poema está divido em duas partes, cada parte com três estrofes de
versos díspares. Na primeira parte, o sujeito poético revela uma cidade com
seus locais e personagens típicas. São imagens alusivas a uma cidade que se
modificou, abandonando o encanto do antigo para ceder passagem ao novo,
116
ao moderno. Na segunda parte, o eu lírico se dirige diretamente à cidade e, em
meio aos relatos de experiências passadas neste ambiente urbano, renova a
esperança de futuros cantos poéticos.
La noche de la razzia los herreros cantaban
y quedaron después de la tormenta súbita
la sombra vigilante del árbol esquinero
y el silencio insolente del arrabal herido.
… Sin embargo, Raúl, ¿no te acordás?
tenía su encanto, eh, la belle époque,
mirada desde el ángulo de nuestra adolescencia
implacable y ansiosa.
Nos quatro primeiros versos, da primeira estrofe, dessa primeira parte, o
poeta indica uma mobilização perante o foco de sua observação (a cidade),
não somente o pensamento, a verbalização (linguagem – ideologia) do poeta,
mas também os mecanismos (consciente-inconsciente) de sua percepção.
Esses dados de sua percepção pouco informam sobre sua visão poética,
porém indicam a presença de uma atitude receptiva, mobilizadora e, sem
dúvida, sensível aos estímulos do real concreto.
Nos versos acima, o autor descreve um acontecimento situando tempo
(“la
noche”)
e
espaço
(“arrabal”).
Por
meio
de
metáforas,
registra
conscientemente os problemas sociais que ocorrem nesse ambiente citadino:
“sombra vigilante” / “arrabal herido”. Também mostra a preocupação da
população, aqui representada pelos ‘herreros’, que vivem nos subúrbios,
atentos a possíveis tribulações.
Ainda se pode entender esses versos como se o poeta estivesse
mergulhado no subconsciente e de lá fosse arrancado ferozmente, para logo a
seguir refletir sobre o real. Esta interpretação seria possível se comparada a
este momento literário do eu-poético com o próprio momento do autor. Como já
foi citado, o início da obra tuñoneana está marcado pelo Surrealismo, depois
117
esse estilo é sobreposto por um estilo mais social, mais tenaz e, nas suas
obras posteriores, o escritor retoma do interior de sua memória o fabuloso e
inquietante mundo dos sonhos.
Uma das características da poética de Raúl González Tuñón é o
emprego de citações e referências. É o que se verifica no quinto verso da
estrofe, “... Sin embargo, Raúl, ¿no te acordás?”, quando o eu lírico utiliza,
apesar de ter alterado o pronome pessoal tú para vos, um verso do poema
“España en el corazón”: “Raúl, te acuerdas?” elaborado pelo escritor chileno
Pablo Neruda (2004:118) em homenagem ao autor argentino. Essa
intertextualidade adotada estabelece uma interação entre o texto original e o
que o cita, revelando um novo objeto de leitura.
Com referência ao mesmo verso, a pontuação adotada no início é um
recurso muito recorrente na poética tuñoneana, pois, segundo seu criador,
permite que a imaginação do leitor, a partir do que já leu, crie suas próprias
inferências, construindo assim uma significação individual. Esse apelo à
recordação do autor feito pelo eu lírico é uma forma de personificação, que
reforça a vinculação do gosto de ambos por um mesmo estilo de época; ao
mesmo tempo, marca um saudosismo, uma nostalgia por aquela época que
tanto assombrava aos jovens escritores do mundo, sedentos daquela “nova
arte”.
Absorvido pelo inconsciente14, o eu-poético perambula por esse
ambiente oculto, voltando seu olhar para antigos espaços e formando imagens
aparentemente desconexas do mundo real.
14
[Inconsciente] o psquismo não é redutível ao consciente e [...] certos “conteúdos” só se tornam
acessíveis à consciência depois de superadas certas resistências [...]. In: Lampanche e Pontalis (1992).
118
Por sobre los exilios y las muertes,
los gobiernos volteados y el último tranvía
que dobló hacia la vaga estación del ocaso
veo ahora en la gris esfumatura de la distancia,
que es el tiempo,
el íntimo esplendor de la Vuelta de Rocha
con su perfil de patio, con su siempre domingo.
La tarima del trío musicante en Barracas
palpitando en el ritmo grave y cordial de un tango
y ese Bar y Billares saliendo a la vereda
donde una vez Aieta sacó viruta al fueye
junto al cine Buen Orden cuyo antiguo esqueleto
cayó luego de haber proyectado en su sábana
la última película del hondo cine mudo.
Nesses versos, o sujeito do poema emerge num túnel do tempo e
recorda fatos e locais que estiveram presentes em sua vida em um momento
anterior. Cita a sucessão de governos fracassados que se estabeleceram na
Argentina, explicitando como foi o término dos mesmos “exilio y muertes”. E
como representante do último sopro de imaginação, que conduz o processo
criador até a nostalgia, o “tranvía”. Esse condutor, ao chegar a alguma estação,
qualquer ponto, permite que o eu lírico vislumbre, através do tempo, a época
esplendorosa de um local familiar “perfil de pátio”, extremamente vivaz, que era
a “Vuelta de Rocha”. Este ambiente portenho era conhecido pelos vários
eventos de domingo e, principalmente, pelas apresentações de tango.
No poema, há uma identificação do bairro “Vuelta de Rocha” através da
recordação. A partir da observação do sujeito-poético, se conhece esse espaço
urbano. Contudo, esse olhar é mais maduro, o olhar do viajante. González
Tuñón já havia percorrido diversos países e vivenciado inúmeras culturas, logo,
o seu olhar havia se transformado, e sua cidade agora era vista com outros
olhos. Conforme o sociólogo Sérgio Cardoso (In: NOVAES, 1988:359-360): “[...]
o distanciamento das viagens não desenraiza o sujeito, apenas diferencia seu
mundo”. González Tuñón, apesar de ter conhecido várias localidades, nunca
deixou de ser o mais legítimo portenho e admirador do tango.
119
A nostalgia precede e sucede Raúl González Tuñón. Sua cidade é
nostalgia, é tango. De acordo com Héctor Yanóver (Apud: 55), “Poesía y
música son una misma cosa. Y en la medida que buscamos la expresión de
Buenos Aires, escribimos innumerables tangos con música de poema”.
O autor sempre declarou seu amor pelos bairros dos subúrbios da
capital argentina que fizeram parte de sua vida. Em muitas de suas obras é
possível encontrar referências a alguns desses bairros como el Once, el Judío,
Riachuelo, entre outros. Nessa poesia, ele descreve com saudosismo a região
de La Boca. O eu lírico cita seus bares, sua música, seus cantores e o cinema
Buen Orden que não existe mais. Nada lhe escapa. Com o olhar aguçado do
viajante, ele vai relatando, através de sua memória, fatos, objetos, pessoas que
emergem de seu subconsciente.
De forma quase mecânica, como se mudasse a tela do cinema, o sujeito
poético mergulha ainda mais no interior de sua memória, aproximando-se ao
automatismo psíquico.
Y reflejada en otra pantalla, en la memoria,
pasa ahora la insomne y extraña singladura
del Paseo de Julio con su ángel y sus monstruos.
Los vidrios de colores del bailetín insólito
con su pianola henchida de cálidas mazurkas
y el pop-art inefable de los muñecos móviles
y los juegos lumínicos vibrando
en el inverosímil Salón de Novedades
-donde nació el surrealismocon su violín de lata y el barco en la botella
que amamos para siempre.
Y la noche soltando su empecinado grillo
por la gran selva de cemento.
La buseca del Chanta y el vendedor de globos.
Nessa parte do poema se percebe “o máximo de precisão para o
máximo de desvario", forma que, conforme o escritor mexicano Octavio Paz
120
(1983:15), pode condensar o Surrealismo. A partir de várias enumerações, que
parecem aleatórias, Raúl González Tuñón reflete ludicamente em sua poesia
seu subconsciente. Se anteriormente percebíamos a flutuação do consciente,
agora não mais, posto que há uma profunda absorção interiorizada de suas
percepções mentais.
A insônia também está associada ao subconsciente e, nesses primeiros
versos, a encontramos vinculada à memória. É uma espécie de “memória
inconsciente” ocasionada pela ausência do sono.
A aparente dicotomia “angél/monstruos” forma um jogo análogo a outros
pares, luz/trevas, claro/escuro, bem/ mal, quando o sujeito do poema registra
esse ambiente citadino (“Paseo de Julio”) efetuando um intenso confronto
urbano entre o bem e o mal. Essa dualidade de Raúl González Tuñón é
adequada a sua preocupação também aparentemente dicotômica pela política
e a literatura, o real e o mágico, o militarismo e a aventura, o nacional e o
universal, interesses que não se submetem uns aos outros, mas que se
complementam na visão do poeta por esse mundo. Um mundo que o
perturbava e sempre o assombrava. Ele mesmo declara em seu auto-retrato
(Apud: 32):
Contempla el mundo. Porque contemplando el
mundo se aprenden más cosas que encerrándose
años y años en una biblioteca como hicieron
muchos escritores. Porque contemplando el
mundo uno aprende a luchar por todo aquello que
pueda embellecerlo y contra todo aquello que lo
afea.
De acordo com Mircea Eliade (1991: 8-9), “as imagens, os símbolos e os
mitos não são criações irresponsáveis da psique; elas respondem a uma
necessidade e preenchem uma função: revelar as mais secretas modalidades
121
do ser”. Por meio dessas inúmeras imagens, o sujeito lírico deixa registrado, no
poema, símbolos que são frequentes em sua obra, como: “el barco en la
botella”, “el vendedor de globos” e “el grillo”. Estas alegorias integram o mundo
infantil sempre retomado nos poemas tuñoneanos. A insistente recorrência ao
subconsciente infantil aciona a liberação da memória individual, que
desembocará no surrealismo, uma importante estratégia usada por González
Tuñón para se atingir o inconsciente em suas obras.
No surrealismo, as palavras ganham vida. É como se elas fossem autosuficientes e, por isso, comandassem o fluir do canto imagístico, representado
em versos e estrofes poéticas. Assim, ao mencionar “bailetín” e “mazurkas”, o
sujeito do poema concede ritmo e sensualidade à estrofe já que os dois
vocábulos se referem à dança.
Ainda na mesma estrofe, verifica-se uma vez mais o comprometimento
do poeta com o surrealismo. Ele vê nas grandes invenções do século
(“muñecos móviles”, “juegos lumínicos”) a perpetuação dessa corrente literária:
“el inverosímil Salón de Novedades -donde nació el surrealismo”. Também
marca a importância da supra-realidade em sua obra, pois retoma parte do
título do seu primeiro livro El violín del diablo, “violín” totalmente surrealista,
para demonstrar a retomada desse estilo em sua produção poética.
A imagem desta grande selva de cimento, ou seja, a cidade moderna,
mais uma metáfora utilizada como recurso poético, não afugenta seu canto de
amor e nostalgia de uma urbe que mescla o novo com o antigo. Conforme
Justo Villafañe (2002: 13), “o mundo da imagem esta aí, com seu tremendo
poder de sugestão e sua indubitável influência social, suas incógnitas e
problemas, que exigem uma solução imediata, mesmo que seja ilusória”.
122
Na segunda parte do poema há um direcionamento da observação do eu
lírico, que antes passeava pelas ruas e bairros da cidade, e agora se dirige a
essa cidade como um todo.
Buenos Aires, yo amo tu aire impuro y puro
que inspiró largamente mi verso impuro y puro
a la luz de la estrella del bosque de ladrillo.
Te caminé, te olí, te bebí, te canté:
dejada la bohemia, su lado oscuro y áspero,
nunca olvidé al bohemio ni al francotirador
que vigila en mi sangre.
Em um momento de profunda exaltação lírica, o sujeito do poema
declara seu amor pela cidade, um amor incondicional, pois ama tanto o ruim
quanto o bom (impuro/puro) que ela tem. Essa aparente dicotomia o inspirou a
criar seus versos, que assim como a cidade, são sujos e limpos, e estão
impregnados totalmente com o urbano, mas, principalmente, com o marginal do
lado urbano.
Buenos Aires desde o início da lírica tuñoenana foi cantada
exaustivamente como principal motivo poético. Conforme o escritor alemão
Walter Benjamin (In: PEIXOTO, 2004: 99), “o surrealismo dá voz a esse mundo
de coisas, em cujo centro está a cidade”. González Tuñón fundou a cidade
mediante palavras, contribuindo a edificar uma mitologia portenha que não
estivesse só povoada de marginais, cortiços e lupanares. A poesia trataria de
resgatar do esquecimento cenas de suas ruas, matizes da paisagem e
personagens anônimos, não o épico, e sim o cotidiano; não somente o heroico,
mas também o monótono. De acordo com Kevin Lynch (1997:103), um
ambiente não se apresenta de uma única forma. A cada observador lhe é
atribuída a função de recriar uma imagem mental da realidade, que naquele
momento é captada por seu olhar:
123
O ambiente visual torna-se parte integrante da
vida dos habitantes. A cidade não é de modo
algum perfeita, mesmo no sentido restrito da
imaginabilidade, nem todo o seu sucesso visual se
deve apenas a essa qualidade, mas parece haver
um prazer simples e automático, um sentimento de
satisfação, presença e certeza, que decorre da
simples contemplação da cidade ou da
possibilidade de caminhar por suas ruas.
O sujeito do poema revela sua vivência citadina como experiência desde
o sensorial. Ele emprega os cincos sentidos do corpo humano para retratar
tudo que absorveu da capital argentina. O caminhar é a ação mais completa
porque envolve todos os sentidos. Talvez, por isso Buenos Aires é
representada na poética de González Tuñón de forma constante e incansável.
Ao caminhar vemos, ouvimos, tocamos e sentimos aromas que nos recordam
sabores, enfim, nos envolvemos mutuamente numa interação ímpar entre o
sujeito e o ambiente. Porém, o eu-poético enfatiza essas sensações ao
discriminá-las; “Te caminé, te olí, te bebí, te canté” e registra toda sua comoção
por essa urbe evocadora através de sua música poética. Certa vez, disse o
poeta (In: GONZÁLEZ TUÑÓN 2005:113): “...la música amontonada del
mundo...”. Esta frase é utilizada em outras poesias tuñoneanas e sintetiza a
ideia de uma cidade vivente, em pleno desenvolvimento, que “pulsa” e “olha”
adiante.
A poesia de Raúl González Tuñón é uma tessitura em que o social e o
político se entrelaçam como em uma atitude lírica regida pela nostalgia e pela
ternura. Percebe-se uma confirmação da relação entre sua vida e sua
fundamentação poética: “nunca olvidé al bohemio ni al francotirador que vigila
en mi sangre”. Essas duas vertentes, a lírica e a social, sempre frequentaram
as páginas das escrituras tuñoneanas: o sujeito do poema afirma que
124
abandonou o lado escuro e áspero da boemia, mas que a mesma segue
presente em suas entranhas.
En las cosas que nombro está la poesía
y aún crece en mi duende tu aventura
y se asoma a mis ojos reflejando al destino
de esa magia plural de ciudades que forman
el país argentino, imán de las bitácoras,
en cuyo azul transfondo transcurre la esperanza.
Verifica-se que o eu lírico se intitula nomeador da poesia e, portanto,
detentor do conhecimento poético. Como um sujeito criador, o poeta dá vida às
palavras, aos objetos e aos espaços, transformando-os em alegorias ilusórias.
Conforme Octavio Paz (1983:201. T.A.) “as palavras são paraquedas que se
abrem em pleno voo [...] Antes de tocar a terra, estalam e dissolvem-se em
explosões coloridas”. Desta forma, seria como se os vocábulos se
despregassem do inconsciente poético e fossem se agrupando para compor o
poema e, no momento da leitura, se dissipam.
De acordo com o autor Kevin Lynch (1997: 1), “olhar para as cidades
pode dar um prazer especial”. Na poesia de González Tuñón, encontram-se
indícios de prazer através de detalhes da observação, que funda a constante
exaltação desse ambiente urbano. Para o poeta, a grande aventura do
inconsciente está na comoção, no assombro que os objetos e os espaços
citadinos lhe causam. Esse descobrir, desvendar o desconhecido, surpreender
o destino é que move o sujeito-poético.
Conforme o sujeito do poema, o país é formado por cidades tão plurais
que encantam o transeunte. Essa diversidade é derivada dos muitos substratos
culturais da Argentina, especialmente de Buenos Aires, onde vários imigrantes
se estabeleceram. Os poetas mais originais, que cantaram a capital argentina,
125
advertiram que não se poderia cantar o inexistente e, por isso, buscaram seus
motivos nas histórias simples e nos seres desconhecidos; retiraram seus ídolos
do próprio povo e acrescentaram a cadência do tango à poesia. Baseando-se
nessa busca, González Tuñón retrata como principais elementos inerentes a
sua poética citadina, o simples e o popular existentes em cada lugar.
A imagem espelhada é uma imagem aflorada do subconsciente, uma
imagem do desejo poético sobre Buenos Aires. O eu lírico deixa evidente a
esperança que habita no país argentino, o qual é denominado como
aglutinador de direções “imán de las bitácoras”. A realidade e a imaginação
sobrevivem na memória e afloram por meio dos símbolos empregados pela
poesia. Percebe-se que o eu lírico se relaciona com o poema por meio do
subconsciente, do qual saltam as imagens plurais da sociedade argentina.
Y ese perfil de niebla de ciudades que anduve
-laboriosas, angélicas o canallas y absurdasy el resplandor de las belles époques
en los mapas sutiles de soñados países
que me están esperando en el futuro.
De acordo com o poeta Jorge Luis Borges (In SARLO, 1995: 20. T.A.), “a
cidade é o teatro por excelência do intelectual, e tanto os escritores quanto seu
público são atores urbanos”. Nessa estrofe, o sujeito do poema realiza uma
síntese de seu percurso como espectador desse ambiente. As cidades por
onde andou estão sendo resgatadas de seu subconsciente: “ese perfil de
niebla de ciudades que anduve”. Através de adjetivos “-laboriosas, angélicas o
canallas y absurdas”, o poeta qualifica as cosmópolis que percorreu com seu
canto. Essa dualidade constante entre o bem e o mal (“angélicas o canallas”)
reflete a incansável busca pela exaltação do marginal, não o discriminando,
126
mas revelando a integração entre esses elementos, pois em todo lado negativo
reside o positivo. Conforme Raúl González Tuñón (In SALAS, 1975): “Era un
mundo increíble, canalla, sombrío y tremendo, pero dentro de esa canallería
había algo de angelical también [...] todo lo imaginable y lo inimaginable, un
mundo sórdido y al mismo tiempo puro”.
O olhar analisador que Raúl González Tuñón lança sobre a cidade se
deve a sua obstinada busca pelo novo sem desprezar o antigo. Sérgio Cardoso
(In NOVAES, 1988: 358) em seu texto o “Olhar do viajante” exemplifica essa
forma de enxergar o mundo ao seu redor. Para ele, o olhar não se anestesia na
amplitude de um espaço; ao contrário, está sempre em busca de barreiras que
despertem e fixem sua atenção. Essa procura pelo novo é o que impulsiona
González Tuñón a percorrer o mundo, é o que o motiva a seguir sonhando com
espaços, pessoas ou objetos cotidianos distantes de sua realidade, mas que o
assombram vivazmente e proporcionam a ele projetar-se no amanhã, no
desconhecido de maneira destemida. Para o autor ainda há países a descobrir
e esse é o desejo que mantém pulsando sua imaginação. Certa vez, afirmou
(1997: 48): “y mi corazón continúa alegre y violento como el corazón alborotado
de un mundo nuevo”. Sua fé é inabalável. Não pode deixar de crer, é um
poeta...
“Motivo para una cajita de música”
O poema “Motivo para una cajita de música” a ser analisado a seguir
compõe o livro A la sombra de los barrios amados (1957), que é considerado,
127
pela crítica, como seu livro explicitamente portenho. Mesmo após terem
passados trinta e um anos da publicação de seu primeiro livro, a poesia de
González Tuñón é tão fresca como a inicial. Nessa obra convivem em equilíbrio
o individual do poeta e o social. É uma etapa de síntese do poeta, na qual há
uma conjunção da fantasia e da consciência, que são lugares a que nos
remetem suas obras. O poeta retoma sua escritura inicial carregada de lirismo,
metáforas e arquétipos, embora agora a mesma tenha um matiz nostálgico.
“Motivo para una cajita de música” está composta por três estrofes com
número de versos desigual, além de dois versos livres. Este último recurso é
frequentemente usado na poética tuñoneana.
Qual seria o motivo para uma caixinha de música? Será que ela é capaz
de nos transportar da consciência para o sonho? Sabe-se que caixinha é um
símbolo feminino interpretado como uma representação do inconsciente, mas
caixinha de música teria a mesma simbologia? Essas indagações buscam
responder acerca de um objeto tão comum e ao mesmo tempo tão fantástico.
Ao
abrir
a
caixinha
de
música,
emerge-se
subitamente,
no
subconsciente e, pode-se passar o tempo sem se dar conta dele, é como se o
tempo parasse por alguns instantes. Esse objeto é capaz de produzir
sensações ímpares e fabricar, através dos desejos, os sonhos. Nesse mundo
mágico, que a caixinha de música aflora, nota-se que o escritor empregou esse
título em seu poema, por representar um canto de amor ao cotidiano fabuloso
das ruas do bairro da cidade moderna.
A caixinha, criadora da fantasia, estímulo do inconsciente, está sujeita
ao desejo, sendo, portanto, um objeto que provoca a escritura surrealista.
128
Através das armas da imaginação aliada à poesia, o movimento surrealista
propunha a transformação do mundo.
En otoño, las calles,
en el barrio, se tiñen
de una especial atmósfera, de silencio con alas.
Casi con el aroma de un estío
apenas olvidado.
Son calles como sueños
pero despiertas, lúcidas.
Os três primeiros versos da primeira estrofe anunciam a chegada do
outono, por meio de efeitos causados em certos elementos citadinos, como as
ruas. Para o sujeito-poético essa estação o comove, pois o envolve em uma
atmosfera que desperta sua imaginação, representado no poema pela metáfora
“silencio con alas”. Pode-se entender essa comparação, posto que em silêncio
há ausência de som, supondo-se um estado de inércia. Como asas (“alas”)
simbolizam alçar vôo, a junção dessas duas palavras (“con alas”) significa a
imaginação do poeta no momento de sua inspiração artística. De acordo com o
sujeito-poético, essa atmosfera é especial, pois propicia o mergulho psíquico
aflorando o subconsciente e liberando de forma automática os seus mais
reclusos pensamentos.
À liberação do inconsciente deu-se o nome de Surrealismo, termo muito
empregado durante a segunda fase da vanguarda argentina. Para Guberman,
entretanto, cabe lembrar que a essa parte desconhecida o homem não tem
acesso, ele não consegue atingir o inconsciente, o mais próximo que ele pode
chegar é ao subconsciente. Para o escritor mexicano Octavio Paz (1986:138139. TA), o Surrealismo:
... no parte de uma teoria da realidade: tampouco
é uma doutrina da liberdade. Se trata bem mais do
exercício concreto da liberdade, isto é, de por em
129
ação a livre disposição do homem em um corpo a
corpo com o real. Desde o principio a concepção
surrealista não distingue entre o conhecimento
poético da realidade e sua transformação:
conhecer é um ato que transforma aquilo que se
conhece. A atividade poética volta a ser uma
15
operação mágica.
Essa atitude do poeta em ir de encontro com a realidade está impressa
na poesia pela utilização de um espaço concreto, real, “las calles del barrio”. A
criação dessa imagem, interiorizada e intimista, revela que essas ruas são
conhecidas ou peculiares ao cotidiano do eu lírico.
O teórico Fernando Aínsa (1998:171. TA) sintetiza muito bem a relação
entre o espaço externo e o interno, em que “a espacialidade externa que gera a
ordem urbana tem sempre o reverso de uma espacialidade intensa vivida
interiormente”. Desta forma, apresenta-se um único espaço, revelador tanto do
concreto, do externalizado, quanto do intimista, do interiorizado.
Evidencia-se que esse espaço social (bairros), comum à população, tem
no agente do poema uma representação própria, fruto de seus íntimos desejos.
Assim, o bairro se apresenta como tópico para a nostalgia intimista.
À semelhança do poema anterior, Raúl González Tuñón emprega como
recurso poético marcas sutis dos sentidos humanos, como visão, tato, olfato,
paladar e audição. Nessa primeira estrofe do poema está explicitado o sentido
da visão, pois para perceber a transformação das cores, “las calles [...] se
tiñen”, é necessária a percepção visual. Também nos dois versos que se
seguem, o poeta faz uso do olfato: “el aroma de un estío”. Dessa forma, ele
atribui características humanas a seu poema, ele o humaniza, dando-lhe vida.
15
...no parte de una teoría de la realidad: tampoco es una doctrina de la libertad. Se trata más bien del ejercicio
concreto de la libertad, esto es, de poner en acción la libre disposición del hombre en un cuerpo a cuerpo con lo
real. Desde el principio la concepción surrealista no distingue entre el conocimiento poético de la realidad y su
transformación: conocer es un acto que transforma aquello que se conoce. La actividad poética vuelve a ser una
operación mágica.
130
Ao citar “otoño” e “estío”, o sujeito do poema deixa evidente a recente
mudança de estações. Através dos vocábulos “casi” e “olvidado” se registra
esse fortuito momento, em que a transição de uma estação para outra deixa
seu fugaz aroma. Para o poeta, o outono é a época propícia à imaginação, pois
é a temporada de transformação das árvores, que perdem suas folhas e depois
ganham novas folhagens. Do mesmo modo, atua o sujeito criador, que
abandona conceitos passados, emerge num silêncio e permite a fluidez da
consciência como o vento do outono que se propaga nas ruas, além de lograr
uma nova folha poética.
Na sua busca constante pela perfeição poética, o sujeito do poema se
apropria da imagem das ruas e por meio dessa interação entre o sujeito e o
objeto, ou seja, por essa interferência do homem, o objeto se subjetiva.
Conforme Octavio Paz (1986: 139. TA.), “Nunca é possível ver o objeto em si;
sempre está iluminado pelo olho que o vê, sempre está moldado pela mão que
o acaricia, o oprime ou o empunha”.
No processo de seu delírio, o sujeito do poema pousa seu olhar sobre o
ambiente mais vivaz da cidade, as ruas. Estas são responsáveis pela
circulação da população e de seus bens de consumo. O poeta apropria-se
dessa situação e baseia seu canto nesse espaço social e integrado, como se
quisesse atribuir a sua obra a mesma fluidez e vivacidade das ruas.
No universo das ruas a vida acontece. Esses espaços urbanos quase
sempre habitaram o inconsciente humano, pois eles representam a liberdade e
o desejo de se conhecer o desconhecido. Geralmente o que se procura ou o
que se precisa se encontra na rua, logo, esse ambiente comovedor da cidade é
131
responsável por despertar o desejo e incitar a imaginação, pois como afirma
Octavio Paz (1986: 137. TA):
…o homem tem “poderes” que constituem nossa
própria maneira de ser e se chamam: imaginação
e desejo. O homem é um ser que imagina e sua
razão mesma não é senão uma das formas desse
contínuo imaginar. Em sua essência, imaginar é ir
mais além de si mesmo, projetar-se, continuo
transcender-se. Ser que imagina porque deseja, o
homem é o ser capaz de transformar o universo
16
inteiro em imagem do seu desejo.
O eu lírico compara as ruas com os sonhos, com os desejos ocultos,
com as fantasias que permeiam os pensamentos de todos nós e que através
do inconsciente libertamos. Apesar de essas ruas representarem o “mundo dos
sonhos”, elas são para o poeta despertas e lúcidas, pois carregam a realidade.
Novamente há uma humanização na poesia ao se atribuirem características
humanas, “despiertas, lúcidas”, a um espaço físico.
Soñar es estar vivo.
Siempre amaré estas calles, con su color de pueblo,
cuna de la esperanza, camino del recuerdo.
Sus tendidos crepúsculos y sus mañanas altas
me dieron el fervor. Yo les devuelvo sueños.
Soñar es estar vivo. Com esta afirmação, percebe-se que o sonho é a
força motriz do ser humano. Sem os sonhos continuaríamos existindo? Talvez,
mas deixaríamos de viver, de vivenciar experiências lúdicas, de nos projetar no
futuro. A noção de tempo perderia o sentido, já que o amanhã não teria
qualquer significação na vida do homem. Por isso, para o poeta a necessidade
16
Constituyen nuestra manera propia de ser y se llaman: imaginación y deseo. El hombre es un ser que imagina
y su razón misma no es sino una de las formas de ese continuo imaginar. En su esencia, imaginar es ir más allá
de sí mismo, proyectarse, continuo trascenderse. Ser que imagina porque desea, el hombre es el ser capaz de
transformar el universo entero en imagen de su deseo.
132
de sonhar, de imaginar é vital e a utilização do surrealismo faz-se necessária.
O surrealismo continuará representando um convite à aventura interior, ao
redescobrimento de nós mesmos.
O homem, movido pelo desejo, almeja somar-se à imagem de seu
desejo e assim se transformar em imagem. O homem é imagem, e o
Surrealismo a faz sua.
Através de diversas metáforas, que propiciam a imaginação, funda-se
uma imagem sentimental e subjetiva das ruas. Como foi dito, neste estudo, as
ruas cantadas no poema, provavelmente, têm vinculação com a história do
sujeito poético, que afirma seu amor eterno pelo espaço urbano. Essas ruas
também mostram parte da vida de Raúl González Tuñón. Sabe-se que o autor
cresceu em um bairro de operários, sendo assim, a metáfora “calles con su
color de pueblo” remete às ruas desse bairro repleto de trabalhadores. O poeta
percebe o seu amanhã no espaço social carregado de simbologias; segundo
ele, as ruas carregam a possibilidade do devir, guardam a esperança.
Quando caminhamos por alguma rua, que fez parte de nossa vida,
ativamos o mecanismo da memória e mergulhamos dentro do túnel do tempo,
relembrando episódios que marcaram o nosso viver. Imergimos no consciente
com a intenção de trazer à tona a consciência esquecida. Seria possível
recordar o passado sem interferências fantasiosas? Não podemos garantir a
pureza da consciência anterior, pois o passado é algo pertencente ao
subconsciente, já está impregnado pelo que foi e pelo que gostaríamos que
tivesse sido. Nenhuma pessoa poderia relatar puros acontecimentos de sua
vida sem que os mesmos carregassem substratos imaginativos impossíveis de
se afirmarem como discursos féis ao acontecido. O passado é um tempo que
133
pertence também ao inconsciente e, portanto, um dos mecanismos do
surrealismo.
O convívio diário do poeta com as ruas foi fundamental, pois
proporcionou inspiração para seus futuros cantos à cidade: “Sus tendidos
crepúsculos y sus mañanas altas - Me dieron el fervor. Yo les devuelvo
sueños”. Toda experiência citadina dele propiciou a escritura de sua poesia.
Como uma espécie de retribuição, o poeta devolve para essas ruas a liberdade
do inconsciente, o sonho. O fato de González Tuñón ter sido boêmio das altas
madrugadas, de ter um particular gosto pela vida, principalmente noturna,
aproxima sua biografia a sua poesia. Certa vez, o escritor afirmou “no conozco
nada más conmovedor que la vida”. Assim sendo, após ter usufruído de
madrugadas e recarregado sua energia, o eu-poético se pôs a escrever para
essa mesma cidade, presenteando-a com seu poema.
El poema es sueño.
En otoño, las calles…
En otoño, las calles
melancólicas, sueñan
que viven porque saben
que saben porque sueñan.
O poema para o eu lírico é sonho, já que o sonho vem do desejo e este
vem da imaginação, conformando o inconsciente e o subconsciente que irão
desemborcar no Surrealismo. Nesse sentido, a poesia constituiria, então, uma
expressão do espírito humano.
Na última estrofe, o poeta usa reticências para permitir que o leitor deixe
sua imaginação fluir. Ao empregar essa pontuação também transmite a
sensação do transcorrer da poesia: “En otoño, las calles…”. As ruas estão
134
repletas de melancolia, de tristeza, porém não deixam de sonhar. Essa
melancolia pode ser atribuída ao outono onde as ruas espelham uma imagem
de decomposição da paisagem. É como se não houvesse mais vida e o mundo
estivesse se apagando, visto que as plantas mudam suas colorações ou
perdem suas folhagens. O sonho, então, é o responsável pela vitalidade desse
espaço social, é indispensável para que se mantenha vivo, pulsante no
imaginário citadino.
Através do paralelismo “viven porque saben / saben porque sueñan”, o
sujeito do poema enfatiza sua fé no amanhã. Segundo ele, as ruas fervem, têm
o seu fluir assegurado porque são, antes de tudo, motivadoras do desejo, do
sonho, e esse poder de imaginação, que elas carregam, proporciona sabedoria
e transmissão da cultura popular, dos mitos e lendas tão correntes nas
avenidas citadinas. Sonhar é saber esperar uma nova estação.
3.3- Pelas ruas parisienses “em constante exaltação lírica”
Embriagaos de vino, de poesía o de amor, pero ¡embriagaos!
Charles Baudelaire
Raúl González Tuñón viaja a Paris em 1930. Nesta época a capital
francesa havia se transformado em um centro mundial da vanguarda artística e
havia construído sua reputação entre intelectuais e livres pensadores. Daí, o
constante desejo de inúmeros artistas em conhecer o berço da cultura moderna
e absorver a estética das artes francesas. O poeta argentino não ficou imune a
esse desejo e, ao chegar a Paris, caminhou pela capital francesa e nela
135
aprimorou sua estética literária através de sua obra La calle del agujero en la
media. A partir de sua vivência nessa cidade, ele inicia em sua lírica uma
tentativa de síntese de diversos elementos da poesia contemporânea. No seu
livro, por assim dizer, parisiense, podemos verificar um procedimento já
anteriormente utilizado em Miércoles de Ceniza e que se denomina, conforme
Pedro Orgambide, “inventário” poético.
Este procedimento consiste na tradução do observado em rápidas e
instantâneas referências sequenciais do cotidiano. São tentativas de fixar o
fugaz, porém muda a forma: a primeira maneira rítmica e em cadência do poeta
adolescente é substituída pelo emprego do verso livre, de amplo período.
Também se torna mais evidente sua preocupação social, que aparece
integrada à observação detalhada do poeta que percorre os bares, as ruas, os
fundos de quintal, enfim, as margens de Paris, enquanto enfrenta as
lembranças das imagens semelhantes de sua própria e distante cidade natal.
Essas vivências na capital francesa revelam a influência sofrida por
González Tuñón e contribuem para a transformação do cidadão portenho em
cidadão do mundo. Ainda que carregue sempre dentro de si o amor a sua
pátria e nunca deixe de ser um legítimo argentino, ele agora olha para essa
cidade e se sente parte dela, o que lhe possibilita extrair de Paris sua melhor
essência, conforme atesta a escritora argentina Beatriz Sarlo (2010:303), “seu
eu poético articula a mistura de ‘espírito’ europeu e ‘temperamento’ argentino”,
de forma permanente e inseparável.
Se, nos dois primeiros livros de González Tuñón, o seu particular gosto e
sua
obstinada
busca
por
objetos
poéticos
citadinos
o
aproximam
temporariamente da linha poética de Evaristo Carriego, sobretudo em sua obra
136
La canción del barrio (1912), em sua experiência parisiense, ele afirma seu
estilo próprio e imprime a sua lírica um tom mais pessoal.
Esse poeta adolescente, que a princípio percorre os submundos de sua
cidade natal e do interior de seu país, lutando entre a pureza e a perdição,
chega ao subúrbio parisiense já com um olhar apurado de alguém que
encontra, nesse ambiente, um dos motivos para seu canto poético.
Ao compararmos as duas primeiras obras de Tuñón, El violín del diablo
e Miércoles de ceniza, com La calle del agujero en la media, percebemos
nitidamente uma transformação em sua poética. Desde o título, o livro já
anuncia sua filiação ao Surrealismo, movimento ao qual aprimora em sua
viagem a Paris. O Surrealismo propiciou à estética tuñoneana uma possível
associação da vanguarda e do compromisso político-social, os quais se
percebiam como incompatíveis nos movimentos portenhos de 1925 e,
principalmente, na concepção dos primeiros surrealistas, divididos entre o
materialismo histórico de Marx e as leituras psicanalíticas de Freud.
La calle del agujero en la media é considerado pela crítica como um de
seus melhores livros. Nele, nos encontramos com um jovem ansioso, sôfrego
em desvendar, rastrear cada metro quadrado da cidade, seus lugares e sua
gente, e exaltá-los através da visão do argentino deslumbrado por Paris, mas
que não esquece suas origens.
O livro se compõe de trinta e quatro poemas, escritos em verso livre e
em prosa, que revelam o caminhar de um jovem argentino em Paris. Desde o
título, o poeta impõe seu olhar portenho, agregado a uma perspectiva e uma
paisagem sociocultural diversa. González Tuñón elabora a cidade parisiense
137
através de um discurso fraternal, solidário, participante, em poemas que
excedem a aventura pessoal.
A partir das análises seguintes de alguns poemas elaborados em sua
passagem por Paris, verificaremos o aprimoramento de sua estética, bem
como o amadurecimento do seu olhar poético e social para com a urbe
moderna.
3.4- O segundo caminhar: Paris, a cidade do êxtase
Nesta etapa do presente estudo, além de apresentarmos a cidade
parisiense, seus elementos constitutivos da construção poética tuñoneana,
também observaremos correspondências entre as imagens poéticas de Buenos
Aires e de Paris, sugeridas nos versos de González Tuñón.
Raúl González Tuñón, poeta que voltava o seu olhar para a periferia e
que vivia em Buenos Aires, acompanhava atentamente a transformação do
espaço urbano, bem como dos cidadãos que estavam se adequando àquele
novo ambiente e àquela nova forma de pensar a cidade.
Em meio a essa assimilação da urbe moderna, González Tuñón
seleciona os subúrbios e suas personagens como objetos para sua poética.
Esses lugares e essas personagens, que parecem não acompanhar os
avanços da cidade, são descartados, marginalizados, sendo excluídos daquele
novo espaço urbano. Por isso, González Tuñón opta por cantar, também em
seus versos, estereótipos como o mendigo, o cego, a prostituta, os boêmios,
que são salientados com a chegada da modernidade.
138
O escritor argentino, por seu ofício de jornalista e correspondente, tinha
presente em sua vida as viagens, que muito lhe agradavam, pois era a partir
delas que o autor se inteirava das culturas de outras regiões e do ambiente de
outras cidades, podendo observar criticamente o surgimento e crescimento
desse novo espaço urbano. Logo, as viagens de González Tuñón se
transformam em condição indispensável para a construção de sua poesia,
conforme afirma Beatriz Sarlo (2010:302): “A viagem se torna, assim, uma
necessidade e uma condição da literatura”. Esta condição pode ser constatada
no poema “La cerveza del pescador Schiltigheim”, que abre La calle del agujero
en la media:
Para que bebamos la rubia cerveza del pescador
Schiltigheim es necesario no asustarse de partir y
volver, camaradas. Estamos en una encrucijada
de caminos que parten y caminos que vuelven.
Em permanente contato não somente com o mundo ao seu redor, mas
também com a literatura mundial, Raúl González Tuñón não poderia deixar de
relatar em seus poemas essa transformação citadina. Contudo, para esse
jovem poeta, a experiência de apreensão do fenômeno urbano, em terras
francesas, funcionaria como um divisor em sua vida e obra.
“Las viejas catedrales”
Ao chegar ao Velho Mundo, por meio de sua sagaz observação do
espaço citadino, Tuñón percebe uma cidade em evolução e uma cidade que
ostenta seu ar histórico. Desta forma, o autor não reconhece somente a nova
139
cidade, a antiga é para ele tão ou mais expressiva que a moderna. Muitos de
seus poemas exaltam a convivência do obsoleto com o moderno, duas cidades
em uma só, convivendo harmoniosamente.
A exaltação ao antigo pode ser observada no poema “Las viejas
catedrales”, onde o poeta se coloca a aclamar um elemento arquitetônico e
emblemático para Europa: suas catedrais.
Nesta composição poética,
González Tuñón revela essas edificações de forma bem peculiar. Canta em
seus versos tudo o que acompanhou esses templos do Velho Mundo, inclusive
o surgimento da nova cidade. Não despreza a história dessas construções; ao
contrário, as localiza no tempo e na topografia, tratando-as ainda com certa
imponência dentro desse ambiente de grandes avanços industriais.
Para uma melhor análise de “Las viejas catedrales”, optamos por dividir
o poema em três partes. Em cada uma delas se encontram marcas específicas,
como na primeira, em que o poeta tem com a catedral uma relação mais
sensorial e descritiva do seu ambiente interno. Na segunda parte, ele passeia
pela “católica urbe parisiense” e cita exemplos de grandes catedrais dessa
cidade, ressaltando o ambiente externo nos quais estão situadas. Na terceira
parte, o sujeito lírico trata da questão histórica que essas igrejas
experimentaram, passando a ser emblemáticas.
Na primeira parte, verificam-se as sensações de olfato, audição, tato e,
especificamente, da visão. É esta que possibilita o registro das outras, pois se
pode sentir não só com os olhos, mas também com a boca, com o ouvido, com
o nariz e com as mãos. Assim, o olhar impõe ao sujeito um ato relevante, mais
reflexivo e contemplativo. Vejamos o poema:
140
Amo las viejas catedrales.
En las cuchilladas de sus troneras
adivino a la Edad Media fusilando al mundo.
Amo la música helada de sus vitraux
y el olor a sagradas vestiduras bajo las arcadas que en
la noche
son curiosa asamblea de ángeles y murciélagos.
Los recintos azules poblados por el aliento de una
época
cuando los hombres aún no habían conquistado a
Dios.
Y el corazón de cera de sus vírgenes y las mutiladas
imágenes
y el olor húmedo de las santerías,
encrucijada de sombras que antes fueron realidad en
la tierra
y anunciaron la peste, la muerte, el hambre y la
guerra.
No primeiro verso do poema, o eu lírico afirma seu amor por esses
templos do cristianismo, ratificado ao longo da composição poética. Com isso,
percebemos seu primeiro êxtase perante a cidade. Como o olhar primário do
estrangeiro, o sujeito apreende de forma contemplativa o mobiliário urbano,
atribuindo-lhe sentido na constituição desse espaço citadino.
No segundo e no terceiro versos, o poeta faz alusão a uma época
marcante para a igreja católica, a Idade Média. Assim, ao se colocar em um
tempo anterior, González Tuñón instaura, no universo poético, uma crítica a
essa época em que a Igreja Católica cometeu muitas crueldades. A presença
simbólica de “cuchilladas” (navalhas), por exemplo, remete ao poder bélico que
essa instituição detinha, permitindo-lhe “fuzilar o mundo”.
Do quarto ao décimo oitavo verso, o eu lírico descreve o ambiente
cristão, realizando uma série de composições metafóricas reveladoras de
imagens sinestésicas, como “música helada” (música gelada), “olor a sagradas
vestiduras” (cheiro de sagradas batinas), “aliento de una época” (hálito de uma
época), “olor húmedo de las santerías” (cheiro humedo do beatismo). Essas
141
metáforas manifestam uma apreciação ao ambiente interno das igrejas, mas
sutilmente revelam uma crítica à Igreja.
A imagem criada do quarto ao sétimo verso alude ao ambiente litúrgico
como um lugar frio onde, ao cair da noite, luz e trevas se misturam. A antítese,
outra figura de pensamento da poética tuñoneana, está presente na alusão ao
tradicional embate visual de “ángeles y murciélagos”, que simbolizam a
convivência dessa luz com as trevas.
Do oitavo verso ao décimo primeiro, revela-se a imagem de um
momento específico do espaço eclesiástico, onde este agia como impedimento
para que se estabelecesse a relação direta do homem com Deus. Portanto,
essa imagem permite ao leitor “visualizar” essa época e também perceber a
crítica subliminar à posição da igreja católica.
A Idade Média, período que González Tuñón aborda no poema as
deteriorações sociais e econômicas, surge a partir do décimo quinto verso até o
décimo oitavo, pela simbologia “encrucijada de sombras que antes fueron
realidad en / la tierra / y anunciaron la peste, la muerte, el hambre y la / guerra.”
As sombras marcam esse momento histórico, tratado por muitos historiadores
como um período de trevas para a história da Europa.
Após uma descrição interna das catedrais, na segunda parte, o eu lírico
descreve
externamente
duas
grandes
catedrais
francesas,
ícones
arquitetônicos do cristianismo, sem deixar de citar outro ícone, La Sainte
Chapelle:
Amo las viejas catedrales inmóviles, definitivas,
sonoras,
clavadas en el verde corazón de la Europa.
Esos trasatlánticos de Dios, tan viajeros,
que son amados de los pájaros y contra cuyos muros
142
discurren al sol los mendigos y los ciegos.
A Nôtre Dame de París venían las palomas y los
juglares
y una ciudad nació bajo su sombra fresca.
La Sainte Chapelle presenció duelos de ángeles;
he ahí los cristales que nos hablan del color de su
sangre.
Más allá, en un país de bebedores de sidra
hace tiempo que la bella durmiente – del cielo aguarda
a que un nuevo fervor la despierte: he dicho Chartres.
Na segunda parte do poema, do primeiro ao terceiro verso, as palavras
do eu-poético refletem a magnitude que essas igrejas representaram,
representam e representarão, visto que para González Tuñón elas são
“inmóviles, definitivas”, ou seja, estão petrificadas no tempo e no espaço
urbano, remetendo-nos ao passado que já não é cabível na presente realidade.
O sujeito poético também as localiza no ambiente citadino, referindo-se a Paris
como o “verde corazón de la Europa”.
Do quarto ao sexto verso, visualizamos uma cena cotidiana e comum
dentro do cenário que envolve as catedrais. González Tuñón atribui a esse
espaço toda a imponência que ele exige, já que o poeta, simbolicamente, é um
“viajero” (viajante) e presenciou muitas mudanças através do tempo,
incorporando, assim, status de um dos “transatlánticos de Dios”. Este ambiente
(onde geralmente visualizamos os pássaros, que se escondem nas silhuetas
das catedrais) é também o cenário onde encontramos os marginalizados, os
miseráveis, como o “mendigo” e o “ciego”. González Tuñón resgata essas
personagens descartadas pela sociedade moderna e as dignifica em sua
poética. Nela, esses elementos aparecem como integrantes dessa cidade.
Dessa forma podemos encontrar o cego, em seu poema “La calle del agujero
en la media”, com alegria e felicidade, “el ciego está cantando”.
143
Do sétimo ao décimo sexto verso, observamos a construção de rápidas
imagens que se movimentam no poema a partir da referência nominal das
emblemáticas catedrais francesas, postas em ordem cronológica de edificação.
Estas, por meio do reconhecimento espacial e cultural, estabelecem com o
leitor uma identificação, como se este fosse o espectador de uma cena da
história. O poeta, ao citar Nôtre Dame, “conta” um pouco da história da capital
francesa que foi construída ao redor dessa catedral.
A imagem da Sainte Chapelle faz surgir dos seus vitrais rosáceos para o
poeta os versos “cristales que nos hablan del color de su sangre”. Por fim,
chegamos à última parada, a cadetral de Chartres. Também é reveladoramente
histórica e geográfica a imagem construída nessa cena, pois o poeta deixa
evidente a localização desse templo em outra cidade parisiense, através do
emprego da locução adverbial de lugar “más allá”. Além disso, o sujeito-lírico
faz alusão a um fato histórico ocorrido nessa catedral: grande parte dela foi
destruída em um incêndio. Depois do ocorrido, ela foi reconstruída, por isso,
“un nuevo fervor la despierte”.
Como podemos observar, a partir da poesia tuñoneana, o leitor pode
viajar não só pelas cidades francesas, mas também pela história que as
envolve. A poesia de González Tuñón torna o leitor co-participativo em sua
viagem, ao mesmo tempo em que informa sobre os fatos históricos e sociais
das urbes. Na obra tuñoneana, história e poesia caminham lado a lado, em um
contínuo contar e cantar os espaços citadinos que o extasiaram, como afirma
Orgambide (1998:155):
[...] A poesia é parte da história, sim, mas também
interprete das sutis transformações do tempo. [...]
Para Tuñón, [...] ela é simplesmente, variáveis de
144
um só e compartido transcorrer – individual e
histórico – onde o poeta é, “memória do tempo”,
na medida em que interpreta e exalta a comum
aventura dos homens. [T.A.]
Na terceira e última parte, ainda olhando para o passado dessas
catedrais, González Tuñón vê uma cidade anterior, que carrega em si a
História da Humanidade, transmitindo-a no tempo presente, ou seja, ele a
reconhece nas marcas temporais, que a integram à história do homem na
sociedade:
Amo las viejas catedrales.
Son del tiempo de los enanitos, de los trasgos y de los
gnomos
y de los alquimistas de pesados grimorios.
Y del Papa de los Locos.
Fueron la otra taberna en la vida de Utrillo.
Las inscripciones de sus tumbas hicieron la poesía.
Los colores de sus vitraux hicieron la música.
Las historias de sus santos prepararon las revoluciones
y sus intrigas
fueron largo tiempo adorno del mundo.
Hoy, yo adoro el olor de sus túneles,
los secretos de sus tabernáculos,
las figuras de sus hornacinas,
sus vidrios de losanges
y la atrevida imaginería de sus pórticos y sus sagrarios
Oh, viejas catedrales, inmóviles, definitivas, sonoras,
Clavadas en el verde corazón de la Europa.
¡Oh, Transatlánticos!
Do primeiro ao sexto verso do poema, percebemos a alusão ao passado
histórico e lendário da cidade, através de símbolos como “enanitos, trasgos,
gnomos” (anõezinhos, duendes, gnomos). Estes aludem às lendas primitivas
da humanidade, sendo inicialmente relatados por alquimistas em seus livros de
misticismo e rituais (grimorios). Na sociedade moderna adquirem status de
seres fantasiosos pertencentes à mitologia. Já a referência a “Papa de los
Locos” e a “Utrillo” estabelecem vinculação com fatos históricos que
aconteceram no início da formação das cidades. “Papa de los Locos” alude à
145
“Festa dos Loucos”, realizada pelo corpo eclesiástico da igreja católica, onde
se elegia alguém como Papa e, dentro da igreja, com as portas trancadas, se
cometiam grandes sacrilégios, uma vez ao ano. Outra personalidade existente
foi o pintor “Utrillo”, que era alcoólatra e após se livrar do vício se torna fanático
pelo catolicismo. Por isso o poeta afirma que las catedrais “fueron la otra
taberna de Utrillo”, comparando catedrais com tabernas, devido à obsessão do
pintor por ambas.
Do sétimo verso ao décimo primeiro, o eu lírico discorre sobre outros
ambientes internos das catedrais, como: os cemitérios dos clérigos, muitas
vezes localizados na nave da igreja, apresentando inscrições sobre a vida e o
repousar de seus sacerdotes. Também os vitrais, que o poeta associa à música
desses templos, uma vez que favorecem a acústica do templo. Ainda, têm-se
as histórias das batalhas dos santos católicos que estimularam as grandes
guerras, bem como suas intrigas, as quais seduziram, durante muitos séculos,
grande parte da humanidade.
Do décimo segundo ao último verso do poema, percebemos que o
sujeito-lírico, após emergir em particulares e históricas recordações sobre as
catedrais, submerge desse tempo de outrora para reintegrá-las no tempo
presente, através do advérbio “hoy” (hoje) e, consequentemente, direcionar o
leitor, tornando-o cúmplice passivo de suas reminiscências. A permanente
adoração à presença esplendorosa das catedrais fica mais uma vez evidente
nos três últimos versos, onde o poeta as exalta de forma reiterativa por meio da
interjeição “Oh!”. Desta forma, percebemos que o olhar extasiado do poeta é
um olhar de quem não só reconhece o processo histórico dessas construções,
mas também admira a beleza e a suntuosidade de suas formas. Assim, ele
146
amalgama seus sentimentos de caráter pessoal com outros de caráter coletivo,
constituindo sua poesia, conforme Pedro Orgambide (1998:66), em “uma sorte
de romântico anarquismo político”. Para o autor
A fusão, desde uma estrita observação política,
pode parecer ingênua (só ressalta um
inconformista sentimento antiburguês desde uma
ótica individualista), porém a poética de Tuñón
adianta, a feliz dualidade do poeta social e do
poeta lírico de quem inserta sua autobiografia em
uma história geral dos homens. [T.A.]
É notável que o poeta argentino registre em seus versos a magnitude da
igreja católica através dos tempos embora, por mais que ela ainda conserve
seu caráter sagrado, não seja mais aquela imaculada e intocável dos séculos
passados. Antes, a igreja católica com sua aura era contemplada de longe e
incontestavelmente. A partir da aceleração urbana, ou seja, da modernidade,
essa contemplação foi reduzida, contestada. Isso acarreta a decadência da
imperiosidade desse sistema religioso, de sua aura e, ainda que o olhar do
estrangeiro reconheça a perda dessa mácula religiosa, ele percebe a
imponência
poderosa
de
suas
edificações
históricas,
inevitavelmente
extasiando-se diante delas.
“Poema del Boulevard Saint Michel”
Muitas ruas e localidades parisienses foram cantadas em La calle del
agujero en la media. Seja Montparnasse seja Boulevard Saint Michel ou
localidades periféricas, González Tuñón faz um recorte e traça um plano:
147
coloca no centro uma margem que efetivamente viu, e para a qual encontrou
uma forma. Os estabelecimentos sofisticados ou os precários bares, os
grandes ou humildes cabarés, as importantes personalidades ou o povo
desprestigiado, marginalizado, todos se encontram e dialogam na poesia
tuñoneana em uma aparente oposição, mas que, ao se sintetizarem, compõem
em totalidade o espaço citadino da capital francesa.
No “Poema del Boulevard Saint Michel”, encontramos essa unidade que
foi amplamente empregada em sua obra. O poeta transita desde ambientes
sofisticados até os mais populares, que integram as ruas de Paris, tornando-os
elementos significativos na vinculação do homem com o cenário urbano e
conferindo-lhes autenticidade. Esse “caráter de veracidade” empregado a partir
da citação de nomes de pessoas reais, de lugares representativos para as
cidades, dos costumes peculiares de cada região, é uma característica da obra
poética de González Tuñón.
Para facilitar a análise, dividimos esse poema em prosa em cinco partes.
Na primeira, o eu lírico, no momento presente, indaga aos leitores sobre alguns
espaços dessa metrópole. Na segunda, ele se refere ao Boulevard Saint Michel
com uma espécie de saudosismo dos estabelecimentos e das pessoas que
passaram por este espaço, auxiliando na composição do passado dessa rua.
Na terceira, o poeta faz uma descrição atual citando alguns espaços que são
emblemáticos nesta cidade. Na quarta parte, o eu lírico realiza uma profunda
exaltação à cidade luz e, na última parte, ele realiza uma espécie de reflexão
sobre este cenário urbano e seus componentes.
Já na abertura do poema, percebemos este sujeito-poético totalmente
integrado à cidade, como se dela fizesse parte. Para acentuar a intimidade com
148
o ambiente, González Tuñón lança mão da linguagem coloquial de seus
habitantes, aproximando-se dessa emblemática rua parisiense e estabelecendo
com ela uma unidade intrínseca:
El viejo Bul Mich, la calle del mundo.
¿Ustedes conocen sus ventanas grises, sus fanfarrias,
su alegría de colegial en libertad, sus muchachas,
el Hotel Daciá, donde vive mi amigo Daniel Schweitzer,
el Luxemburgo y el Cabaret des Noctambules?
Nessa primeira parte, encontramos um sujeito-lírico totalmente íntimo da
cidade ao ponto de compartilhá-la com o leitor. Ele não se sente um estranho
em Paris, já está totalmente adaptado à urbe e sua gente. O sentimento do
desenraizar na poesia tuñoneana é o que a impulsiona desde as margens
citadinas, primeiramente portenhas, ao patamar internacional, afirmação
ratificada por Beatriz Sarlo (2011:284): “... a poesia de RGT descreve um
itinerário a partir da margem cosmopolita em direção ao internacionalismo”.
As perguntas realizadas por González Tuñón, através da citação de
características do Boulevard Saint Michel com suas janelas acinzentadas, suas
fanfarras, sua alegria de estudantes (está próxima à Sorbonne), suas garotas,
seu luxuoso hotel Daciá e seu famoso Cabaret Noctambules, aguçam a
curiosidade do leitor e, consequentemente o atraem, levando-o a ingressar no
universo citadino parisiense. Dessa forma, o poeta “de posse” desse olhar
acentuado realiza suas reflexões acompanhadas por esse “leitor-viajante”.
Na segunda parte, González Tuñón caminha por essa rua observando
seus antigos estabelecimentos e sua gente, e construindo imagens poéticas
para os mesmos. Usando uma série de adjetivos (“antiguos”, “descamisados”,
“hondas”, “exóticos”, “canallas”, “fanfarrones”) ele os qualifica. Este artifício,
149
empregado pelo poeta, além de caracterizar sua poesia, nos oferece subsídios
para conhecer a forma de ver a vida do poeta e como ele a representa, já que
trataremos mais adiante de um possível pacto autobiográfico entre autor e
personagem.
El viejo Bul Mich de los antiguos puesteros
y los boliches de estudiantes y de pintores descamisados.
Encrucijada de hondas librerías y tugurios exóticos,
de canallas rincones en donde soñaron y bebieron
veinte poetas, ya olvidados
y fanfarrones lansquenettes.
Ao percorrer o Boulevard, o sujeito do poema, com um olhar sensível,
saudoso e deslumbrado, retrata uma rua com memórias importantes para a
cidade: antigos mercadinhos (“antiguos puesteros”), de bares simples para
pessoas com pouco dinheiro, como estudantes e pintores pobres (“los
boliches”), de grandes livrarias (“hondas librerías”), de espeluncas exóticas
(“tugurios”) e de malandras biroscas (“canallas rincones”) onde, em um tempo
passado, os poetas e os mercenários (“lansquenettes”) beberam e sonharam.
Com o poeta, o leitor pode passear por esse ambiente e imaginar a imagem do
Boulevard Saint Michel da década de 30.
Na terceira parte da composição poética, o sujeito do poema continua
seu perambular citadino destacando elementos significativos de Paris.
Contudo, agora ele se retira do passado e se posiciona no presente (“Hoy”),
transportando o leitor para o tempo atual:
Hoy tras el paredón de Père Lachaise
descansa aquella gente miserable y sutil,
traviesa y errante.
Oscar Wilde, con su corona seca de letras doradas que
dicen:
“A mi inquilino”
150
se acuerda, se acuerda de cuando atravesaba
rumbo a la Closerie des Lilas
el viejo Bul Mich, al que tal vez yo no vuelva jamás.
Yo, de quien dirán: Otro poeta ya olvidado
y que en él me interné alucinado
volviendo de los muelles con cuatro libros raros
y una espesa borrachera
conseguida en el turbio rumor de los mercados.
Ao longo do poema, percebemos que González Tuñón executa um
constante movimento de “ir e vir” do passado para o presente. Esse movimento
está vinculado à memória do sujeito-lírico e a seu expressivo conhecimento dos
hábitos locais, que lhe permitem tratar do passado dessa localidade com a
mesma propriedade de um citadino parisiense, e olhar para o presente e para
si mesmo de forma reflexiva, reconhecendo-se como um estrangeiro nessa
urbe. Por isso, ele pode abordar os que estão no cemitério Père Lachaise,
recordar um ambiente (“Closerie des Lilás”) que era habitual para os
intelectuais, como Oscar Wilde, e, ao mesmo tempo, se questionar sobre a
possibilidade de voltar ao Boulevard, revelando, assim, sua estrangeiridade.
Nos cinco últimos versos, o eu lírico se volta para si e relata suas
experiências no Boulevard Saint Michel. Reflexivo, se coloca no mesmo lugar
daqueles “vinte poetas” da parte anterior do poema, no lugar em que nenhum
artista deseja estar, no esquecimento (“ya olvidado”).
A quarta parte do poema revela uma rua singular, na qual quase todas
as pessoas do mundo se encontram:
Recodo de los gitanos.
Puerto embanderado de canciones de todas las lenguas
y de todas las voces.
Circo del arte, feria de la cultura humana, camino a
Montparnasse.
A partir da reverência a essa rua internacional, González Tuñón se põe a
exaltá-la. Essa “calle del mundo”, forma como o poeta se refere a ela no início
151
do poema, está marcada como epicentro mundial (“puerto embanderado”),
como integradora de todos os povos (“de canciones de todas las lenguas”) e de
todas as vozes (“y de todas las voces”). Síntese da mistura urbana, o “viejo”
Bul Saint Michel é tratado como uma cidade que expõe e exala arte e história.
Cidade do espetáculo (“circo del arte”), das belezas arquitetônicas históricas
(“feria de la cultura humana”) que conduz o viajante a outras possíveis
experiências citadinas (“camino a Montparnasse”).
González Tuñón encara essa rua como um “tecido”, ou melhor, uma
“pele” que guarda as marcas do passado, mas ao mesmo tempo atribui a elas
novas significações. O olhar aguçado do poeta consegue perceber a
modernização dessa urbe, sua internacionalização, e percebe, também, seu
passado histórico, que deixou marcas significativas em suas vias, sem que isso
reflita um desejo ao retorno dos tempos de outrora. Desta forma, o poeta exalta
o Boulevard Saint Michel sem um sentimento nostálgico, assim como afirma
Sarlo (2010:309) “... a percepção de RGT está preparada para captar as
transformações da cidade moderna, as mudanças que ainda deixam ver os
traços do passado, as ruínas da história observadas de uma perspectiva
distante, sem o desejo do regresso”.
Na última parte do poema, o eu lírico se aproxima dos leitores,
colocando-os em uma situação de intimidade, de amigos que compartilham
juntos, pois os denomina faticamente de “camaradas”. Também chama a
atenção para uma figura que é comum no cenário urbano, além de finalizar sua
reflexão sobre o “viejo Bul Mich”:
Un buen recuerdo, camaradas, lo vale.
Esse viejo Bul Mich de madrugadas altas,
de mujeres que nos amaron por amor,
152
mujeres sin mañana y sin ayer, usadas por todos
como los espejos y las palabras.
Ese viejo Bul Mich de quien dirán: Una calle, ya
olvidada.
Porque las calles, igual que los hombres,
caminan un trecho por el mundo y pasan.
Amante das altas madrugadas, González Tuñón vem ressaltar a
atmosfera boemia, existente nesse curto período temporal, e, também, um dos
icônicos símbolos que perambulam pela madrugada. De forma agradecida, o
poeta ressalta uma personagem que é emblemática em sua poesia, a
prostituta. O autor argentino a vê com uma concepção de beleza. Ao retratar
em seus versos a prostituta, Raúl González Tuñón o faz de maneira singela e
com um profundo lirismo, não a desrespeita e não a vê com um olhar
repressor, contrariamente, a vê com um olhar de grande pesar e respeito.
Nos quatro últimos versos, o olhar poético que apreende a cidade e a
espelha encerra sua reflexão sobre essa grande rua parisiense. Essa rua é
equiparada por González Tuñón à experiência de vida dos homens, uma vida
efêmera, que tem um momento de ápice, de grande representatividade, e
depois declina, passa ao esquecimento. Toda a história e importância que essa
avenida teve para a moderna capital parisiense, atualmente, já não é lembrada.
É a esse esquecimento que o poeta ser refere, por isso canta em seus versos:
“porque las calles, igual que los hombres,/ caminan un trecho por el mundo y
pasan”.
A “experiência do choque”, que o olhar do estrangeiro González Tuñón
vivencia, lhe permite reconhecer e identificar os mais recônditos espaços, ruas
e personagens parisienses. Também lhe propicia criar, simbolicamente, uma
cidade integradora, unindo não só o seu lado esplendoroso, mas também o seu
lado mais obscuro e marginal.
153
Assim, Raúl González Tuñón, a partir de seu olhar e suas reflexões,
revela uma urbe moderna com os problemas que a modernidade trouxe. O
poeta não os oculta, nem tenta camuflar o real, ao contrário, relata o que
presencia: luxo e miséria, beleza e destruição, ordem e caos, exaltação e
reflexão.
“La calle del Paso de la Mula”
O poema em prosa, “La calle del Paso de la Mula”, foi dividido em cinco
partes por questões metodológicas, pois sua extensão requer uma delimitação.
Na primeira, na terceira e na quinta parte, o eu lírico descreve atentamente as
paisagens citadinas do cotidiano que observa. Na segunda parte, ele realiza
uma reflexão sobre a morte e, na quarta parte, o poeta faz uma auto-reflexão.
Composto na primeira pessoa do plural, o poema inclui o leitor como
participante em seus versos. Ele divide com o poeta o espaço observado, suas
opiniões, ou seja, é colocado na mesma condição do poeta, na de coautor.
González Tuñón vivencia o glamour desta nova Paris, observa-a
atentamente como se fosse um flâneur, esse personagem crítico engendrado
por Charles Baudelaire. Seu olhar aguçado em direção à multidão e para todos
os seres que lá se encontram reflete sobre a vivência cotidiana dessas
personagens.
À semelhança de Charles Baudelaire, González Tuñón, no poema “La
calle del paso de la mula”, descreve a vida diária da cidade e de seus
habitantes:
154
La mosca cautiva bajo la campana de vidrio
y el niño que juega porque el sol es bondadoso.
Fíjate cómo igual que hoy, igual que ayer, igual que
mañana,
nuestro vecino pasa, recoge su botella de leche,
arroja al suelo el boleto del subterráneo
y sacando el reloj penetra a la casa, a su vida de todos
los días,
igual que ayer, igual que mañana, igual que siempre.
Nestes versos o autor, além de assinalar o cotidiano, parece estancar o
tempo, que não muda. A vida diária urbana não tem para ele qualquer
possibilidade de mudança, ela é imutável e repetitiva. Toda modernização do
espaço já ocorreu, e esse flâneur observa essa estagnação sem esperar o
amanhã. Ele sinaliza, criticamente, os elementos da vida moderna que não
permitem mais pensar o futuro diferente do atual, concebendo desta forma,
uma visão monótona e rotineira do mundo.
Na segunda parte, ao olhar para as pontes de Paris, o poeta imerge em
pensamentos que o levam a imaginar a presença vital dessas pontes no
cenário urbano. Esses pensamentos o conduzem para a própria existência
humana e sua relação com a morte:
Sólo los puentes, esas piedras cargadas de secretos,
seguirán por los siglos sobre el río pensativo del
tiempo.
Nosotros nos quejamos de morirnos tan pronto.
Vivimos ya una muerte piadosa, tanto
que hasta esperamos morirnos una tarde.
Para o sujeito do poema, as pontes carregam a história da cidade, pois
testemunharam sua construção, o que leva González Tuñón a usar a metáfora
“piedras cargadas de secretos”, para se referir às pontes. Outra metáfora é a
do “río pensativo del tiempo”, em que o rio, senhor do tempo, simboliza o fluir
155
da vida. Somente as pontes e o rio sobrevivem ao tempo. Tanto um quanto
outro se humanizam no poema, ou seja, o eu lírico lhes atribui características
humanas, um artifício comum na poética tuñoneana.
Ainda nesta segunda parte, evidencia-se a alusão à permanência
temporal do homem no mundo. Comprovamos essa tensão poética nos três
últimos versos, onde o poeta, ao assomar-se ao leitor, inclui-se no discurso e
reconhece o medo da morte, inerente à condição humana. Desta forma,
percebemos que o sujeito do poema tem noção da mudança temporal, do
passar do tempo, e essa noção o impele a refletir sobre a constante ameaça da
morte. Ao temê-la (“hasta esperamos morirnos una tarde”), o homem vive
cotidianamente, mas morre um pouco a cada dia (“vivimos ya una muerte
piadosa”), por isso, González Tuñón faz considerações sobre a reclamação de
morrer tão cedo (“nos quejamos de morirnos tan pronto”).
Na terceira parte da construção lírica, esse poeta-observador segue
relatando sua sagaz percepção do cenário urbano que vê nesta rua:
La esquina adonde van a acostarse los ómnibus.
Un hombre que pregunta una dirección vaga.
Un muchacho que entra silbando al mingitorio.
El afiche del jabón Cadum, ¿sabes?
- el niño que posó tiene ahora cincuenta y dos años
y Toribio, Toribio Sánchez que nos hizo reír allá
abajo,
se emborracha con él todas las noches.
Como observador da cidade parisiense, González Tuñón agrega a sua
poesia espaços que emergiram com o progresso da cidade, como o
“subterrâneo” (metro), o “mingitorio” (mictório público), o “afiche del jabón”
(cartaz de propaganda) e os “ómnibus”. Essas ocorrências em seus poemas
156
marcam a importância desses elementos que compõem a cidade moderna e,
simultaneamente, as mudanças do comportamento social. Percebemos, nessa
parte, que o poeta descreve a vida citadina como se estivesse pintando uma
paisagem. Contudo ao direcionar-se ao leitor, através da pergunta ¿“sabes”?,
ele interrompe a pintura, e informa sobre a atual idade do bebê que aparece na
imagem presente do cartaz da propaganda do sabonete Cadum. Através da
interrupção da sintaxe, ele fragmenta a imagem que estava sendo construída, e
como afirma Sarlo (2010:296), “nenhuma de suas imagens se desenvolve por
completo: tal como aparecem, podem ser consideradas pedaços de uma
imagem maior que o poema desarticula e em relação à qual se desenha”.
A pergunta sugerida ao leitor funciona como estopim para a criação de
uma imagem insólita, pois o menino da propaganda era um bebê nos anos 30,
como
podemos
observar
na
própria
imagem
da
propaganda ao lado direito. Então, como pode já estar com
52 anos? E mais, pode Toribio Sánchez, um provável
argentino, já que o poeta afirma que ele os fez rir lá
embaixo,
referindo-se
topográficamente
à
Argentina,
embriagar-se com este “menino” todas as noites? Por não
encontrarmos
referências
a
Toribio
Sánchez,
podemos
dizer
que,
provavelmente ele é mais uma personagem que participa do mundo ficcional
do poeta. Essa fragmentação da imagem para a revelação de alguma outra
informação, ou imagem, é típica na poesia tuñoneana e funciona como
reveladora da imagem do seu subconsciente irônico e sarcástico.
157
Na quarta parte do poema, González Tuñón exalta sua condição de
poeta revelando seu comprometimento com a arte literária, com as palavras e
com a aventura, como ocorre com os jovens poetas:
Nuestro vecino se levantará con el alba
y nosotros, nosotros estaremos aún desvelados
leyendo cuatro cosas, hablando cuatro cosas,
solos, solos, en la íntima isla de los abrazos.
Somos jóvenes y viviremos en otra calle, en otra
ciudad.
A imagem criada no primeiro verso, retoma a rotina do vizinho acima
mencionado, enfatizando seu perfil de homem trabalhador, que “se levantará
con el alba”. Esta rotina está comparada à rotina de boêmia dos poetas, pois
enquanto esses homens vão ao trabalho, os poetas se envolvem com suas
leituras, suas reflexões e discussões, enfim, seus sonhos. Sabemos que
existem quatro pontos cardeais, quatro ventos, quatro pilares do Universo,
quatro fases da lua, quatro estações, etc. De acordo com o Dicionário de
símbolos (2002:759), uma das significações para o número quatro seria a
“plenitude, universalidade, símbolo totalizador do criado e do revelado”. Sendo
assim, ao citar “leyendo cuatro cosas, hablando cuatro cosas”, ou seja, ao citar
o número quatro, o poeta faz alusão a seu ato criador, revelador das imagens
que foram registradas em sua memória pela apreensão atenta do seu olhar.
O artista em vias de composição da sua arte necessita entrar em contato
consigo, com o seu interior, necessita estar só, isolado, para que possa
encontrar sua essência, essa que criará as condições necessárias para que se
consolide o ato criador. Daí a afirmação do poeta em “solos, solos, en la íntima
isla de los abrazos”, referindo-se a esse momento em que o poeta se pousa e
repousa em si mesmo, no aconchego do seu mundo intimista, para de lá extrair
158
as significações que representarão a sua verdade artística. O poeta, ao expor a
sua verdade mais oculta, evidencia as fragilidades do seu “eu”.
Nos dois últimos versos, González Tuñón afirma seu ímpeto por buscar
outras ruas, outras cidades, ímpeto bem comum de um homem jovem, pois
este acredita ser capaz de desbravar o desconhecido, de revelar o oculto e
com isso mudar o mundo. Essa posição de lançar-se ao porvir, de estar no
presente mas ambicionar o futuro, é característica da poética tuñoneana e será
o fio condutor para sua poética de cunho social, pois conforme Sarlo
(2010:286) “sua poesia define-se no tempo presente ou tensionada em direção
ao futuro (cada vez mais futura, à medida que se politiza)”.
Na última parte do poema, o eu poético volta a imergir na descrição do
ambiente citadino e retoma os elementos que compõem significativamente o
seu campo visual, além de pontuar outros:
Fíjate, todos los paisajes nos hacen pequeños.
Estarán allí siempre. La esquina
adonde van a acostarse los ómnibus.
Los puentes. El afiche del jabón Cadum.
La mosca cautiva bajo la campana de vidrio
y el niño que juega porque el sol es bondadoso.
Vino y licores. Comisarías. Ostras Claires y
Portuguesas.
El colchonero.
Nesta última parte, percebemos que o sujeito do poema elabora sua
última reflexão sobre a imagem da cidade que se apresenta a seus olhos.
González Tuñón reconhece a insignificância do homem (“todos los paisajes nos
hacen pequeños”) perante a grandiosidade das modernas ruas citadinas
(“Estarán allí siempre”). O poeta entende que somos passageiros em um
ambiente perpétuo, ou seja, somos pequenos componentes de um espetáculo
eterno e magistral, protagonizado pela cidade. Para ele, em todo o tempo,
159
passageira é a vida, e o homem - por ser portador dessa vida - torna-se um
elemento fugaz dentro do ambiente urbano. O que temos se vai e somente o
que somos permanece. Por isso, o desejo artístico de González Tuñón em
registrar sua essência em linhas poéticas.
Ao entrar em contato com a realidade da cidade luz, não só sua poética
se transforma, mas também o poeta, enquanto homem que inicia seu
amadurecimento sóciopolítico. É um processo que se inicia em Paris, mas que
irá se completar em sua poética posterior. Como afirma Sarlo (2010:312),
Sua literatura está mudando em contato com a realidade
sociopolítica e pode ser lida como corpus que processa o
impacto da história internacional, de onde extrai novas
possibilidades não apenas temáticas, mas também
construtivas, na medida em que esses novos textos da
primeira metade dos anos 30 são endereçados, muito
diretamente, à intervenção pública.
Toda a experiência com o espaço moderno da cidade parisiense, o
contato com diálogos mais politizados e as reflexões obtidas a partir dessas
observações, bem como sua ainda imprecisa definição política, contribuíram
para o advento da próxima etapa poética de González Tuñón, de tendência
social, a qual será assumida nas primeiras insurreições que eclodirão no
grande confronto bélico espanhol de 1936, que abordaremos no próximo
capítulo.
160
4. O IMPACTO IMAGÉTICO DA GUERRA CIVIL ESPANHOLA
A
migo que por Madrid
viviendo
entre
el
cañoneo
dices a tu patria en canto
firme de nuestro deseo
la República Argentina
nos dio en la guerra tu
aliento
Raúl González Tuñón,
voz del plata madrileño.
Rafael Alberti
161
4 – O impacto imagético da Guerra Civil espanhola
Si algún día me voy a la guerra,
a pelear en los frentes leales,
correría mi sangre a raudales
como corren las olas del mar.
“La sangre a torrentes”, Raúl González Tuñón
4.1- A defesa da República espanhola
A Guerra Civil espanhola (1936-1939) foi o evento mais traumático que
ocorreu antes da segunda Guerra Mundial. Nela estiveram presentes quase
todas as ideias de um conflito bélico, que marcou o século XX. De um lado se
posicionavam as forças do nacionalismo e do fascismo, aliadas às classes e
instituições tradicionais da Espanha (o Exército, a Igreja e o Latifúndio); de
outro lado, a Frente Popular que formava o governo Republicano,
representando os sindicatos, os partidos de esquerda e os partidários da
democracia.
Para a Direita espanhola tratava-se de uma Cruzada para libertar o país
da influência comunista e reintegrar os valores da Espanha tradicional,
autoritária e católica. Portanto era preciso acabar com a República, que havia
sido proclamada em 1931, com a queda da monarquia. No entanto, para a
Esquerda, era necessário terminar com o avanço do fascismo que já havia
conquistado a Itália, a Alemanha e a Áustria. Conforme as decisões da
Internacional Comunista de 1935, ela deveria aproximar-se dos partidos
democráticos de classe média e formar uma Frente Popular com o intuito de
acabar com a onda de vitórias nazi-fascistas. Desta maneira, socialistas,
comunistas, anarquistas e democratas liberais deveriam unir-se a fim de
terminar com a tendência mundial favorável aos regimes direitistas.
162
Esse panorama de amplo enfrentamento ideológico fez com que a
Guerra Civil deixasse de ser um acontecimento singularmente espanhol para
se converter numa prova, em que forças disputavam a hegemonia do mundo.
Nela envolveram-se a Alemanha nazista e a Itália fascista, que apoiavam o
golpe do General Francisco Franco. Em contrapartida a União Soviética aderiu
ao governo Republicano.
A Espanha de 1930 vivia uma era de completo atraso em relação aos
outros países europeus. Era governada pelo exército, pela igreja católica e pelo
latifúndio. Mantinha seu passado imperial grandioso a alto custo. A Igreja
continuava a condenar a modernidade. No campo existiam mais de três
milhões de camponeses pobres que eram submetidos ainda às práticas feudais
e dominados por cinquenta mil fidalgos proprietários de terras. Como resultado
da grave crise econômica de 30, iniciada pela quebra da bolsa de Nova Iorque,
a ditadura do General Primo Rivera foi derrubada e, por conseguinte, caiu
também a monarquia. O Rei Alfonso XIII foi obrigado a exilar-se e proclamouse a República em 1931, chamada de “República de Trabalhadores”. Seus
idealizadores esperavam que a Espanha pudesse alinhar-se com seus vizinhos
ocidentais e partir para uma reforma modernizante, que separasse Estado e
Igreja, inserindo assim as grandes conquistas sociais e eleitorais recentes,
além de assegurar a diversidade política e partidária, a liberdade de expressão
e organização sindical. Porém o país terminou por conhecer um cruel
enfrentamento de classes, posto que a crise, seguida de uma grande
depressão econômica, gerou uma frustração total na sociedade espanhola.
Iniciam-se assim inúmeras eleições que acabam por incitar ainda mais a
população que, descontente, vai para as ruas protestar. Com um golpe militar
163
dado pela direita em 18 de julho de 1936 explode uma das mais sangrentas
guerras que a Europa vivenciaria.
A Guerra Civil espanhola movimentou diversas correntes ideológicas e
partidárias. Dentre as que apoiaram a direita podemos destacar nomes como
Hitler, Salazar, juntamente com os fascistas da Falange espanhola liderados
por José Antônio e pelo General Francisco Franco. A esquerda teve o apoio de
diversos partidos e organizações como PCE (Partido Comunista Espanhol), FAI
(Federação Anarquista Ibérica), UGT (União Geral dos Trabalhadores) entre
outros, além de contar com os democratas liberais, com os republicanos e mais
alguns partidos autônomos (Esquerda catalã, os galegos e o Partido Nacional
Basco).
Na literatura, esse conflito bélico ganhou inúmeros representantes,
dentre os quais estão alguns dos poetas mais famosos do mundo hispânico,
como Raúl González Tuñón, Pablo Neruda, Federico García Lorca, César
Vallejo, Antonio Machado, Miguel Hernández e Rafael Alberti. Esses poetas
contribuíram muito com a República espanhola, pois, através de suas críticas,
crônicas e poesias enviadas para os jornais da época, eles transmitiam todo o
horror dessa guerra tão cruel, dando a conhecer ao mundo o caos que vivia a
Espanha. Também organizavam alianças intelectuais que tinham a intenção de
ajudar os republicanos.
No mundo das imagens contamos com grandes fotógrafos, que vão
contribuir, com suas fotografias pulsantes, para a chegada da informação à
população mundial. Entre eles cabe destacar as fotografias de Robert Capa,
David Seymour, Cartier-Bresson, José Suárez e Agustí Centelles. A maioria
destes fotógrafos escolheu sem hesitar o lado dos republicanos por
164
compartilharem das mesmas visões românticas e utópicas. Essas fotografias
vão causar grande horror e tristeza na população, por retratarem com
veracidade os milhares de mortos e a destruição desmedida que ocorria em
solo espanhol.
4.2- Percorrendo as imagens bélicas da Espanha de 1936
Para entender melhor o período caótico da Guerra Civil espanhola é
preciso analisar a proporção e a dimensão que representa a palavra caos, bem
como suas implicações dentro desse contexto. “Confusão dos elementos, antes
da criação do mundo; grande desordem; balbúrdia; babel”, assim está definido
o vocábulo caos pelo dicionário brasileiro da língua portuguesa. Esta definição
explica o que é este evento, porém não atenta para dimensão e implicação do
estabelecimento caótico dentro do contexto mundial, termo que foi muito
empregado durante a revolução industrial e que, nos atuais tempos, é
frequentemente usado no chamado mundo moderno pelos mais variados
ramos de estudo.
Para um melhor aprofundamento do termo, tem-se o estudo do
investigador e professor italiano Omar Calabrese. No capítulo sexto de seu livro
La era neobarroca, o estudioso problematiza o caos. Segundo ele (1994:132),
desde as origens do pensamento filosófico ocidental se contrapõem duas
séries de noções: a ordem e a desordem. A ordem é denominada por
Calabrese como “un principio de regularidad”, ela pode definir e prever
fenômenos, enquanto a desordem abarca tudo que foge à regularidade, ou
seja, tudo o que é irregular, azar, caos, indefinido, imprevisível e inteligível.
165
Para Calabrese, fenômenos aparentemente sistêmicos podem ser
suscetíveis a dinâmicas de turbulências, que propiciam a transformação do que
era regular e ordenado em desordenado e irregular. A dinâmica de certos
fenômenos, que tendem a grandes complexidades, hoje nomeamos de caos.
Omar Calabrese (1994:136) se baseia na concepção matemática de
Benoit Mandelbrot, Les objets fractals, na qual o “objeto fractal” consiste em
“cualquier cosa cuya forma sea extremadamente irregular, extremadamente
interrumpida o accidentada [...]. Un ‘objeto fractal’ es, por tanto, un objeto físico
(natural o artificial) que muestra intuitivamente una forma fractal” Não só se
baseando nesta consideração, como também em algumas outras, o professor
italiano amplia o sentido de objeto fractal agregando a ele a noção de cultura e
arte. Segundo ele (1994:142),
[...] cualquier objeto se torna en objeto estético
sólo después de una valorización por parte de un
sujeto individual o colectivo. Sin embargo, también
es verdad que las figuras fractales poseen al
menos un carácter capaz de ser valorizado como
estético: lo maravilloso.
Com base nesta afirmação de Calabrese, pode-se entender de que
maneira acontecimentos trágicos, como por exemplo, os conflitos bélicos,
transformam-se em maravilhosas obras artísticas. Dentro desta concepção é
compreensível que reconheçam a beleza de Guernica, quadro pintado por
Pablo Picasso, que retrata o horror de uma batalha, e da literatura latinoamericana de Juan Carlos Onetti, que aborda o caos através da fragmentação,
do vazio, da desolação. Com as fotografias de guerra também se pode
observar esse aspecto de lo maravilloso, pois as mesmas retratam a captação
de um instante caótico da realidade, imortalizado pela fragmentação da
166
imagem impressa em concretismos, que ao ser recebido e observado por um
receptor, visualiza uma verdadeira obra prima.
Diversos acontecimentos trágicos, como a Guerra Civil espanhola,
revelaram ao mundo o caos. Depois ocasionaram na população a sensação de
vazio e a constatação da impotência humana perante a ciência, que, associada
a uma desordem do poder, a sua fragmentação, pode arruinar não só o planeta
mas também a todos os seres vivos.
4.2.1- As imagens fotográficas da guerra
A fotografia, nascida em um âmbito positivista, foi vista quase
unicamente como registro visual da verdade, tendo sido adotada, nessa
condição, pela imprensa. Com a evolução das práticas foto-jornalísticas, esses
gêneros realistas passaram do domínio do real para o domínio do crível, já no
final do século XIX, devido à manipulação das imagens em função de objetivos
que nada tinham a ver com a verdade, mas, de fato, com o que se podia crer.
Em meio a esse processo de criação dos fotógrafos surge o
fotojornalismo, carregado de cultura e ideologia, representando através das
fotografias a realidade histórica e testemunhal de uma sociedade, embora às
vezes influenciado pela visão realista de seu autor.
Até se chegar ao fotojornalismo, a fotografia passou por diversas fases.
Nasce na chamada câmara clara e escura, depois surge o pictoralismo,
movimento que objetivava a integração da fotografia às artes plásticas, bem
como a fotografia de retrato, que imitava os cenários utilizados pela pintura e,
assim por diante, até o aparecimento das primeiras manifestações do
167
fotojornalismo no momento em que os fotógrafos apontam a câmera para um
episódio, tendo em vista fazer chegar essa imagem a um público com intenção
testemunhal.
O fotojornalismo se nutre principalmente de acontecimentos bélicos e
revoluções. A primeira guerra para onde os jornais enviaram seus
correspondentes foi a Guerra Americano-Mexicana de 1846-1848. Apesar de
serem feitas por um daguerreotipista anônimo, as imagens registravam
soldados e oficiais de guerra antes da batalha. A muitas revoluções foram
enviados fotógrafos e com isso o desenvolvimento da fotografia de imprensa
foi-se transformando com afinco e, em meados do século XIX, inicia-se a
edição de publicações ilustradas da revista The Ilustrated London News. Seu
fundador, Herbert Ingram, afirmou que daria aos seus leitores informação
continuadamente dos acontecimentos mundiais e nacionais mais relevantes da
sociedade à política, com a ajuda de imagens variadas e realistas. Nos seus
primeiros cinco anos a tiragem dessa revista aumenta relevantemente e indica
o crescente gosto social pela imagem.
A fotografia de imprensa foi e é de suma importância para a evolução da
população
proporciona
enquanto
indivíduos
integração,
participantes
interação
e
de
contribui
uma
sociedade.
assiduamente
para
Ela
o
desenvolvimento tanto de seu emissor quanto de seu receptor. Além disso, o
fotojornalismo possui cinco forças que ocasionaram e ocasionam sua evolução,
são elas: a ação pessoal onde cada fotógrafo elege por influência própria
adotar ou não certos recursos; a ação social que a fotografia de imprensa
produz nas pessoas e na sociedade; a ação ideológica onde se verificam as
semelhanças de visões do mundo por parte dos fotógrafos; a ação cultural que
168
vê o fotojornalismo como produto de cultura e a ação tecnológica que
perspectiva a fotografia jornalística como um produtor da tecnologia. Essas
ações, expostas pelo autor Jorge Pedro Sousa,17 confirmam a importância da
fotografia de imprensa para seu próprio meio, bem como para os indivíduos e a
sociedade.
Fotojornalismo, segundo o dicionário Houaiss da língua portuguesa
(2009) é o “gênero de jornalismo em que a fotografia é primordial na veiculação
das notícias”. O fotojornalismo preenche uma função bem determinada e tem
características próprias. O impacto é elemento fundamental. A informação é
imprescindível, assim como a atualidade e o interesse social.
Já na década de cinqüenta do século XIX, a fotografia havia se
beneficiado dos avanços técnicos, químicos e óticos, que lhe possibilitaram
abdicar dos estúdios e partir para a documentação de imagens do mundo com
o realismo que a pintura não conseguia. Portanto a fotografia de pronto se
tornou instrumento de prova, testemunho e verdade e, depois, a época lhe deu
status de “espelho do real”. Essa qualidade de autenticidade e sentido utilitário
da fotografia é desde suas origens uma particularidade essencial que faz deste
meio o ideal para criar testemunhos de forma verídica, como por exemplo as
batalhas, uma importante forma de propagar essa prática.
Desde sua origem as guerras foram adotadas como tema principal pela
arte de fotografar. Até o descobrimento da fotografia, os conflitos bélicos eram
algo longínquo e de certo modo excitante. A população desconhecia os cruéis
detalhes desses conflitos: cadáveres, feridos e mutilados estavam somente nos
textos ou nas pinturas. Foi assim que a participação britânica na Guerra da
17
T ermo extraído do site http://ubista.ubi.pt/~comum/sousa-jorge-pedro-historia_fotojorn1.htm
169
Criméia (1854-55), com o conseqüente interesse da população, levou o editor
Thomas Agnew a convidar o fotógrafo oficial do Museu Britânico, Roger
Fenton, a ir à frente da batalha, para cobrir “foto-jornalísticamente” o evento.
As fotografias produzidas por Fenton na Guerra da Crimeia foram
publicadas na imprensa sob a forma de gravuras, e constituíram o primeiro
indício do privilégio que o fotojornalismo vai conceder à cobertura de conflitos
bélicos. Roger Fenton, considerado como primeiro repórte fotográfico, tinha
como missão realizar fotos do referido conflito com o intuito de acalmar os
temores da opinião pública britânica sobre as tropas que ali estavam. Suas
fotografias não mostram o horror da dor e da morte, ao contrário, são imagens
de soldados e oficiais sorridentes, posando para o fotógrafo, ou imagens dos
campos de batalha limpos de cadáveres, porém repletos de balas de canhão.
Com a primeira cobertura foto-jornalística de guerra, realizada por
Fenton, nasce a censura prévia no fotojornalismo. Por isso as fotos de Fenton
não revelavam a dureza dos combates, mas sim a “guerra fictícia”, com
soldados longe da frente de batalha. É ainda a guerra com sua mácula de
heroísmo, tão habitualmente apresentada pela pintura. Cabe ressaltar também
as limitações técnicas, já que nessa época os materiais utilizados eram
pesados e difíceis de operar, fato que impossibilitava chegar a tempo de
fotografar os instantes fugazes de uma batalha.
Durante a Guerra da Secessão americana de 1861, realizam-se
inúmeras fotografias dos acontecimentos. Ao contrário do que aconteceu a
Fenton, durante a Guerra da Secessão, sem censura, começou a aparecer
uma estética do horror. Utiliza-se a fotografia para denunciar as atrocidades da
guerra, assim como para denunciar o adversário ou para registrar episódios
170
importantes da memória coletiva do país. Diferente de Fenton, muitos dos que
fotografaram a guerra civil americana eram independentes, e não possuíam
nenhum tipo de censura na hora de forjar a crueldade dos acontecimentos.
A Guerra da Secessão contribuiu em vários aspectos para o
desenvolvimento da fotografia de guerra, bem como para o fotojornalismo. A
guerra foi despida de sua auréola de epopéia, a fotografia passou a ser vista
como força atuante e capaz de persuadir devido ao seu realismo. Os fotógrafos
tiveram a noção de que era preciso estar perto do acontecimento quando este
ocorresse. Também a noção de que a fotografia possuía uma carga dramática
superior à da pintura levaram os fotógrafos a vislumbrar o poder do novo meio.
Outro conflito que propagou a fotografia de guerra foi a Guerra Civil
espanhola. Nela vários fotógrafos espanhóis, até então desconhecidos,
distinguiram-se durante o conflito que ensangüentou seu país. Dentre eles está
Agustí Centelles, que cobriu exaustivamente a frente de Aragão. Conforme C.
Brothers, a fotografia sobre a Guerra Civil da Espanha tinha notoriamente fins
persuasivos, especialmente porque o conflito provocou intensa polarização
política na Europa.
A conseqüente exposição das fotos traumáticas dos acontecimentos
violentos nas casas de família ocasionaram mudanças em toda sociedade.
Depois da fotografia, a guerra nunca mais seria a mesma. Com o novo meio, o
leitor era projetado num mundo mais próximo, mais real, mais cruel. Neste
momento a escrita cede espaço para a imagem. É desta forma que a
publicidade utilizará a fotografia de guerra a seu favor.
Agustí Centelles nasceu em Grao (Valência) na Espanha em 1909, e foi
junto com seus pais viver em Barcelona a partir de um ano de idade, por isso
171
pode ser considerado mais barcelonês que valenciano. Já muito jovem se
iniciou na fotografia trabalhando no jornal El día gráfico, onde publicou suas
primeiras fotografias. Foi neste diário, onde começou a trabalhar como
aprendiz de Ramón Baños, que assimilou a técnica do retrato. Anos mais tarde
foi ajudante de Josep Baldosa, o qual haveria de introduzi-lo no mundo do
fotojornalismo. Porém em 1934 principia por conta própria sua carreira de
fotógrafo fazendo reportagens nas ruas, espetáculos, esportes para vender aos
jornais da época como: La Publicitat, Diari de Barcelona, Última hora, L’Opinió,
La Vanguardia e La Rambla .
É considerado o precursor do fotojornalismo na Espanha (denominado
como o Robert Capa espanhol), no entanto, sua obra sobre a Guerra Civil
espanhola só foi reconhecida após muitos anos. Com a morte de Franco (1975)
e a chegada da democracia na Espanha, Centelles retorna à França (1976),
recupera a mala com seus negativos e publica-os; com isso recebe, em 1984, o
Prêmio Nacional de Fotografia pelo Ministério de Cultura da Espanha. Autor de
Agustí Centelles: La lucidez de la mejor fotografía de guerra, falece em 01
dezembro de 1985, aos 76 anos, em Barcelona, esse grande nome do
fotojornalismo espanhol.
Centelles foi um dos primeiros fotógrafos que utilizou uma câmera Leica
na Espanha. Essa câmera possibilitou-lhe colaborar como reporter gráfico em
diversos jornais da época. Sendo o terceiro fotógrafo a utilizar este tipo de
câmera, conseguiu realizar através dela um tipo de fotografia diferente das que
existiam na época. Os retratos de Centelles tinham uma grande força
expressiva abandonando as clássicas fotografias planas, sem relevo, que até
172
então eram feitas e que estavam, de certo modo, condicionadas pelas câmeras
de placas e pela utilização do magnésio.
Como fotógrafo não buscava a criatividade, mas sim mostrar a crua
realidade. Suas fotografias eram autênticas, verídicas e expressavam o
cotidiano de preocupação e horror da sociedade espanhola. As primeiras
fotografias de um conflito bélico, considerando como o primeiro evento fotojornalístico, a Guerra da Criméia, realizadas por Roger Fenton, não
apresentavam nenhum indício de guerra. Eram imagens manipuladas de
soldados bem instalados, longe da frente, campos de batalhas sem mortos, ou
seja, imagens de uma “falsa guerra”, em que o fotógrafo se preocupava em
retratar o “glamour” bélico como se fazia na pintura. Esse primeiro registro
visual de uma guerra é totalmente distinto do registro visual de Centelles, pois
enquanto o fotógrafo espanhol fotografava o real, a dor, a morte e o desespero
o outro fotografava o falso heroísmo, a falsa alegria dos soldados, os falsos
campos sem corpos. Em certa ocasião, Agustí Centelles declarou em uma
entrevista: “Yo me daba cuenta de que el reportaje gráfico de entonces era muy
amanerado y estético. Y a mí esto no me gustaba. Yo sentía la necesidad de
reflejar una cosa más viva”.18 Por isso buscava realizar fotos livres de qualquer
intervenção, puras, num cenário real e vivo conhecido pela população.
Na fotografia19 exposta ao lado,
a objetiva de Centelles capta uma
imagem de tristeza onde se percebem
indícios de uma revolução. Cavalos
mortos, pessoas tapando o nariz para
18
19
http://es.wikipedia.org/wiki/Agust%C3%Ad_Centelles
Centelles. Incineração de cavalos mortos na Praça Catalunha – 19/07/36.
173
não sentir o mal-cheiro; nesse momento, o fotógrafo consegue registrar até
mesmo a fumaça produzida pela incineração dos equinos mortos. Mais uma
vez, ele marca com a veracidade de suas fotografias a imagem caótica que
será exposta para a população.
O
perspectiva
fotógrafo
apresentar
tinha
como
os
objetos
Centelles. Jogos de crianças – 1936.
focados sobre um plano principal tais
como são percebidos pela vista, para
que assim suas fotos resultassem no
mais natural possível. Sua lente captava
o centro, porém nunca deixava de registrar e dar a devida importância ao todo.
Em muitas de suas fotografias o todo simbolizava mais que o centro, ou seja, o
objeto focado em segundo plano tinha mais significação do que o objeto focado
em primeiro plano. Esta afirmação pode ser confirmada pela observação da
foto acima.
Pioneiro da reportagem moderna, considerando
que a Guerra Civil da Espanha foi o primeiro grande
Centelles. Tomada de
Montearagón pelos
milicianos – 09/1936
conflito bélico que mereceu uma atenção especial por
parte dos meios de comunicação internacional, o que
pode determinar o começo do fotojornalismo, Centelles
foi uma figura que marcou definitivamente esse gênero.
Ele conseguiu através de sua Leica e de sua técnica
criar imagens impactantes, cheias de dinamismo e
espontaneidade; movimentou-se entre os campos de batalha e os conflitos
citadinos, e com isso pôde registrar na íntegra e com beleza o caos espanhol
174
de 1936-1939. Agustí Centelles foi o primeiro fotógrafo a registrar, em 18 de
julho de 1936, as primeiras imagens do fracassado levantamento dos militares
fascistas nas ruas de Barcelona. Com grande risco de vida, ele sai pela cidade
colhendo imagens chocantes do que seria o início da Guerra Civil espanhola.
Ao iniciar o conflito bélico, Centelles foi destinado para a frente de
Aragón e Catalunha junto com as milícias populares do exército republicano, e
se dedicou a elaborar reportagens sobre as tropas dessas frentes para La
Revista, sendo suas imagens também exploradas por ambas as frentes em
suas propagandas. Realizou reportagens sobre a conquista de Truel e sobre a
batalha de Belchite. Foi também colaborador do Comissariado de propaganda
da Generalitat de Catalunha e encarregado do arquivo do exército da
Catalunha em Barcelona.
Uma fotografia muito divulgada durante o
conflito, conhecida por muitos e que também foi capa
de importantes jornais, é a dos três guardas de
assalto armados com fuzis atrás de um cavalo morto.
Esta fotografia, exposta ao lado, na época, foi muito
utilizada em cartazes propagandísticos a favor dos
republicanos.
Nela
percebe-se
que
a
desordem ocasionada pela ruptura da ordem
Centelles. Guardas de assalto fazem
barricadas (Barcelona,19/07/1936)
política, inaugurou uma cidade caótica.
Em 1939, Centelles se auto-exilou na França e levou consigo os
negativos mais relevantes assim como as câmeras fotográficas. Esteve preso
em diversos campos de concentração onde conseguiu salvar seus negativos,
devido a uma carteira de jornalista expedida pelas autoridades francesas,
175
estabelecendo um pequeno laboratório fotográfico no
campo de Bram. Desta forma, conforme mostra a
fotografia ao lado, consegue registrar a dramática
situação dos refugiados espanhóis.
Em 1976, Agustí Centelles ao recuperar a maleta
com seus negativos e, já com a chegada da democracia,
expõe suas imagens, transformando-se num símbolo do
fotojornalismo de guerra. Portanto, esse conflito bélico
Campo de concentração de
Bram (França, 1939)
tornou-se para o referido fotógrafo o maior acontecimento de sua vida
profissional, que proporcionou seu reconhecimento nacionalmente como um
dos maiores fotógrafos da Espanha.
4.2.2- O terceiro caminhar: As cidades do caos na Espanha
Raúl González Tuñón foi um poeta preocupado com o social, com a
classe proletária, com as injustiças, entre tantos outros temas. Com a Guerra
Civil espanhola se pode ver sua vertente política e solidária. O conflito bélico
espanhol trouxe para o autor argentino não só quatro novos livros, como foi
citado no segundo capítulo, e importantes amizades, mas principalmente um
novo olhar sobre a poesia, um novo fazer poético com abordagem social, como
um meio de comunicação com a massa, visto que ele também era jornalista.
Ao chegar à Espanha, e se deparar com a violenta crise dos mineiros
asturianos, González Tuñón decide regressar a Buenos Aires, escrever notas
para um jornal e organizar a Seção Hispano-Americana da Aliança de
Intelectuais Antifascistas, com o intuito de informar os acontecimentos que
176
ocorriam na Espanha. Porém, antes de voltar à Argentina, o poeta conversa
com mineiros asturianos, que o fazem recordar de seu avô Manuel Tuñón. A
partir deste fato, o autor começa a escrever La Rosa Blindada, livro chave que
abre o caminho da poesia social na América Latina.
Em terras espanholas, como correspondente de guerra, Raúl González
Tuñón verá que a morte está nas ruas e nos campos, compartirlhará a dor e os
bombardeios com Nicolás Guillén, Antonio Machado, García Lorca, entre
outros. Raúl González Tuñón passa a ser o primeiro a escrever poemas em
solidariedade aos que lutavam pela liberdade da Espanha, retratando toda a
comoção vivida nessa guerra. Por este motivo, o poeta chileno Pablo Neruda
afirma que “Rául, fue el primero que blindó la rosa” e Octavio Paz sentencia
que sem La Rosa Blindada não teria existido nem España en el corazón, de
Neruda, nem España aparta de mí este cáliz, de César Vallejo.
A Guerra Civil espanhola teve em González Tuñón um intérprete
poético à altura dessas façanhas. O próprio autor afirma, em seu auto-retrato,
que a Guerra Civil não só o modificou na forma lírica, mas também lhe permitiu
ser mais atuante na sociedade. O escritor argentino sempre foi um homem
comprometido com seu tempo e esse comprometimento foi constantemente
aludido em sua poética.
“La Libertaria”, toda manchada de sangue
O poema “La Libertaria” foi escrito em memória de Aída Lafuente, uma
jovem de 16 anos que morreu defendendo sua região durante a revolução de
177
outubro de 1934, ocorrida na bacia de Cuenca em Asturias. O poema foi
cantado como uma homenagem ao encerramento do II Congreso de Escritores
Antifascistas para la Defensa de la Cultura realizado na cidade de Valência em
1937.
Essa composição poética está formada por seis estrofes com alternância
nos números de seus versos. A maioria das estrofes possui versos paralelos e
anafóricos, que sustentam a cadência rítmica da poesia, tornando-a
semelhante a um hino suavizado e caracterizando-a como uma espécie de
“copla popular”, muito comum na obra tuñoneana desse período.
Estaba toda manchada de sangre,
estaba toda matando a los guardias,
estaba toda manchada de barro,
estaba toda manchada de cielo,
estaba toda manchada de España.
A estrofe que inaugura o poema é uma descrição de Aída Lafuente no
momento de sua morte, pois o sujeito poético afirma através do verso inicial a
impregnação de seu corpo pelo sangue, uma alusão ao fim da vida de Aída.
Relatos da época revelam que essa jovem armada com uma metralhadora se
juntou a um defensor da cidade na tentativa de evitar a entrada dos inimigos
em Asturias, por isso o poeta descreve “estaba toda matando a los guardias".
Nos versos seguintes, por meio da repetição de “manchada”, enfatiza-se o
idealismo dessa figura, pois esse vocábulo contribui para a formação de uma
imagem de profundo comprometimento com o conflito asturiano, que ora deixa
marcas de barro, ora de céu e até mesmo de seu país. O barro, por simbolizar
tanto a matéria-prima que encontramos na natureza quanto a formação do ser
humano, imprime no poema um valor local e, ao mesmo tempo humano, pois
178
estar manchado de barro implica na exaltação de sua região por carregar a
terra em seu corpo e do homem por ser oriundo do barro, conforme o relato
bíblico. Uma das simbologias do vocábulo céu é o absoluto das aspirações
humanas20. Essa significação se adequa ao contexto poético da composição,
visto que marca a morte dessa jovem. O verso final revela uma imagem
patriótica de Aída, a qual foi capaz de sacrificar sua vida em virtude de seus
ideais políticos.
Na segunda estrofe o eu lírico convoca a população espanhola ao
enterro de Aída Lafuente, e para isto emprega o verbo venir no imperativo
“ven”:
Ven catalán jornalero a su entierro,
ven campesino andaluz a su entierro,
ven a su entierro yuntero extremeño,
ven a su entierro pescador gallego,
ven leñador vizcaíno a su entierro,
ven labrador castellano a su entierro,
no dejéis solo al minero asturiano.
Através de uma enumeração de pessoas de distintas regiões
espanholas e ocupações de diversos tipos, o poeta passeia por várias
localidades da Espanha, pedindo a presença indiscriminada de todos no
sepultamento. Assim, vincula-se a imagem dessa jovem ao comprometimento
político de toda uma nação. O vocábulo “entierro” empregado repetidamente
em todos os versos, exceto no último, enfatiza o fim do ideal de vida de uma
jovem; ao mesmo tempo, alerta para que a luta mineira não seja enterrada com
ela. Pela cultura popular, o enterro seria uma forma de reunir pessoas em um
encontro final para despedidas. González Tuñón aplica esse significado com
20
O símbolo deste vocábulo se encontra em: CHEVALIER, Jean – GHEERBRANT, Alain. Diccionario
de símbolos. 5ª ed. Barcelona: Herder, 1995
179
intuito de unir, provocando reflexão na população espanhola pela luta da
permanência de seus objetivos e, conseqüentemente, pela repulsa daquele
crime cruel.
Essa comoção é justificada no último verso quando o sujeito
poético pede para que essa população, convocada ao enterro, não deixe
sozinho o mineiro asturiano, mineiro este que representa todos os outros que
lutaram contra aquela fatal revolução outubriana de 1934, a qual seria o ponto
de partida para a eclosão da Guerra Civil espanhola.
Sabe-se que Raúl González Tuñón usa, freqüentemente, como recurso
poético, dados de sua vida particular. Em vários poemas o autor deixa
registrados pessoas, gostos e lugares comuns de sua vivência. Em “La
Libertaria”, há uma personificação representada pela presença do mineiro
asturiano, que se vincularia à imagem de seu avô materno Manuel Tuñón, que
era de Asturias, operário e socialista.
A imagem nessa obra tuñoneana encontra-se mediada por impressões
particulares do autor, construindo assim uma imagem social e de caráter
individual. Contudo, deve-se ressaltar que o olhar, que apreende essas
imagens e as decodifica em versos poéticos, é o de um argentino, portanto, um
olhar estrangeiro, que, de acordo com o autor Nelson Brissac Peixoto
(1988:363), “aquele que não é do lugar, [...] que acabou de chegar, é capaz de
ver aquilo que os que lá estão não podem mais perceber”. Dessa forma a
poesia de González Tuñón é fundamental para entender que ver é apenas uma
atitude mecânica e passiva, enquanto olhar implica em um questionamento
daquilo que se vê, sendo completamente reflexivo. O que conduz os versos de
“La Libertaria”, bem como os outros textos contidos nos seus quatro livros
sobre a Guerra Civil espanhola, é a reflexão.
180
Na terceira estrofe o sujeito poético segue convocando a população para
o enterro de Aída, explicando os motivos pelos quais o povo deve vir:
Ven, porque estaba manchada de España,
ven, porque era la novia de Octubre,
ven, porque era la rosa de Octubre,
ven, porque era la novia de España.
Através de uma gradação em série de adjuntos adnominais, ele atribui a
essa personagem feminina um caráter nacional “manchada de España”,
tornando-a assim um emblema daquela revolução mineira que assolava o país.
Com conotação afetiva “novia”, ele a situa dentro do movimento da insurreição
asturiana, ocorrido exatamente no mês citado no poema. Assim “novia de
octubre” se refere à mulher comprometida com aquela insurreição.
Como é mundialmente conhecida, a rosa simboliza mulher e beleza, no
entanto, em 1919, uma mulher lutadora contra o governo em favor de seus
ideais comunistas, chamada de Rosa de Luxemburgo, foi assassinada durante
o regime que formava os primórdios do nazismo alemão, marcando assim seu
nome como um emblema de mulheres revolucionárias. Pode-se dizer que Aída
Lafuente era conhecida como “La rosa roja de Asturias” devido a esse ícone
feminino de luta. Também se observa que quando o sujeito poético nomeia “la
rosa de octubre” ele a toma como a maior representante daquele sangrento
conflito, além de atribuir a essa jovem uma singela beleza.
Verifica-se no último verso que por meio do adjunto adnominal “novia de
España” se estabelece na composição poética uma justificativa central para a
presença permanente dos ideais asturianos dentro da insurreição, pois a
metáfora marca o comprometimento e o amor que essa figura feminina tinha
por seu país.
181
Nessa estrofe o eu lírico pede que a morte de Aída não se perca, que a
ideologia dessa luta não seja abandonada, “no dejéis sola su tumba del
campo”, visto que, no campo, em conjunção com a natureza, a vida intensifica
seu caráter cíclico.
No dejéis sola su tumba del campo
donde se mezcla el carbón y la sangre,
florezca siempre la flor de su sangre
sobre su cuerpo vestido de rojo,
no dejéis sola su tumba del aire.
Tanto “carbón” quanto “sangre” estão relacionados na obra tuñoneana
com guerra e morte. Por sua vez, “el carbón” se relaciona com pó, com ruínas,
com ossos, sendo um objeto fractal (fragmentado) peculiar ao ambiente caótico
e indicador de início e fim, pois conforme as escrituras bíblicas “do pó viemos
ao pó retornaremos”. O poeta, ao misturar a cinza com o sangue, amplia o
sentido inicial de “carbón” já que, por estar debaixo da terra, essa mescla pode
germinar, crescer e se transformar em árvore. Assim, a cinza se humaniza
porque, ainda que subterrânea, trabalha. Comprova-se essa humanização no
verso seguinte pelo florescer da flor que simboliza a regeneração da vida.
Também, pode-se assinalar o verso “florezca siempre la flor de su sangre”,
como uma exposição do desejo do poeta pela permanência da ideologia
combatente dos mineiros através da imagem da flor.
Cinza-morte, entendidos no poema como carvão-sangue, são geradores
de vida, deles florescerá sempre a flor, ou seja, nascerá sempre o pensamento,
a reflexão sobre o que acontece naquele ambiente de intensos combates.
Também é possível confrontar o sangue com a relação morte-vida. Morte
quando alude a “rio de sangue” e vida como doadora universal, “flor de su
182
sangre”, sangue que não se estanca, flui constantemente, é móvil e fecundo.
Ao final, o sujeito poético retoma a palavra “tumba” para enfatizar a relevância
do sepultamento. Através do adjunto adnominal “tumba del campo” e “tumba
del aire”, o eu lírico cria um paradoxo, marcando a morte como uma metáfora
da vida e o ar como a consciência do homem que pelo cotidiano tende a
esquecer os fatos.
Cuando desfilan los guardias de asalto,
cuando el obispo revista las tropas,
cuando el verdugo tortura al minero,
ella, agitando su túnica roja,
quiere salir de la tumba del viento,
quiere salir y llamaros hermanos
y renovaros valor y esperanza
Na penúltima estrofe o sujeito lírico enumera acontecimentos comuns
naquele cotidiano, como: invasão dos soldados, revistas das tropas e os crimes
de torturas, porém essa aparente citação é uma alusão irônica às barbáries
que ocorriam durante o confronto mineiro. Daí o motivo para o levante daquela
que foi a mártir da revolução de Cuenca, daquela que empunhou a bandeira do
movimento asturiano. Mais uma vez o poeta retoma o vocábulo “tumba”,
estabelecendo junto com “viento” a memória da heroína, que quer
simbolicamente sair do túmulo, figurar eternamente como uma esperança, por
isso o poeta incita “renovaros valor y esperanza”.
O sujeito lírico ressalta na poesia duas imagens, uma que está no nível
explícito e outra, no nível implícito, por isso mesmo intuída a partir da
observação minuciosa dos detalhes concedidos pelo poeta. Em primeiro plano
é revelada a imagem de Aída Lafuente, marcada em todo o poema através do
gênero e dos símbolos universais femininos: flor, noiva e rosa. No nível
implícito é descrita uma imagem abstrata, percebida pela junção dos
183
significados de algumas palavras ao acontecimento de outubro. Trata-se de
uma representação ideológica e política que começava a despontar dentro da
obra tuñoneana.
y recordaros la fecha de Octubre
cuando caían las frutas de acero
y estaba toda manchada de España
y estaba toda la novia de Octubre
y estaba toda la rosa de Octubre
y estaba toda la novia de España.
Ao final, o poeta insiste na rememoração constante do dia e mês em
que Aída foi morta, mês este que marca na Europa o outono, estação onde
caem as folhas, por isso “Cuando caían las frutas de acero”. No entanto, essas
frutas não saciam a fome, são frutas que não podem ser comidas, são de aço.
A imagem que esse alimento revela, o anunciador de momentos difíceis, prevê
um cruel futuro para a Espanha. Frutas simbolizam abundância, porém “frutas
de acero” seria abundância de ferros, aço, elementos que compõem as
munições e as armas, objetos agora habituais dentro das casas e regiões
espanholas, indicadores de uma possível guerra.
Ainda na última estrofe, percebe-se que o poeta retoma, por meio de
aliterações, a ideia inicial, pois emprega uma parte da primeira estrofe com
adjuntos adnominais usados na terceira estrofe para aludir a la libertaria.
Observa-se também que “novia de Octubre”, “rosa de Octubre” e “novia de
España” formam uma gradação que parte de um valor regional para um valor
nacional, já que o conflito ocorrido na região de Asturias se refletiu em toda
Espanha.
184
“Cuidado, que viene el Tercio”, da marcha militar ao ritmo do poema
O poema “Cuidado, que viene el Tercio” pertence ao livro La Rosa
Blindada, publicado em maio de 1936, sendo o primeiro livro de poesias de
González Tuñón com a temática de revoluções populares na Espanha,
incluindo a Guerra Civil. Por sua cadência e disposição de seus versos e
estrofes, a composição poética, assemelha-se a uma espécie de marcha
suavizada. Nesse período da obra de González Tuñón suas poesias se
impregnavam de ritmo e, concomitantemente, se caracterizavam pelo verso
livre, como se poderá verificar nesse poema.
A imagem poética nessa obra surge através de uma linguagem que
anuncia a guerra. Já no título do poema, o poeta chama a atenção para as
batalhas que começavam a ocorrer em solo espanhol, devido a visões políticas
divergentes entre o governo da época e a monarquia, que havia sido derrubada
anos antes pelos republicanos. Em todas as estrofes há um alerta para a
chegada dos soldados, os quais combatem a serviço de seu general. Essa
constância de chamadas, que o sujeito poético ressalta dentro do poema,
causa no leitor uma sensação de insegurança, que acaba envolvendo-se nesse
clima de tensão tão peculiar à população na época do conflito espanhol. Com
isso o autor revela para seu leitor a imagem de uma sociedade amedrontada e
acuada pela ameaça das tropas franquistas que trouxeram o caos.
La Legión ha entrado a España.
O primeiro verso que inaugura o poema é de sobreaviso para o leitor,
que representa a população espanhola, visto que na época em questão o texto
185
em prosa ou verso era a maior e melhor forma de comunicação com a massa.
Observa-se que o autor coloca o vocábulo “Legión” em maiúscula. Poder-se-ia
entender essa atitude como exaltação dos soldados que compõem o exército
inimigo atribuindo a eles poder, mesmo sendo este poder destrutivo. Outra
maneira de compreender este vocábulo é vê-lo como uma forma mascarada de
insulto às tropas militares, pois “legión” também se define, conforme a Bíblia,
por demônios. Assim o autor estaria denominando pejorativamente tal exército
e expondo sua posição em relação à guerra.
A primeira estrofe do poema expressa uma preocupação do eu lírico em
alertar as pessoas comuns da sociedade para cuidarem e protegerem aquilo
que amam, pois os soldados franquistas, denominados por González Tuñón de
“lobos” (termo que o autor retoma no poema Domingo Ferreiro), estavam
chegando e vinham para destruir. Eles tinham “el desierto en el alma”, ou seja,
eram desalmados.
Hombre, cuida tu mujer,
obrero, guarda tu casa.
Mira que vienen los lobos
con el desierto en el alma.
Na segunda estrofe o sujeito poético alerta ao trabalhador rural, que
para o autor é uma pessoa com poucos recursos.
Pobre colono, defiende
tu finca, la hipotecada,
que no te van a dejar
ni verdura ni majada.
O eu lírico avisa ao colono que defenda sua fazenda que está
hipotecada, pois os que chegam não deixarão nenhuma forma de
186
sobrevivência para ele, reafirmando a entrada em terra espanhola dos que
trazem a ruína e a dor.
A terceira estrofe dá indícios da crise econômica que sofria a Espanha,
não era só o fazendeiro que tinha seu bem hipotecado, mas também o
comerciante tinha sua loja com baixos lucros. Novamente o poeta pede ao
povo que tenha cuidado com sua família e com seus bens, já que o vil exército
condecorado, como o próprio sujeito-lírico afirma no poema, pode tomar tudo
sem qualquer explicação.
La Legión ha entrado a España.
Cierra, pequeño burgués
tu tienda de renta flaca.
Guarda tu novia, muchacho,
de la hez condecorada.
Todos, segundo o poeta merecem ser alertados, inclusive a meretriz,
depreciada pela sociedade. Para o eu lírico esta mulher de vida livre é como
qualquer outro membro da comunidade, que luta, sofre e trabalha pela
sobrevivência.
Prostituta, ten cuidado
que no te invadan la casa
los rufianes de la arena
que pegan, pero no pagan.
Raúl González Tuñón, em muitos de seus poemas, retrata essa
personagem menosprezada, com o intuito de elevar sua condição humana
perante a sociedade e, assim, diminuir o preconceito em torno desse arquétipo
da realidade citadina. Por este motivo o autor canta em seus versos essa
mulher tão esquecida propositalmente pela população. Ele humaniza a
prostituta, marginalizada perante o olhar popular. Na obra tuñoneana a imagem
187
da meretriz nunca é representada negativamente, ao contrário, é apresentada
com respeito e até com pesar. Sabe-se que é de seu interesse lírico revelar as
personagens que estão à margem, expô-las de forma bela, nunca com
preconceito ou desprezo. Nessa estrofe o poeta descreve a atitude covarde
dos soldados, chamados por ele de “rufianes de la arena”, que invadem,
abusam e usufruem da prostituta, simplesmente pela imposição de seu poder e
de sua força. Mais uma vez o eu lírico registra a entrada dos militares
franquistas que trazem a desordem para a Espanha.
Na quinta estrofe o sujeito poético volta seu olhar para a Igreja e segue
recomendando cuidados. Ainda na mesma estrofe ele cita de uma forma
irônica a figura do “tahur” que representa o malandro portuário.
La Legión ha entrado a España.
Cura, cuida tu sobrina
y el tesoro de tu arca.
Tahur, ándate a los puertos
que para fulleros basta.
Cria-se então um paralelo entre a imagem do representante eclesiástico
e a do homem errante que perambula nos portos à procura de um bom
negócio. Essas imagens, como as anteriores, são imagens sociais. Em toda
poesia o eu lírico alude a personagens comuns singulares que permeiam a
cidade e o campo. Assim, mesclando diferentes classes sociais, “obrero,
colono, burgués, prostituta, cura, tahur, bodeguero”, o poeta deixa transparecer
seu olhar igualitário, no qual todos os homens são dignos e, como todos,
podem ser vitimados pelo governo. Apesar de a sociedade diferenciar pessoas
por classe econômica e social, o sujeito do poema deixa representado através
188
de seus versos uma imagem igualitária de todos os homens, pois todos podem
ser submetidos ao poderio dos que lutam pela monarquia.
Na sexta estrofe o poeta segue avisando às pessoas comuns do povo
para que tomem cuidado. Nesse momento, o eu lírico se volta para uma
personagem que vive em um ambiente comum, como as bodegas, os bares, as
casas de show.
Bodeguero, tus corambres
esconde en la cueva vasta
que ya vienen los que traen
el desierto en la garganta.
O sujeito poético determina que o dono da bodega esconda na cova sua
fome de vingança e sua raiva. O poeta se utiliza de um recurso estilístico, o
neologismo (“corambres”), para que a personagem possa dissimular sua fome
de justiça, de coragem e rancor perante as tropas franquistas. Dessa forma ele
aglutina o vocábulo “color” (cor) ao vocábulo “hambres” (fomes) formando
“corambres” que, no plural, associa sua fome biológica a sua fome de
vingança.
La Legión ha entrado a España.
Que ya vienen galopando
sobre la angustia de España,
asesinando palomas
y fusilando cigarras,
que ya vienen galopando
sobre la angustia de España
los soldados enemigos
de la dignidad humana.
La Legión ha entrado a España.
Nas duas últimas estrofes o eu poético se apóia no paralelismo para
expressar sua ideia final. Repete os dois primeiros versos da penúltima estrofe,
189
na última estrofe, enfatizando a situação de desespero e angústia que
começava a se estabelecer na Espanha. Assim, pode-se afirmar que a
regularidade e ordem citadina habitual, destruídas pela fragmentação social,
estabelecem na sociedade espanhola a desordem, que culminará no vazio
caótico deixado pela guerra.
Na penúltima estrofe o sujeito do poema, além de descrever a entrada
das tropas de Franco em solo espanhol, revela também um panorama de caos,
horror, morte, enfim, desolação, pois afirma que os soldados vêm para acabar
com a paz e harmonia, simbolizada no poema pelo vocábulo “palomas”
(pombas). Ainda evidencia a morte brutal da celebração da vida, representada
pelas cigarras, as quais cantam para celebrar o dia vindouro.
Ao final o sujeito poético segue com sua crítica atroz sobre o exército do
general Francisco Franco. Afirma que eles são soldados inimigos da dignidade
humana, pois os mesmos vinham espalhando desgraça, crueldade e dor sobre
toda população espanhola. Termina justificando novamente que todo esse
ambiente de intensa fragmentação geradora do caos acontece devido à
entrada dessas tropas na Espanha. Desta forma percebemos que o poema
“Cuidado, que viene el tercio” é de uma composição poética cíclica, pois
começa e termina com versos idênticos: “La Legión ha entrado a España”. Por
ser cíclica, também se autorecria, ou seja, a ordem inicial é interrompida pela
desordem, porém ao final o poeta retoma o princípio de regularidade para
novamente estabelecer o caos, com isto a poesia não se finda.
“Domingo Ferreiro”, toque a gaita...
190
Tanto a imagem fotográfica quanto a poética apresentam singularidades
e pontos em comum com o meio que a produz, como se pode verificar nas
diversas fotos do fotógrafo espanhol Agustí Centelles e na poesia do poeta e
jornalista argentino Raúl González Tuñón. Ambas têm em comum o mesmo
tema ou pano de fundo, a Guerra Civil espanhola, onde fotógrafo e poeta se
aproximam com o mesmo objetivo: denunciar o brutal massacre em terras
espanholas.
O poema “Domingo Ferreiro” pertence à Poemas hallados en una maleta
extraviada, que está localizado na quarta parte do livro Hay alguien que está
esperando. (El penúltimo viaje de Juancito Caminador) (1952), de Raúl
González Tuñón, e as fotografias são do fotógrafo Agustí Centelles, as quais
retratam alguns conflitos ocorridos durante a Guerra Civil espanhola. Poesia e
fotos serão expostos paralelamente e as suas análises.
A criação da imagem nesta poesia se dá através do conhecimento que
temos sobre guerras. Esse saber irá aflorar nossa sensibilidade, e no decorrer
da leitura formaremos continuamente imagens associadas ao período bélico.
Ao final nos deparamos com uma imagem que define bem o que é uma guerra:
“perdas
contínuas
de
compaixão,
de
alegrias, de esperanças, enfim perdas de
(Praça de Catalunha, o coração de
Barcelona ao final do dia – 19 /07/36)
vidas”.
Toca la gaita Domingo Ferreiro
toca la gaita... «¡Non queiro, non queiro!»
Porque están llenas de sangre las rías,
porque no quiero, no quiero, no quiero.
191
Na primeira estrofe o poeta incita a Domingo Ferreiro que toque sua
gaita, mas ele se nega a tocá-la. Esta negação tão particular é representada
em língua galega no verso: “¡Non queiro, non queiro!”, assim se cria no poema
um pequeno diálogo entre autor e personagem. Este diálogo apresenta uma
linguagem de ruptura: o autor em linguagem imperativa ordena que Domingo
Ferreiro toque a gaita, logo a seguir a personagem responde negativamente
em língua galega. No terceiro verso, Ferreiro retoma sua voz e justifica o
motivo de tal negação: as “rías” estão repletas de sangue, sangue de uma
guerra de difusas ideologias, onde ambos os lados estavam mais preocupados
em impor suas ideias políticas e eliminar seus adversários.
As “rías”, freqüentemente, na literatura simbolizam a vida, pois além de
possuírem seu ciclo vital ativo, também são as responsáveis pelo alimento da
população. Entretanto, a obra revela as “rías” como anunciadora da morte, do
caos em que havia se transformado a Espanha de 36. Naquele momento a
terra passou a não ser digna de música, mas sim de lamento. A imagem criada
nessa primeira estrofe, através da forma simbólica das “rías”, desperta no leitor
a sensação de horror e morte vivida pelas pessoas daquela época. Os leitores
sentem essa mesma sensação ao verem expressas a destruição e a morte na
fotografia. A imagem fotográfica exprime essa tristeza, pois retrata o que
ocorria nas cidades espanholas, através do olhar preciso de Centelles.
As imagens poéticas são produzidas através da ordenação de
vocábulos, versos e estrofes, dependendo, portanto, da competência de um
poeta para despertar a imaginação do leitor, já as imagens fotográficas são
produzidas por um aprisionamento físico de partes do mundo visível, isto é,
192
imagens que dependem de um instrumento de registro, implicando então a
presença de objetos reais e preexistentes.
Por tratar-se de um cenário físico, real e integrado a nosso mundo (a
Guerra Civil espanhola e o local onde ela aconteceu), a imagem criada
nesta poesia desempenha um papel social, pois por meio dela se pode sentir
como o autor percebeu tal acontecimento.
Y se secaron los ramos floridos
que ella traía en la falda del viento,
que ella traía a su novio soldado
o pescador, labrador, marinero.
(Saída de milicianos em Barcelona – 07/1936)
A segunda estrofe expressa todo o
espírito de tristeza que se vivia na Espanha: a
alegria morrera juntamente com as cores
vivas, as flores secaram, o vento não trazia
mais aquela doce melodia da gaita aos
homens daquela terra. Essa fotografia foi
exposta juntamente com esta estrofe, neste estudo, pois simboliza a despedida
de um casal. Na foto encontram-se tanto o soldado quanto “ela”, e ao lêr-se a
estrofe e compará-la com a foto, percebe-se um ambiente de desilusão e falta
de esperança, que é finalizado com o beijo de um futuro incerto. Seria a
despedida de tempos brandos para o início de tempos revoltos.
O registro da imagem poética depende de um suporte, quase sempre
uma superfície, como o papel, que possa servir de receptáculo para a fixação
dos significados, registrados pela caneta esferográfica, que um artista utiliza
para deixar impressos no papel seus significantes. Sem dúvida o principal
193
instrumento possibilitador da fixação da imagem poética é a caneta, que como
prolongamento dos dedos e dos movimentos da mão, permite desenvolver com
maestria sua utilização. É na visibilidade da escritura que está impressa a
marca de seu agente.
(Trincheira em Belchite – 09/1937)
Sobre Galicia ha caído la peste,
ay, los oscuros sargentos vinieron.
Están colgando en los pinos los hombres,
toca la gaita, no quiero, no quiero.
“Sobre Galicia ha caído la peste”:
assim se inicia a terceira estrofe que vem
revelar
nitidamente,
através
de
seus
harmoniosos versos, como atuavam as
tropas franquistas, denunciando os desmandos e crueldades praticados
naquela região. O General Franco e seu exército haviam chegado à Galicia e,
junto com eles, a dor, a morte e a destruição. Aquele momento não era mais
propício para a música festiva galega e, novamente, o autor se nega a tocar a
gaita. O terceiro verso, “Están colgando en los pinos los hombres”, revela
horror, crueldade e dor, porque “colgar en los pinos” seria pendurar as pessoas
nos pinheiros, ou seja, cravá-las nas árvores. A quem cravar? Certamente aos
homens a favor da república que lutavam contra o exército de Franco.
A fotografia acima, exposta concomitantemente com o poema, nos
revela que esses homens estariam entrincheirados nesse ambiente caótico
estabelecido pela fragmentação política da sociedade. Seus olhares para cima
esboçam preocupação, o que marca verdadeiramente a tensão que sofriam
194
esses soldados, resultado do congelamento de um fato enquadrado. Essa
imagem, sendo uma cena real, funciona como registro do confronto entre o
sujeito e o mundo. O que resulta disso não é só uma imagem, mas um objeto
único autêntico e, por isso mesmo, carregado de certa solenidade, fruto do
privilégio da impressão primeira daquele instante raro, no qual poeta e
fotógrafo pousaram seus olhares sobre o mundo, dando forma a esse olhar
num gesto irrepetível.
(Guardas de Assalto e Civis comemoram a vitória sobre
os militares revoltosos em Barcelona – 19 /07/36)
Nuestros hermanos que están allá abajo
pronto vendrán a vengar a los muertos,
pronto vendrán en mitad del verano,
pronto vendrán en mitad del invierno.
Na quarta estrofe, o poeta
expõe claramente sua posição em
relação à guerra quando cita: “Nuestros hermanos que están allá abajo”, com
isso ele se insere no grupo dos que são a favor da República espanhola, pois
os que estavam geograficamente abaixo eram os republicanos, que ainda
mantinham o controle da capital. Na sua esperança guerreira, o autor afirma
que sua “gente” virá vingar os amigos mortos, não importando se virão no
verão ou no inverno, pois certamente perceberão a humilhação e o sofrimento
do povo galego.
A imagem formada nessa estrofe é de revolta e vingança. O autor
desperta esse sentimento no leitor através de um misto de imagens: uma,
espaço vivo e real, região onde estão os companheiros da república; outra,
imagem sensorial de rancor e raiva.
195
A fotografia de guerra paralelamente a essa estrofe vem marcar a
esperança de ajuda e reparação dos vários companheiros assassinados e,
simultaneamente, simbolizar todo o contingente indiscriminado de pessoas que
morriam. Nessas fotos observamos ora a gana com que lutavam os
republicanos, ora o caos de dor e destruição que assolava o país. Nessas
imagens instauradoras, fundem-se, num gesto indissociável, o sujeito que a
cria, o objeto criado e a fonte da criação.
(Miliciano na Frente de Aragão – 1937)
El que no ha muerto andará por el monte
y en las aldeas cayeron los buenos.
Ay, que no vayan los lobos al monte,
toca la gaita, no quiero, no quiero.
Na quinta estrofe, o autor louva os
sobreviventes da guerra, aproximando-os a
Deus e colocando-os no monte 21, já que este é
o símbolo da ligação entre terra e céu.
Evidentemente,
González
Tuñón
também
demonstra solidariedade aos que morreram pela República, pois mesmo que
os sangrentos soldados não subam ao monte para acabar com os poucos que
restaram, ele não tocará a gaita em memória a seus companheiros mortos.
Nessa estrofe o elo estratégico foi criado através da imagem ambiental
física. O leitor percebe o quadro mental do mundo físico exterior e o apreende.
O ambiente trabalhado foi o monte e a aldeia. Buscando as imagens que temos
sobre esses referentes, descobrimos que o monte refere-se a um ambiente
alto, de difícil acesso; enquanto a aldeia, a planície, lugar acessível. Desta
21
[Monte] Esta definição encontra-se em CHEVALIER & GHEERBRANT (1995) p.616.
196
maneira, depreende-se que os republicanos estão no monte, tentando
proteger-se, e seus amigos mortos na aldeia, onde ocorreu possivelmente a
batalha.
A imagem anterior, do homem andando no monte, assinala claramente
esse momento da poesia, onde o soldado protege seu território de possíveis
invasões. A posição focada pelo fotógrafo nesta foto, coloca o objeto em
posição elevada e próxima do céu (assim como no poema), o que pode indicar
uma possível simpatia do repórter com a República. O emissor da imagem,
através do enquadramento, recorta o real sob seu ponto de vista e, por isso
pode propor diversas interpretações em função da sua subjetividade.
(Frente de Aragão – setembro de 1938)
Ya llegarán las valientes milicias
para acabar con la hez del desierto.
Ya llegarán en mitad de la Historia,
ya llegarán en mitad de los tiempos.
A sexta estrofe anuncia a
vinda das milícias republicanas, que,
mesmo em desvantagem, lutavam bravamente para combater aquelas
deploráveis tropas franquistas vindas do deserto ocidental. Essas valentes
milícias chegarão na metade da guerra, na metade do tempo que resta para o
triunfo. A imagem que surge nessa estrofe é a da esperança, uma imagem
sensorial. Percebe-se com essa imagem que o autor tinha certeza da vitória
das tropas republicanas e, a partir desse pensamento utópico, fica nítido o
posicionamento de González Tuñón durante a guerra.
A figura das tropas em direção à frente de batalha, captada pela objetiva
de Centelles, demonstra através do cenário toda a dimensão que o referido
197
fotógrafo conseguia impor entre o sujeito e o mundo. Por meio da poesia, podese imaginar o ambiente e, através da fotografia, o constatá-lo. Enquanto o
criador das imagens poéticas deve ter, fundamentalmente, sensibilidade e
imaginação para a figuração, o agente fotográfico necessita de capacidade
perceptiva e prontidão para reagir no momento certo.
Toca la gaita... ¡que baile el obispo!
Toca la gaita, no quiero, no quiero.
Porque no es hora de fiesta en España,
porque no quiero, no quiero, no quiero.
(Bombardeio de Lleida – 2 /11 / 3 7)
Na sétima estrofe, o autor ironiza a
Igreja Católica com a expressão “¡que baile el
obispo!” referindo-se à grande indiferença
mantida pelo clero aos intensos massacres que
ocorriam durante a Guerra Civil espanhola.
Normalmente, tocar a gaita é festejar com música bons momentos, mas
como tocar a peculiar melodia desse instrumento se os únicos sons ouvidos
eram os dos gritos e dos bombardeios daquela sangrenta batalha?
A fotografia exposta transmite esse desespero, essa tristeza, esse
momento impróprio para festas. Com tamanha vivacidade, Centelles reproduz
nessa imagem uma realidade singular, uma propaganda da violência para qual
o mundo atentava. No entanto, se as imagens poéticas resultam de um gesto
idílico, fruto de uma simpatia, ou de seu oposto, em relação ao mundo, as
imagens fotográficas decorrem de uma espécie de rapto, captura do real, por
trás do qual se insinua um ato não destituído de certa perversidade. O que se
198
imagina através dos harmoniosos versos, na fotografia, com toda sua
credibilidade documental, expõe-se explicitamente.
(Guardas civis- 1936)
Ya llegarán los soldados leales
para acabar con los pájaros negros,
ya llegarán en mitad de la Biblia,
ya llegarán en mitad de los muertos.
“Ya llegarán los soldados leales
para acabar con los pájaros negros”,
nesta
estrofe o
autor anuncia
uma
possível vitória da Frente Popular sobre
os mensageiros da morte, assim denominados pelo poeta às tropas
franquistas. Vê-se, claramente nesses versos, o quão esperançosos eram os
republicanos, que sustentavam a ideia de um novo país, livre de qualquer
regime autoritário que pudesse impregnar com sangue o solo espanhol.
Mais uma vez Agustí Centelles fotografa os soldados, ainda sorridentes
e confiantes em uma possível vitória, marchando em direção à frente de
batalha para acabar com seus inimigos. Essa imagem é capaz de estimular na
população autoconfiança e trazer a esperança de um possível final da guerra.
Entretanto a imagem fotográfica anterior, a mulher chorando o cadáver, vem
destruir por completo todo ânimo causado pela fotografia acima, pois metade
da população havia morrido, e nem mesmo mulheres e crianças escapavam
dos massacres.
199
(Corpo de um guarda de assalto coberto
com a bandeira catalã – 19/07/36)
Toca la gaita. ¡Que baile la víbora!
Toca la gaita, no quiero, no quiero.
Porque la gaita no quiere que toque.
Porque se ha muerto Domingo Ferreiro.
A última estrofe faz uma feroz
crítica,
possivelmente
Francisco
Franco,
ao
general
chamando-o
de
víbora, ironizando-o com a expressão “¡Que baile la víbora!”, que pode ser
interpretada como o simples ato de dançar ao som da gaita ou como uma
provável expulsão, a eliminação desse ditador. Ao final da estrofe é explicitado
o principal motivo de não querer tocar a gaita, pois ela também está de luto em
sentimento à morte de Domingo Ferreiro, que certamente foi um grande lutador
galego da tão sonhada República espanhola.
A última fotografia é uma simbólica representação dessa personagem
bélica exposta no poema, porém real e integrada por ser uma imagem verídica
de um soldado existente na sociedade espanhola, que provavelmente faleceu
com bravura lutando em busca de seus ideais.
200
O ÚLTIMO PERCURSO
O TRANSEUNTE JUANCITO CAMINADOR
201
5. A PERSONIFICAÇÃO NA POESIA
R
uega por mí, que tengo pasta de santo y
de bandido.
Mi corazón es tierno como un niño dormido.
Ruega por mí, que tengo alma de evangelista,
sangre de aventurero.
¡Ruega, por mí, que nunca tuve un smoking!
Por mí que heredé el perro de Carlitos
Chaplin
“Poema para la Virgencita del Teatro Cervantes”
Raúl González Tuñón
202
5 – A personificação na poesia
Abordar a personificação na poesia requer a abordagem do tema da
autobiografia, que, nascida como mero ramo da biografia, começou um longo
percurso até chegar ao dia de hoje em que cada vez mais atrai a atenção da
crítica.
Nos fins do século XVIII, momento em que a experiência de cada vida
começa a organizar-se como uma narração independente e separada dos
destinos da comunidade, surge o desejo de perceber no projeto autobiográfico
moderno algo maior do que a forma narrativa que ele acabou assumindo.
Dessa maneira se ampliam os meios que o indivíduo moderno encontrou para
se afirmar. Assim, a narrativa autobiográfica passa a ser o clamor de sua
rememoração que, ao resgatar para o momento atual os acontecimentos de
seu passado, reconstitui sua prática como sujeito e revela sua imagem e a que
deseja imprimir de si mesmo.
O objetivo deste estudo não é tratar da questão polêmica do gênero
autobiográfico, como foi o de Philippe Lejeune, e sim de investigar a presença
de aspectos autobiográficos em uma obra literária. Contudo, para parâmetro de
discussão do referido tema, usar-se-áo como norteadores as três definições
propostas por Lejeune (1994:129) ao revisar e ampliar seus estudos acerca do
termo:
O primeiro sentido (que eu elegi) é o que propõe
em 1886 Larousse: “Vida de indivíduo escrita por
ele mesmo”.(...) Mas,em um sentido mais amplo,
“autobiografia” pode designar também qualquer
texto onde o autor parece expressar sua vida ou
seus sentimentos, qualquer que seja a forma do
texto, e o contrato proposto pelo autor. Menos
conhecido que Larousse, Vapereau aclarou muito
203
bem este sentido em seu Dictionnaire universel
des littératures (1876): AUTOBIOGRAFIA (...),
obra literária, romance, poema, tratado filosófico,
etc., cujo autor teve a intenção, secreta ou
confessada, de contar sua vida, expor suas ideias
ou expressar seus sentimentos. [T.A.]
Tais definições não se sobrepõem umas
às outras, mas se
complementam na tentativa de definir esse termo tão conflitante que é a
autobiografia. Lejeune (1991:48) parte da recepção do leitor para entender a
autobiografia: “ao partir da situação do leitor tenho a oportunidade de captar
com mais clareza o funcionamento dos textos, pois foram escritos para nós,
leitores, e que, ao lê-los, somos nós quem os fazemos funcionar”.
Essa percepção do leitor em se realizar como leitor/espectador integrou
as artes do início do século XX. Assim sendo, o anseio pela urgência e
importância da autobiografia se vincula à modernidade. Segundo a professora
Bella Josef (1997:217):
A crescente importância da autobiografia é parte
da revolução intelectual caracterizada pelo
surgimento de uma forma moderna de consciência
histórica. Engloba uma série de escritos ligados à
emergência do eu no espaço da modernidade,
pois é o lugar onde se problematiza a construção
do eu. A emergência desse espaço é o signo
maior da constituição moderna da literatura.
A preocupação, que nos parece tão natural, de olhar para o passado, de
reunir nossa vida para contá-la, não é uma exigência universal. Como visto, ela
acontece somente após muitos séculos e é um produto tardio da civilização.
Assim, o homem que se satisfaz em desenhar sua própria imagem acredita ser
digno de um interesse privilegiado. Cada ser humano tem a tendência de se
considerar como o centro de um espaço vital, supondo que sua existência
importe ao mundo e que sua morte deixe o mundo incompleto. Por isso, contar
204
a própria vida é uma forma de se manter no universo após a morte. O autor de
uma autobiografia atribui a sua imagem uma maior importância com relação ao
seu entorno, uma existência independente; contempla-se em seu ser e agradase de ser contemplado, constituindo-se em testemunha de si mesmo e
tomando aos demais como testemunhas do que sua presença tem de
insubstituível.
A biografia, constituída como gênero literário, somente prevê uma
apresentação exterior dos grandes personagens e personalidades, revisados e
corrigidos pelas necessidades da propaganda e pelo sentido comum da época.
Já a aparição da autobiografia supõe uma nova revolução espiritual: o artista e
o modelo coincidem, o artista toma a si mesmo como objeto, pois se considera
como um grande personagem, digno da memória dos homens, enquanto que,
de fato, não passa de um simples mortal mais ou menos representativo. Sendo
assim, a autobiografia é o espelho pelo qual a pessoa reflete sua própria
imagem e, ao autobiógrafo se impõe como tarefa trazer à luz as partes mais
recônditas de seu ser.
De acordo com Georges Gusdorf em seu artigo “Condições e limites da
autobiografia” (1991:12), diferente da pintura de um retrato, que representa o
presente, a autobiografia pretende retraçar uma duração, um desenvolvimento
no tempo, não justapondo imagens instantâneas, mas sim compondo uma
espécie de filme apoiado em um roteiro preconcebido. O autor de um diário
íntimo fixa o quadro de sua realidade cotidiana sem preocupação alguma com
a continuidade. A autobiografia, ao contrário, exige que o homem se situe a
certa distância de si mesmo, a fim de se reconstituir em sua unidade e
identidade através do tempo.
205
A autobiografia não consiste em uma simples recuperação do passado
tal como foi, pois a evocação do passado só permite a evocação de um tempo
transcorrido. A recapitulação do tempo passado pretende ser a réplica do já
ocorrido, entretanto, não revela mais que uma figura imaginada, já distante e
incompleta, pois o homem, ao recordar o passado no presente, já deixou de ser
o que era no passado.
O homem é o foco da autobiografia, por isso a verdade dos feitos se
subordina à verdade desse homem. Logo, não é necessário que todos os
detalhes que o eu autobiográfico relate tenham sido reais ou tenham realmente
existido. Daí, a tendência dos textos autobiográficos engendrarem alguns
aspectos fictícios. A autobiografia pode ser o relato de um momento da vida,
em que o autor se esforça em extrair o sentido dessa vida, mas ela é somente
um dos sentidos dessa vida. Portanto, a autobiografia deve ir mais além do
provável ou do improvável. Ela é, sem dúvida alguma, um documento sobre
uma vida real ou imaginada. Trata-se também de uma obra de arte e, assim
sendo, o leitor, além dos valores reais, éticos e estéticos, percebe a harmonia e
a beleza das imagens nela presentes. Ficção ou mentira, o valor artístico é
real; muito além dos artifícios empregados pelo autor, ele dá testemunho de
uma verdade, a verdade do homem, a representação de si e do mundo. São
sonhos que se realizam no imaginário, para fascinação desse homem e de
seus leitores.
A autobiografia, além de ser uma obra de arte, é também uma obra de
edificação pessoal; não nos apresenta ao personagem visto desde o exterior,
em seu comportamento visível, mas sim a pessoa em seu interior, não tal como
foi, ou tal como é, mas como acredita ser. Sua experiência é a matéria prima
206
de toda criação, a qual elabora os elementos tomados da realidade vivida. Um
indivíduo só pode imaginar sua vida partindo de si mesmo, do que ele é, do
que tenha experimentado na realidade ou em sua aspiração. A autobiografia
faz emergir esse conteúdo privilegiado com o mínimo de alterações; acredita
restituí-lo tal como foi, mas, para narrar-se, o homem acrescenta algo a si
mesmo. Assim, a criação de um mundo literário se inicia na confissão do autor:
a narração que realiza de sua vida já é uma primeira obra de arte, o primeiro
revelar de uma afirmação que, em uma avaliação crítica, se refaz e se frutifica
em romances, tragédias ou poemas. Portanto, a autobiografia possui duas
versões: por uma parte, a confissão propriamente dita e, por outra, toda a obra
do artista, que se ocupa da mesma matéria, mas com toda a liberdade que o
imaginário lhe proporciona.
Outra polêmica que envolve a autobiografia diz respeito à exigência de
uma narrativa “em prosa”, deixando a poesia à parte. No entanto, o próprio
Lejeune dedica grande parte de seu El pacto autobiográfico (1994:123-145),
além de outro livro seu, Lire Leiris: autobiographie et langage, à análise da
poesia do francês Michel Leiris, justamente sob a ótica da autobiografia. Ao
confirmar a existência de uma relação entre a poesia e a autobiografia na obra
de Leiris, Lejeune assinala algumas considerações: a possibilidade que tem o
poeta de poder transformar o “eu” da poesia lírica no “eu” da autobiografia, já
que ele possui total liberdade para utilizar os recursos da linguagem, como o
discurso na primeira pessoa, ademais de poder lançar mão da narrativa
retrospectiva e do pacto com o leitor. Lejeune ainda considera que a poesia se
torna uma segunda escritura, a escritura que ele havia anteriormente elaborado
para “dizer o mundo”, isto é, a primeira que o escritor converteu. Desta forma, o
207
exercício poético não estaria em oposição ao exercício de um relato
autobiográfico. Todos os elementos da sua própria teoria são revelados na
poesia de Leiris. Como Lejeune teve como objetivo identificar seus elementos
autobiográficos na poesia deste poeta, pode-se empregar tais elementos
teóricos na análise da poesia de outro poeta, visto que o teórico francês
(1994:138) afirma: "[...] assim como existem milhões de autobiografias “em
prosa”, se pode contar com os dedos da mão as autobiografias em verso, si se
entende por “autobiografia” um relato que conta uma vida”.
A autobiografia supõe como critério elementar que exista uma identidade
entre autor, narrador e personagem. No caso de uma obra com nome fictício
dado a uma personagem que conta sua vida, não há essa relação de
identidade explícita, o que poderia levá-la a ser considerada um texto
autobiográfico e não uma autobiografia. A partir da omissão ou da adoção de
um nome fictício, o autor suscita a dúvida no leitor, visto que este pode ter
razões para suspeitar, a partir de coincidências, que se dá uma identidade
entre autor e personagem, enquanto que o autor preferiu negar essa identidade
ou não explicitá-la a fim de, provavelmente, estreitar o pacto estabelecido com
este leitor. Desta forma, como afirma Lejeune, se tentássemos distinguir texto
autobiográfico de autobiografia nos valendo no plano das análises internas do
texto, não encontraríamos nenhuma diferença. Logo este é mais um dado da
teoria do escritor francês que nos permite comprovar grande parte da poética
de González Tuñón como autobiográfica.
Com o apoio teórico proposto por Philippe Lejune e sua aplicabilidade,
realizaremos a análise crítica de algumas poesias de Todos bailan. Los
poemas de Juancito Caminador e de Canciones del Tercer Frente. Los
208
caprichos de Juancito Caminador, de Raúl González Tuñón, em que o autor
desenvolve sua poesia como se fosse sua autobiografia. Apesar do nome da
personagem (Juancito Caminador) não coincidir com o nome do autor,
podemos afirmar que a personagem tuñoneana tem a mesma identidade de
seu autor, pois ao reformular seus estudos acerca do Pacto autobiográfico,
Lejeune (1994:135) afirma que “o nome da personagem tanto pode ser igual ao
nome do autor quanto diferente”, sem que esta diferença descaracterize a obra
como uma autobiografia. Além disso, encontramos em vários poemas
atribuídos a Juancito Caminador o registro das vivências, das experiências que
González Tuñón amalgamou ao longo de sua vida, transformando-as em
produto dessa lírica.
A relação indissociável e irrestrita entre González Tuñón e sua
personagem surge a partir do momento em que se autodenomina Juancito
Caminador. Desta forma, podemos afirmar que o pacto autobiográfico fundado
por Lejeune está instituído na obra do poeta argentino, pois conforme o autor
francês (1994:64): “O pacto autobiográfico é a afirmação no texto da identidade
do nome (autor-narrador-personagem), e nos envia em última instância ao
nome do autor sobre a capa”. Enfim, reconhecemos esta tríade na obra
tuñoneana e a analisaremos nas poesias que levam o nome dessa
personagem única, que caminha pelos versos líricos revelando as mais vastas
áreas do seu íntimo ser.
5.1- O poeta e a personagem
209
Falar de Raúl González Tuñón e Juancito Caminador é ressaltar a
existência de um “pacto lírico autobiográfico” entre eles, onde a política e a
aventura, o compromisso social e a liberdade, a realidade e o imaginário se
conjugam mutuamente formando a essência poética de suas personalidades.
Juancito Caminador se incorpora ao mundo poético tuñoneano, na última parte
de Miércoles de ceniza (1928), e se estende até o seu último livro, El banco en
la plaza (1977), entretanto, sua presença será nitidamente fortalecida nas
seguintes obras: Todos bailan, los poemas de Juancito Caminador (1935);
Canciones del tercer frente, Poemas de Juancito Caminador - (los caprichos de
Juancito Caminador) (1941); Hay alguien que está esperando, el penúltimo
viaje de Juancito Caminador (1952); Crónicas del país de nunca jamás. Nuevos
caprichos de Juancito Caminador y otros testimonios (1965) e em seu único
livro teórico La literatura resplandeciente (del cuaderno de apuntes de Juancito
Caminador) (1976).
Quem seria “Juancito Caminador”? Como defini-lo? Uma personagem
e/ou uma personificação do poeta? Um alterego ou apenas uma representação
autobiográfica? Poderia Juancito ser o reflexo da alma “flaneante” do poeta?
Muitas indagações surgem quando nos deparamos com a presença de
Juancito nos poemas e todas elas nos parecem possíveis assim que
vislumbramos suas poesias. Contudo, para este estudo adotaremos Juancito
como uma personagem que personifica ao poeta: por um lado, sua
representação autobiográfica; por outro lado, sua alma “flaneante”. Conforme
Nora Domínguez (1980/1986:130), “esta personagem criada pelo poeta opera
como limite entre o eu autobiográfico e o eu ficcional”. Esse limiar de
identidades pode configurar uma identidade única, o Caminhador, que se
210
realiza na junção do poeta com mais três figuras: o avô, Johnny Walker (o
ilusionista) e a imagem do homem na garrafa de whisky, como podemos
verificar no esquema abaixo:
Seu avó paterno
+
No ilusionista
Raúl
González
Tuñón
Se inspira em:
+
Na imagem da
garrafa de whisky
Johnnie Walker
Juancito
Caminador
A primeira figura, o avô paterno, Estanislao González, que morreu na
Espanha, embora o autor argentino não o tenha conhecido, foi a inspiração do
poeta, por meio dos relatos contados por seu pai. A vida extraordinária desse
“imaginero” (forma como Tuñón se referia a esse avô) era a de um homem
boêmio, escultor de imagens religiosas, um artista que andou pelas terras
espanholas, enfim, um sonhador, como González Tuñón relatou a Horacio
Salas (1975:17): “El imaginero que es Juancito Caminador”.
A segunda figura, marca do whisky Johnnie Walker, bebida preferida de
Tuñón, onde se vê estampado um homem caminhando com seu bastão pelo
mundo, tem duas semelhanças com a personagem da obra tuñoneana: a do
nome e a do sobrenome, visto que Johnnie é Juancito e Walker é o
Caminhador. Também contribuiu para a criação da personagem, o contato de
González Tuñón com o ilusionista de um circo pobre, que se dizia chamar
211
Johnny Walker. O poeta afirma em Raúl González Tuñón, por él mismo, (disco
gravado pelo autor, no qual recita suas poesias) que havia alguma coincidência
espiritual entre ele e este ilusionista e, por isso, adotara esse nome, como se
verifica na transcrição abaixo, que antecede o poema “Canción que compuso
Juancito Caminador para la supuesta muerte de Juancito Caminador”:
En mis andanzas por el sur, en Bahía Blanca,
conocí a un prestidigitador de un circo pobre que
se hacía llamar Johnny Walker. Simpaticé mucho
con este prestidigitador, y como yo igualo que
quiere decir Juancito caminando, y yo tenía
algunos puntos de contacto, alguna coincidencia
espiritual con este prestidigitador, adopté para mí
ese nombre, Juancito Caminador.
A denominação atribuída à personagem, ressaltada pelo diminutivo que
se refere à pequena imagem do homenzinho na garrafa de whisky, alude ao
adjetivo “caminhador”, uma das características fundamentais de González
Tuñón: seu gosto por viajar e caminhar pelo mundo. Logo, esta é ainda uma
das similitudes que dá lugar a uma identificação com seu autor, permitindo
dizer, de acordo com Domínguez (1980/1986:133), que “González Tuñón e
Juancito Caminador são um só”. A partir desse pacto firmado entre autor e
personagem, podemos delimitar e averiguar detalhadamente essa vinculação.
Raúl González Tuñón, através de sua obra e por sua habilidade poética,
transforma aquele homenzinho de aspecto aristocrático, na garrafa, em poeta
andarilho de todos os portos do mundo. Os poemas de Juancito Caminador
sintetizam as experiências, a caminhada citadina e as inspirações de González
Tuñón. Sua ideologia, suas peripécias, seus amores, sua convicção poética
estão expressas pela real ou falsa voz deste poeta aventureiro, com o qual o
autor estabeleceu seu pacto lírico autobiográfico.
212
A entrada desta personagem nos poemas tuñoneanos unifica tanto sua
tendência surrealista quanto sua tendência social. Apesar de se aproximar do
mundo mágico, do mundo dos sonhos, da ficção, esta personagem não se
esquece das lutas políticas. Logo, o eu original de suas primeiras poesias se
converte, personificando-se em Juancito Caminador. Este poeta andarilho é
sua criação e ao mesmo tempo seu desprendimento, que torna evidente o
pacto lírico firmado entre autor e personagem, que se revela por meio de
características análogas ao eu autobiográfico de González Tuñón. O eu
autobiográfico cria essa personificação dual que cumpre suas representações
no mundo interno da poesia, ou seja, trazendo a presença do próprio autor nos
poemas.
Como afirmado anteriormente, a primeira menção ao Caminador surge
na parte final de Miércoles de ceniza, (1928). É importante ressaltar que esta é
a época em que González Tuñón começa a viajar, a percorrer, inicialmente, as
mais vastas regiões da Argentina para depois ganhar a Europa, coincidindo,
desta
forma,
com a
criação
de
Juancito
Caminador.
Sua
primeira
representação lírica, “Cosas que le ocurrieron a Juancito Caminador”, no livro
antes citado, surge como o ilusionista, o mágico. O mundo da magia acolhe o
poeta. Em seu processo criador, o poeta joga com a primeira e a terceira
pessoas. “Soy el prestidigitador”, afirma ao princípio da composição poética,
nomeando como seus amigos François Villon (o famoso palhaço, ao qual
Tuñón admirava) e Raúl González Tuñón. Esta amizade que os une será
permanentemente revelada nos outros poemas, de tal modo que se um está
presente aparece o outro de uma maneira mais ou menos explícita.
213
Juancito Caminador começa a aparecer com mais freqüência nos
poemas de El otro lado de la estrella, de 1934. Sua biografia é semelhante à de
González Tuñón: registra a viagem do poeta ao Brasil (1931) e também sua
estada em Barcelona, entretanto ele possui seus próprios amigos que serão
evocados no próximo livro como: “Los seis hermanos rápidos dedos en el
gatillo”, “Los nueve negros de Scottsboro”, entre outros. De Tuñón, de sua
intimidade, de seu eu indivisível, é seu poema “Lluvia” que dedicou a sua
amada esposa Amparo Mom. De Juancito Caminador: “La canción para
vagabundos”, “Los ladrones”, “El poeta murió al amanecer”, entre tantas outras.
Esta personificação de González Tuñón, acentuada a partir de 1934, é
proporcional a sua preocupação dual pela política e pela literatura: real e
imaginário, militância e aventura, nacional e universal, interesses que não se
subordinam uns aos outros, mas que complementam a visão do poeta por este
mundo que jamais deixou de provocá-lo.
Todos bailan é a obra na qual Juancito é veementemente revelado, pois
o subtítulo deste livro, “Los poemas de Juancito Caminador”, destaca a
presença do sujeito ordenador dos textos e, ainda, imprime certa ambigüidade
pelo uso da preposição “de” que pode designar tanto pertencimento quanto
tema. Nesta obra a personagem se apresenta pela primeira vez, no poema que
leva seu próprio nome, “Juancito Caminador”, o qual analisaremos mais
adiante.
Também nessa obra a suposta personificação do poeta, o eu ficcional e
autobiográfico apresenta sua serie de blues, tais como: “Blues de los
archipiélagos”, “Blues de Río Gallegos”, “Blues de las adolescentes”, “Blues de
la bohardilla”, “Blues de los baldíos”, “Blues de los pequeños deshollinadores”.
214
Neste último, Juancito por meio de perguntas, que funcionam como ativadoras
da memória, passeia por cenários, relembra pessoas e situações que
constituíram momentos de sua vida infantil e juvenil, concomitantemente à vida
de González Tuñón: “¿Te acuerdas de los turcos vendedores de madapolán?”;
Informa sobre os paradeiros de seus antigos amigos que se tornaram
marginalizados, como “Maria Celeste”/“Pues hoy Maria Celeste es una
prostituta”; “Juan el Broncero”/“Pues Juan el Broncero es hoy un ladrón”,
denotando certo fascínio por pessoas que andam na contra-mão dos valores
morais ou na contra-mão dos valores sociais.
A obra Canciones del tercer frente (1941) é formada por quatro livros.
Inicialmente o nome da obra seria Poemas de Juancito Caminador, contudo
esse ficou como subtítulo interno do livro e o primeiro livro, dos quatro, como o
nome principal. São eles: I. Canciones del tercer frente, II. A nosostros la
poesia, III. Las calles y las islas e IV. Caprichos de Juancito Caminador. O que
nos chama atenção neste livro é a carta que abre a terceira parte, na qual
Juancito Caminador, ao expor sua condição de poeta, de parceiro de aventuras
e de amigo, escreve para Raúl González Tuñón. Esta carta funciona como
prólogo para o restante do texto que, intitulado como Las calles y las islas,
aparece como livro de autoria de Juancito Caminador.
A quarta parte, Caprichos de Juancito Caminador, está marcada pelo
mundo da magia, das personagens marginalizadas ou funambulescas e pelo
grupo de poemas de “señoritas”. A particular ambigüidade presente neste livro
está ressaltada no fato de Juancito Caminador atribuir a ele mesmo o título dos
poemas ou ser o protagonista: “Poema que compuso Juancito Caminador para
la supuesta muerte de Juancito Caminador” ou “El poeta murió al amanecer”,
215
nos quais não se explicita quem é esse poeta, entretanto se reconhecem
particularidades comuns a González Tuñón e a Juancito Caminador. Tais
características dos dois poemas serão discutidas posteriormente.
A atmosfera de Hay alguien que está esperando (1952) sinaliza um
possível término do caminhar desse obstinado viajante com seu subtítulo “el
penúltimo viaje de Juancito Caminador”. Este livro está dividido em cinco
partes. As duas primeiras estão denominadas no subtítulo do livro, a terceira
parte contém um título próprio “Zona de Silencio”, aos quais outros poemas e
pequenas crônicas estão submetidos, a quarta recebe o nome de “Poemas
hallados en una maleta extraviada” e a quinta, “Caprichos de Juancito
Caminador”. Na primeira parte do livro, encontram-se cinco poemas que se
iniciam com a palavra portuguesa “saudade”, (denotando o conhecimento da
língua portuguesa pelo poeta e sua experiência cultural em solo brasileiro):
“Saudade de los puertos”, “Saudade de los bosques”, “Saudade de la vieja
casa de Flores”, “Saudade de Valparaíso” e “Saudade con nombres y fechas”.
Este último é um poema de significativo valor, no qual o sujeito em primeira
pessoa
é
Juancito
Caminador:
“Soy
Juancito
Caminador
y
vuelvo
preguntando:”. Trata-se de um poema de verso livre e períodos extensos no
qual, a partir dessa primeira pessoa instituída, o sujeito do poema relata a vida
de González Tuñón. Neste processo lúdico, Juancito Caminador é de modo
fictício sujeito desta vida e tende a se confundir com o autor para o leitor
desprevenido. É preciso conhecer pelo menos alguns dados biográficos de
González Tuñón, para descobrir o artifício empregado pelo poeta.
Outro poema significativo desse livro se encontra na terceira parte “Zona
de silencio” e recebe o nome “Encuentro en el camino”. É um pequeno diálogo
216
travado entre o narrador e Juancito Caminador, onde também é preciso que o
leitor conheça um pouco da vida de González Tuñón para perceber a dualidade
registrada, que se refere ao transcurso vivido tanto por Tuñón quanto por
Juancito até aquele momento, contudo o narrador percebe certa nostalgia e
falta de ânimo em Juancito, como se ele estivesse perdendo sua vivacidade.
Ainda que ele admita sua tristeza também revela sua alegria:
Encuentro en el camino
_ ¿De dónde vienes, Juancito Caminador? Aunque
estás “exangüe y pálido como un aparecido”,
acabo de reconocerte.
_ Vengo de la lucha, de la alegría, del dolor, de los
sueños, de las nubes, del barro, de las cosas en
que permanezco.
_ La lucha te ha hecho más triste y pensativo.
_ También me ha hecho más alegre y más fino.
_ ¿Tú hablas ahora de alegría?
_ Estoy alegre porque estoy triste, decía aquel
guitarrero borracho de Totoral, provincia de
Córdoba, casa de Rodolfo Aráoz. Amparo vivía,
ay, el tiempo que, de todas maneras, fué tan
bellamente vivido y en cuyo recuerdo queremos
vivir más bellamente aún, si eso es posible.
A tendência a identificar Juancito Caminador com seu criador parte do
pacto autobiográfico entre eles. No “Poema para un niño que habla con las
cosas”, do livro A la sombra de los barrios amados (1957), dedicado a Adolfo
Enrique, filho de González Tuñón nascido em 1955, o poeta ratifica esse pacto:
“Un mapa, un numeroso y palpitante mapa,/ un mapa con las rutas/ que
siguiera Juancito Caminador, tu viejo”.
Crónicas del pais de nunca jamás (1965) é um livro de crônicas como o
nome sugere e divide-se em: I. “Los fabricantes de sueños”, II. “Los gremios
extravagantes”, III. “Otros caprichos”, IV. “Testimonio de un momento”. Na
primeira crônica deste livro, que recebe o mesmo nome da primeira parte, já se
217
define que país seria esse “do nunca jamais” (1965:11): “...el país perdido de la
infância”. Também atribui a autoria a Juancito Caminador do “Elogio
desmesurado del país de nunca jamás” (1965:14): “...Juancito Caminador
escribió el Elogio Desmesurado del País de Nunca Jamás: en el país que está
más allá del horizonte, en el País de Nunca Jamás, la soledad es una palabra
desconocida y bella...”. Neste livro de crônicas, constata-se a presença de um
único poema denominado “El hombre de la Sección Especial”, o que leva a crer
que o autor quis destacá-lo. A impressão que o autor transmite é a do eterno
chamado da poesia de tema social, visto que há a referência a um homem da
“Sessão Especial”, acusado pelo poeta de perseguir estudantes e operários, ao
qual o sujeito poético classifica de “alma negra”: “Tenía un corazón frío y duro/
El hombre de la Sección Especial/ Perseguía a obreros y estudiantes/ El
hombre de la Sección Especial/ Tenía el alma negra negra negra/ El hombre de
la Sección Especial”.
A única obra teórica de González Tuñón, La literatura resplandeciente
(1976), está dividida em: Crónicas, Del cuaderno de apuntes de Juancito
Caminador, Crónicas en varias imágenes, Otras imágenes a través del verso e
Los poetas de Buenos Aires. O fundamental do livro, onde o autor teoriza sobre
a poesia, definindo e defendendo seu estilo como realismo romântico, refere-se
ao “Cuaderno de apuntes de Juancito Caminador”. Desta maneira, inclui-se
Juancito Caminador como o possível autor dos pensamentos e indagações de
seu ofício, acentuando-se a frequente identidade entre eles, Raúl González
Tuñón/ Juancito Caminador, que poderia ser simplificada em: poeta
político/poeta viajante. Porém, essa simplificação implicaria em uma visão
muito parcial e redutora do produtor de feitos poéticos, do qual González Tuñón
218
fez com seu próprio material biográfico-autobiográfico ao transpô-lo para a
escritura.
Juancito Caminador é multifacetado, é plural e singular, é a perfeita
criação de uma personagem engendrada pelo âmago desse ser “flaneante”
que, personificado na poesia, se funde com seu criador em uma representação
pactual e intransponível. Enfatizo que adotar uma única definição para essa
surpreendente personagem seria minimizar ou restringir a grandeza da
experiência artística, da liberdade criativa do seu autor.
5.2- O último caminhar: o Caminhador no espaço poético
Essa parte final do estudo se dedica à abordagem das análises de
quatro poemas de Raúl González Tuñón que apresentam no título, a referência
a Juancito Caminador. Na primeira delas, ele se coloca como o cerne do
poema, ele será o tema nesses versos líricos. Nas outras duas, essa
personagem se intitula como o autor da poesia, seu construtor. E na última, ele
deixa evidente a ambiguidade sobre quem é o poeta, se ele ou seu criador.
A partir do pacto lírico autobiográfico, buscar-se-á nessas poesias a
presença dos elementos autobiográficos que revelam a personificação do
poeta, o âmago de sua alma “flaneante”. Isso nos permitirá vislumbrar a filiação
irrestrita Raúl González Tuñón - Juancito Caminador e, testificar essa produção
como uma produção avant-garde em que o próprio poeta ao fazer uso de todos
os recursos gramaticais disponíveis e da liberdade libertadora que o concerne,
219
escreve parte de sua própria história de vida, fundando assim seu inovador e
imprevisível projeto poético autobiográfico.
“Juancito Caminador”
O poema “Juancito Caminador”, que compõe o livro Todos bailan (1935),
é uma particular apresentação dessa personagem, bem como de suas
experiências citadinas e íntimas. Nele podemos encontrar vários episódios que
se equiparam com acontecimentos da vida de Raúl González Tuñón.
O poema em prosa “Juancito Caminador” transmite, em seus versos
livres, a ideia de uma narrativa. Para analisá-lo criticamente, dividimos o poema
em sete partes. A partir de um jogo de antíteses o eu lírico se apresenta e traça
um panorama de suas experiências vividas na cidade argentina de La Rioja:
Traigo la palabra y el sueño, la realidad y el juego de lo
inconsciente,
lo cual quiere decir que yo trabajo con toda la realidad
y si hay alguna persona que quiere saber lo que me ha
ocurrido
ya se puede ir enterando.
Na primeira parte do poema a personagem se apresenta através do uso
da primeira pessoa do singular. Percebe-se então uma identidade entre o
sujeito enunciador e a personagem, caracterizando possivelmente um pacto
autobiográfico, pois segundo Lejeune (1991:48. T.A.): “A identidade do narrador
e do personagem principal que a autobiografia assume fica indicada, na maior
parte dos casos, pelo uso da primeira pessoa”.
220
Ainda nesses versos iniciais, se estabelece um jogo antitético entre o
real e o irreal. Essa possível antítese permeia a obra de González Tuñón, e
assinala seu perfil: ora surrealista, imerso no sonho, ora social, comprometido
com seu tempo. Ao lograr a junção dessas duas possibilidades, que parecem
conflitantes, o poeta traz “la realidad y el juego de lo inconsciente”, como ele
mesmo afirma no primeiro verso desse poema.
A partir dos três últimos versos dessa primeira parte de “Juancito
Caminador”, a personagem convida o leitor “mais curioso” a entrar no seu
“mundo” e conhecer fatos, situações que o constroem como sujeito de suas
ações: “y si hay alguna persona que quiere saber lo que me ha/ ocurrido/ ya se
puede ir enterando”.
Na segunda parte, o uso da primeira pessoa do plural “vamos”, logo no
primeiro verso, concretiza o pacto lírico autobiográfico, quando o leitor passa a
percorrer e compartilhar suas memórias com esta personagem. Essa abertura
permite ao leitor que ele ingresse no poema e faça parte do mundo de
González Tuñón/Juancito Caminador, agregando-se a essa dupla e criando,
então, uma relação pactual tríplice, autor/personagem/leitor, como testemunha
dos acontecimentos da vida do escritor, como se verifica a seguir:
Vamos a girar, por ejemplo, alrededor de La Rioja
y de esos rostros y esos paisajes que giraron a mi
alrededor
hace algunos años
y que hoy se prolongan en la muerte de tantas
fotografías perdidas.
Me había ocurrido el nacer y el vagabundear
adolescente
-cuando era chico miraba llover y me gustaban los
agrios dulces
-cuando era adolescente me gustaban la cocaína y
Victor Hugo
y cuando de pronto me vi corriendo delante de la
muerte
-estaba trémulo, solo en la soledad de los Llanos-
221
la vida me pareció tremendamente deliciosa y
tremendamente,
verdaderamente peligrosa.
Ao
rememorar
lugares,
pessoas,
gostos
e
fatos,
González
Tuñón/Juancito Caminador evoca o passado no presente e reatualiza esse
passado, conservando seus valores e conformando sua autobiografia. O
recorte que este sujeito-lírico realiza de seu passado, ao citar a região de La
Rioja, tem profunda vinculação com o percurso de vida de Raúl González
Tuñón. De acordo com o próprio autor, La Rioja foi a viagem que o fez
despontar como poeta, foi nela que ele escreveu todo seu segundo livro,
aquele que ganhou o primeiro lugar no concurso municipal de poesias. Essa
região tem um significado muito particular para o escritor, pois foi em Ingeniero
White, em La Rioja, que conheceu Johnny Walker, o ilusionista do circo pobre,
que lhe possibilitou a construção de Juancito Caminador. Foi lá também que
ele dividiu o quarto com o já prestigiado poeta Conrado Nalé Roxlo, a convite
do próprio, o mesmo que o incitara a seguir escrevendo, quando outro poeta,
menos prestigiado, o desestimulara. Nesses dias, em que conviveu com Nalé
Roxlo, González Tuñón leu para Nalé Roxlo vinte poemas que o deslumbraram
e que fizeram com que Nalé escrevesse para Tuñón um verso que o comoveu
por ser terno: “De versos trajo un baúl,/ Raúl,/ Los trajo para mis males,/
González./ Ya me ha leído un montón,/ Tuñón./ Que se te lleve un ciclón/ Tus
versos hoja por hoja/ bien lejos de La Rioja./ Raúl González Tuñón.” Por isso, a
presença dessa região é
muito
frequente
nos poemas tuñoneanos,
principalmente os que trazem a personagem, pois ela significa o âmago das
veracidades vividas e retidas por González Tuñón, mas reveladas em sua
222
poesia. Assim, segundo Gusdorf (1991:16) “A autobiografia traz à tona um
sentido novo e mais profundo da verdade como expressão do íntimo ser”.
Também, nessa segunda parte, percebe-se a marcação do tempo, por
meio do emprego do verso “hace algunos años” e do vocábulo “hoy”, os quais
aludem ao regresso ao tempo perdido pelo sujeito do poema. Essas imagens
de “rostros, paisajes, fotografías”, possuem um alto valor simbólico e afetivo
para o Caminhador, pois elas reavivam o tempo de outrora. Contudo, ao fazer
uso da memória visual (fotografias), ele reconstrói o passado e tem uma
sensação nostálgica, já que essas imagens, eternizadas pela foto, não mais
participam de sua vida atual, não possuem uma significação expressiva em seu
corrente momento, são imagens mortas, como ele mesmo afirma: “y que hoy
se prolongan en muerte de tantas/ fotografías perdidas”.
“Me había ocurrido el nacer y el vagabundear/ adolescente/ -cuando era
chico miraba llover y me gustaban los/ agrios dulces/ -cuando era adolescente
me gustaban la cocaína y/ Victor Hugo/ y cuando de pronto me vi corriendo/
delante de la/ muerte/ -estaba trémulo, solo en la soledad de los Llanos-/ la
vida me pareció tremendamente deliciosa y/ tremendamente,/ verdaderamente
peligrosa”. Nesta serie de descrições particulares e íntimas do eu-poético estão
incluidos traços autobiográficos de González Tuñón. Sabe-se que ele começou
sua carreira ainda adolescente e tinha o desejo de viajar, conforme suas
próprias palavras, em entrevista a Horacio Salas (1975:28-29): “que yo no
queria estudiar, sino viajar [...], y me fui a Córdoba y después a La Rioja”. Logo,
se esse é o iniciar da caminhada de Tuñón, pois Llanos é uma das partes que
pertencem à região de La Rioja, também é o início do percurso para o
Caminhador, assim como todas as demais experiências que se seguem,
223
vividas ou apreciadas em algum momento pelo autor e assumidas também por
Juancito Caminador. Essas experiências são reveladas por González Tuñón
tanto no livro de entrevista de Horacio Salas quanto em seu próprio autoretrato, como por exemplo, “Me deslumbró Los Miserables de Víctor Hugo”.
(SALAS, 1975:24).
Na terceira parte do poema, o eu lírico seguindo seu caminhar pela
lírica, realiza agora uma incursão reflexiva sobre a morte e sobre a vida:
Me dijeron: “Octavio Portela se murió”
y entonces pensé: ¿Es que uno puede morirse?
Infiel no fui con el amigo querido.
Juro que le rendí el mejor de los homenajes.
Cuando él murió yo sentí un gusto inmenso de la vida
y dije:
-Voy a vivir también por lo que le quedaba de vivir.
Nunca conocí el arrepentimiento feroz aunque no
quise verlo muerto.
Me parecía imposible que alguien se muriera mientras
yo, ah,
mientras Juancito Caminador amaba las muchachas
del verano,
los vinos ácidos, los versos de Rimbaud,
las bombas, las orejas de las mujeres tuberculosas, los
expresos
y los ventiladores enloquecidos en los ángulos de las
amuebladas.
Recuerdo que él estaba asomado a una ventana del
Hospital
y en el fondo velaban a la chica muerta del día
y él decía: “Qué olor tienen los caballos placeros”
y el florero estaba vacío sobre la pila de libros vacíos
porque ya habíamos releído los libros y estábamos
llenos de las ideas
de los libros.
O uso de nomes próprios que remetem à esfera familiar ou amistosa é
recorrente na poesia tuñoneana e, na terceira parte, ao citar um famoso
compositor de tangos, “Octavio Portela”, o sujeito lírico principia com o leitor
uma relação de identificação, apresentando um efeito de similaridade entre
224
sujeito e personagem e demonstrando o caráter autobiográfico da composição
poética, já que este compositor foi amigo particular de Raúl González Tuñón.
A suposta descoberta da morte pelo eu lírico proporciona uma reflexão
acerca da vida e da amizade para com seu amigo, valorizando ainda mais o
viver e a necessidade de desfrutá-lo intensamente. Como uma espécie de
homenagem ao amigo morto, ele assume também o que lhe faltava viver. O
escritor Jorge Monteleone afirma, em “Vagabundeo, Revolución y entresueño”,
do livro Raúl González Tuñón Poesia Reunida (2011:12), que “Tuñón
reconhece o grande paradoxo: em todo começo já está inscrita a morte, e
então a poesia conjetura aquilo que terá sido”. Desta forma, essa
temporalidade abre, na imagem do corpo sem vida, a possibilidade de um
futuro, no qual a nostalgia é, por sua vez, ação e sonho: o poeta leva assim a
vida e a morte consigo e, ao negar a visão do amigo morto, ele nega de alguma
maneira a perda total desse amigo.
“Me parecía imposible que alguien se muriera mientras/ yo, ah,/ mientras
Juancito Caminador amaba muchachas del verano...” Aqui, está expressa,
mais uma vez, a ambigüidade eu-poético/ personagem, chegando ao ponto de
não permitir que o leitor os separe. A imagem que surge é mais frágil e
vulnerável, revestida de um caráter sagrado que a torna fascinante e terrível. A
parti daí, mais uma vez é desencadeada, no poema, uma série de imagens que
simbolizam seus gostos, aludindo alguns deles às mesmas preferências de
González Tuñón. Também aparecem personagens comuns nas poesias
tuñoneanas, que nos remetem a uma das características dessa lírica, o lado
funambulesco, representado pelas “mujeres tuberculosas” entre outras.
225
“...y en el fondo veleban a la chica muerta del día”, é uma imagem muito
comum na poesia de González Tuñón, sendo inclusive título de um poema
“Menina morta”, escrito no Rio de Janeiro (1931) e publicado no livro El otro
lado de la estrella (1934). Essa imagem da menina morta (“chica muerta”) é
reveladora do mundo funambulesco descoberto pelo autor, o qual imprimiu voz
a ela em suas poesias sociais. Por meio da imagem da morte, em um desfile
de imagens funambulescas, que surgiam melancolicamente na revolução ou na
denúncia social, González Tuñón vislumbrou o futuro. Enquanto explorava esse
mundo, ele também escrevia algumas aventuras de Juancito Caminador, como
afirma Monteleone (2011:14): “O descobrimento da fala dos mortos está
vinculado a esse momento. Tuñón declarou ao poeta Horacio Salas que
quando escrevia os poemas testemunhais de La rosa blindada em Madri,
também escrevia blues y ali nasceram alguns dos caprichos de Juancito
Caminador”. Logo, não se trata de uma relação cronológica, mas sim de ordem
poética. Lendo esta poesia como a escritura da vida, estaríamos, conforme
Heleno Godoy (2011:96), “na condição daquela outra concepção realizável da
autobiografia, tal como Lejeune declara que Michel Leiris evidencia em sua
obra: a de uma ordem da vida, quando o poeta deixa de dar valor ao papel
desempenhado pela cronologia e prioriza aos aspectos temáticos de sua
existência, que faz entrar em sua obra poética”. Raúl González Tuñón teria,
então, da mesma forma, escrito a si próprio como uma “história sem narrativa”,
para usarmos a expressão de Lejeune.
Yo tenía nostalgia de cosas que iban a sucederme y
pensaba:
¿Qué estará haciendo ahora la Reina de Rumania?
¡Después la conocí saliendo de un hotel de lujo
en el corazón rencoroso de Europa!
226
Y después anduve sobre los aeroplanos
y me metí en estaciones absurdas, escondidas,
con vagos aromas de aserraderos y destilerías.
Na quarta parte do poema, Juancito Caminador volta a reafirmar o
paradoxo temporal pelo jogo antitético de passado (“nostalgia”)/ futuro (“iba a
sucederme”). O emprego das antíteses e das metáforas, como já afirmado no
terceiro capítulo, foi fundamental nas construções poéticas tuñoneanas e,
principalmente, nas obras em torno de Juancito Caminador, quando funcionam
como mecanismos de ativação da memória, sendo subsequentemente
reatualizada e resignificada, um processo indispensável na construção
autobiográfica. Assim, a memória tem um papel protagônico na autobiografia,
conforme Gusdorf, pois concede perspectiva ao indivíduo e lhe permite
considerar as complexidades de uma situação no tempo e no espaço.
Nos versos que seguem Juancito evoca uma sucessão de imagens ora
visuais, ora olfativas, as quais aludem provavelmente a fatos vividos por
González Tuñón durante sua experiência na Europa, mais precisamente em
Paris, pois nesses versos encontramos afirmações que remetem à voz do
próprio autor em conversa com Horacio Salas ou em seu autorretrato (“me metí
en estaciones escondidas”). Ainda há elementos comuns em suas poesias
parisienses (“aeroplanos, corazón rencoroso”) que remetem ao Surrealismo.
Me gustaba contar: “El día 14 de febrero el señor
(aquí un nombre)
penetró a la casa señalada con el número 1-7-7-4
y fue ladrado por un perro sin cabeza”.
La primera vez que robé un libro, esa otra en que fui
preso
por dormir en un hotel de vagos y ladrones
o simplemente, la vez que enamoré a la hija de un
guardabarrera,
¡una hija de la distancia, del camino, del horizonte
desconocido!
227
A quinta parte do poema se inicia com o contar de fatos selecionados
por Juancito. O primeiro fato sinalizado refere-se a um acontecimento de
grande repercussão para a Igreja Católica, o dia em que o Fundador do Opus
Dei celebrou uma missa na casa de uma senhora, Marquesa de Onteiro.
Afirma-se que nesta missa Deus lhe revelou algo que mudaria os fundamentos
da instituição, a inclusão da mulher. Interessante a alusão irônica que se faz ao
citar “perro sin cabeza”, ao invés de “mula sem cabeça”. A ironia, uma das
características das composições tuñoneanas, é empregada com muita audácia
por Juancito Caminador, que se assemelha a um pícaro, e, na medida em que
é sagaz, amálgama diversas peripécias e seu humor, por muitas vezes, tornase sarcástico. Ainda nesta parte ele continua com seu bom humor, ao citar que
foi preso por dormir em um “hotel de vagos y ladrones”. Este fato remete à
publicação do poema de González Tuñón, “Las brigadas de Choque”, quando o
poeta foi preso por causa dessa composição poética na qual um juiz
reacionário tinha visto incitação à rebelião.
Ainda nessa parte, verificamos que os versos finais possuem uma
profunda exaltação lírica e remetem à outra paixão declarada do autor,
expressa pela voz de Juancito Caminador, paixão essa que ele desenvolveu
ainda criança, pois sempre viveu próximo à linha férrea e a imagem dos trens
em curso o estimulou a querer desvendar esse caminho desconhecido, “al tren,
que está esperando para llevarse nuevamente hacia el sueño y la aventura”.
Segundo a estudiosa sobre autobiografia na América Hispânica, Sylvia Molloy
(2003:133), “as lembranças da infância aparecem como um elemento
significativo da escrita autobiográfica, e certamente funcionam como uma
maneira de deslanchar uma história de vida”.
228
Solía frecuentar las obras en construcción, borracho,
y recuerdo que una vez
Arturo Santillán me dijo: “Por pasar por abajo nos
vamos a quedar solteros”.
Y yo tenía dos queridas y una cajetilla de marfil llena
de opio.
Na sexta parte do poema, Juancito segue sua “narração dos fatos”
(“Solía frecuentar las...”) e cita o nome de seu companheiro das madrugadas
(Arturo Santillán). Por não encontrar referência a essa pessoa na vida de
González Tuñón, cremos que faz parte do mundo ficcional de Juancito
Caminador. Conforme palavras do escritor Contardo Calligaris (1998:49),
“narrar-se não é diferente de inventar-se uma vida. Ou debruçar-se sobre sua
intimidade não é diferente de inventar-se uma intimidade. O ato autobiográfico
é constitutivo do sujeito e de seu conteúdo”. Já o escritor Northrop Frye (1989:
302) coloca a autobiografia entre os modos de ficção e acredita existir sempre
um elevado grau de ficcionalidade nos textos autobiográficos, pois considera
que:
A maior parte das autobiografias é inspirada por
um impulso criador, e, portanto, ficcional, a
selecionar apenas aqueles acontecimentos e
experiências da vida do escritor que vão constituir
uma forma integrada. Essa forma pode ser um
tanto mais ampla do que a figura com a qual ele
veio a identificar-se, ou simplesmente a coerência
de sua personalidade e atitudes.
A referência às drogas, principalmente o ópio, muito comum nos
primeiros cinco livros de Tuñón, evidencia e delimita seu espaço poético ao
submundo portenho. Conforme Beatriz Sarlo (2010:293), “à alucinação,
clássico estado poético, acrescenta-se o cenário da droga, e o poema, mais do
que um estado, representa um meio clandestino, sórdido e transgressor”. Ainda
usando as palavras de Sarlo, a proximidade ao subúrbio com sua poesia de
229
solidariedade traz também o atrativo da transgressão literária e ideológica,
assim suas construções líricas estão longe da Buenos Aires “mansa e cordial”.
Acaso não pertençam ao registro realista da cidade moderna, ao menos ao seu
registro moral. Como não podemos atribuir o consumo de drogas pelo autor,
considera-se este como mais um elemento ficcional da poesia de Juancito
Caminador. O fato de o poeta construir uma poesia em prosa, na qual agrega
elementos da ficção, como o uso do pretérito imperfeito, o foco na primeira
pessoa, “um narrador-personagem”, (no caso da poesia, preferimos o uso de
autor-personagem), o tempo psicológico e o espaço (La Rioja, Argentina),
revela evidentemente o fascínio de González Tuñón por poesias que fossem
recitáveis ou até narráveis, para serem lidas em voz alta, obtendo assim uma
circulação mais ampla do que a dos livros. Por isso, grande parte de suas
poesias foram musicadas por vários cantores, como Mercedes Sosa, Tata
Cedrón, entre outros, além de serem lidas em diversas manifestações, como foi
o caso de “La Libertaria”.
¡Todos los relojes enloquecieron de pronto!
¡Todas las marionetas lloraron en los organitos!
¡Todos los almanaques rodaron degollados sobre las
mesas de las oficinas!
¡Todos los miembros de la Liga de las Naciones
fallecieron de pulmonía!
Y mi corazón continúa alegre y violento
como el corazón alborotado de un mundo nuevo.
Na última parte do poema, uma série de metáforas cria imagens que
aludem ao cenário mundial da primeira metade do século XX, atribuindo
veracidade à composição, pois o mundo estava realmente mudando e uma
guerra estava prestes a estourar. Como os anos 30 representam o fracasso da
Liga das Nações, González Tuñón registrou a “morte” simbólica de seus
230
integrantes (¡Todos los miembros de la Liga de las Naciones/ fallecieron de
pulmonía!”). Enfermidade muito comum, que levava à morte.
Juancito mostra a tensão política que se estabelecia no mundo (“¡Todos
los relojes enloquecieron de pronto!”/ ¡Todos los almanaques rodaron
degollados (...)!”) e, de certa forma também deixa subentendida a mudança da
ordem poética, a qual começara a experimentar sua obra, abandonando o
mundo dos sonhos (¡Todas las marionetas lloraron en los organitos!) para
adentrar no mundo da poesia social: “Y mi corazón continúa alegre e violento/
como el corazón alborotado de un mundo nuevo”. Raúl González Tuñón,
juntamente com Juancito Caminador, inicia o último passo da transição de sua
obra, calando por um tempo sua poesia mais surrealista e dando voz a sua
poesia, socialmente revolucionária, e Juancito Caminador, como afirma Sarlo
(2010:299) é a “figura que se desloca, no itinerário poético e biográfico, desde
o bas-fond portenho até a fronteira internacional, e daí para a política”.
“Canción para vagabundos” (Que compuso Juancito Caminador)
A composição poética “Canción para vagabundos (Que compuso
Juancito Caminador)”, pertencente à obra Los caprichos de Juancito
Caminador, inicialmente denominada Los poemas de Juancito Caminador, e
posteriormente adotando o título de Canciones del tercer frente (1941), é uma
espécie de trova moderna na qual Juancito, agregado a seu grupo de boêmia,
homenageia a seus amigos. Nela o poeta expressa a “ideologia de vida” do
vagabundo, (entenda-se aqui vagabundo como sinônimo de andarilho,
231
boêmio), ideologia a qual em muitos pontos se assemelha à ideologia de
González Tuñón, que procurou contemplar o mundo com realidade e também
otimismo em todas as suas formas.
“Canción para vagabundos” é um poema composto por seis estrofes
com quartetos de rimas consonantes, graves e interpoladas (ABBA), cuja
escansão da maioria de versos é em octasílabos com redondilha maior (o que
caracterizaria, senão fosse pela presença do título, uma trova), possuindo ao
final de cada estrofe (com exceção da última) uma forma de estribilho.
Percebe-se em seus quartetos a similaridade de pontuação entre a primeira e a
última estrofe, e entre a segunda e quinta quadra, o que agrega mais ritmo ao
poema. Outra característica que confere uma intensa melodia às estrofes é a
presença das aliterações, como “todo nos falta” e “todo, menos...” (salvo o
último quarteto). Vejamos a primeira estrofe:
Salud a la cofradía
trotacalle y trotamundo.
Todo nos falta en el mundo,
todo, menos la alegría.
A construção da poesia de Raúl González Tuñón está fundamentada no
rigor sonoro, por isso a preocupação em manter o paralelismo sintático, assim
como os outros aspectos métricos já citados são de suma importância para que
a poesia se intitule como “canção”. O poeta sempre declarou seu amor pela
música e pela dança, por este motivo encontramos a vinculação de Juancito
Caminador à música, onde ele com sua “voz” propaga, através de diversos
blues e inúmeras canções, seu amor incondicional pela melodia poética.
232
Assim como são atribuídas a Juancito Caminador as diversas
composições poéticas cujos títulos se iniciam com a palavra blues, também lhe
são atribuídos os poemas iniciados com a palavra canção, como: “Canción que
Juancito Caminador compuso para uma mujerzuela en una fiesta de bandidos”,
“Canción que Juancito Caminador dejó inconclusa”. Os títulos das poesias que
remetem ao mundo da música sempre foram constantes durante toda a
produção poética tuñoneana, fazendo-nos acreditar, devido a sua própria
identificação como cantor do verso, que Raúl González Tuñón viveu e cantou o
mundo com sua poesia. Seus versos, além de versificarem a lírica, denunciam
e contam as vivências do sujeito enunciador dessa lírica: ora como a voz do
eu-poético, ora como a voz de Juancito Caminador, o qual fez da “señorita
poesía” sua maior canção.
A imagem, na primeira estrofe do poema, alude a um espaço físico, a
Confraria com o brinde (“Y viva la santa unión”), levantado por Juancito
Caminador como uma espécie de saudação a seus amigos de Confraria, para
que após esse brinde ele homenageie os companheiros presentes com sua
“recitação poética”. No segundo verso do poema, há a referência à principal
característica da personagem, que passa a vida viajando, pois aprecia sempre
algo novo (“trotamundo”). Nota-se que Juancito emprega também “trotacalle”
para criar uma relação direta com a cidade. Essa filiação cidade-mundo foi a
grande temática inspiradora de toda obra poética de González Tuñón. Nos
versos terceiro e quarto aparece uma espécie de estribilho que será usado nas
quatro próximas estrofes, sempre na mesma posição da quadra, com
pequenas alterações nos finais, “Todo nos falta (en el mundo), / todo, menos
(la alegria)”. Com essa afirmativa, a personagem deixa evidente uma vida de
233
poucos recursos, porém superada pelo otimismo da alegria. E essa afirmativa
estará presente com o mesmo sentido, em todas as quatro estrofes seguintes.
Y viva la santa unión
de Sin-ropas y Sin-tierras;
todo nos falta en la tierra,
todo,menos la ilusión.
No segundo quarteto, percebe-se a exaltação à união existente entre ele
e os amigos da Confraria, evidenciados como pessoas desprestigiadas
economicamente “Sin-ropas y Sin-tierras”. Assim como Juancito, Raúl
González Tuñón, era pobre, frequentava esse mesmo ambiente e também era
fiel a seus amigos da boemia. Além disso, o poeta argentino sempre saía em
defesa do proletário e desprestigiado, e suas armas eram a poesia e os textos
que publicava nos jornais da época. A inegável proximidade entre personagem
e poeta deixa evidente a similaridade de suas vidas. Nora Domínguez
apresenta uma definição particular para Juancito, agregando mais valor ao ato
autobiográfico construído por González Tuñón. Ela o intitula ventríloquo
literário. Para a autora (1980/1986:131), “numa relação ventríloquo-boneco
existe uma aliança ou associação de ambos em função de um espetáculo,
associação que é imaginária”. O grande artifício é o ventríloquo emprestar sua
voz ao boneco, dando a impressão de que o boneco tem fala independente.
Semelhante ao ventríloquo-boneco o autor-Juancito Caminador se apresenta,
no terreno do imaginário, e, embora este último conserve certa emancipação,
mantém sempre uma relação direta com seu criador.
Corto sueño y larga andanza
en constante despedida;
todo nos falta en la vida,
todo, menos la esperanza.
234
A terceira estrofe expressa a mobilidade da personagem, seu caminhar
e seu desprendimento (“en constante despedida”) de estar sempre em
movimento à procura de um novo lugar em que desperte a imaginação, mesmo
que por pouco tempo (“corto sueño”), pois há muito a caminhar (“larga
andanza”) para se ver o mundo.
Amigos de las botellas
pero poco del trabajo;
todo nos falta aquí abajo,
todo, menos las estrellas.
Na quarta estrofe a imagem do vagabundo é ironicamente ressaltada
(“Amigos de las botellas/ pero poco del trabajo”). De forma burlesca, Juancito
joga com a “fama” dos vagabundos, figura como um bom-vivan no sentido
daquele que sabe viver a vida e tirar dessa vida o melhor. Já o emprego da
metonímia “aquí abajo” caracteriza a região onde está a personagem, América
do
Sul,
Argentina,
deixando
marcada
a
conotação
de
continente
subdesenvolvido. Contudo, González Tuñón não concorda com esse
depreciativo. Apesar de reconhecer as dificuldades do povo sul-americano,
Raúl González Tuñón conclui, a partir de suas experiências de viagens pelo
mundo (In: DOMÍNGUEZ, 1980/1986:124): “Así aprendí que no somos
subdesarrollados, es una sabrosa mentira, nosotros somos mal aprovechados,
mal organizados y mal dirigidos”.
Inofensiva locura,
sinrazón de vagabundo;
todo nos falta en el mundo,
todo, menos sepultura.
235
A quinta estrofe apresenta esse vagabundo sem credibilidade alguma
para a sociedade. Ele tem uma vida fora dos padrões sociais, a que muitos
denominariam de louca, porém, na sua “inofensiva locura”, o vagabundo leva o
mundo em sua cabeça através de seu flanar citadino. Ainda de forma burlesca,
ele alude ao lugar que todos os cidadãos do mundo têm por certo, “a
sepultura”. Agora a repetição do estribilho não mais denota sentimentos
nobres, mas aponta para a grande certeza da vida.
Prosigamos, si Dios quiere,
nuestro camino sin dios,
pues siempre se dice adiós
y una sola vez se muere.
No último quarteto, percebe-se que a vontade de Deus em manter suas
vidas (“Prosigamos, si Dios quiere”), permitirá, a esses vagabundos, seguir o
rumo de uma caminhada livre dos valores morais e religiosos (sin dios), onde
respiram o amor e a liberdade. Juancito os convida a prosseguir nesse
caminho, em que as despedidas constituem experiências de vida (“pues
siempre se dice adiós”). Essa é a única estrofe que não traz o estribilho. Com
isso, nota-se que desde o início a poesia parte em ordem decrescente, onde o
otimismo está sempre superando os desafios impostos pelo mundo, até chegar
à inescapável morte.
Nobre vagabundo, Juancito Caminador, a partir de sua espécie de trova,
se incumbe de exaltar a infatigável vida dos que estão à margem da sociedade.
Verdadeiro crítico social, burlesco, astuto e perfeito sonhador, Juancito transita
pelo mundo dos sonhos com um olhar audacioso de quem observa os mínimos
detalhes da sociedade. O olhar interior que se propaga através de seus olhos,
236
é o mesmo que lhe dá voz e o forma em sua essência. É um flâneur antiburguês, misturado à multidão, que sonha os sonhos do seu criador e os exibe
para que o mundo os veja. Sua existência depende da alma do poeta e a
mesma está contida no reflexo da vida deste poeta; ele é a sua própria
prestidigitação.
“Canción que compuso Juancito Caminador para la supuesta muerte de
Juancito Caminador”
O uso de textos autobiográficos não convencionais se justifica, neste
estudo, pela concepção flexível de autobiografia, que pode ser uma
reconstrução artificial e subjetiva ou uma recriação, na qual se expressam as
múltiplas ficções do eu. Daí, a possibilidade de conceber o autobiográfico em
segunda ou terceira pessoa, como afirma o próprio Philippe Lejeune e Noël M.
Valis em seu texto “La autobiografia como insulto”, publicado na Revista
Anthopos nº125, de 1991. Por este motivo consideramos o próximo poema,
mesmo escrito em terceira pessoa, como autobiográfico.
O poema “Canción que compuso Juancito Caminador para la supuesta
muerte de Juancito Caminador”, é uma alusão à possível morte da
personagem. Nele encontramos inúmeras evidências que se coadunam com a
vida e a obra de González Tuñón. Estaria o poeta argentino cansado da
presença de seu “dulce” vagabundo?. A resposta para essa pergunta se dará
ao final da composição poética, onde encontraremos a elucidação que
237
desvenda essa misteriosa canção que foi composta por Juancito, para sua
suposta morte.
“Canción que compuso Juancito Caminador para la supuesta muerte de
Juancito Caminador” é um poema composto por oito estrofes com quartetos de
rimas consonantes, graves e interpoladas (ABBA), possuindo, no segundo
verso das estrofes pares, a alternância das palavras que sintetizam o ser
Juancito Caminador e, ao final dessas mesmas estrofes, a repetição de um
mesmo refrão. Seus quartetos apresentam uma pontuação semelhante com
exceção do primeiro e do sétimo, com isso atribui-se ao poema uma cadência
melódica acentuada. Suas estrofes, rimadas alternadamente, cumprem o papel
de manter o ritmo similar à estrutura de uma canção, daí a intensa
musicalidade. Observemos:
Juancito Caminador...
Murió en un lejano puerto
el prestidigitador.
Poca cosa deja el muerto.
A reticência usada no primeiro verso da primeira estrofe provoca
curiosidade no leitor, permitindo que sua imaginação vagueie livremente e
construa suas hipóteses. A partir do segundo verso, inicia-se uma espécie de
relato sobre o fim da personagem, afirmando-se sua morte em um porto
distante, além de sua precária condição financeira “poca cosa deja el muerto”.
A presença do porto, espaço físico sempre constante nas obras tuñoneanas e
na vida de González Tuñón, parece exercer um fascínio no autor, ratificado
pelo próprio poeta: “Amo los puertos (es el único sitio en donde puede
aguardarse algo, un barco, un sueño, una mujer, un pájaro). Amo los puertos
arrugados por los acordeones del mundo.” Esse fascínio, como já vimos, vem
238
desde a infância. Trata-se de uma memória portuária, valorizada pelo sonho,
que surge das imagens provocadas pelos navios, “vão não sei para onde”. A
admiração pelos portos, compartilhada entre Raúl González Tuñón e Juancito
Caminador, além de outros pontos comuns, permite afirmar que a personagem
é sua personificação e que por meio dela o autor constrói sua autobiografia
poética. Desta forma, não estamos reportando o leitor só a fatos da vida do
poeta, mas também conduzindo esse leitor ao processo de elaboração da
poesia tuñoneana, já que a interseção vida/obra acaba envolvendo o leitor. A
autobiografia como intenção de alguém que projeta dar notícia de si, de seu
encontro com a realidade, com a alteridade, transcende tanto o real quanto o
imaginário.
Terminada su función
-canción, paloma y barajatodo cabe en una caja.
Todo, menos la canción.
O primeiro verso da segunda estrofe (“terminada su función”) vincula-se
diretamente com o terceiro verso da primeira estrofe (“su presdigitación”), pois
no ambiente circense os espetáculos são chamados por seus integrantes de
função. Esta função não só está vinculada ao ofício do ilusionista, mas também
do poeta, pois ambas são funções do ilusionismo artístico. A vinculação
comprova-se pelo segundo verso, enfatizado em todo o poema, “canción,
paloma y baraja”, o qual alude a três elementos substanciais tanto para
personagem quanto para autor. A canção representa seu amor pela música;
pomba, símbolo universal da liberdade e da paz expressa essa alma livre do
artista; baralho representa a vida noturna, da boemia. Logo, esse verso, que
reflete a preferência de ambos, funciona como síntese do ideal buscado como
239
arte de vida, confirmado por Gusdorf (1991:17): “a autobiografia é vivida,
representada, antes de ser escrita; impõe uma espécie de marca retrospectiva
ao acontecimento”.
Ainda na segunda estrofe a personagem reafirma sua vida de poucos
recursos “todo cabe en una caja”, contudo exalta aquilo que de maior valor e
importância teve na vida, “la canción”, ou seja, a poesia. Embora “todo cabe en
una caja”, há uma ressalva, “Todo, menos la canción”.
Pónle luto a la pianola,
al conejito, a la estrella,
al barquito, a la botella,
al botellón, a la bola.
Música de barracón
-canción, baraja y palomaflor de trapo sin aroma.
Todo, menos la canción.
Pónle luto a la veleta,
al gallo, al reloj de cuco,
al fonógrafo, al trabuco,
al vaso y a la carpeta.
Na terceira estrofe e na quinta estrofe, percebe-se a enumeração de
vários elementos que transitam como símbolos poéticos tuñoneanos. Estes
elementos funcionam como alegorias que aludem ao mundo dos sonhos, da
fantasia, do desconhecido, do subconsciente e das lutas sociais, enfim que
resumem seu ofício como homem-poeta. Nestes quartetos, a partir do
imperativo “pon” se evidencia a humanização desses símbolos para seu
criador, pois eles ficarão de “luto”, tristes com sua morte. “Pianola, botella,
botellón, bola, fonógrafo, vaso”, reportam ao mundo boêmio; “conejito, estrella,
veleta, gallo, reloj cuco”, se evidenciam como símbolos dos sonhos, do mundo
infantil e marcam essa temporalidade nunca abandonada na obra tuñoneana;
240
“barquito”, alude ao porto, às viagens; “trabuco”, às lutas sociais; “carpeta”, aos
seus escritos. Exaltados estão todos os elementos que mais comoveram
González Tuñón e por sua vez, Juancito Caminador, já que um reflete o eu
poético do outro, formando a base tríplice de sua autobiografia lírica:
autor/sujeito poético/personagem.
Su prestidigitación
-canción, paloma y barajael tiempo humilla y ultraja.
Todo, menos la canción.
No terceiro e no quarto verso da sexta estrofe, o poeta aborda a questão
do passado, deixa marcado seu envelhecimento pelos vocábulos “humilla y
ultraja”, atribuindo ao tempo certa imagem de carrasco. Contudo esse “senhor
tempo”, que atua incessantemente sobre a vida humana, não consegue se
sobrepor à eternidade “juvenil” da poesia, sendo ela, uma vez mais, colocada
em posição suprema. A poesia é juvenil, não envelhece, é atemporal, por isso
o poeta, González Tuñón, ao se fazer presente, personificado em seu Juancito
Caminador se imortaliza em sua poética autobiográfica. Conforme palavras de
Godoy (2011:101):
Portanto o poeta não apenas lembra-se de si
mesmo no passado, ele se constrói a si mesmo na
medida em que “diz/fala” desse passado “que os
anos não trazem mais”, mas que a linguagem
pode fazer viver de novo, presentificante e
presentificado, na escrita que se torna a si mesma
forma e significado.
A autobiografia foi o artifício encontrado pelo escritor de tornar a sua
vida perpétua, pois ela como “reencarnação” figurativa do rosto e da voz de
241
uma pessoa, ou seja, sua metáfora, reforça precisamente a identificação feita
entre poeta e pessoa. Essa identificação ambivalente e, por certo perturbadora
é antes uma identificação lingüística em que uma construção cultural (a ideia
de poeta) se assimila quase por completo à pessoa concreta do escritor. Enfim,
como afirma o crítico Noel Valis (1991:37), “o poeta, em fim, já marca em sua
função de estereótipo cultural, a identidade do escritor, definindo-o de antemão
e, por conseguinte despersonalizando-o ao mesmo tempo”.
Mucha muerte a poca vida.
¡Que lo entierre de una vez
la Reina del Ajedrez
y un poeta lo despida!
A ideia de que cada texto tem vida própria, como uma crônica, um conto,
uma poesia e de que, como o escritor Julio Cortazar afirma, em seu texto
“Algunos aspectos del cuento”, ao terminarmos de ler o texto o matamos, ou
melhor, o encerramos, permite-nos pensar, analogamente em quantas vezes
“matamos” a personagem após a leitura de seus poemas. Ao pensar a
permanência textual de Juancito Caminador, percebe-se que, como figura
ficcional, possui uma vida poética fugaz, pois em cada poema que figura é
como se ele “morresse” um pouco. Daí a afirmativa no primeiro verso da sétima
estrofe “Mucha muerte a poca vida”. A simbologia da “rainha do xadrez” está
estritamente vinculada a da morte, ao xeque mate, palavra usada neste jogo
para finalizá-lo, por isso o eu lírico afirma enfaticamente “¡Que lo entierre de
una vez/la Reina del Ajedrez(...)!”.
Todo esse quarteto está pautado na figura da morte, e nos permite uma
indagação a partir da afirmativa feita no poema, “y un poeta lo despida”. Este
poeta, provavelmente sendo seu próprio criador Raúl González Tuñón, estaria
242
cansado da companhia de seu fiel escudeiro, por isso estivesse querendo calálo? Não o sabemos ao certo, mas certamente o poeta ao qual se refere é seu
próprio mentor. A presença do poeta nessa estrofe, ou melhor, a alusão a Raúl
González Tuñón, é mais uma forma evidente da dualidade existente entre eles
que ao mesmo tempo que os fragmenta os unifica. O poeta, tendo a missão de
“o despedir”, demonstra subjetivamente, que o poder de controlá-lo e de lhe dar
a “voz” vem da sua própria existência enquanto ser humano. A excelência da
função da personagem vem do seu autor, que está personificado em Juancito
Caminador.
Truco mágico, ilusión,
-canción, baraja y palomaque todo en broma se toma.
Todo, menos la canción.
A última estrofe ressalta que toda essa morte aludida no poema a
Juancito Caminador, não passou de uma burla, de uma brincadeira (“truco
mágico, ilusión”) realizada por esse próprio pícaro (“que todo en broma se
toma”) instigador do sonho e da fantasia. A construção poética foi pautada em
cima dessa morte, com isso se justifica o título do poema em suposta morte de
Juancito Caminador. Mesmo deixando em evidência sua maior característica, a
prestidigitação, Juancito mostra seriedade com relação a poesia, pois a exclui
dessa brincadeira, atribuindo assim valor de veracidade a ela, “Todo, menos la
canción”. Para ele, a poesia é real, infinita, imortal e encantadora, com tudo ele
joga, ele ludibria, exceto com a canção.
Juancito Caminador, para ser mais consistente, mais enraizado no
mundo real, usa-se da biografia do autor. Por isso, ele também é um
prestidigitador, no sentido em que escamoteia o eu e o simula. E é isso que
243
percebemos nesse poema, no qual ele joga com essa ideia da morte, como se
agora o morto fosse ele mesmo, agora ele é testemunha do mundo. Em seu
processo consciente de construção de uma obra autobiográfica, vemos como o
poeta, em sua poesia, ou através dele, reconhece a diferença que marca sua
identidade, tornando-a manifesta e representada em seu Caminhador. E como
afirma Loureiro (1991:64):
Todo texto autobiográfico habita em sua entranha
a fascinação e o canto da alteridade, imagem de si
e de um tu dialógico e aberto que se oferece em
encontro de reciprocidade. Uma luz e uma estrela
que abrem sempre o horizonte da vida e da
história. Sempre é começo, autobiografia. [T.A.]
Enfim, com González Tuñón, Juancito divide seus gostos e preza por
eles. Sua música o blues; seu trabalho a prestidigitação; sua diversão caminhar
pelo mundo em observação; seus amigos os marginalizados, um pobre palhaço
e um pobre poeta; sua casa, os bares e portos mundo afora, a boemia; seu
amor eterno à “senhorita poesia”.
“El poeta murió al amanecer”
Pode-se dizer que a poesia em questão é a cópia mais fiel de seu eu
autobiográfico. Numa espécie de retrato de si, o poeta apresenta sua vida,
ressaltando exatamente os elementos que mais o deslumbraram no mundo.
Seus gostos, seus amigos, seus lugares, seus amores, seu ofício, estão
sintetizados nesse exercício de olhar a si mesmo e resgatar-se de seu
passado, atualizando, no presente, seu retrato futuro. É o que se verifica no
244
poema “El poeta murió al amanecer”, que representa a pseudomorte do poeta.
A composição poética abriga seis estrofes com números livres de versos,
assemelhando-se à poesia em prosa:
Sin un céntimo, solo, tal como vino ao mundo,
murió al fin, en la plaza, frente a la inquieta feria.
Velaron el cadáver del dulce vagabundo
dos musas, la esperanza y la miseria.
Na primeira estrofe do poema, o eu lírico alude à falta de dinheiro tão
característica na vida de González Tuñón e tão marcada em sua obra. Ele e
sua família viviam com limitações financeiras em um bairro humilde de Buenos
Aires que estava próximo a uma praça muito movimentada por suas intensas
manifestações socialistas: Plaza Once. Sua pouca condição econômica não o
impediu de exercer seu ofício de poeta e de viajar pelo mundo, e por isso se
tornou motivo de orgulho para o autor, sendo ressaltada em várias
composições poéticas.
Também é interessante observar a construção da imagem do cenário
físico onde se dará seu fim: na praça. Este foi um espaço constantemente
poetizado por Tuñón. Existem vários poemas que retratam praças da capital
Argentina, como também de outros lugares, uma delas é a poesia “A la sombra
del parque Lezama”, onde o eu lírico afirma: “Aquí empezó Juancito Caminador
su viaje...”. Também foi de onde Tuñón partiu para o mundo, sua casa estava
diante de uma praça, então é como se o poeta retornasse às velhas origens, ao
início de sua vida para poder, enfim, morrer (“murió al fin”). Os laços criados
com os locais e os elementos que fizeram parte de sua infância são constantes
em sua poesia; como por exemplo: “Veletas (cata-vento), barquitos en la
245
botella, turco vendedor de madapolán, vendedor de globos, circo”... A partir
deles, vincula-se ao mundo dos sonhos.
O terceiro verso “Velaron el cadáver del dulce vagabundo” evidencia a
filiação irrestrita poeta-vagabundo, ou seja, Raúl González Tuñón-Juancito
Caminador.
Essa
associação
poeta-personagem
sempre
suscitou
a
ambiguidade. Em diversos poemas, Juancito parece ter vida própria, mas ele
não consegue desvincular-se do poeta, pois Juancito representa a faceta liberal
de González Tuñón.
O quarto verso expõe a antítese “la esperanza y la miseria” como
reveladora da essência humana, visto que todos carregam dentro de si essa
dualidade. Esse jogo antitético sempre esteve vinculado na obra poética
tuñoneana, pois González Tuñón reconhecia o homem em sua totalidade e
acreditava que o mesmo poderia transformar a realidade. O autor apresenta
em suas poesias a alusão à miséria, não só financeira, mas também às
mazelas humanas sempre associado à crença emocional na possibilidade de
resultados positivos relacionados com as circunstâncias da vida.
Fue un poeta completo de su vida y su obra.
Escribió versos casi celestes, casi mágicos,
de invención verdadera,
y como hombre de su tiempo que era,
tambiém ardientes cantos y poemas civiles
de esquinas y banderas.
A segunda estrofe é emblemática para o estudo poético tuñoneano, pois
resume suas vivências. Nela, a marca autobiográfica é inegável. O material
autobiográfico tuñoneano inquieta, questiona e incide dialogicamente no leitor,
não só porque podemos “viajar” com ele, através dos lugares mais recônditos
da grande Buenos Aires, ou das cidades espanholas, ou ainda, da capital
246
parisiense, do Brasil, ou de qualquer outra cidade que o tenha impressionado a
ponto de ter-se transformado em corpus poético de sua produção, mas também
pela estruturação primorosa de sua poesia, que faz uso de diversas figuras de
linguagem, como a metáfora, imprimindo musicalidade à mesma, por privilegiar
as rimas consonantes e alternadas, e sendo altamente fervorosa, por revelar o
amor do poeta pelo mundo.
Toda poesia lírica, ao manifestar os sentimentos internos do poeta, é por
si só autobiográfica; mas González Tuñón, não só com “el poeta murió al
amanecer”, mas também em outros poemas, transforma sua escritura em um
ato plenamente autobiográfico ao revelar em seus poemas imagens cotidianas,
reais e existentes das cidades por onde andou e das pessoas e objetos que
encontrou pelo caminho. Ao lermos a poesia de González Tuñón, lemos sua
autobiografia, pois a cada etapa de seu ofício sua realidade se espelha em sua
obra. O amor pelas viagens, pelas cidades e sua gente, pelo social, pelo seu
tempo,
levou-o
a
comprometer-se
consigo
mesmo
e
com
o
leitor,
estabelecendo um pacto indissociável entre si e esse leitor, já que segundo
Ángel Loureiro (1991:64.T.A.), “a autobiografia é a forma literária que
estabelece uma maior união entre o escritor, incitado a escrever para refletir
sobre si mesmo, e o leitor que recorre frequentemente à leitura das
autobiografias para conhecer melhor ao autor e a si mesmo”.
Os versos “Algunos, los más viejos, lo negaron de entrada./ Algunos, los
más jóvenes, lo negaron después.” fazem referência a duas situações
marcantes durante a caminhada poética de González Tuñón, que comoveram
intensamente ao poeta. A primeira se refere à austera crítica sofrida pelo autor,
quando, ainda jovem (15-16 anos), começava a adentrar no mundo da lírica e
247
apresentou suas poesias a um editor de uma famosa coluna de literatura,
sendo acusado por este de plagio. Tuñón afirma que essa crítica não o impediu
de continuar escrevendo, mas o fez resignar-se, acovardando-o a ponto de não
mostrá-la a mais ninguém. Ele relata, em entrevista ao escritor Horacio Salas
(1975:26), seu dissabor com a crítica:
Había un diário La montaña, y un poeta; Juan
Pedro Calou, de vida tan fugaz como la del diario.
[...] Calou hacía la página literaria de ese diario,
sección que era más prestigiosa que el
suplemento La Nación. [...] Un día le llevé mis
poemas y me dijo: “Vuelva la semana próxima,
pero usted imita a Rubén Darío”. Él no sabía el
daño que me hacía. En ese momento del Valle
Inclán, García Lorca, Neruda, todos, imitaban a
ese libertador de la lengua y la poética castellana.
[...] “Pero además usted imita a Baudelaire, y a
Carriego y al Bolmberg de los puertos”. Y era
verdad, pero me lo dijo con tanta bronca que seguí
escribiendo pero sin mostrarle a nadie.
A segunda situação marcante, relatada anteriormente, ocorreu quando
González Tuñón foi considerado um poeta anônimo pelos jovens escritores que
estavam no Congresso de Escritores Antifascistas. O poeta argentino, que
tinha publicado sete livros de poesias, sendo dois deles premiados, tinha
escrito quatro peças de teatro: El desconocido donde (“La calle donde yace el
corazón”), Reunión a medianoche, (“La casa de remate”), La cueva caliente,
Dan tres vueltas y luego se van (em colaboração com Nicolás Olivari), e
recebido várias críticas por poetas ilustres em periódicos da época, foi ignorado
por aqueles jovens no congresso. Segundo o escritor Ricard Vinyes (2002:7),
“a memória é sobrevivência constante da história porque através da memória a
história continua vivendo e reelaborando as esperanças, projetos ou desânimos
de homens que buscam dar sentido à vida”. Esses fatos, retidos em sua
memória, são histórias recordadas que apontam para seus insucessos, mas
248
que não deixam de ser marcantes para o poeta, ainda que as queira esquecer,
conforme suas palavras no poema “El país de la lluvia y la distancia”,
(1983:100): “Pues también la memoria tiene sus avenidas/ de luces silenciosas
y esquinas recoletas/ y su orilla pasando por el hilo del sueño./ El olvido se
cansa de llamar a la puerta”.
Hoy irán a su intierro cuatro buenos amigos,
los parroquianos del café,
los artistas del circo ambulante,
unos cuantos obreros,
un antiguo editor,
una hermosa mujer,
y mañana, mañana,
florecerá la tierra que caiga sobre él.
A partir de uma enumeração de pessoas/personagens, o poeta inicia a
quarta estrofe. Tanto “los parroquianos del café” quanto “los artistas del circo
ambulante” e “obreros”, são personagens aludidos em muitas poesias
tuñoneanas. Eles são significativos também na vida de González Tuñón, pois
simbolizam seus sonhos e lutas juvenis. Assim também é o “antiguo editor” e a
“hermosa mujer”, aquele representa seu primeiro editor, Manuel Gleizer, que foi
aludido em muitos poemas do poeta argentino; esta, símbolo de sua amada,
Amparo Mom, cantada incessantemente em sua lírica. Nos dois últimos versos
da estrofe, funda-se uma imagem futura “mañana”, relativa a seu fim, que está
vinculada “al amanecer”, que faz parte do título do poema. Essa imagem
sinaliza a vida, pois a terra que cair sobre o sujeito do poema florescerá. Dessa
forma, o poeta se revela imortal nesse mundo, ratificado pelo fato de morrer ao
nascer do dia.
Deja muy pocas cosas, libros, un Heine, un Whitman,
un Quevedo, un Darío, un Rimbaud, un Baudelaire,
249
un Schiller, un Bertrand, un Bécquer, un Machado,
versos de un ser querido que se fue antes que él,
muchas cuentas impagas, un mapa, una veleta
y una antigua fragata dentro de una botella.
Os três primeiros versos, da quinta estrofe, nos remetem a escritores
consagrados pelo poeta. Todos eles, de Heine a Machado, foram lidos e eram
preferências declaradas de González Tuñón. Cita o poeta no poema “El
cementerio”: (“Aquí yace/ el general Aupick,/ caballero condecorado./ Miembro
de la Legión de Honor,/ ex Embajador en Constantinopla/ y en Madrid” y más
abajo: “Aquí yace/ Charles Baudelaire,/ su hijastro,/ muerto en París/ el 30 de
agosto de 1867”. Nadie recuerda al general Aupick. Pero Baudelaire es eterno.)
No quarto verso da estrofe, “versos de un ser querido, que se fue antes que
él,”, faz menção a um escritor que o poeta declara ser preferido por ele, mas
que já morreu. Esse escritor era seu irmão Enrique González Tuñón, que
também era poeta e faleceu muito jovem. O ato autobiográfico ganha mais
força pela presença desse familiar, que lhe confere veracidade. Logo, a
autobiografia é o tipo, por excelência, de maior conteúdo referencial, em que o
escritor deixa mais marcas de suas vivências.
Nos dois últimos versos da estrofe, o eu lírico retoma os símbolos que
sempre amou, por representarem o seu íntimo ser. A presença deles como
objetos deixados serve para reafirmar a paixão do poeta pelas viagens (mapa)
que despertam seu mundo dos sonhos, “veleta”, através daquela famosa e
intrigante imagem tuñoneana do barquinho dentro da garrafa, “fragata dentro
de una botella”.
A última estrofe, ao imprimir a ideia de um mundo infantil, encerra com a
imagem dos símbolos que sempre fizeram parte da obra de González Tuñón:
250
Los que le vieron dicen que murió como un niño.
Para él fue la muerte como el último asombro.
Tenía una estrella muerta sobre el pecho vencido,
y un pájaro en el hombro.
A infância, provocadora do insólito, do sonho, sempre o fascinou, e
agora ele atribui ao olhar do outro essa acepção para si, assumindo a criança
que constantemente resgatava em seus poemas. Mesmo diante da morte, o
poeta não se assusta, mas continua com seu assombro, com sua surpresa
perante esta, que causaria seu último espanto. Sobre a morte, González Tuñón
afirma para Salas (1975:147): “La veo como algo que tiene que ver con la vida,
con el otro lado de la vida. Con un pie en la dialéctica y otro en el panteísmo,
creo que “nada se pierde y todo se transforma”.” Os dois últimos versos
revelam uma imagem-síntese da vida e, certamente, da obra do poeta. Nela
encontramos a estrela, símbolo do sonho em ser reconhecido, condecorado, ao
qual o poeta não conseguiu em vida, por isso ela está morta sobre o peito
vencido, peito este que alude ao espírito combatente com o qual, durante toda
a sua vida, o autor conviveu. Por último, a alusão a seu espírito livre através do
pássaro que está em seu ombro. A morte nunca foi amedrontadora para
González Tuñón, porém, ao ser interrogado por Salas se ela lhe causava
medo, o poeta responde: “No, en principio, pero sí cuando pienso que me va a
apartar de los seres queridos, de todo lo que amo en el país y en el mundo,...”
Juancito Caminador, o viajante com o qual o leitor percorre o mundo,
descobre o encanto dos arquipélagos, dos lugares ermos como os baldios, dos
sonhos, do barquinho na garrafa, das senhoritas, dos seis irmãos rápido dedos
no gatilho, dos negros de Scottsboro. Juancito está com eles, desde o
momento em que Raúl o vislumbra enquanto olha a etiqueta de uma garrafa de
whisky Johnnie Walker e vê aquele homenzinho caminhando pelo mundo.
251
A autobiografia poética representa mais um processo de inovação na
poesia tuñoneana. Seu estilo deve entender-se aqui não somente como uma
regra de escritura, mas também como um peregrinar, amplamente difundido
em sua obra. Assim como afirma Gusdorf (1991:17), “a verdade da vida não é
distinta, especificamente, da verdade da obra: o grande artista, o grande
escritor, vive de alguma maneira, para sua autobiografia”. Assim o vemos
refletido em toda a obra poética de Raúl González Tuñón, que, através do seu
caminhador ou do seu eu lírico, fez da sua vida, sua poesia e de sua poesia,
sua vida.
252
CONCLUSÃO
Com a finalidade de abordar a poética de Raúl González Tuñón,
pesquisou-se sobre a imagem das cidades em que o poeta viveu, dentre as
quais se destaca a capital parisiense, divisor de águas no estilo tuñoneano.
Também se investigou sobre a presença copiosa de Juancito Caminador, por
acreditar que este personagem encarna a representação autobiográfica do
autor, o que outorgaria total inovação à poética argentina, visto que por meio
deste trabalho audacioso, González Tuñón passa a ocasionar uma revolução
nas artes literárias portenhas do século XX.
Ao se analisar o conjunto de poemas de Raúl González Tuñón,
encontrou-se, primeiramente, a alternância temática que abarca sua produção
literária. O início e o final da obra tuñoneana estão marcados por uma poesia
surrealista, enquanto, entre essas duas etapas de sua produção, verifica-se
uma poesia de cunho social. Todo o percurso literário de González Tuñón
imprime uma visão totalizante do espaço, proporcionada pelo poeta, devido às
inúmeras viagens pelo mundo, na companhia indissociável de seu nobre
vagabundo Juancito Caminador.
253
No início da caminhada de González Tuñón, revelamos que desde
pequeno ele se mostrava sensível aos estímulos do mundo visível, percebido
pelas constantes alusões a momentos, objetos, pessoas e lugares que surgem
em suas linhas poéticas. O descobrimento juvenil do poeta pela vanguarda
argentina o impulsionou a ingressar de forma atuante nessa fase fértil da
cultura e da arte na capital portenha. Sua participação e contribuição nos
grupos antagônicos Florida e Boedo foi conflitante, porém, intensamente
enriquecedora. Dentre os poucos críticos existentes sobre a obra de Raúl
González Tuñón, raros foram aqueles que conseguiram situar o poeta em um
ou outro grupo.
A maioria dos poetas da época possuía vínculos unitários com Florida
ou com Boedo, entretanto González Tuñón circulava entre ambos de forma
pacífica e influente, como um perfeito caminhador, conseguindo compartilhar
sua produção com os dois grupos. Contudo, o próprio poeta afirma que seu
estilo literário se filia ao grupo Florida, por mais que compartilhasse com os
ideais boedistas. O grupo Boedo foi indispensável para o início de sua
vinculação política e social.
Ao caminharmos pelas urbes modernas, mostramos primeiramente que
a experiência vivida por Raúl González Tuñón na capital argentina foi
circundada por elementos imaginários e reais. Com um espírito tipicamente
patriota, o autor procurou conhecer quase todas as regiões da Argentina e,
assim, cantar a extensão do país em seus versos. Porém, seu temperamento
inquieto o impulsionava a descobrir o mundo, seu Juancito Caminador o
instigava a viajar e retratar em lírica suas mais belas e cruéis experiências. As
viagens proporcionavam um aprimoramento da sua estética, estabeleciam
254
amizades e o levavam a conhecer novas formas métricas, novas concepções
poéticas.
No seu caminhar citadino por Buenos Aires, González Tuñón nos revela
sua paixão pelo porto, presente em quase todos os seus poemas. O porto é
para o poeta o símbolo da busca, da esperança e do sonho, através dele
partem os navios que levam Juancito a peregrinar e contemplar o mundo.
Também nos revela seu fascínio pelas casas de danças do Paseo de Julio, em
realidade, bordéis. São lugares exóticos, que surgem da nova cenografia
urbana, transformada pela modernidade, e, às vezes, marginalizados pela
sociedade. Por isso, o conceito de cidade, para González Tuñón, é um espaço
heterogêneo onde se misturam pessoas de outros países, com outras culturas
e passados, marginais, burgueses, ambientes requintados e ambientes
desprestigiados. Ainda que a leitura inicial do seu primeiro livro nutra-se de
simplicidades que encontramos nos limites precisos de um bairro de Buenos
Aires, González Tuñón se desprende desse limite para cantar as mais diversas
localidades e ruas de sua cidade, de seu país e do mundo em seus posteriores
livros.
Ainda, em seu transitar portenho, percebemos a construção de outro
espaço de suma importância em sua obra poética, o ambiente circense. Com
suas características e personagens típicos sempre foi presença quase
constante nos poemas tuñoneanos, porém, no início de sua caminhada, o circo
foi uma obsessão do jovem poeta, tanto que seu primeiro poema foi publicado
em um jornal de bairro, quando o escritor tinha dezessete anos, em
homenagem a um palhaço chamado Frank Brown. De acordo com González
Tuñón, Frank Brown o deslumbrou, era um palhaço maravilhoso, um inglês
255
totalmente influenciado pelos costumes da América Latina, de grande atração
para as crianças. O ambiente circense o contagiava desde os tempos da
infância, por isso, González Tuñón, quando tinha aproximadamente dezoito
anos, seguiu um circo que saia da cidade e partia em direção ao interior.
Aos vinte anos Raúl González Tuñón publica seu primeiro livro. Nele
aparece o poema que resume sua visão de adolescente vagabundo e lúcido:
“Eche veinte centavos en la ranura”. Este poema anuncia o Surrealismo, antes
mesmo de que o Surrealismo aparecesse na França em 1924, época em que o
poeta se encontrava com dezenove anos. Logo, não é nenhuma incoerência
afirmar que González Tuñón foi precursor do Surrealismo, pois as diversas
correntes, como Cubismo, Dadaísmo, Criacionismo, que antecederam esse
movimento originário da França, faziam parte do universo do poeta.
Ao percorrer os versos de “Eche veinte centavos en la ranura”, “Música
de los puertos”, “Adiós a Buenos Aires”, “Poetango de la belle époque” e
“Motivo para una cajita de música”, podemos confirmar seu amor pelo
descobrimento do insólito, do novo, dos símbolos e personagens mais
representativos de sua poética e do vagar nas ruas da cidade de Buenos Aires,
que se abria diante de seus olhos. A imagem insólita, sua fruição pelos mais
recônditos locais citadinos, a fluidez cinematográfica que confere às imagens, o
tom coloquial, quase confidente do poeta, parecendo sussurrar segredos até
mesmo no ouvido do leitor; as alterações de estados de ânimo são algumas
das características da poética tuñoneana presentes nos referidos poemas.
Nessas composições poéticas González Tuñón canta a pobreza do
ambiente citadino, seus submundos, sua gente. Sua eterna paixão pelo mundo
infantil segue revelada em sua lírica, sendo frequentes os elementos tomados
256
da infância e registrados nos poemas, como: os cata-ventos, os barcos dentro
das garrafas e a própria caixinha de música. Essas constantes repetições
afirmam o amor do poeta por esses símbolos e, consequentemente, por sua
infância.
Assim afirma o autor em seu poema “Los sueños de los niños
inventando países”:
PORQUE el niño conserva todos los libres bríos
de la invención, baraja sus monstruos increíbles
y sus enloquecidos ángeles.
La bárbara inocencia sin prejuicios de la primera pureza
y el espléndido caos, el delirio de la razón, la fantasía.
El niño es el primer surrealista.
Em toda obra de González Tuñón a alternância contemplação/mudança
ocorre de uma forma fluida, em uma correspondência dialética entre o mundo
observado e o mundo a transformar. Uma palavra se renova ao longo de sua
obra, uma palavra-chave, “cordial”. É cordial, amigável, sua primeira
aproximação ao bairro e ao subúrbio; cordial e alegre sua aproximação aos
circos, às feiras e ao mundo dos marinheiros; cordial e nostálgica sua visão dos
seres e dos objetos queridos; cordial e combatente...
Sua poesia está marcada pela nomeação, pelas citações e referências,
pela auto-referencialidade, pelas intensas e inúmeras metáforas. O mundo dos
objetos é, em geral, o que atrai o poeta. Mediante um processo de composição,
as nomeações e as metáforas se humanizam, aproximando-se desta forma ao
mundo dos homens sem exceder nunca os limites impostos, já que no espaço
tuñoneano imperam sempre o homem e suas lutas cotidianas e sociais.
No terreno dessa substantivação, percebe-se também o uso de nomes
que remetem à esfera familiar ou à esfera da amizade, como por exemplo o
257
poema “Lluvia”, dedicado a sua esposa, o “Poema para un niño que habla con
las cosas”, dedicado a seu filho e os inúmeros poemas dedicados a seu irmão
Enrique. Tanto essas referências como as nomeações de lugares, países,
bairros, cafés, travam com o leitor uma relação de reconhecimento pelo efeito
de verossimilhança.
A constante repetição de objetos, pessoas e lugares, nos poemas
tuñoneanos, não tornam sua obra repetitiva ou sem originalidade, ao contrário,
aproximam ao leitor de seu mundo interior, tornando-o uma espécie de
cúmplice de sua lírica. O próprio autor afirma, em entrevista a Horacio Salas,
que não tinha medo de se repetir em seus poemas, “pienso que citar varias
veces el barco en la botella, las cajitas de música, las veletas, no es repetirse
sino seguir moviéndose en medio de los símbolos que siempre he amado”.
Após seu longo percurso pela Argentina, pelos submundos portenhos,
revelados em seus dois livros anteriores, González Tuñón chega finalmente à
tão sonhada Paris. Agora ele flaneia pela cidade europeia, reconhecendo
poéticamente as margens parisienses que vão do riacho de La Villette ao velho
Bul Mich, extasiando-se a cada imagem que se abre diante de seus olhos
estrangeiros. A experiência da distância, do estranhamento, do choque cultural
e da existência de um conhecimento da partida, aprofundaram ainda mais seu
conhecimento sobre a margem, contribuindo para ampliação e solidificação de
sua poesia.
Em Paris o escritor, afetado pelas transformações vanguardistas,
despoja sua escritura das imposições da estética modernista que a marcavam
em seu começo. A rima desaparece, o verso livre é amplamente executado e a
poesia adquire a categoria de prosa. Além disso, as experências culturais que
258
vivencia despertam-no para as questões políticas, e estas começam a
despontar em sua poesia.
A cidade é sua gente, o rapaz que entra assoviando ao mictório, o
menino que posou para o cartaz do sabonete Cadum, a pintura de Utrillo, o
homem que pega sua garrafa de leite, os mendigos e os cegos das catedrais.
O culto e o popular estão amplamente versificados em sua poética de forma
homogênea e integradora, em condição harmoniosa com a urbe. Daí o poeta
falar de Notre-Dame, Saint Chapelle, Chartres, mas também dos cortiços, das
usinas, dos bares de operários e ladrões.
Essa viagem biográfica e poética amplia seu saber e suas formas de
figurações, torna possível essa internacionalização dos mundos referenciais. O
percurso entusiasmado e fantástico de González Tuñón, em Paris permite ao
poeta argentino falar da cidade luz em sua totalidade, de Père Lachaise, as
imagens de todas as janelas da Europa, os bares do boulevard Saint Michel, de
Montparnasse, dos matadouros. Enfim, esse desdobramento internacional
permite que González Tuñón fale, no presente, do subúrbio portenho junto com
as novas imagens apreendidas em Paris.
Em sua caminhada por “Las viejas catedrales”, pelo “Poema del
Boulevard Saint Michel” e por “La calle del Paso de la Mula”, esse poetaobservador, esse pseudoflâneur retrata em seus versos a Paris de localidades
importantes, de ambientes icônicos e a Paris dos desprestigiados. O poeta
elege seu canto de exaltação a essa diversidade, encontrada nessa urbe, a
qual tanto o fascinava, pois era assim que ele conseguia reconhecer a cidade
em sua unidade. Sendo assim, a poesia que González Tuñón aprimora em
Paris se extenderá ao longo de toda sua poética. Ela é uma extensa cartografia
259
ou uma sequência de cenas, que nos permite visualizar a amplitude das
paisagens citadinas. Seus poemas desenham regiões ou urbes e onde não
existem objetos, existem nomes, e em cada nome um lugar que se povoa da
observação de novos objetos ou de ações e de histórias. O espaço imaginário
do poema exige a nomeação ou a referência dos pontos espaciais, como um
guia turístico lírico. O poeta migratório é um cartógrafo nominador, um flâneur
da cosmópoles, o vagabundo e o viajante, entre o sonho e a revolução.
Esse poeta-viajante aporta agora na Espanha do início dos conflitos
sociais. Nesse caminhar, revela-se uma nova linha estética na literatura de
González Tuñón: a poética social. Apesar de ter elaborado um número maior
de poesias influenciadas pela estética surrealista, González Tuñón foi mais
conhecido como poeta social. Suas obras não retratam o sistema político, mas
sim o homem submetido ao sistema governamental. Embora seu trabalho
poético possa parecer engajado, González Tuñón soube discernir a arte
literária da política, seus poemas de rara beleza aludem ao compromisso do
homem com o seu semelhante. A Guerra Civil foi o divisor de sua carreira
poética. Antes do livro La rosa blindada, ele era um poeta comum, com pouca
projeção, após a publicação torna-se modelo para outros renomados poetas.
Os poemas da Guerra Civil, analisados ao longo deste estudo, possuem
a forma de hino, marcha combatente em ritmo de arte. O poeta emprega a
imagem em sua escritura para denunciar os conflitos bélicos. Continua sendo
um cantor citadino, mas agora seu objetivo é ser solidário, atuante em um
momento caótico.
Ao caminharmos por “La Libertaria” e “Cuidado que viene el Tercio”
percebemos a posição de González Tuñón, um homem comprometido com seu
260
tempo. Nas suas linhas poéticas formam-se as imagens da luta, da repulsa por
atitudes bárbaras, pelo desrespeito a seu semelhante.
A bipolarização partidária, que surge com o caos, rompe com a fluidez
das relações humanas. Essa fragmentação revela-se de forma rítmica, através
das imagens realistas na poesia de González Tuñón, que aludem a esse
conflito cruel. O poeta transfere para o papel o que sente, as imagens que
foram registradas em sua memória se imortalizam em seus versos, portanto,
também se configuram como imagens históricas, à semelhança do quadro
Guernica, pintura de Pablo Picasso.
O olhar que vê absorve a realidade para transformá-la em arte através
da mão que escreve, ou da mão que pinta, ou da mão que modela. São artes
que refletem o aprisionamento do real pela sensibilidade de um artista. À
semelhança dessas artes, as fotografias, produzidas na época do conflito
bélico na Espanha, também produzem esse aprisionamento. Trata-se de um
evento marcante para o cenário do fotojornalismo, pois possibilitaram perceber
de forma um pouco mais vivaz essa sangrenta guerra. As fotografias dessa
época podem ser tomadas como representações de objetos fractais. Nelas,
verifica-se a destruição do ambiente pelo próprio cunho de veracidade que
carrega. O objeto focalizado pelo olhar do fotógrafo transmite sua concepção
dos fatos, assim, a fonte de criação, o objeto criado e seu criador se
transfiguram em um objeto único e irrepetível, impregnado de simbologia.
Tanto
a
imagem
fotográfica
quanto
a
imagem
poética
estão
impregnadas pelo olhar do outro. Ambas revelam a fragilidade do ambiente
espanhol, completamente fragmentado, arruinado. Se o poeta cria imagens de
dor, de revolta, de comoção, a fotografia, por retratar a pura realidade, aflora
261
intensamente essas emoções. Se a fotografia congela um instante, para tornálo permanente, a poesia também é o retrato do fugaz, eternizado na imagem da
composição poética.
Tanto a poesia social quanto a poesia citadina mais surrealistas do autor
em questão, reunidas nesta pesquisa, comprovam a harmoniosa síntese do
fazer poético do escritor argentino, revelando a habilidade de Raúl González
Tuñón na construção do artifício da linguagem literária.
Sua melhor biografia foi escrita por ele mesmo em seus poemas, porque
canta o que vive. O gosto pelo popular, pelo simples, pela embriaguez da vida
noturna da cidade, leva González Tuñón a criar um companheiro para brincar
com as cidades, esgotar seus recursos e reinventar-se na próxima página.
Juancito Caminador se funde com a vida particular do poeta, com seu
subconsciente lúdico, podendo entrar e sair de sua obra sem causar dano,
perambular em qualquer espaço e tempo. Ser o herói romântico do real-surreal.
O último percurso do caminhador revelou a personagem Juancito
Caminador como uma representação autobiográfica de González Tuñón,
personificada em sua poesia pela tessitura de sua lírica e retratando as
experiências e as vivências mais significativas do autor.
A partir do pacto firmado entre autor-personagem-sujeito do poema, o
leitor pode vislumbrar, nas versificações tuñoneanas, o gosto, o modo de ser e
alguns acontecimentos da vida do autor argentino, além de verificar o estilo
próprio de sua poética. Exercendo perfeitamente o ofício de um artista da
autobiografia, González Tuñón, com seu Juancito Caminador, buscou
compreender a própria interioridade baseado em seu exterior. Desta forma, a
262
obra tuñoneana é reveladora não apenas pelos traços autobiográficos nela
presentes, mas principalmente da construção da autobiografia do autor.
Com o artifício da autobiografia, González Tuñón cria um “documento
cultural” que, além de declará-lo, revela também sua formação cultural. Este
“documento cultural” é a manifestação da imagem que ele tem de si e quer
perpetuar para os outros. A sociedade moderna irrompe no homem o desejo de
individualização e autoafirmação, daí, o anseio em resgatar da memória as
imagens que simbolizam sua vida, recuperando-as e atribuindo sentido ao
vivido.
Juancito Caminador é o andarilho que transita dos submundos
portenhos e do circo ao mundo sóciopolítico moderno. Nesse sentido, uma
representação próxima ao eu que Raúl González Tuñón foi formando em seus
primeiros livros. O escritor argentino não se refere a si mesmo, no começo, em
primeira pessoa, mas compõe uma figura claramente identificadora, com as
mesmas marcas culturais com que trabalhou até então. Logo, o poeta não
separa o “eu” presente no poema do “eu” que se apresenta através dele. Há,
portanto, como quer Lejeune, identificação absoluta entre o narrador e o autor
dessa autobiografia, verificado nas tessituras dos poemas dedicados e/ou do
Caminhador.
O fato de González Tuñón lançar mão de Juancito Caminador para
contar sua história, sem a preocupação cronológica dos acontecimentos, é o
que nos leva à autobiografia e ao pacto de sua contrução, ou ao entendimento
da poesia de González Tuñón como a construção de sua autobiografia, como
se verifica no poema “Epitafio para la tumba del poeta desconocido”:
263
Fue un poeta de su vida y de la vida.
Porque además del diálogo del hombre con su tiempo
la poesía es un estado de ánimo,
fue siempre el suyo un vago amar
y sentir y esperar no se sabe qué cosas:
y no pudo escribir ni un solo verso.
La muerte, la inquirida “Tía de las muchachas”,
se lo llevó una tarde de azul desprevenido.
Murió de inanición, como Meg Merrillies,
la que en vez de cenar contemplaba
fijamente la luna sobre el bosque.
Tanta es su soledad que el olvido se toca.
Nossa vida está composta, em grande parte por sonhos. Temos de
encaminhá-los à ação, resgatá-los do nosso subconsciente para transformá-los
em realidade. Ação propagada por González Tuñón através de sua obra. Para
o autor, o exercício da poesia possibilita ao homem deixar no mundo a sua
marca, nomeando-o. O poeta argentino transformou em ação, fez da poesia a
porta voz de sua vida, a vida escrita, sua autobiografia. Fez do seu pacto lírico
autobiográfico com Juancito Caminador o destino, o projeto e a produção de
planos, sempre originais, inovadores, permanecendo na marcha do tempo.
Seu percurso vivido foi transformado em caminhar lírico na companhia
inseparável de seu Caminhador interior. Raúl González Tuñón se situa entre
aqueles poetas que nos comovem e nos movem. Sua poesia tem algo de
invencível e de verdadeiro, tem algo de um boêmio romântico realista, Juancito
Caminador, que, peregrinando pelo mundo simbólico, deixou como legado sua
autobiografia lírica.
264
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273
ANEXOS
FOTOS E CARICATURAS
274
POEMAS ANÁLISADOS
“Eche veinte centavos en la ranura”
A pesar de la sala sucia y oscura
de gentes y de lámparas luminosa
si quiere ver la vida color de rosa
eche veinte centavos en la ranura.
Y no ponga los ojos en esa hermosa
que frunce de promesas la boca impura.
Eche veinte centavos en la ranura
si quiere ver la vida color de rosa.
El dolor mata, amigo, la vida es dura,
y ya que usted no tiene hogar ni esposa
si quiere ver la vida color de rosa
eche veinte centavos en la ranura
Lamparillas de la Kermesse,
títeres y titiriteros,
volver a ser niño otra vez
y andar entre los marineros
de Liverpool o de Suez.
Teatrillos de utilería.
Detrás de esos turbios cristales
hay una sala sombría:
Paraísos artificiales.
Cien lucecitas. Maravilla
de reflejos funambulescos
¡Aquí hay mujer y manzanilla!
Aquí hay olvido, aquí hay refrescos.
Pero sobre todo mujeres
para los hombres de los puertos
que prenden con alfileres
sus ojos en los ojos muertos.
No debe tener esqueleto
el enano de Sarrasani,
que bien parece un amuleto
de la joyería Escasany.
Salta la cuerda, sáltala,
ojos de rata, cara de clown
y el trala-trala-trálala
ritma en tu viejo corazón.
Estampas, luces, musiquillas,
misterios de los reservados
donde entrarán a hurtadillas
los marineros alucinados.
Y fiesta, fiesta casi idiota
275
y tragicómica y grotesca.
Pero otra esperanza remota
de vida miliunanochesca...
Cien lucecitas. Maravilla
de reflejos funambulescos
¡Qué lindo es ir a ver
la mujer
la mujer más gorda del mundo!
Entrar con un miedo profundo
pensando en la giganta de Baudelaire...
Nos engañaremos, no hay duda,
si desnuda nunca muy desnuda,
si barbuda nunca muy barbuda
será la mujer
Pero ese momento de miedo profundo...
¡Qué lindo es ir a ver
la mujer,
la mujer más gorda del mundo!
Y no se inmute, amigo, la vida es dura,
con la filosofía poco se goza.
Si quiere ver la vida color de rosa.
Eche veinte centavos en la ranura.
“Música de los puertos”
Música de los puertos siempre igual
y distinta.
Banderas con iguales colores
para todos los ojos
iguales y distintos.
Proa de la esperanza. Jugo de nostalgia.
Enamorada de todos los caminos.
Mujer. Entregadiza y sabia.
Te estiras a lo largo de los muelles
o entras en los recovecos de las almas.
Inclinas tu cansancio en las tabernas
o te cuelgas de las ventanas
huérfanas de pedazos de cielo
en la desesperanza.
Música de los puertos siempre igual
y distinta.
Políglota. Tus velas
se izaron a los vientos más extraños.
Patio sonoro, evocador y bueno
para los hombres que no saben patios.
276
No tienes ni cabellos ni manos.
Eres sonido nada más.
Entras despacio, convincente.
Avivas el fuego de una pipa
y desarrugas una frente.
Música de los puertos.
Muchas y una.
Pirata que te robas los espíritus
y los llevas de un muelle hacia otro muelle.
Faro invisible y guiador de oídos.
Rompes un ademán o apagas un cuchillo,
o transformas una blasfemia en padre-nuestro.
Ya vengas tormentosa y lúgubre
o ya pierdas tu tono siniestro.
‘‘Adiós a Buenos Aires’’
¡Adiós, Buenos Aires!
Por que te quiero tanto me voy por los caminos
para envolver recuerdos
en la cinta hiladora de la soledad.
Supe encontrar tus ríos de silencio
pero tropiezo siempre
con tus Niágaras de bullicio.
Y supe andar sintiéndome, creándome
un Buenos Aires dentro de mí mismo.
En la boca, cafés de camareras.
Frivolidad amena por Florida
y en las pistas livianas de tus patios
guitarras encendidas.
Historias en el mundo más anciano
de tus calles- y la emoción de hierro
de tus puentes, tus grúas y tus tráficos
y en los poemas de tus rascacielos…
Allá una fiesta en torno de la lámparaaquí un Hotel “Las Palmas” siniestro
revuelo de murciélagos de calma.
Y más allá una novia
rezando su rosario de soledades
en el rincón de un pueblo,
pueblo con una luna grande,
con una luna grande en los cabellos.
Luna Park- puñetazos que se rompen
en las cornetas radiotelefónicasy la vulgaridad grasienta y fofa
de tus pobres burgueses extranjeros.
277
Y a pesar de tartufos y cretinos,
el río allá, - ¡magnífico de olas!
Maipú Pigall – pintura en los espíritus
y pose hasta en las almas…
pero un color, mucho color subido
y Alsina y Maldonado y las Barracas
en un temblor de tangos compadritos
Y allá, el río magnífico.
Y el silencio dormido de tus calles más solas.
Y esas cuatro mujeres
y esas cuatro pensiones
(y esos recuerdos locos de mi infancia
vestidos de tambores
que suenan siempre al borde de mi alma).
Y un narguilo en el turbio rincón de un café turco
Y un narquile en el turbio rincón de un café turco
Las paredes de un año que dejó entrar el frío
por los cuatro costados
por los cuatro puntos cardinales del vicio:
lo bello, lo sublime, lo ridículo y lo sombrío.
(Posada de la Desolación: dos hombres que
llevaban la mano a las narices,
abufandados de desconfianzay un polvo amargo como la desgracia…
Luego, una ausencia de maravedises
con una ausencia de esperanza.
Yo ya recuperé mis entusiasmos
en la tienda del sol.
¡Adiós Buenos Aires!
Me voy a las montañas de los guías
y a los llanos de los rastreadores
para volver con guías en el alma
y rastreadores en el corazón.
“Poetango de la belle époque”
La noche de la razzia los herreros cantaban
y quedaron después de la tormenta súbita
la sombra vigilante del árbol esquinero
y el silencio insolente del arrabal herido.
… Sin embargo, Raúl, ¿no te acordás?
tenía su encanto, eh, la belle époque,
mirada desde el ángulo de nuestra adolescencia
implacable y ansiosa.
Por sobre los exilios y las muertes,
los gobiernos volteados y el último tranvía
278
que dobló hacia la vaga estación del ocaso
veo ahora en la gris esfumatura de la distancia,
que es el tiempo,
el íntimo esplendor de la Vuelta de Rocha
con su perfil de patio, con su siempre domingo.
La tarima del trío musicante en Barracas
palpitando en el ritmo grave y cordial de un tango
y ese Bar y Billares saliendo a la vereda
donde una vez Aieta sacó viruta al fueye
junto al cine Buen Orden cuyo antiguo esqueleto
cayó luego de haber proyectado en su sábana
la última película del hondo cine mudo.
Y reflejada en otra pantalla, en la memoria,
pasa ahora la insomne y extraña singladura
del Paseo de Julio con su ángel y sus monstruos.
Los vidrios de colores del bailetín insólito
con su pianola henchida de cálidas mazurkas
y el pop-art inefable de los muñecos móviles
y los juegos lumínicos vibrando
en el inverosímil Salón de Novedades
-donde nació el surrealismocon su violín de lata y el barco en la botella
que amamos para siempre.
Y la noche soltando su empecinado grillo
por la gran selva de cemento.
La buseca del Chanta y el vendedor de globos.
Buenos Aires, yo amo tu aire impuro y puro
que inspiró largamente mi verso impuro y puro
a la luz de la estrella del bosque de ladrillo.
Te caminé, te olí, te bebí, te canté:
dejada la bohemia, su lado oscuro y áspero,
nunca olvidé al bohemio ni al francotirador
que vigila en mi sangre.
En las cosas que nombro está la poesía
y aún crece en mi duende tu aventura
y se asoma a mis ojos reflejando al destino
de esa magia plural de ciudades que forman
el país argentino, imán de las bitácoras,
en cuyo azul transfondo transcurre la esperanza.
Y ese perfil de niebla de ciudades que anduve
-laboriosas, angélicas o canallas y absurdasy el resplandor de las belles époques
en los mapas sutiles de soñados países
que me están esperando en el futuro.
“Motivo para una cajita de música”
279
En otoño, las calles,
en el barrio, se tiñen
de una especial atmósfera, de silencio con alas.
Casi con el aroma de un estío
apenas olvidado.
Son calles como sueños
pero despiertas, lúcidas.
Soñar es estar vivo.
Siempre amaré estas calles, con su color de pueblo,
cuna de la esperanza, camino del recuerdo.
Sus tendidos crepúsculos y sus mañanas altas
me dieron el fervor. Yo les devuelvo sueños.
El poema es sueño.
En otoño, las calles…
En otoño, las calles
melancólicas, sueñan
que viven porque saben
que saben porque sueñan.
“Las viejas catedrales”
Amo las viejas catedrales.
En las cuchilladas de sus troneras
adivino a la Edad Media fusilando al mundo.
Amo la música helada de sus vitraux
y el olor a sagradas vestiduras bajo las arcadas que en
la noche
son curiosa asamblea de ángeles y murciélagos.
Los recintos azules poblados por el aliento de una
época
cuando los hombres aún no habían conquistado a
Dios.
Y el corazón de cera de sus vírgenes y las mutiladas
Imágenes
y el olor húmedo de las santerías,
encrucijada de sombras que antes fueron realidad en
la tierra
y anunciaron la peste, la muerte, el hambre y la
guerra.
Amo las viejas catedrales inmóviles, definitivas,
sonoras,
clavadas en el verde corazón de la Europa.
Esos trasatlánticos de Dios, tan viajeros,
que son amados de los pájaros y contra cuyos muros
discurren al sol los mendigos y los ciegos.
A Nôtre Dame de París venían las palomas y los
juglares
y una ciudad nació bajo su sombra fresca.
La Sainte Chapelle presenció duelos de ángeles;
he ahí los cristales que nos hablan del color de su
280
sangre.
Más allá, en un país de bebedores de sidra
hace tiempo que la bella durmiente – del cieloaguarda
a que un nuevo fervor la despierte: he dicho Chartres.
Amo las viejas catedrales.
Son del tiempo de los enanitos, de los trasgos y de los
gnomos
y de los alquimistas de pesados grimorios.
Y del Papa de los Locos.
Fueron la otra taberna en la vida de Utrillo.
Las inscripciones de sus tumbas hicieron la poesía.
Los colores de sus vitraux hicieron la música.
Las historias de sus santos prepararon las revoluciones
y sus intrigas
fueron largo tiempo adorno del mundo.
Hoy, yo adoro el olor de sus túneles,
los secretos de sus tabernáculos,
las figuras de sus hornacinas,
sus vidrios de losanges
y la atrevida imaginería de sus pórticos y sus sagrarios
Oh, viejas catedrales, inmóviles, definitivas, sonoras,
Clavadas en el verde corazón de la Europa.
¡Oh, Transatlánticos!
“Poema del Boulevard Saint Michel”
El viejo Bul Mich, la calle del mundo.
¿Ustedes conocen sus ventanas grises, sus fanfarrias,
su alegría de colegial en libertad, sus muchachas,
el Hotel Daciá, donde vive mi amigo Daniel Schweitzer,
el Luxemburgo y el Cabaret des Noctambules?
El viejo Bul Mich de los antiguos puesteros
y los boliches de estudiantes y de pintores descamisados.
Encrucijada de hondas librerías y tugurios exóticos,
de canallas rincones en donde soñaron y bebieron
veinte poetas, ya olvidados
y fanfarrones lansquenettes.
Hoy tras el paredón de Père Lachaise
descansa aquella gente miserable y sutil,
traviesa y errante.
Oscar Wilde, con su corona seca de letras doradas que
dicen:
“A mi inquilino”
se acuerda, se acuerda de cuando atravesaba
rumbo a la Closerie del Lilas
el viejo Bul Mich, al que tal vez yo no vuelva jamás.
Yo, de quien dirán: Otro poeta ya olvidado
y que en él me interné alucinado
volviendo de los muelles con cuatro libros raros
y una espesa borrachera
conseguida en el turbio rumor de los mercados.
Recodo de los gitanos.
Puerto embanderado de canciones de todas las lenguas
281
y de todas las voces.
Circo del arte, feria de la cultura humana, camino a
Montparnasse.
Un buen recuerdo, camaradas, lo vale.
Esse viejo Bul Mich de madrugadas altas,
de mujeres que nos amaron por amor,
mujeres sin mañana y sin ayer, usadas por todos
como los espejos y las palabras.
Ese viejo Bul Mich de quien dirán: Una calle, ya
olvidada.
Porque las calles, igual que los hombres,
caminan un trecho por el mundo y pasan.
“La calle del Paso de la Mula”
La mosca cautiva bajo la campana de vidrio
y el niño que juega porque el sol es bondadoso.
Fíjate cómo igual que hoy, igual que ayer, igual que
mañana,
nuestro vecino pasa, recoge su botella de leche,
arroja al suelo el boleto del subterráneo
y sacando el reloj penetra a la casa, a su vida de todos
los días,
igual que ayer, igual que mañana, igual que siempre.
Sólo los puentes, esas piedras cargadas de secretos,
seguirán por los siglos sobre el río pensativo del
tiempo.
Nosotros nos quejamos de morirnos tan pronto.
Vivimos ya una muerte piadosa, tanto
que hasta esperamos morirnos una tarde.
La esquina adonde van a acostarse los ómnibus.
Un hombre que pregunta una dirección vaga.
Un muchacho que entra silbando al mingitorio.
El afiche del jabón Cadum, ¿sabes?
- el niño que posó tiene ahora cincuenta y dos años
y Toribio, Toribio Sánchez que nos hizo reír allá
abajo,
se emborracha con él todas las noches.
Nuestro vecino se levantará con el alba
y nosotros, nosotros estaremos aún desvelados
leyendo cuatro cosas, hablando cuatro cosas,
solos, solos, en la íntima isla de los abrazos.
Somos jóvenes y viviremos en otra calle, en otra
ciudad.
Fíjate, todos los paisajes nos hacen pequeños.
Estarán allí siempre. La esquina
adonde van a acostarse los ómnibus.
Los puentes. El afiche del jabón Cadum.
La mosca cautiva bajo la campana de vidrio
y el niño que juega porque el sol es bondadoso.
Vino y licores. Comisarías. Ostras Claires y
Portuguesas.
El colchonero.
282
La Libertaria”
Estaba toda manchada de sangre,
estaba toda matando a los guardias,
estaba toda manchada de barro,
estaba toda manchada de cielo,
estaba toda manchada de España.
Ven catalán jornalero a su entierro,
ven campesino andaluz a su entierro,
ven a su entierro yuntero extremeño,
ven a su entierro pescador gallego,
ven leñador vizcaíno a su entierro,
ven labrador castellano a su entierro,
no dejéis solo al minero asturiano.
Ven, porque estaba manchada de España,
ven, porque era la novia de Octubre,
ven, porque era la rosa de Octubre,
ven, porque era la novia de España.
No dejéis sola su tumba del campo
donde se mezcla el carbón y la sangre,
florezca siempre la flor de su sangre
sobre su cuerpo vestido de rojo,
no dejéis sola su tumba del aire.
Cuando desfilan los guardias de asalto,
cuando el obispo revista las tropas,
cuando el verdugo tortura al minero,
ella, agitando su túnica roja,
quiere salir de la tumba del viento,
quiere salir y llamaros hermanos
y renovaros valor y esperanza
y recordaros la fecha de Octubre
cuando caían las frutas de acero
y estaba toda manchada de España
y estaba toda la novia de Octubre
y estaba toda la rosa de Octubre
y estaba toda la novia de España.
“Cuidado, que viene el Tercio”
La Legión ha entrado a España.
Hombre, cuida tu mujer,
obrero, guarda tu casa.
Mira que vienen los lobos
con el desierto en el alma.
283
Pobre colono, defiende
tu finca, la hipotecada,
que no te van a dejar
ni verdura ni majada.
La Legión ha entrado a España.
Cierra, pequeño burgués
tu tienda de renta flaca.
Guarda tu novia, muchacho,
de la hez condecorada.
Prostituta, ten cuidado
que no te invadan la casa
los rufianes de la arena
que pegan, pero no pagan.
La Legión ha entrado a España.
Cura, cuida tu sobrina
y el tesoro de tu arca.
Tahur, ándate a los puertos
que para fulleros basta.
Bodeguero, tus corambres
esconde en la cueva vasta
que ya vienen los que traen
el desierto en la garganta.
La Legión ha entrado a España.
Que ya vienen galopando
sobre la angustia de España,
asesinando palomas
y fusilando cigarras,
que ya vienen galopando
sobre la angustia de España
los soldados enemigos
de la dignidad humana.
La Legión ha entrado a España.
“Domingo Ferreiro”
Toca la gaita Domingo Ferreiro
toca la gaita... «¡Non queiro, non queiro!»
Porque están llenas de sangre las rías,
porque no quiero, no quiero, no quiero.
Y se secaron los ramos floridos
que ella traía en la falda del viento,
284
que ella traía a su novio soldado
o pescador, labrador, marinero.
Sobre Galicia ha caído la peste,
ay, los oscuros sargentos vinieron.
Están colgando en los pinos los hombres,
toca la gaita, no quiero, no quiero.
Nuestros hermanos que están allá abajo
pronto vendrán a vengar a los muertos,
pronto vendrán en mitad del verano,
pronto vendrán en mitad del invierno.
El que no ha muerto andará por el monte
y en las aldeas cayeron los buenos.
Ay, que no vayan los lobos al monte,
toca la gaita, no quiero, no quiero.
Ya llegarán las valientes milicias
para acabar con la hez del desierto.
Ya llegarán en mitad de la Historia,
ya llegarán en mitad de los tiempos.
Toca la gaita... ¡que baile el obispo!
Toca la gaita, no quiero, no quiero.
Porque no es hora de fiesta en España,
porque no quiero, no quiero, no quiero.
Ya llegarán los soldados leales
para acabar con los pájaros negros,
ya llegarán en mitad de la Biblia,
ya llegarán en mitad de los muertos.
Toca la gaita. ¡Que baile la víbora!
Toca la gaita, no quiero, no quiero.
Porque la gaita no quiere que toque.
Porque se ha muerto Domingo Ferreiro.
“Juancito Caminador”
Traigo la palabra y el sueño, la realidad y el juego de lo
inconsciente,
lo cual quiere decir que yo trabajo con toda la realidad
y si hay alguna persona que quiere saber lo que me ha
ocurrido
ya se puede ir enterando.
Vamos a girar, por ejemplo, alrededor de La Rioja
y de esos rostros y esos paisajes que giraron a mi
alrededor
hace algunos años
y que hoy se prolongan en la muerte de tantas
285
fotografías perdidas.
Me había ocurrido el nacer y el vagabundear
adolescente
-cuando era chico miraba llover y me gustaban los
agrios dulces
-cuando era adolescente me gustaban la cocaína y
Victor Hugo
y cuando de pronto me vi corriendo delante de la
muerte
-estaba trémulo, solo en la soledad de los Llanosla vida me pareció tremendamente deliciosa y
tremendamente,
verdaderamente perigosa.
Me dijeron: “Octavio Portela se murió”
y entonces pensé: ¿Es que uno puede morirse?
Infiel no fui con el amigo querido.
Juro que le rendí el mejor de los homenajes.
Cuando él murió yo sentí un gusto inmenso de la vida
y dije:
-Voy a vivir también por lo que le quedaba de vivir.
Nunca conocí el arrepentimiento feroz aunque no
quise verlo muerto.
Me parecía imposible que alguien se muriera mientras
yo, ah,
mientras Juancito Caminador amaba las muchachas
del verano,
los vinos ácidos, los versos de Rimbaud,
las bombas, las orejas de las mujeres tuberculosas, los
expresos
y los ventiladores enloquecidos en los ángulos de las
amuebladas.
Recuerdo que él estaba asomado a una ventana del
Hospital
y en el fondo velaban a la chica muerta del día
y él decía: “Qué olor tienen los caballos placeros”
y el florero estaba vacío sobre la pila de libros vacíos
porque ya habíamos releído los libros y estábamos
llenos de las ideas
de los libros.
Yo tenía nostalgia de cosas que iban a sucederme y
pensaba:
¿Qué estará haciendo ahora la Reina de Rumania?
¡Después la conocí saliendo de un hotel de lujo
en el corazón rencoroso de Europa!
Y después anduve sobre los aeroplanos
y me metí en estaciones absurdas, escondidas,
con vagos aromas de aserraderos y destilerías.
Me gustaba contar: “El día 14 de febrero el señor
(aquí un nombre)
penetró a la casa señalada con el número 1-7-7-4
y fue ladrado por un perro sin cabeza”.
La primera vez que robé un libro, esa otra en que fui
preso
por dormir en un hotel de vagos y ladrones
o simplemente, la vez que enamoré a la hija de un
guardabarrera,
¡una hija de la distancia, del camino, del horizonte
desconocido!
Solía frecuentar las obras en construcción, borracho,
y recuerdo que una vez
286
Arturo Santillán me dijo: “Por pasar por abajo nos
vamos a quedar solteros”.
Y yo tenía dos queridas y una cajetilla de marfil llena
de opio.
¡Todos los relojes enloquecieron de pronto!
¡Todas las marionetas lloraron en los organitos!
¡Todos los almanaques rodaron degollados sobre las
mesas de las oficinas!
¡Todos los miembros de la Liga de las Naciones
fallecieron de pulmonía!
Y mi corazón continúa alegre y violento
como el corazón alborotado de un mundo nuevo.
“Canción para vagabundos” (Que compuso Juancito Caminador)
Salud a la cofradía
trotacalle y trotamundo.
Todo nos falta en el mundo,
todo, menos la alegría.
Y viva la santa unión
de Sin-ropas y Sin-tierras;
todo nos falta en la tierra,
todo,menos la ilusión.
Corto sueño y larga andanza
en constante despedida;
todo nos falta en la vida,
todo, menos la esperanza.
Amigos de las botellas
pero poco del trabajo;
todo nos falta aquí abajo,
todo, menos las estrellas.
Inofensiva locura,
sinrazón de vagabundo;
todo nos falta en el mundo,
todo, menos sepultura.
Prosigamos, si Dios quiere,
nuestro camino sin dios,
pues siempre se dice adiós
y una sola vez se muere.
“Canción que compuso Juancito Caminador para la supuesta muerte de
Juancito Caminador”
287
Juancito Caminador...
Murió en un lejano puerto
el prestidigitador.
Poca cosa deja el muerto.
Terminada su función
-canción, paloma y barajatodo cabe en una caja.
Todo, menos la canción.
Pónle luto a la pianola,
al conejito, a la estrella,
al barquito, a la botella,
al botellón, a la bola.
Música de barracón
-canción, baraja y palomaflor de trapo sin aroma.
Todo, menos la canción.
Pónle luto a la veleta,
al gallo, al reloj de cuco,
al fonógrafo, al trabuco,
al vaso y a la carpeta.
Su prestidigitación
-canción, paloma y barajael tiempo humilla y ultraja.
Todo, menos la canción.
Mucha muerte a poca vida.
¡Que lo entierre de una vez
la Reina del Ajedrez
y un poeta lo despida!
Truco mágico, ilusión,
-canción, baraja y palomaque todo en broma se toma.
Todo, menos la canción.
“El poeta murió al amanecer”
Sin un céntimo, solo, tal como vino ao mundo,
murió al fin, en la plaza, frente a la inquieta feria.
Velaron el cadáver del dulce vagabundo
dos musas, la esperanza y la miseria.
Fue un poeta completo de su vida y su obra.
Escribió versos casi celestes, casi mágicos,
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de invención verdadera,
y como hombre de su tiempo que era,
tambiém ardientes cantos y poemas civiles
de esquinas y banderas.
Algunos, los más viejos, lo negaron de entrada.
Algunos, los más jóvenes, lo negaron después.
Hoy irán a su intierro cuatro buenos amigos,
los parroquianos del café,
los artistas del circo ambulante,
unos cuantos obreros,
un antiguo editor,
una hermosa mujer,
y mañana, mañana,
florecerá la tierra que caiga sobre él.
Deja muy pocas cosas, libros, un Heine, un Whitman,
un Quevedo, un Darío, un Rimbaud, un Baudelaire,
un Schiller, un Bertrand, un Bécquer, un Machado,
versos de un ser querido que se fue antes que él,
muchas cuentas impagas, un mapa, una veleta
y una antigua fragata dentro dentro de una botella.
Los que le vieron dicen que murió como un niño.
Para él fue la muerte como el último asombro.
Tenía una estrella muerta sobre el pecho vencido,
y un pájaro en el hombro.
289
CAPAS DAS PRIMEIRAS EDIÇÕES DE SEUS LIVROS EM ORDEM
CRONOLÓGICA, EXCETO DO SEU QUINTO LIVRO Todos Bailan. Poemas
de Juancito Caminador
1ª antologia
2ª antologia
290
3ª antologia
4ª antologia
Dedicatória a seu sobrinho do
livro Hay Alguien que está
esperando.
Como se pode observar, neste
livro, González Tuñón
assina a dedicatória também como
Juancito Caminador
291
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baixo - Avatares Antenados