Vozes de Carolina Maria de Jesus: um olhar Bakhtiniano
Adaiane Rodrigues Martins
Universidade Sagrado Coração, Bauru/SP.
[email protected]
Monica Maia dos Santos
Universidade Sagrado Coração, Bauru/SP.
[email protected]
Comunicação Oral
Pesquisa Concluída
RESUMO EXPANDIDO
O discurso literário apresenta elementos linguísticos para a produção de
efeitos expressivos na leitura. Assim, o discurso procura constituir uma
singularidade, ser único. E é nessa construção interdiscursiva (lugar de
incorporação de um discurso em outro) em que ocorre a polifonia.
Segundo Bahktin (1990) a polifonia é caracterizada como uma
multiplicidade de vozes e consciências independentes e distintas que
representam pontos de vista sobre o mundo.
Nesta perspectiva, este estudo se propõe a observar os efeitos de
sentido produzidos na obra “O quarto de Despejo” de Carolina Maria de Jesus,
através da análise do funcionamento polifônico da linguagem, constituído na
voz do narrador como lugar de habitação de outras vozes.
A obra estudada trata-se de um diário, constituído por relatos da própria
autora e das personagens presentes no seu dia-a-dia. Além disso, “O Quarto
de Despejo” foi lançado na década de 1960 e se caracteriza pelo seu grande
sucesso e peculiaridade, já que a autora não faz parte dos meios literários
tradicionais. Carolina Maria Jesus é uma mulher negra, semialfabetizada e
moradora de uma favela em São Paulo.
Esse estudo tem como objetivo analisar as vozes discursivas presentes
na obra “O Quarto de Despejo” de Maria Carolina de Jesus. Para tal, usaremos
alguns fragmentos, que ao serem analisados revelam um discurso polifônico,
em que a autora (narradora) toma os discursos para si, através dos discursos
indireto livre e direto.
Portanto, para essa análise utilizaremos o método comparativo que
envolve a teoria polifônica de Bakhtin e os discursos encontrados na obra “O
quarto de despejo”, Maria Carolina de Jesus.
Nesta perspectiva, procuraremos na voz da narradora indícios que,
estilisticamente, imprimam um caráter inquietante que sobrevive graças às
vozes que dizem muito de posturas oriundas das esferas sociais, éticas e
políticas. Tendo em vista a amplitude da narrativa, selecionamos três
passagens reveladoras do discurso de cada esfera, a fim de mostrarmos o
embate de vozes que habitam a voz da narradora na obra em análise.
Vale ressaltar, que esses trechos respeitam fielmente a linguagem da
autora, que muitas vezes contraria a gramática, incluindo a grafia e acentuação
das palavras, mas que por isso mesmo traduz com realismo a forma de um
povo enxergar e expressar seu mundo.
Segue abaixo um discurso que representa a esfera social:
“Eu sei que existe brasileiros aqui dentro de São Paulo que sofre mais do que
eu. Em junho de 1957 eu fiquei doente e percorri as sedes do Serviço Social.
Devido eu carregar muito ferro fiquei com dor nos rins. Para não ver os meus
filhos passar fome fui pedir auxilio ao propalado Servico Social. Foi lá que eu vi
as lagrimas deslisar dos olhos dos pobres. Como é pungente ver os dramas
que ali se desenrolam a ironia com que são tratados os pobres. A única coisa
que eles querem saber são os nomes e os endereços dos pobres.” (pag. 43)
No texto de Carolina, o discurso social reflete, através da voz da
narradora, a imagem do outro como um sujeito desprezado pelo poder público.
Assim, no discurso de Carolina, escutamos a voz dos que clamam socorro; E
esses pedidos de socorro são abafados por perguntas sobre dados pessoais,
ou seja, esses sujeitos abandonados são tratados como dados numéricos.
Segue abaixo um discurso que representa a esfera ética:
“A Silvia e o esposo já iniciaram o espetaculo ao ar livre. Ele está lhe
espancando. E eu estou revoltada com o que as crianças presenciam. Ouvem
palavras de baixo calão. Oh! Se eu pudesse mudar daqui para um núcleo mais
decente.” (pag.14)
Nesse trecho, Carolina, através do discurso indireto livre, faz uma
denúncia à violência doméstica e a falta de pudor entre os adultos que usam
palavras pejorativas na presença das crianças. Seu discurso polifônico, além
denunciar a violência, que existe nos mais diversos lugares marginalizados,
também deseja um ambiente adequado para o desenvolvimento moral das
crianças da comunidade.
Segue abaixo um discurso que representa a esfera social:
“Fui na delegacia e falei com o tenente. Que homem amável! Se eu soubesse
que ele era um homem tão amável, eu teria ido na delegacia na primeira
intimação. (...) O tenente interessou-se pela educação dos meus filhos. Disseme que a favela é um ambiente propenso que as pessoas tem mais
possibilidades de delinquir do que tornar-se útil a pátria e ao país. Pensei: se
ele sabe disso, porque não um relatório e envia para os políticos? O senhor
janio Quadros, Kubtchek e o Adhema de barros? Agora falar para mim, que sou
uma pobre lixeira. Não posso resolver nem as minhas dificuldades.... O Brasil
precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome, a fome também é
professora. Quem passa fome aprende a pensa no próximo e nas crianças.”
(pag. 30)
Neste trecho, a polifonia é caracterizada por um discurso de uma
autoridade militar que vê a favela como um ambiente que tem como porta de
entrada da marginalização dos jovens.
Portanto, temos um confronto de visões de mundo em que soam vozes
impregnadas de discursos que se contradizem e se conflitam. Pois, na fala da
autoridade militar o ambiente da favela é determinante para a marginalização
dos jovens. Já na voz de Carolina, o ambiente marginalizado pode ensinar e
até mesmo, trazer experiências positivas para uma boa atuação na
administração pública.
Então, num universo real e sofrido, Carolina potencializa um diário
polifônico, com vozes que se entrecruzam e entabulam palavras que querem e
necessitam serem ouvidas, que anunciam uma revolta que toma a cena e
invade e denuncia a vida e o mundo das personagens.
A polifonia, através do dialogismo, encontra-se no interior do discurso
literário, de vozes que, originadas de uma esfera social abrangente, deixam
entrever elos que dialogam entre si, que se complementam quando o
atravessamento dos discursos quer religioso, quer político, quer histórico,
contribui para o entendimento de dizeres que se somam, fortalecendo o
discurso, ou, que se contradizem quando os atravessamentos desses
discursos polemizam-se, denunciando elos que se afastam.
De um modo significativo, observamos a instauração e o entrelaçamento
de outras vozes que habitam a voz da narradora na obra em análise e, em
essência,
vimos
emergir
da
linguagem
da
Carolina,
mulher
negra,
semialfabetizada e favelada, os discursos social, ético e político em um mundo
real, que diante das contribuições bakhtinianas, enunciam efeitos que insistem
em dizer que o sentido da palavra sempre está além do dito.
Os efeitos de sentido polifônico protagonizam um já-dito, evidenciado
pela heterogeneidade de vozes mescladas à da narradora, que, através de
seus relatos, aponta contradições presentes nas diferentes esferas de atividade
humana. Imanentes do ético, o discurso da narradora denuncia a violência
doméstica (marido e mulher) e o descaso com as crianças da favela. Com o
discurso político, Carolina questiona a função do político. E a questão social,
Carolina deixa claro que os menos favorecidos são desprezados, não são
tratados como humanos, são tratados como números.
Portanto, procuramos dialogar os princípios bakhtinianos com a obra
literária de Carolina Maria de Jesus, com o propósito de observar na voz da
narradora Carolina, na obra O quarto de Despejo, o ressoar de vozes que
nomeamos social, ético e político.
PALAVRAS-CHAVE: polifonia; voz do narrador; discursos sociais.
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance.
2.ed. São Paulo: Unesp; Hucitec, 1990.
JESUS, Carolina. M. de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São
Paulo: Livraria Francisco Alves, 1960.
ZONIN, Carina Dartora. Polifonia e discurso literário: outras vozes que habitam
a voz do narrador na obra Ensaio sobre a Lucidez de José Saramago. Revista
eletrônica de crítica e teoria de literaturas. Dossiê: Saramago, PPG-LETUFRGS, Porto Alegre. Vol. 02 N. 02, jul/dez 2006.
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