MODERNIDADE E PSICOLOGIA :
um olhar sobre a realidade da modernização latinoamericana .
Marcus Vinícius de Oliveira Silva
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A consciência epocal do moderno, traz como imperativo, a necessidade da
autoconscientização de sua condição moderna. Habermas, preocupado em localizar a
inscrição do discurso filosófico no interior da modernidade, vai atribuir a Hegel a
inauguração do discurso filosófico moderno .Na esteira desta fundação filosófica, a
Modernidade haverá também de se expressar, através de uma certa proliferação discursiva
instauradora de leituras interpretativas da realidade, constituídas sob a ótica da
modernidade, entre os quais se incluem aqueles do campo denominado genericamente
como sendo o “das ciências humanas”. A história, a sociologia, a economia, a antropologia,
mais do que discursos possibilitados pela modernidade, são ao seu modo, discursos
instauradores do regime da modernidade e do seu espraiamento como forma de
consciência, de interpretação e de intervenção na realidade social. Da historia, da economia,
da administração, dentre outros discursos eminentemente modernos, talvez pudéssemos
dizer o mesmo. Neste caso, o moderno seria aquilo que resulta do moderno e que colabora
para a criação ou retroalimentação do moderno.
O tema da autoconsciência epocal - que representa uma das expressões possíveis da
temática mais ampla da reflexividade - aparentemente exigiria destas discursividades, um
algo mais, no que tange ao seu relacionamento com os modos da crítica. Para a vigência do
moderno, a presença imperativa da consciência epocal deve implicar, para essas
discursividades, numa consciência que seja critica, não apenas em relação às formas e
representações da realidade vigentes na sua antecedência, mas que incluam no campo da
critica as suas próprias representações ou as metodologias através das quais estas se
produzem. A questão fundamental, da autoconsciência epocal, radica numa presença
operativa, no interior das discursividades, de um sentimento de pertença a uma época
movediça e instabilizadora; a uma época que tem na crise o seu signo principal, como um
elemento inarredável da identidade ontológica da experiência social própria desta mesma.
O modo e a intensidade, através do qual, cada disciplina toma consciência e propõe
o enfrentamento deste limite e o vincula ao um estado sempre presentificado das coisas,
define a força da presença, no interior da mesma, da crítica teórica e da teoria crítica,
estabelecendo a partir dessa condição reflexiva, o seu status de, mais ou menos “moderna
propriamente dito”. Portanto, podemos buscar na historia de cada disciplina, os registros e
as marcas destes esforços reflexivos, reconstituindo uma trajetória da aprofundização da
condição moderna em cada uma delas. O caso do uso social corrente, por exemplo, da
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noção de “crise econômica” e de suas implicações interpretativas e comportamentais no
contexto das relações sociais, parece ser muito eloqüente para traduzir alguns desses
efeitos da consciência epocal disciplinar.
Foi esse tipo de raciocínio - o de que as disciplinas que emergem da Modernidade
podem ser desigualmente modernas, a partir da intensificação da presença da
autoconsciência epocal como um dos seus elementos constitutivos fortes – que,
originalmente, nos inspirou a essa intenção de submeter a Psicologia - segundo termo da
equação relacional que dá titulo a este trabalho - a uma certa análise das suas vinculações
com o projeto moderno. Não que pairasse, para nós, quaisquer dúvidas acerca da
legitimidade da sua inscrição orgânica enquanto disciplina moderna. Ao que tudo indica, a
emergência disciplinar da Psicologia, exemplifica soberbamente, uma articulação entre
aspectos fundamentais da experiência social da modernidade, prenhes de ressonâncias
epistemológicas e a instituição de um novo campo discursivo de saber e, posteriormente, de
prática social.
Como propõe Figueiredo (1995)1, a emergência disciplinar da Psicologia - ou a
“invenção do psicológico”, para nos utilizarmos da terminologia do autor - se encontraria
duplamente vinculada e de forma muito direta ao projeto da Modernidade. Por um lado,
atado a exigência, satisfeita no âmbito desta, da pressuposição do triunfo da forma
“individuo” como protótipo do sujeito social, espécie de uma condição prática para a sua
possibilidade básica.
Indivíduo esse, que, por sua vez, haveria de sediar uma
interioridade, cindida na dualidade razão emoção, leit motiv de toda a psicologia. Por outro
lado, esse vinculo pode ser percebido também, como uma espécie de conseqüência das
vicissitudes do projeto epistemológico da Modernidade, que, entre outros elementos,
preconiza a existência de um sujeito epistêmico “plenamente senhor de sua própria
consciência e vontade, capaz de uma disciplina estrita e de uma objetividade sem mácula”.
Graças ao seu caráter “subjetista”, esse projeto, ao pretender “fazer assentar no
sujeito e nos seus poderes tudo que poderia haver de certo e seguro” (Figueiredo,1995),
concorre para a produção de um resto, de um dejeto expurgado – resultante da purificação
pela via do método, desse sujeito epistemológico – que se constituirá na matéria prima,
base para a edificação da psicologia. Aquilo que não se inclui, e que, portanto, deve ser
desprezado, na constituição do sujeito epistemico puro - as falhas, a emoção, a vontade, o
desejo, a paixão - define-se negativamente como o objeto e a fronteira do domínio da
discursividade da psicologia.
Entretanto, poucas, dentre as disciplinas que emergem na modernidade, e como
ela, já centenárias, têm se mantido entretanto tão imunizadas aos efeitos epocais da
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Modernidade - no sentido da não adoção sistemática, da relativização e da auto critica
teórica, nessa perspectiva da autoconsciência epocal, a qual temos nos referido. Afinal, se
o contorno dos obstáculos, se o desvio da confrontação através da multiplicação das vias,
está sempre disponível, diminui-se a tensão que lhe obrigaria a um debruçar-se mais
especulativo acerca das condições e das razões dos seus modos de ser.
A grande diferença a separar, a Modernidade, da experiência social anterior,
estaria dada apenas pelo fato de que, somente no âmbito daquela, a legitimidade do
questionamento crítico acerca de quaisquer versões simbólicas da realidade, encontra-se
garantida, estimulada e reconhecida. A força e a intensificação de uma relação naturalística
dos fatos que constituem o campo dos fenômenos psicológicos, se encontra profundamente
vinculada com a potencia naturalizadora de uma outra instituição, que posta na condição de
um dos
fundamentos basilares da experiência
social moderna, encontra-se
consubstanciada no “fato- ideia-valor” do individualismo.
Centrado nos pilares da igualdade e da liberdade, idéias cardinais no ordenamento
da cultura moderna do ocidente, o indivíduo será elevado à condição de um valor sagrado,
o qual se encontrará impresso no correspondente ordenamento político institucional
singular, que caracteriza a expressão Estado, assumido como nosso modelo de sociedade
política. A presença deste principio é operante e estruturante das relações sociais, tanto de
culturas não-européias, como o caso da Índia, por ele estudado ; quanto no caso do
funcionamento da cultura ocidental, apesar do caráter fundamentalmente recalcado da sua
presença.
A Modernidade e o projeto civilizatório do Ocidente
Sem duvida nenhuma, é complexa a conjunção dos fatos que possibilitaram este tipo
de relação da Modernidade com esta postura de ruptura. Como comenta Castoriadis
(1987,p144) mais do que uma articulação explicativa do Ocidente, a seqüência de fatos,
subjacentes à experiência da Modernidade, entre os quais se incluem “a “coincidência” e a
convergência, constada a partir do século XIX, entre o nascimento e a expansão da
burguesia, o interesse obsessivo e crescente pelas invenções e descobertas, a progressiva
dissolução da representação medieval do mundo e da sociedade, a Reforma, a passagem
“do mundo fechado ao mundo infinito”, a matematização das ciências, a perspectiva de
“um progresso indefinido do conhecimento” e a idéia de que o emprego apropriado da
razão como condição para a posse e assenhoramento da Natureza”, marcam e identificam
de forma exclusiva a experiência social e histórica característica do seu projeto
civilizatório.
Anti-dogmática, iconoclasta, e “histórica propriamente dita”, no sentido do não
estabelecimento de compromissos positivos para com o passado na constituição do seu
presente, a Modernidade se configura também como um projeto fundamentalmente
universalista e expansionista. E, obviamente, naturaliza esta sua perspectiva particular
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como se ela fosse dotada de validade universal. Na linha da explicitação das origens desse
caracter expansionista/universalista que articula Modernidade e Ocidente , Sodré
(1999,p53) vai, inicialmente, vincula-la ao próprio alargamento do domínio espacial
possibilitado aos europeus através dos descobrimentos. Segundo ele, “o traço , a marca,
de uma identidade qualificada como “moderna” é verdadeiramente a consciência
universalista com que os europeus medem pela primeira vez a Terra. A visão de um espaço
não-global, alheio à medição científica, opõe-se, a partir da época dos descobrimentos, um
conceito de ordenamento espacial comum, capaz de dar conta - graças aos refinamentos
técnicos do espirito geométrico - do planeta inteiro. A dimensão planetária impõe-se como
única e universal”
Mas este aspecto físico-geográfico, apesar de sua inquestionável importância,
revela-se como insuficiente para explicar a intensidade do desenvolvimento deste traço tão
característico do Ocidente, que é a sua profunda consciência expansionista/universalista.
Afinal, conforme aponta Huntington(1997,p56) tendo emergido como civilização nos
séculos VIII e IX , a Cristandade européia, por várias centenas de anos, ficou atrás de
muitas outras civilizações, tais como a chinesa sob as dinastias Tang, Sung e Ming, o
mundo islâmico do séc. VIII ao XII e Bizâncio do século VII ao XI, que ultrapassavam em
muito a Europa em riqueza, território, poder militar, realizações artísticas, literárias e
científicas e tecnicamente desenvolveram a capacidade da expansão dos seus domínios
territoriais, sem que isso resultasse numa experiência semelhante a européia.
Para Sodré(1999,p55) a possibilidade de compreensão deste fato esta relacionada
com a adoção de uma hipótese , compartilhada por vários autores, mas principalmente
explicitada por Sloterdijk, segundo a qual, a construção de uma “identidade européia” com
estas características não resultaria das relativamente limitadas bases étnicas, fronteiriças ou
religiosas que pudessem conformar um projeto tão grandioso como se revelou o Ocidente..
Para aquele autor, a construção desta identidade estaria relacionada com uma “forma típica
e um motivo dramático próprio” que seria sistematicamente perseguida e reencenada no
decorrer da historia européia, e se referiria a uma busca da “transmissão do império”.
Para ele, o que estaria sempre em jogo na história européia, sob os mais diversos
formatos seria sempre uma reclamação, uma reencenação e uma retransformação daquele
“império romano” (Sloterdijk, apud Sodré1999,p55), que um dia existiu antes dela. “O
Sacro Império Romano afirma-se como o mito constitutivo da Europa : o período do seu
processo de transmissão iria dos papas e bispos dos séculos seis e sete, até os acordos que ,
no final do século vinte, visaram a transformar a Europa Ocidental num império mínimo do
livre consumo e da circulação irrestrita” (Sodré1999,p56).
Incrustada no imaginário social europeu, como uma espécie de mito fundante de
suas origens , essa forma Imperium , principal fantasia política da Europa e seu paradigma
identitário, poderia ser decodificada num modo de ser “imperial”, e portanto arrogante,
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encontrado na sua religiosidade, na sua tecnologia, na sua ciência, e na sua filosofia. Ser
europeu, para esse autor, configura-se como uma identidade de tudo aquilo implicado na
“transmissão do império” : “célula ideo-motriz ou mitico-motriz de todos os processos
culturais, políticos e psicossociais dos quais resultou a europeização da Europa”.
Esta perspectiva “imperialista”, na qual se combinam em doses maciças,
expansionismo e universalismo, poderia então ser identificada como a responsável pelo
formato particular assumido pelo etnocentrismo europeu. Como nos lembra
Castoriadis(1992,p31) recusando a idéia de que o racismo venha ser uma invenção
especifica do ocidente, e, buscando explica-lo enquanto um fenômeno muito mais universal
do que o habitualmente gostamos de aceitar, uma das características empíricas quase
universais das sociedades humanas reflete-se exatamente nessa aparente incapacidade de se
constituírem como si mesmas, sem excluir o outro ; seguido da aparente incapacidade de
excluir o outro sem desvaloriza-lo, chegando finalmente a odia-lo. Nesta perspectiva, e esse
autor a fundamenta com vários exemplos, não se constitui estranheza o fato de que uma
determinada civilização possa se achar melhor do que as demais. Desde Heródoto, bárbaros
foram todos aqueles que não estivessem assimilados pelas fronteiras do império romano.
No etnocentrismo universalista e expansionista europeu, entretanto, o outro é
percebido não apenas como diferença e inferioridade. Mais do que isso, na presença dos
ideais da Modernidade, tais como o do desenvolvimento e da expansão ilimitada, o da
racionalidade e do primado da economia, o da técnica como condição do progresso, este
outro é convertido a uma condição de menoridade e de primitividade que deve,
evolutivamente, ascender a um “mesmo” consubstanciado na maioridade dos padrões
civilizatórios ocidentais. Colocada como medida padrão, espelho para as demais
civilizações, esta epopéia dos países modernos “porque desenvolvidos” e desenvolvidos
“porque modernos”, será devidamente relida em retrospectiva como uma “caminhada em
direção a um destino” que teria sido empreendido pelos países modernos e que deveria
inspirar a caminhada dos países e povos que, não tendo feito ainda este percurso, deveriam
ser denominados como países e povos “atrasados. Associada portanto à idéia de
“desenvolvimento” encontramos inevitavelmente colada a idéia da possibilidade do
“progresso”.
A Modernidade, enquanto uma expressão estrita do projeto civilizatório do
Ocidente, se constitui assim, negando não apenas as tradições em nome de um presente
permanente, mas também todas as particularidades, as territorialidades culturais e as
diferenças humanas na afirmação de uma “humanidade absoluta”. Como indica Sodré
(1999,p54) “a moderna cultura ocidental – em outras palavras, o triunfo da humanidade
absoluta – dá-se a partir de um ordenamento espacial centrado na Europa. Desta maneira, o
‘ser humano universal’, criado a partir de uma concepção cultural que refletia as realidades
do universo burguês europeu, gerava necessariamente um ‘inumano universal’, a outra face
da moeda, capaz de abrigar todos os qualificativos referentes a um ‘não homem’ : bárbaros,
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negros, selvagens.
Sem duvidas, ainda que a Modernização possa ser percebida por alguns, como
apenas um “produto” do Ocidente que teria se desenvolvido a partir do século XVIII como
uma espécie de “efeito direto” da tremenda expansão do conhecimento cientifico e da
engenharia, como propõe Huntington(1997,p81), dificilmente se poderia distinguir estes
efeitos dos processos que foram seus geradores. Por outro lado, a partir de sua produção
enquanto tal, a Modernidade vai ser assumida como a fisionomia do Ocidente, e por ela e
pelos seus traços passará a ser reconhecido e a se reconhecer enquanto tal, engendrando
uma experiência social singular, como já tratamos na parte inicial deste texto..
Estabelecidos, ainda que limitada e provisoriamente, alguns platôs de critica à
Modernidade, enquanto uma expressão do projeto histórico da dominação ocidental, creio
que podemos retornar ao nosso tema inicial, para examinarmos algumas relações que
caracterizam a expressão deste projeto na América Latina. Tal exame, como pretendemos
demonstrar, constitui-se como matéria extremamente relevante, do ponto de vista
intelectual e político, para a matéria que estamos examinando, sobre as potencalidades
latinoamericanidade constituir-se enquanto um referencial epistemológico para a
Psicologia.
Modernização latinoamericana
Uma primeira questão refere-se exatamente à posição e ao lugar da América Latina,
enquanto civilização, no ambito deste projeto civilizatório ocidental. Uma “subcivilização”
dentro da civilização ocidental ou uma civilização separada, apesar de intimamente afiliada
ao Ocidente, mas entretanto marcada por uma profunda divisão e ambiguidade quanto ao
seu lugar nesta relação ? Na visão norte-americana do já citado Huntington (1997,p52), que
graceja com a nossa crônica e já folclórica, “questão de identidade”, nós os latinoamericanos, nos encontraríamos divididos, subjetivamente, entre um pertencimento ao
Ocidente e a idéia de uma auto-identificação com um projeto cultural e civilizatório
próprios. Como justificativa da primeira opção, o fato inequívoco da nossa condição de
produto da civilização européia, mas que no entanto apresenta uma grande particularização
em relação à Europa e a América do Norte, quase que deles se distanciando totalmente. Tal
particularização estaria fundada no fato de que tendo incorporado na nossa composição
étnica, em graus variados, as populações indígenas autoctones, isso nos trouxe, na maioria
dos países, um forte traço de miscigenação. No Brasil, exceção de colonização portuguesa
nas América, esta miscigenação incluiu ainda intensamente o elemento africano. Do ponto
de vista político, a expressão da contra-reforma com uma predominância absoluta do
Catolicismo, como já foi citado, nos teria marcado com uma cultura corporativista, elitista e
autoritária, pouco sensível aos reclames democrático-igualitaristas.
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Como segunda questão, assumindo a distinção que faz Canclini (1999, p23), na
qual a Modernidade será referida como uma etapa histórica, a Modernização como os
processos sócio econômicos que vão construindo à Modernidade e os Modernismos, como
a expressão de projetos culturais que renovam as praticas simbólicas com um sentido
experimental ou critico, podemos pensar que na experiência latino americana, estes três
processos, ou estas três dimensões do processo social, se apresentam com uma dinâmica,
extremamente contraditória e complexa onde os aspectos econômicos , políticos e culturais,
são manipuláveis por suas elites de forma a exclusivamente preservar os seus interesses.
Como trabalha sistematicamente este autor, essa questão do projeto excludente das
elites latino-americanas e da sua adesão apenas parcial aos compromissos modernizadores
marca definitivamente as relações da Modernidade na America Latina . Sistematicamente
reiterado em todo o processo histórico da evolução do continente e marcando fortemente os
nossos processo de modernização as elite latino americanas somente invocam da
Modernidade aqueles aspectos que na exata medida lhe garanta a continuidade da sua
dominação. “Modernização com expansão restrita do mercado , democratização para
minorias, renovação das idéias mas com baixa eficácia nos processos sociais. Os desajustes
entre modernismo e modernização são úteis às classes dominantes para preservar sua
hegemonia, e ás vezes para não ter que se preocupar em justificá-la, para ser simplesmente
classes dominantes” (Canclini,1999,p69)
Desta maneira a modernização no continente estaria colocada como uma farsa : “ a
modernidade é vista então como uma máscara. Um simulacro urgido pelas elites e pelos
aparelhos estatais... as oligarquias liberais do final do século XIX e início do XX teriam
feito de conta que constituíam estados, mas apenas organizaram algumas áreas da
sociedade para promover um desenvolvimento subordinado e inconsistente ; fizeram de
conta que formavam culturas nacionais e mal construíram culturas de elite, deixando de
fora enormes populações indígenas e camponesas que evidenciam sua exclusão em mil
revoltas e na migração que transtorna a cidade”. (Canclini,1999,p25)
Assim na medida em que estas contradições dão o tom do processo de
modernização no continente, a América Latina deveria ser concebida com uma articulação
mais complexa de tradições e modernidades (diversas, desiguais), um continente
heterogêneo formado por países onde, em cada um, coexistem múltiplas lógicas de
desenvolvimento, gerando problemáticas que alem de se referirem às dinâmicas do
desenvolvimento econômico e social colocam um importante dilema político. “No nosso
continente , os avanços modernos não chegaram de todos , nem a todos. Não tivemos uma
industrialização sólida, nem uma tecnificação generalizada da produção agraria, nem uma
organização sociopolítica baseada na racionalidade forma e material , que conforme lemos
de Kant a Weber, teria transformado em senso comum no Ocidente , o modelo de espaço
público onde os cidadãos conviveriam democraticamente e participariam da evolução
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social. Nem o progressismo evolucionista, nem o racionalismo democrático foram, entre
nós causas populares”
Deste modo, segundo este autor, política e cultura poderiam então estarem
articuladas para iluminarem-se reciprocamente na compreensão das características híbridas
e heterogêneas assumidas pelo processo de desenvolvimento local : “a explicação de por
que coexistem culturas étnicas e novas tecnologias, formas de produção artesanal e
industrial pode iluminar processos políticos : encontramos no estudo da heterogeneidade
cultural uma das vias para explicar os poderes oblíquos que misturam instituições liberais e
hábitos autoritários, movimentos sociais democráticos e regimes paternalistas, e as
transações de uns com outros. Canclini(1999,p19)
Unidade latinoamericana como desafio
Entretanto a despeito dessa unidade antevista, pressentida, afirmada e desejada,
presente nas construções discursivas da latinidade, conforme muitos dos seus ideólogos,
próceres e lideranças políticas do continente, tais como, entre outros Galeano, José Marti,
Simon Bolívar, etc. e que estaria baseada nesta suposta identidade comum, quando
olhamos a realidade empírica das relações que concretamente são estabelecidas no
continente entre os diversos países, são facilmente constatáveis não as marcas de uma
identidade continental, mas o forte predomínio de uma imensa e poderosa alteridade que
nos separa, através das fronteiras geográficas, dos interesses geo-políticos e econômicos,
das diferenças culturais, - e mais especificamente no caso do Brasil mais claramente
lingüísticos, numa grande diversidade de identidades nacionais . Assim antes de qualquer
sentimento comum predominam as identidades que nos fazem argentinos, salvadorenhos,
cubanos, chilenos, guatemaltecos, mexicanos etc. .
É a partir das identidades internas construídas enquanto povos dos “estados
nacionais”, nos quais historicamente nos fracionamos continentalmente, que as nossas
elites políticas construíram e constróem o fosso que aprofunda e valoriza mais as nossas
diferenças do que as nossas eventuais semelhanças, através das quais as populações destes
países latino americanos se identificam, se reconhecem e se rivalizam uns com os outros.
Por outro lado não é absolutamente distante o tempo em que a construção e o reforçamento
artificial de tais diferenças, recebeu toda uma intensificação, ditada pelas políticas externas
das potências imperialistas, que através da sua manipulação, enfraqueceram politicamente
o continente facilitando a sua dominação e a presença e o predomínio dos seus interesses.
Só para refrescar a memória, recordemos que o mesmo território, no qual hoje, pelas
razões das pressões neoliberais da mundialização da economia, se erige o Mercosul, como
espaço de integração economica, foi palco de sangrenta destruição perpetrada pela união de
tres dos seus paises contra o experimento social guarani-paraguaio que desafiava os
interesses industriais da Inglaterra . E que, apesar destas aproximações mais
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contemporaneas, incidentes tais como a declaração das relações carnais de Menem, da
Argentina com os EEUA na disputa com Brasil pelo assento no Conselho de Segurança
da ONU, a venda de armas estratégicas dos EEUA para o Chile, ameaçadora para a Bolivia,
são sintomas da persistência ainda de importantes disputas géo-políticas, em relação as
quais, a paixão latina expressas nas disputas de futebol - enquanto o jogo que sublima a
guerra - só faz evidenciar a competição e as disputas persistentes entre eles.
O sentimento de desprezo por uma igualdade continental que se expressa na
fraqueza, no subdesenvolvimento, na existência de costumes locais pouco “civilizados”, a
vergonha do pertencimento a um bloco de “perdedores”, tudo isso parece muito mais,
caracterizar uma certa identidade negativa em relação a qual não é de se esperar que esses
povos nacionais possam querer se identificar. Como de fato, o sentimento que a maioria dos
cidadão de cada país do continente, em sua vida comum e corrente, talvez nutrisse até
muito recentemente, em relação ao seu vizinho é o de que ele é o seu concorrente mais
próximo e talvez inclusive o seu inimigo.
Apesar disso o apelo para a construção da chamada “a pátria grande” , o apelo à
superação destas diferenças e divergências para a realização de uma unidade dos povos
latinoamericanos, solidária e fraterna, com base em um projeto de justiça social, é
persistente no decorrer dos tempos, como uma utopia a animar o imaginário de libertadores
e reformadores sociais com atuação no continente. Assim sendo, torna-se importante
buscar, para além da continuidade territorial e da contiguidade das fronteiras nacionais,
definidoras do continente e da distribuição dos estados nacionais em sua área, os elementos
que efetivamente, desde o ponto de vista empirico possam ser significativos no
compartilhamento de uma experiência social comum que pudesse estar na base deste
sentimento. Quais seriam afinal, para além destas diferenças aparentes, os traços
unificadores de uma experiência social continental ? O que seria efetivamente comum e
constitutivo de uma experiência social continental, desde o ponto de vista histórico e
cultural, que possa nos oferecer não apenas uma direção de análise e interpretação social,
mas também e principalmente elementos para uma intervenção em direção à sua
transformação ?
Obviamente, um primeiro elemento a ser ressaltado vincula-se à nossa condição
comum de sermos países que, num mesmo movimento civilizatório, somos resultantes da
eliminação em diversos graus - isso comportando diferenciações na radicalidade desta
eliminação/integração em cada país - das populações indígenas autoctones e pré-existentes,
por uma colonização européia que desde aí, nos oferece a referencia para a conformação
civilizatória mais geral que responde pela fisionomia que ora assumimos. A existência
entretanto, de um outro resultado civilizatório, radicado ao norte deste mesmo continente
americano, bastante diverso do nosso, mas que igualmente resulta da dizimação das
populações autoctones e de colonização do mesmo ocidente europeu, nos obriga a uma
interpelação das diferenciações que determinaram esses resultados tão diferentes. Se
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inconformados com o caracter deterministico dos aspectos climáticos, enquanto fator tão
poderoso para produzi-la, resta-nos examinarmos os aspectos históricos e culturais
implicados na nossa colonização, na esperança de neles, encontrar alguns aspectos que
possam justificar o fato de sermos o que somos enquanto latino américa.
Um traço comum, geralmente referido por vários autores, como um elemento de
análise das caracteristicas próprias dessa experiência social da América Latina encontra-se
na referencia à nossa colonização ibérica e católica. Como lamenta também, por exemplo
Caetano Veloso, um músico muito apreciado no Brasil, ao referir-se um tanto
desesperançado, à realidade política do nosso continente, em uma das suas canções,
associando-a a esta nossa origem civilizatória comum :“Será que nunca faremos senão
confirmar a incompetência da América Católica, que sempre precisará de ridículos tiranos ?
Será ? Será, que esta minha estúpida retórica terá de se ouvir pelos próximos mil anos?”
Sem dúvidas, o pensamento critico, de inspiração marxista, negligenciou durante
muito tempo esta direção de análise sociológica, que hoje tem sido recuperada com grande
potencial heurístico, a partir de uma leitura mais desapaixonada do trabalho weberiano.
Como é sabido, o grande mote do interesse de Marx Weber2 esteve centrado na busca da
compreensão dos processos de produção das “racionalidades” enquanto modos de
ordenamento da vida social, nos quais os meios e fins humanos são organizados na ação
que institui a sociedade enquanto tal. Assim Weber deduz da relação do homem com a
religião uma certa relação do homem com o mundo prático, e em especial com o mundo da
técnica, da produção e da economia. E de acordo com a sua tese, o ascetismo protestante
seria distinto, enquanto potencialidade, daquelas dos modos de racionalização próprios do
catolicismo. Para efeito ilustrativo do que isso significa, por exemplo, em relação á
autoridade religiosa é só lembrarmos que, enquanto no Seculo XVI a Reforma Protestante
estava a pregar a ausência da intermediação eclesiástica do homens para com Deus,
interiorizando as relações religiosas, a inquisição contra reformista queimava na fogueira
como hereges todo pensamento que ousava independer-se da fidelidade de dogmas
religiosos.
Mas para o que pretendo estar trazendo aqui, para análise neste momento, este
aspecto da matriz religiosa dos nossos colonizadores e da sua repercussão sobre os
projetos civilizatórios desenvolvidos nas suas colonias, apesar de muito interessante,
constitui-se entretanto apenas num elemento parcial de um outro conjunto de relações
complexas, muito mais amplas, que dizem a respeito do lugar destas nações
colonizadoras ibéricas, no âmbito do grande projeto imperialista e expansionista do
Ocidente, inclusive em suas expressões enquanto Modernidade e Modernização. E de certa
forma, ao tomarmos a civilização ibérica católica como uma expressão particular desse
Ocidente teremos como derivação, a necessidade de pensarmos também a respeito das
2
Ver por exemplo WEBER, M. Ciência e Política : duas vocações. 1989, Ed. Cultrix São Paulo
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relações estabelecidas por este continente colonizado com estes fenômenos, sobretudo no
que tange à produção das identidades colonizadas enquanto cópias mais ou menos fiéis
destes colonizadores.
O que me preocupa nesta discussão sobre latinoamericanidade é que possamos
deixar de lado, um certo acerto de contas com a análise critica dos significados possíveis
dos nossos ideais de pertencimento, enquanto intelectuais latinoamericanos, a este grande
projeto do Ocidente, em sua expressão enquanto Modernidade, o qual, de certa forma
naturalizado, passa a figurar como um espelho no qual nos miramos e encontramos como
resposta um sentimento de inadequação, como se fossemos uma deformação da imagem
dos nossos criadores. Mas trazer a tona este tipo de discussão representa certamente um
grande onus para o seu proponente. O grau de naturalização do projeto da Modernidade
enquanto expressão do projeto maior da produção de uma “civilização universal” calcada
nos ideais do Ocidente, imperialista, expansionista e etnocentrico domina toda a cena
intelectual, politica e social e exige um grande esforço daqueles que analiticamente o
desafiam. Desta forma estabelecerei como próximo passo um exame um tanto ampliado,
de alguns aspectos vinculados ao esclarecimento da Modernidade enquanto expressão
deste projeto do Ocidente para somente após retornar ao exame das nossas premissas acerca
da possibilidade de tomarmos a latinidade como uma base epistemlógica para a Psicologia.
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Marcus Vinícius de Oliveira Silva