Salvador - Bahia
Julho de 2007
A Clínica
Psicossocial
das Psicoses
Programa de Intensificação de
Cuidados a Pacientes Psicóticos
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
Departamento de Psicologia
LEV - Laboratório de Estudos Vinculares e Saúde Mental.
Programa
a
de Intensificação de
Cuidados
Pacientes Psicóticos
Parceria:
•Hospital Especializado em Psiquiatria Mario Leal - SESAB
•Curso de Terapia Ocupacional da Fundação Bahiana para o Desenvolvimento das Ciências
•Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
LEV - Laboratório de Estudos Vinculares e Saúde Mental.
“Não existe nada mais profundo
e revolucionário nos dias de hoje
do que a preocupação com o outro”
Noam Choamsky
“Se quero o outro comigo,
fraco, cansado ou louco,
tenho que deixar sempre abertas
as portas do meu coração....”
Marcus Vinicius de Oliveira
“De quem será, cuidado?
Fico sempre tão impressionado
com o muito muito que se faz
do pouco pouco que é dado.
Do residir assombrado
que germina assim, tão frágil semente,
ganhando vulto em solo adubado.
De quem será? Do semeador, do semeado?
Vivo a pergunta do mérito,
da relação entre os dois, cuidado.”
Marcus Vinicius de Oliveira
Editor: Marcus Vinícius de Oliveira Silva
Co-editora: Lygia Freitas
Revisão: Lygia Freitas
Editoração: Wendel Barreto
Projeto Gráfico: Wendel Barreto
Apoio:
In-tensa. Ex-tensa / Universidade Federal da Bahia. Departamento de Psicologia, PIC ¬Programa de intensificação de cuidados
e pacientes psicóticos.
Ano I, n. I (2007) - Salvador, BA: UFBA, FFCH, 2007.
I.Saúde mental. 2. Psicoses. 3. Pacientes - Psicologia. I. Universidade Federal
da Bahia. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Departamento de Psicologia e Laboratório de Estudos Vinculares e
Saúde Mental.
CDD - 616.89
“Todos os artigos podem ser reproduzindos desde
que citada a fonte”.
© Marcus Vinicius de Oliveira Silva
LEV - Laboratório de Estudos Vinculares e Saúde Mental
Departamento de Psicologia
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
Universidade Federal da Bahia
End.: Rua Aristides Novis n 2, Estrada de São Lázaro
Cep: 40210 730, Salvador - Bahia
email: [email protected]
www.lev.ffch.ufba.br
Salvador - Bahia
Julho de 2007
A Clínica
Psicossocial
das Psicoses
Programa de Intensificação de
Cuidados a Pacientes Psicóticos
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
Departamento de Psicologia
LEV - Laboratório de Estudos Vinculares e Saúde Mental.
Sumário
Entrevista
• 15 - Entrevista com Eduarda Motta e Marcus Vinícius
de Oliveira, supervisores do Programa de Intensificação de
Cuidados a Pacientes Psicóticos
Artigos de crença
• 40 - A clínica integral: o paradigma “psicossocial” como
uma exigência da Clínica das Psicoses
• 42 - Loucura, cultura, instituição e sociedade
• 52 - Psicose e ressonâncias sociais
• 70 - A família na psicose
• 78 - Psiquismo e sociedade: a psicose e os grupos
• 89 - A psicose e as relações vinculares: um esforço de
referenciação teórica
Fazendo o PIC acontecer
• 97 - A clínica psicossocial da psicose: aprendizagem,
cuidado intensificado e reinserção social
• 106 - Programa de Intensificação de Cuidados: um
caminho para a qualidade de vida
• 114 - Programa de Intensificação de Cuidados: uma
experiência de intervenção psicossocial
Estratégias
• 125 - A assistência domiciliar no âmbito do cuidado à
saúde mental
• 136 - Atenção domiciliar: uma tecnologia de cuidado
em saúde mental
• 141 - A formação de díades no trato com a loucura:
acompanhando o acompanhante
• 146 - Supervisão: espaço de continência, aprendizado
e reflexões
Complexidades
• 151 - A abordagem da crise na psicose
• 169 - Dança e xadrez: o papel da intensificação de cuidados no fortalecimento da autonomia de Felipe
• 180 - O solitário na multidão: a solidão da diferença
• 192 - Transbordamento psicótico: desafios e possibilidades de intervenção
• 202 - A.T. – que relação é essa?
• 208 - Derrubando muros, construindo vínculos: intensificação de cuidados no HCT-BA
• 216 - Psicose negra: a imagem de si e a recusa do
corpo
Ressonâncias
• 223 - Ela não pode ser mãe – quando maternidade e
loucura se cruzam
• 228 - Encontros e desencontros com a psicose
• 238 - Causos dos casos – o incrível poder do vínculo
• 240 - Entre amores, quase-amores e não-amores
Dados e Eventos
• 251 - O BPC e a banalização da interdição judicial: um
exemplo de atuação clínico-política
• 254 - O PIC em Letra e Número
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Editorial
As psicoses são tensas. Tensas para fora. Tensas para dentro. Registro de uma experiência subjetiva de
precários equilíbrios do sujeito, instabilizadora de sua presença no mundo social. O sujeito psicótico
vive o enigma da sua pertença como sócio da sociedade como uma produção subjetiva complexa,
tensa e, por vezes, dolorosa. A psicose também se apresenta como fonte de tensão para aqueles que
se dispõem a ocupar um lugar de cuidador diante dela.
A clínica das psicoses é uma clínica tensa. Tensa para dentro, fazendo importantes exigências
subjetivas para que seu agente possa estar bem situado diante de um sujeito que se movimenta em
precária estabilidade possibilitada pelo seu arranjo psíquico. Tensa para fora, exigindo que seu agente
disponha de habilidades de mediador, intermediário entre as necessidades sinalizadas pelo sujeito e
as exigências da cultura.
O ensino da clínica das psicoses é também tenso. Tenso para fora. Espaço de uma disputa teóricoconceitual entre concepções que divergem sobre a sua natureza e sobre a priorização dos cuidados
que devem ser ensinados aos futuros profissionais. Tenso para dentro: como ensinar? Como aprender?
Como transmitir matéria que articula objetividade e subjetividade, num fazer que se situa nos limites
entre a técnica e a arte?
Os espaços institucionais de cuidado dos sujeitos psicóticos são tensos. Tensos para dentro, no manejo dos settings que pretendem proteger (a quem?), isolar, excluir os sujeitos psicóticos e o agente de
cuidados no mundo reduzido das hospitalizações, das emergências e dos consultórios acéticos. Tensos
para fora, diante da exigência ética de uma clínica que se construa no território, ocupando a cidade
e fazendo circular as representações estagnadas sobre as potencialidades dos sujeitos atendidos.
In-tensa. Ex-tensa. Neste número, o PIC - Programa de Intensificação de Cuidados a Pacientes Psicóticos, submete-se à revista. Prestamos contas de um ensino que se faz extra-muros, em que a universidade executa extensão e pesquisa. Revela o vigor próprio da vida que existe fora das salas de aula
como um recurso de aprendizagem e para a produção de conhecimento. Ensino que articula a teoria
e a prática, prestando serviços à população e participando ativamente da disputa teórica e técnica
acerca dos conceitos que devem orientar a Reforma Psiquiátrica brasileira.
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Intensificação de cuidados versus internação hospitalar: dois projetos distintos em suas éticas, em
suas técnicas, suas formas de se transmitir. Intensificação de cuidados, esforço para identificar, decodificar as necessidades dos sujeitos chamados psicóticos, para fazer segundo suas necessidades e não
segundo as possibilidades – sempre menores e mesquinhas – que geralmente conformam o conforto
das instituições e profissionais. Clínica que se faz onde o sujeito vive e habita, em seu domicílio e com
a sua “comunidade”: sua família e seus conhecidos, os sócios com os quais ele compartilha sua vida
social.
Articulando recursos diversos - Atenção Domiciliar, Acompanhamento Terapêutico, Coletivos de
Convivência, Redes Sociais, Suporte e Assessoria, Cuidados à Família, projetos, passeios, festas e uma
regra única: intensificar os cuidados humanos, realizando as ofertas compatíveis com as necessidades
dos sujeitos, assumindo as responsabilidades através de uma presença intensa e orientada.
Clínica Psicossocial. Resgatamos do limbo este conceito que, apesar de nomear o carro chefe da
nova institucionalização dos serviços territoriais - os CAPS - não parece estar merecendo maiores
atenções. Centro de Atenção Psicossocial, onde o signo em questão parece registrar apenas, sob
forma de junção, a urgência de se considerar uma certa dimensão expurgada – o social – das teorias
hegemônicas da clínica que fazem, no mesmo viés individualista, o triunfo do biológico e do psíquico.
Ilusão, pois fora da sociedade não existe sociedade. Todos os fatos psíquicos são fatos sociais. Não
existe sociedade humana que não se inscreva psiquicamente. Contra o que há que se afirmar: por uma
Clínica Integral das Psicoses. As demais não serão senão a sua redução.
Os artigos que fazem parte dessa coletânea têm o sabor da espontaneidade com que foram produzidos: por absoluta necessidade dos estagiários darem conta das suas experiências e sem qualquer
exigência acadêmica que os obrigasse a isso – coisa rara e deliciosa para quem trabalha com a transmissão. Tentativas de articular a marca de uma experiência forte, que tem como pressuposto a idéia
de que a psicose, ela própria, nos ensina.
Aprendizes de feiticeiros, os estagiários que participaram do nosso programa imprimem nos seus
escritos um pouco de sua técnica e sua arte: um desejo, uma coragem de viver assim tão próximos
deste encontro com a realidade delicada dos sujeitos atendidos, com uma cidade maltratada, com os
domicílios simples e muitas vezes precários, ruas, ruelas, becos, faltas e carências diversas, desorganização social e psíquica, pobreza e desalento. Para desse mundo tão duro e doído, extraírem a riqueza
dos sons, cores, palavras, encontros que traduzem as emoções proporcionadas pela oportunidade
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de estarem vivendo a vida tal como ela é, fora das salas de aula e das proteções que, muitas vezes,
os mimam e os sedam. Cada um trouxe o que tinha e o que pôde aportar, o que lhe marcou no seu
encontro e enganchamento com a clínica da psicose. Resultado de uma transmissão que se fez.
Supervisores, patronos e cúmplices - Eduarda Mota e eu - cumprimos com satisfação a tarefa de coordená-los e organizar essa possibilidade da sua expressão inaugural, contando cada um o que viveu.
De minha parte, incluo nessa publicação despretensiosamente alguns dos meus “artigos de crença”:
aulas e notas que expressam um esforço pessoal para cultivar a teoria como recurso generoso que,
distribuído, nos iguala e nivela na tarefa-obrigação de sustentarmos publicamente a explicitação do
que fazemos, o que ensinamos, por que o fazemos e por que o ensinamos.
Que a Clínica Psicossocial das Psicoses que juntos temos reinventado nesses quatro anos de existência do nosso PIC possa nos trazer novas emoções e um próximo número. Que cada texto seja capaz
de falar em nome do seu autor.
Marcus Vinicius de Oliveira Silva
Editor
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Entrevista com Eduarda Mota e Marcus Vinícius Oliveira, supervisores do
Programa de Intensificação de Cuidados a Pacientes Psicóticos 1
Como surgiu a proposta de criação do PIC?
Marcus - A grande questão que nos orientou, no
começo, foi a questão do
enfrentamento da idéia da
necessidade da “internação”, a famosa idéia da necessidade desta ação como
“retaguarda” para a clínica
da psicose. O lugar do recurso à internação talvez
seja hoje o ponto central do
debate ideológico da Refor1-Esta entrevista foi realizada por Noêmia de Aragão Casais como parte do
material de base para monografia do Curso de Especialização em Saúde
Mental do Departamento de Neuropsiquiatria da UFBA e editada por Marcus
Vinícius de Oliveira Silva.
ma Psiquiátrica. Todo mundo é a favor de modernização dos serviços, todo mundo é a favor
de serviços que atendam mais integralmente,
todo mundo é a favor de criar acessibilidade
dos pacientes ao serviço. A grande questão que
pega no debate da Reforma Psiquiátrica é quando a gente tem de precisar se a nossa Reforma
Psiquiátrica é uma Reforma que substitui a internação, se tem a vocação de ser substitutiva à
internação, se tudo isto que estamos fazendo, se
todo este aparato institucional irá substituir a internação ou se o hospital psiquiátrico ou a idéia
de leito hospitalar vai continuar operando como
um conceito fundamental da Reforma. Então,
esta tensão é uma tensão que nos interessa radicalizar, porque existem aqueles que defendem a
idéia do leito hospitalar como um componente
fundamental da Reforma, ou seja, que não pode
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ter a Reforma sem a presença do leito hospitalar
(aí eu estou falando, principalmente, do leito hospitalar em psiquiatria; mas também da idéia do
leito do Hospital Geral como uma retaguarda da
assistência aos pacientes em crise).
Reforma Psiquiátrica sem o fim dos
manicômios?
montar um monte de CAPS, Hospital Dia, Centros
de Convivência, mas manter em nosso sistema
um hospital psiquiátrico “do bem”, um pequeno
hospital psiquiátrico, aliás, ampliar mais alguns
leitos para garantir que o paciente, quando entrar
em crise, muito em crise, possa ser internado no
hospital psiquiátrico.
Mas o CAPS III não teria esta finalidade de
Marcus - Sim. Digo que este é o ponto nevrál- lidar com crises?
gico de disputa do debate em torno da Reforma.
Qual o lugar do leito? O conceito de leito envolve
Eduarda - Na Espanha, eles têm Hospital Dia,
o paciente deitado, o paciente fragilizado, o paCentro Dia. Mas também
ciente que precisa estar circunscrito espacialmentêm hospital psiquiátrico
te para receber um determinado cuidado. E então
extremamente moderno, e,
existe outra posição que diz que o conceito de
quando eu estava lá, eles
leito hospitalar é absolutamente prescindível, não
inauguraram um hospital
precisamos do conceito de leito hospitalar para
psiquiátrico para adolesfazer a Reforma, para fazer a clínica da Reforma,
centes com quarto forte
e que contrapõe á idéia de leito hospitalar à idéia
todo forrado, com uma
de cuidados intensivos. Porque afinal de contas,
parte de informática. Então,
o que o leito hospitalar deveria oferecer é o cuié uma modernização do
dado intensivo. A idéia de leito hospitalar para
hospital psiquiátrico. A conqualquer outra clínica da medicina diz respeito à traposição exprime o conceito de albergamento,
circunscrição espacial, espacialidade num edifí- acolhimento, o CAPS III deve fazer a hospitalidacio, num prédio, de um conjunto de recursos que de noturna. Mas veja: é a idéia de hospitalidade,
podem ser colocado, simultaneamente, à disposi- e não de hospitalização, um outro conceito. Cabe
ção do sujeito. A pergunta é: o que, na atenção a todos os CAPS lidar com a crise, não se trata de
psiquiátrica, nós podemos defender, que tipo de um lugar, de uma instituição, mas de uma atitude
concepção sustenta que a idéia de leito hospitalar clínica compatível com as exigências de quem vai
é mais adequada para orientar a organização do substituir o hospital psiquiátrico.
serviço? Porque, se for assim, nós temos sujeitos
que vão defender que a gente tem de ter a instituição psiquiátrica “do bem”. Que a gente vá
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Como surgiu essa idéia de intensificação de cui- qualidade de vida, em sua posição no mundo,
em sua liberdade. E é por isso que digo que não
dados?
há um programa realmente, que o programa é,
Marcus - A idéia da intensificação de cuidados na verdade, a presença dos estagiários lá com os
é a idéia de oferecimento de cuidados intensivos pacientes, é uma presença orientada.
a pacientes psiquiátricos que têm história de internação freqüente e laços sociais muito frágeis. En- Então cuidados intensivos são uma tecnologia
tão, dizemos assim: vamos montar um modelo de de assistência?
atuação clínica, um modo de atuar, ou seja, uma
Eduarda - Com relação ao aspecto da tecnoatitude clínica que possa abordar esses pacientes
e buscar intervir na dinâmica de suas vidas com logia, a nossa é justamente a presença do outro,
essas ofertas. Essa idéia é o nosso grande patri- é a pessoa, é o investimento na relação. Quando
mônio, porque existe uma grande precariedade se faz analogia com o hospital, com a UTI tem a
de nossa estrutura institucional de suporte do es- questão da presença do outro, mas também tem
tágio na instituição, de tal forma que a única coisa toda sofisticação de aparelhagem tecnológica; na
que a gente acabou, não intencionalmente, mas saúde mental, a sofisticação é a da presença, das
por força das circunstâncias, radicalizando foi o idéias, do pensar clínico. É também um pensaconceito da presença clínica. O que a gente tem mento sofisticado. É uma verticalização, não inpara oferecer é a presença clínica e mais nada. A tencional, porque, de fato, nós temos uma posigente tenta articular, através dessa presença, ou- ção periférica na instituição.
tros recursos, mas o programa mesmo só oferece
Marcus - Estávamos discutindo essa questão,
a presença clínica. Essa atitude que ele tem de
cuidado intensivo, entendendo cuidado intensi- porque a gente ainda sente que há essa diferenvo como intensificação de investimento humano, ciação do nosso programa com a totalidade da
contrapondo à idéia de tecnologia, aparato tec- instituição que nos abriga. Estávamos localizando
nológico, parafernálias institucionais, equipamen- isso. O Mário Leal é uma instituição que ainda
tos e tal. A grande tecnologia é o investimento mantém o modelo bastante tradicional de oferta
humano. Então, o programa está baseado, fun- de assistência, é um hospital referência na Bahia,
damentalmente, na idéia de promover um intenso histórico, inclusive, mas uma instituição tradicioinvestimento humano, cuidado como investimento nal que ainda mantém o modelo antigo de atenhumano, em prol das necessidades do sujeito que ção à saúde mental. E nós, de certa forma, estaestá em crise ou deste sujeito psicótico no mundo, mos fazendo uma provocação, que é o oposto.
e ver o que a gente pode fazer, através deste in- Chega a ser quase crua na instituição a presença
vestimento, para produzir uma mudança em sua das idéias da Reforma, sendo um contexto pouco
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sensível à ideologia da Reforma. O Mário Leal
possui ambulatório que funciona, às vezes, com
aprazamento de quatro a cinco meses de atendimento, de consulta, de re-consulta, internação
psiquiátrica. As pessoas ainda acreditam realmente na necessidade de internação. Mas o Mário Leal é um hospital reduzido, com poucos leitos
e que aceitou a nossa presença, da universidade
e das nossas invenções.
Por que o Programa está localizado no
Mário Leal?
Marcus - Bom, primeiro, porque já tinha a Eduarda aqui, que trabalhava no Mário Leal. (risos).
Acho que, dos lugares que nós tínhamos, aqui na
Bahia, talvez este fosse o menos hostil. Então, se
o Mário Leal era tradicional, ele é um tradicional que, dentro da sua tradicionalidade, não é
hostil, não foi ostensivo contra a Reforma. Se alguém quiser fazer acontecer, que faça. Ele não se
envolve, mas também não nos limita. Nós temos
várias direções, vários lugares, muitas delas em
serviços públicos estaduais da SESAB, de defesa
corporativa, porque eles são diretores psiquiátricos, defendem corporativamente a manutenção
do status quo. Dizem não a este negócio que está
se falando pelo Brasil inteiro, que vai acabar com
o hospital. “Aqui na Bahia não vai acabar. Nós,
psiquiatras baianos, não vamos deixar acabar,
versão do Diabo, não temos nada a ver com essa
coisa” O Mário Leal tinha esta posição um pouco
menos hostil à Reforma.
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Eduarda - Eu acho interessante, também, não
falar de fora, nós estamos dentro de um espaço.
Na realidade, a gente vem se confrontar com a
prática. Eu trabalhava na internação, na época
do início do Programa, e ficava numa posição
muito tensa diante dos pacientes dessa clínica. É
um hospital pequeno, a gente conhece os pacientes. Freqüentemente recebíamos pacientes que
voltavam do Sanatório Bahia, do Santa Mônica,
para o Mário Leal. Perguntava o que fazer com
aqueles pacientes dentro desta estrutura, já que o
ambulatório estava funcionando contra, então o
que fazer diferente daquilo?
Marcus - Eduarda, que é professora da FBDC,
estava aqui, trabalhando na internação, questionando o produto do trabalho dela; e eu estava
no campo da Reforma, querendo achar um lugar para poder montar um programa de estágio
e fazer a problematização conceitual da idéia de
“internação X intensificação de cuidado.” Então,
nosso encontro foi fecundo nesse sentido, porque, na verdade eu queria abrir um programa de
estágio para os alunos de psicologia da UFBA e
ela também. Então, acho que abrimos uma coisa
que é uma característica muito positiva do Programa, o trabalho com dois grupos profissionais, e
conseguimos fazer da intensificação de cuidados
um objetivo clínico que não é especializado nem
para Terapia Ocupacional nem para Psicologia. A
gente consegue desenvolver as habilidades características, mas a gente não restringe ao modelo
estrito de atuação do segmento profissional. Não
é dividido em T. O. e Psicologia, mesmo porque
a atuação do CAPS não fecha na especificidade.
Claro, nós estamos preparando profissionais para
o mercado de trabalho atual no meio psiquiátrico.
o lugar menos hostil. Eduarda era uma pessoa
que dava para conversar dentro das disputas, disputas políticas de Reforma, que eu me envolvo
por ser do movimento social, aqui era o lugar menos contaminado. E também porque pensei: Poxa,
Mas como combinar o que é especifico de cada aqui é um lugar menor, é um hospício pequeno.
grupo de estagiários e o que é comum?
A conjuntura do lugar, do tipo que seria possível,
como foi. E, apesar de a gente falar que a gente
Marcus – Usamos a idéia de núcleo e campo. é um tanto marginal, de a gente estar um pouco
Existe o campo que é de todos. Então ao cam- fora, a instituição não nos abraça, mas também
po que é de todos, nosso estágio dá preferência. nos tolera bem, cria até um mínimo de tensão.
O campo dessa clínica, dessa atuação intensiva, Eu acho que poderia ser menor, mas a gente tem
dessa atitude clínica, deve ser de todos: os enfer- conseguido.
meiros, psicólogos, assistentes sociais, etc. É uma
atitude, uma postura, e óbvio que cada um a parEduarda - Na verdade, há quatro anos tratir de uma ferramenta do seu núcleo específico, balhamos com pacientes indicados pela instituidisciplinar.
ção. Então, nós fazemos a reunião, supervisão do
Programa aqui. Já pensamos assim, por que não
Eduarda - No estágio, isso é um diferencial. fazemos a supervisão fora daqui, na FBDC, no
Já temos quatro anos de Programa, e foi um en- espaço da UFBA? A gente mantém esta coisa de
contro importante, no sentido institucionalmente fazer aqui dentro, porque a gente quer caracteriprodutivo; já passaram não sei quantas pessoas zar. Às vezes temos problemas de sala, de espaço,
por aqui, já abrigou muita gente. Já são oito se- mas queremos caracterizar que é um Programa
mestres de atividades. Um aluno, ex-estagiário, no Mário Leal, e com o Mário Leal. Não é um
passou em primeiro lugar agora na residência em Programa clandestino.
saúde mental da UNEB. Outra passou para a residência de Psicologia do Juliano Moreira. Então Como se dá a apresentação do programa aos
nossos estagiários estão se destacando.
usuários?
Marcus - Acho que é isso aí, estas apostas, estes espaços para formar, ensinar. A gente vem de
culturas profissionais diferentes, mas a busca é de
se encontrar. É isso aí. Foi um encontro. Aqui, por
quê? Por essa coincidência. Para mim também foi
A apresentação é feita pelos próprios estagiários do PIC que oferecem a possibilidade do paciente ingressar. A gente assume a identificação
institucional como um programa do Mário Leal,
pois não estamos fazendo nada clandestino. A
19
gente não é oficial do ponto de vista da ideologia,
da atitude. Fazemos questão de defender como se
fosse um algo mais, um plus do serviço do hospital para os pacientes. E nós temos a liberdade
de triar os pacientes segundo nossos critérios. A
instituição não nos impõe isto segundo os critérios
dela. Nem número de pacientes, até na estrutura
inicial do programa.
sível produzir na vida dessas pessoas, manejando
um conjunto de atitudes para que elas possam
não precisar de internação. Nós estamos fazendo, na prática, um debate entre intensificação de
cuidado e necessidade de internação. Então, nós
estamos dizendo assim: nenhum paciente precisa
ser internado. Alguns precisam de cuidados intensivos, porque seus casos são muito graves e
precisam de uma atenção diferenciada se a gente
Qual é o critério de seleção dos pacientes?
não quiser interná-los. Então a gente está invertendo um pouco, tem um caráter demonstrativo;
Eduarda - Inicialmente, o primeiro critério foi a o programa de uma perspectiva teórica e técnica
internação e a reinternação. Aqueles que tinham dentro da Reforma Psiquiátrica. O que a gente
um ciclo de internação freqüente, pacientes jovens provoca nos alunos hoje é que todos os pacienque, depois da primeira internação, sofrem com tes acompanhados precisam de cuidado intensia internação e aí começa uma carreira. Este foi e vo. Mesmo compensados, é preciso estar sempre
é o primeiro critério. Importante relatar um caso: com a antena ligada.
Um paciente que tem a primeira internação com
quinze anos e, com dezoito, já tem quatro interna- Existe um critério de idade para ser aceito?
ções. Este é um paciente típico que nos interessa.
E é um paciente considerado difícil, é a “carne
Eduarda - No inicio, até se tentou, mas não se
de pescoço” para quem trabalha com internação, conseguiu manter este critério. São duas idéias:
porque ele volta e com o mesmo quadro, justifi- uma era por pacientes mais jovens e outra que
ca a internação para a equipe. Supostamente ele não tivessem muitas perdas cognitivas. Mas acaprecisa estar internado, porque se pensa que uns bou predominando o critério de se internar muito.
não têm jeito, você precisa interná-los.
Agora se aceita quase tudo, o que se interna muito
e está muito abandonado e sozinho. Por exemplo:
Marcus – E então são esses que se internam tem um paciente com mais de vinte internações
freqüentemente, os que não têm jeito, os que na vida. Paciente que leva a vida inteira sendo
“têm de internar” que nós buscamos. Uma aposta internado, passa dois dias em casa e é internado,
no contrário. Ao tomar esta clientela, aceitamos a indo assim de um lugar para outro. Hoje temos
provocação, bem são estes aí, os “taizinhos” que uma grande dificuldade em mantê-lo fora da innão têm jeito, que têm de viver internados, preci- ternação. Na verdade, a gente passou os últimos
sam de internação. Então, vamos ver o que é pos- meses praticamente sem que ele fosse internado.
20
formou no contrário, nós que passamos a ser um
recurso do CAPS. Este serviço, ao invés de aportar novos recursos, aportou apenas, como recurso
fundamental para o paciente, a alimentação, porque ele não tinha como comer e, ao freqüentar
aquela instituição, começou a ter comida, com
muitas tensões, porque o CAPS fica muito irritado,
já que o paciente vai lá para comer e não adere
aos outros tratamentos.
Hoje, por acaso, ele está internado. Está internado, porque nós somos muito insuficientes como
programa, somos muito limitados. Ao limitarmonos à mera presença, nós nos damos conta de
que ela não é suficiente.
Os recursos da clínica do CAPS são
insuficientes?
Marcus - Nós temos uma crítica, que é a crítica exatamente do que os gestores da política de
saúde mental estão fazendo – monta-se um equipamento, mas não se tem a ideologia da intensificação de cuidados. Então o CAPS termina sendo
um lugar muito hostil, pouco acolhedor, pouco
sedutor, para que o paciente possa se vincular.
E nesse caso nos acabamos sendo o recurso do
CAPS. Apesar do programa do CAPS vir como
algo muito mais instituído, mais chance de geração de recursos, de intervir no caso desse paciente, nós passamos, praticamente, a contar com, o
CAPS para a alimentação, para você ver como a
questão é social. Nós conseguimos que o CAPS
fosse um recurso para produzir alimentação, mas
não para intensificar cuidados junto ao paciente.
Marcus - É preciso também os recursos estruturais, institucionais. Diria que, se nós tivéssemos
hoje o manejo de recursos estruturais/ institucionais, certamente ele não estaria internado. Estou falando de uma atitude mais acolhedora na
emergência, uma atitude/postura mais agressiva
da instituição no sentido de ser mais bem articulada com a política integral da cidade, com a rede.
Se a gente tivesse isto, ele não estaria internado.
Ele não foi internado por uma questão psíquica.
Foi internado, pois nós não conseguimos superar,
com a mera presença, o grave déficit social. E, diga-se de passagem, este caso é bom, porque nós
Eduarda - Ele tem uma situação social pecufizemos uma intermediação deste paciente para liar. Ele mora num buraco com dois cômodos sem
ser atendido no CAPS, que devia, este espaço, luz, sem água e sem gás, sujo. Mora numa cova,
possuir mais recursos do que nós, mas se trans- um verdadeiro antro. Quer dizer, estas situações
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sociais, que nós estamos pelejando aqui, mas que
são limitadas pela mera presença sem institucionalidade. Então, nós não temos problemas, não
temos de demonstrar que os pacientes do programa nunca mais foram internados, basta ter
um programa como este. Claro que nós estamos
dizendo que o manejo clínico produz alteração
substantiva na qualidade de vida, na continência
social. Altera muito as chances de o sujeito ser
internado.
Marcus - O paciente citado passou um ano
sem se internar, e isso só aconteceu porque nós
operamos o tempo todo ao lado deste sujeito.
Quer dizer, este sujeito não precisa de internação,
precisa de alguma coisa que o programa sabe,
mas não tem para dar. Mas sabe que é possível
dentro de uma política pública de ser oferecido
para um cidadão portador de transtorno mental.
O que ele precisa não é nada estratosférico fora
do campo do que uma política pública de saúde mental pode oferecer. Nós sabemos do que
ele precisa, mas não podemos oferecer, porque
somos um programa limitado. Mas a tecnologia
de intensificação de cuidados evidenciou ser um
caminho certo para operar com este tipo de sujeito. Quando convocado, o CAPS mesmo afirmou
que se tratava de caso para internação. O CAPS
até agora associou as forças expulsivas. Fizemos
todo movimento (durante um ano) para mantê-lo
fora do hospital psiquiátrico, e o que o CAPS tem
a dizer sobre este caso é que ele é um caso para
internação. Caso de internação por quê? Porque
ele não consegue dialogar com o caso. Não con22
segue dialogar por quê? Porque falta repertório
clínico, e é aí que entramos no seu assunto.
Então o que faz a diferença é a ideologia
da clínica?
Marcus - O grande diferencial do PIC, talvez, o
que a gente está querendo instalar, é um novo repertório clínico, uma nova atitude para o exercício
da clínica com essa clientela. Esta lógica que estamos querendo problematizar, esta lógica, exatamente, que clínica é essa? O grande problema da
Reforma Psiquiátrica, hoje, é a questão da inconsistência da clínica que é feita. Há uma ideologia
geral, há um repertório de atitudes prescritas, mas
existe um limite para operar na clínica. Então, o
PIC está baseado no esforço teórico e prático de
uma fundamentação de uma clínica psicossocial
com psicóticos, uma clínica que articule, no mesmo movimento, a questão da subjetividade e do
pertencimento social. Não a clínica que tome a
questão da subjetividade como uma questão de
indivíduo que está disfuncional e opere na clínica da falta de funcionamento psíquico do individuo e trate como uma outra coisa a questão
do pertencimento social, dos laços sociais e da
sociabilidade dos sujeitos. Ela é uma clínica muito
empírica. Dentro dos CAPS, hoje, fazem-se muitas coisas, fazem-se muitas ofertas, mas a articulação, a fundamentação, a estruturação de uma
reflexão sobre condição psíquica e pertencimento
social, pertencimento social e condição psíquica,
isto não está sendo feito.
Qual é o diferencial da teorização do PIC
em relação à clínica psicossocial dos psicóticos?
do social como se ela fosse uma questão distinta
da questão da estruturação psíquica individual.
Normalmente não têm repertório, é como se isso
Marcus - É o esforço de produzir um pensa- não lhes pertencesse, e como se diz no prontumento que orienta a ação, uma atitude clínica, ário, a minha parte é até aqui, ali é o social e
baseada numa articulação que não os vê como sobre o social eu não tenho o que fazer. Inclusive,
dois âmbitos diferentes. Estruturação psíquica e é um jogo de empurra, é como se dividissem os
pertencimento social são duas coisas que estão pacientes em vários. Um lado é o social, outro
em mão dupla o tempo todo, em tráfego intenso, o psíquico, outro lado é das drogas, outro é a
e quem quiser trabalhar nesta clínica, ser efetivo família, como se o paciente fosse um bocado de
nessa clínica, trabalhar integralmente, tem de ser coisas separadas.
capaz de não separar, de não distinguir isto, mas
Marcus - Eu acho que essa clínica, que se chaoperar com uma coisa operando com a outra (estrutura psíquica e pertencimento social, pertenci- ma “clínica ampliada”, ela vem mudar essa visão.
mento social e estrutura psíquica). Talvez assim, o O paciente não é só uma soma de um monte de
que nós temos recenseado mais, o maior esfor- coisas, que não opera sobre os sintomas, opeço que a gente tem aqui é de fazer essa costura. ra sobre a presença do sujeito no mundo; consiEnsinar a clínica em que não se separa, agora deram-se as dificuldades psicológicas, subjetivas
o social, agora o psiquismo. Mas agora a gente para a presença desse sujeito no mundo e se conpensa o psiquismo como sociedade, sociedade sidera que, efetivamente, o mundo é o lugar que
como psiquismo, em vínculo, ou laços sociais, em realmente é difícil para o sujeito estar se ele não
relações, em sociabilidade, em pertencimento, está operando num certo registro da normalidaem convivência, em expulsão social, em exclusão de. É tentar produzir este diálogo entre o mundo e
social, pensa todas essas coisas. Em estruturação o sujeito, o mundo psíquico do sujeito e a cultura,
do sujeito, em delírio, enfim, toma essas coisas a cultura e o mundo psíquico. Eu acho que a gentodas como produção que está no campo, que te trabalha muito forte com essa questão de pertencimento na cultura, a idéia da psicose como
precisa ser trabalhada, estudada.
uma dificuldade de ser sócio da cultura e de que
Eduarda - Eu acho, pessoalmente, que o cam- nosso trabalho, nossa clínica é exatamente essa
po da teorização da clínica da saúde mental é um de criar possibilidades, de ampliar as chances de
campo que valoriza muito a questão do indivíduo esse sujeito pertencer à cultura. Às vezes eu digo,
e da abordagem individual. Os profissionais não um pé na cultura: “cultura, tem paciência, afinal
têm repertório para lidar com a questão social e, de contas esse sujeito está psicótico”; um pé na
quando têm esse repertório, lidam com a questão psicose: “psicose, tem paciência, não fique nessa
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posição, afinal de contas a cultura não perdoa,
a cultura é exigente, não vai deixar você ficar
nessa posição”. Então um pouco essa idéia de
mediador.
A mediação seria uma nova função do profissional de Saúde Mental?
Marcus – É assim que vejo. Esse operador da
saúde mental como mediador dessa tensão entre
a disfunção psíquica e a disfunção social, criando
a possibilidade do cabimento da disfunção psíquica no funcionamento social.
Eduarda - Ela é uma clínica sofisticada, né,
Marcus? Você precisa da alteridade, que é outra
coisa que a gente trabalha também, alteridade no
lugar da autoridade. Eu acho que inicialmente é
uma questão para os estagiários, elas vão visitar
os pacientes do programa que se encontram internados em hospitais, e às vezes no CAPS também, as equipes de lá ficam dizendo: “ah, vocês
são babás dos psicóticos. Aqui nós damos autonomia”. Então, tem uma leitura equivocada dos
termos que são hoje em dia socialmente corretos,
politicamente corretos. Autonomia é um termo
que é comum hoje na saúde mental, mas autonomia como desresponsabilização. Então, tem esse
detalhe ético. É um equívoco o que está acontecendo com o termo “autonomia”: “os pacientes
têm autonomia, eles tomam medicação se eles
quiserem, eles vão ao caps se eles quiserem, não
temos nada com isto”. Vêem autonomia como
desresponsabilização do técnico em relação à
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psicose. Tenório fala que quanto mais pertencente
a alguma coisa (várias coisas) maior grau de autonomia esse sujeito adquire.
Marcus – No PIC, a gente lidou com vários
casos de recusa do paciente que a gente aplicou
aquela idéia da reforma psiquiátrica italiana, da
lei 180, que afirma: o paciente tem o direito de
recusar tratamento, a unidade de atenção à saúde mental tem a obrigação de oferecer o atendimento. Então, colocar essa contradição, esse
direito de recusa e a obrigação da oferta como
ponto de negociação. Porque se um tem o direito
de recusar, o outro tem o dever de ofertar. Você
faz o ponto de tensão que só pode ser solucionado através do ponto de negociação. O serviço
tem de ser capaz de convencer o sujeito que ele
vai receber o serviço. E o sujeito? Respeitando o
sujeito, ele tem o direito de recusar, ou seja, se o
serviço não for convincente, ele não vai cumprir
sua função se ele não tem de convencer o paciente que ele deve aceitar. E ele só deve convencer,
não pode impor à força, porque o paciente tem
o direito de recusar. Em vários casos aqui a gente
usa esse paradigma, sobretudo os casos de pacientes que dizem assim: “eu não quero ver vocês,
vão embora”. Aí a gente diz assim: “você tem o
direito de não querer ver a gente, mas a gente
tem a obrigação de vir cá e dizer que a gente está
à sua disposição”. Então, temos aí um problema.
O seu direito é o nosso dever, nosso dever ético
de te perceber numa condição fragilizada e de
perceber suas condições de fazer estas deliberações sobre seu desinteresse por nós. Porque você
está supondo que nós estamos no lugar de perseguidores, porque você está supondo que vamos
colocar você nesse lugar hostil. Nós não estamos
nesse lugar hostil, sabemos eticamente disso, vamos só sustentar nossa presença até a hora em
que você tope conversar com a gente.
mento. Na verdade, não é a tecnologia que é sofisticada, é o pensamento sobre essa difícil atitude
que é oferecer uma clínica para essa clientela.
Eduarda – Em vários casos a gente teve de
aplicar isso aqui. Tá certo, isto é um problema,
senão a gente se demite da responsabilidade do
problema: “você não quer, você não quer! É problema seu” – é assim que o CAPS faz: “estou respeitando que você não quer”. E eu pergunto, não
é engraçado? Quando ele quer se jogar lá do
alto, acho que posso intimidá-lo, não respeito o
que ele quer! Quando acho que ele diz que vai
matar alguém, eu interno e não respeito o que
ele quer! Agora, quando ele diz para mim que
não quer a minha presença, eu rapidamente faço
concordância com ele e digo: “eu respeito o que
você quer”. Então é uma coisa meio de conveniência.
Marcus – Na verdade, hoje eu penso que cada
vez mais nós tendemos a definir a clínica como
baseada no manejo das relações vinculares, desde o conceito de transferência (strictu sensu), conceito já consagrado na clínica da saúde mental.
Nós extrapolamos esse conceito de transferência e
manejamos múltiplas relações vinculares. Isto, de
alguma forma, pode definir essa clínica como clínica do manejo das relações vinculares. Por isso,
no lugar do estágio, nós dizemos que trabalhamos com a clínica que preserva a relação transferencial, e, para isso, delimitou-se um setting para
preservar a relação terapeuta-paciente, porque
aquela relação vincular promove os efeitos terapêuticos (você pode chamar isso de reforço de
pureza, pureza do vínculo transferencial isolando através do setting). A questão é que o setting
do serviço substitutivo é exatamente o setting da
contaminação, não tem esta pureza, as relações
vinculares são atravessadas, ligadas por muitos
aspectos, muito dinâmicas. Então, temos aí um
fato, é uma condição nova. E o saber psicológico,
psicanalítico, relação psiquiatria-médico-paciente, ela não se preparou para lidar com essa dimensão das relações vinculares transversais, para
lidar com a dimensão das relações vinculares restauradas nos processos de convivências coletivas.
Marcus - Esse é um ponto legal, um ponto radical. Tivemos aqui três ou quatro casos em que
tivemos de enfrentar isso, ação de nos demitirmos
da responsabilidade. Vimos que o problema era
um problema da nossa dinâmica clínica, então
nós fomos desafiados a mudar nossa dinâmica
clínica de abordagem para permitir que o paciente se sentisse confortável para aceitar nossa oferta.
Então, na hora em que ele se sentiu confortável,
ele aceitou nossa oferta. Então, esse é o ponto em
que nós trabalhamos com um sofisticado pensa-
E qual a relação do acompanhamento terapêutico com o programa, como é que ele entrou?
25
escuta sicrano, ou seja, maneja-se esse conjunto
de relações no ambiente da família. Outra coisa
que a gente faz é uma aposta no trabalho com a
sociabilidade. Então, o trabalho com a sociabiliEntão o vínculo é um conceito central
dade, com os pacientes, o esforço de produção
para vocês?
da sociabilidade, ela define o espaço do trabalho
Marcus - Essa clínica está baseada nesse re- grupal. E a gente mantém um grupo, o grupo do
curso, manejar as relações vinculares como orien- encontro, que é uma modalidade que a gente está
tação nessa clínica. E aí, a gente vem trabalhando ainda ensaiando. Este espaço de grupo é um escom a idéia de que nós fazemos muitas ofertas paço importante. Dentro deste espaço nós temos
(não ofertas tipo pacotes), de que o programa, um tipo de oferta que é um esforço para olharmos
na verdade, é baseado em várias possibilidades, as necessidades sociais integrais.
em articulações dessas relações vinculares, e uma
Marcus – Retomando a sua pergunta. Um
dessas possibilidades é essa coisa de atenção domiciliar. Hoje o paradigma da atenção domiciliar desses componentes que usamos nesse manejo
começa a ser desenvolvido no PSF, na idéia de múltiplo é o componente do Acompanhamento
medicina da família, algumas coisas começam a Terapêutico ou AT. Tanto na dinâmica da relação
ser desenvolvidas a partir do saber sobre atenção grupal, nos processos grupais, isto porque o padomiciliar. Atenção domiciliar é tomar o lócus do ciente vem para o grupo acompanhado, vem indomicílio como lócus de ofertas de atenção. O troduzido no grupo com o acompanhante, quansetting completamente tenso, conturbado, confu- to nos passeios coletivos de todos os pacientes,
so, às vezes a gente vai lá fazer a oferta dentro quando os estagiários saem com os pacientes
desse setting, tomar o domicílio como setting da em grupo, que também divergem da estrutura
oferta. Talvez esse seja um ponto forte sobre o típica do acompanhamento terapêutico, em que
qual a gente nem saiba tanto, mas a gente apos- um acompanha um. Aqui, muitos acompanham
tou nele, e ele foi revelando uma potencialidade. muitos. E também temos a dinâmica do AT stricTalvez os PSFs tenham um saber sobre isso, dife- tu sensu, porque, às vezes, com cada paciente,
rente do saber que nós estamos produzindo, que há uma dinâmica relacional, às vezes a dupla sai
é o manejo das relações vinculares transversais, com um para isso, para aquilo. Às vezes sai com
cruzadas, enfim.
dois também, mas o mais comum é sair a dupla
com um paciente, fazer coisas da necessidade do
Eduarda - Nós trabalhamos com as duplas, paciente na rua, coisas ligadas à cidadania: tirar
pessoas que vão para dentro das casas. As ar- identidade, título de eleitor, benefício, ministério
ticulações das duplas: uma escuta fulano, outra público, não tem regras.
Então, é uma clínica que não sabe sobre isso, ela
não tem recurso de pensamento.
26
A intensificação de cuidados então é mais
ampla do que o acompanhamento terapêutico?
Eduarda - Temos de enfatizar mais a questão
do trabalho com as redes sociais na comunidade
a partir do núcleo familiar. Você toma o núcleo familiar, a atenção domiciliar e uma certa expansão
disso para outras relações, dos pacientes com, os
amigos por exemplo. Aspecto importantíssimo é
a articulação com os vizinhos, com a igreja, com
a comunidade, com a rua, com a barraca em
frente. A gente tem casos de a comunidade fazer movimento contra o paciente, de brigar. Tem
uma situação em que o paciente xingou a mãe de
alguém, e esse foi lá brigar, bater no paciente, e
as estagiárias lá na casa tiveram de contornar, do
lado do paciente, intermediar, e depois voltaram
para trabalhar com os vizinhos, com o grupo de
adolescentes para poder conviver de uma outra
maneira. Articularam a rede objetiva e subjetiva
mesmo.
esse paciente conversasse com ele para que ele
conseguisse se alimentar, para produzir uma interferência a partir de uma outra relação que é
significativa para ele, para interferir no caso dele.
E tem um caso interessante de estagiários que foram fazer uma visita a um paciente que mora aqui
perto do Mário Leal e foram assaltados no meio
do caminho. Aí roubaram a bolsa e o celular dos
estagiários. Eles voltaram para o Mário Leal, a
moça chorando, o rapaz não podia chorar, porque “homem não chora”. E todos num clima de
Marcus - Fazer advocacia do paciente na co- drama, porque afinal de contas, “veja como é armunidade é emprestar o poder contratual, é aju- riscado esse programa, colocou os estagiários em
dar a negociar uma melhor posição diante do risco, eles foram à comunidade que moravam as
outro, usando o poder das estagiárias: “olha, pessoas pobres, perigosas, que assaltam as pescomunidade, vocês têm de ter paciência com o soas”, todo um drama. E, enquanto estão todos
lá, discutindo esse drama, vem a paciente trazencara, porque ele está muito mal”.
do a bolsa da estagiária, dizendo “eu estava na
Eduarda - E às vezes o contrário também, porta da minha casa, de repente vi fulano passar
às vezes o paciente entra em crise, não quer se com uma bolsa e reconheci, aquela bolsa é a bolalimentar e tem um pastor que é um integrante sa do meu estagiário. Corri lá, falei com não sei
importante na vida desse paciente, e bastou que quem, e não sei quem foi lá e trouxe a sua bol27
sa. Tome aqui sua bolsa, na minha comunidade a que interroga hoje os nossos serviços. Os serviços
sua bolsa não será roubada”.
hoje estão cheios de pessoas que, ao invés de
suportar a psicose, agridem a psicose com uma
Marcus – É, pelo ponto de vista do laço social, certeza clínica que advém da teoria psicanalítica,
produziu proteção para os estagiários, pela ques- da psicopatologia psiquiátrica, enfim, das divertão do vínculo, do manejo. Em todas essas ope- sas formas de localização do sujeito psicótico.
rações, há questões que nos fazem aproximar da
temática do AT. Entretanto nós produzimos cursos Os serviços não estão preparados para lidar
sobre AT, incentivamos, enfim. Nos interessa mui- com os pacientes?
to qualificar as principais funções típicas, o modo
de operação típica do AT, ainda que isso esteja
Marcus - Acho que pouco preparados, teórica
calcado na perspectiva didática, de uma díade e tecnicamente, para a clínica com psicóticos. Eu
do acompanhante e paciente. Nós achamos que olho aí, esse é pensamento meu, e vejo que há
isso pode ser uma base nuclear interessante, para uma asfixia tática que impede qualquer clínica de
pensar na questão da continência, do holding, de prosperar com esse sujeito esquisito aí, arranjauma série de funções que o AT pode exercitar. É, a do psiquicamente ao modo da psicose. Com esse
dinâmica psíquica do psicótico, ela é muito com- tipo de fechamento, em que a teoria hegemônica
plexa, toda informação teórica, clínica que puder produz a certeza sobre o que o sujeito tem, se
ajudar para que um sujeito compreenda melhor é incapaz de produzir qualquer efeito dialogante
o que significa estar diante de um paciente psi- com a psicose. Então, eu acho que isso aí é perda
cótico, acho que essa é a matéria principal que de tempo. A atitude clínica que a gente desenvoltem faltado no mercado, que é um preparo para ve é essa atitude que tenta produzir a condição
que os sujeitos possam se localizar diante desse de suportar.
enigma, que é a psicose, se é que é possível isto.
Que o sujeito possa ter um repertório mais elásti- O acompanhamento terapêutico não seria um
co para se movimentar diante do sujeito psicótico. recurso útil aí?
A gente acha que este programa é um preparo,
um tipo de preparo para o trabalho, e, no caso,
Marcus – Há um saber sendo produzido neseste preparo a gente procura trabalhar aqui no sa relação diádica do acompanhante terapêutico
estágio. Na verdade, o que a gente está prepa- com o acompanhado que nos interessa, que é
rando nesses estagiários é uma atitude para uma uma matéria útil para o nosso trabalho. Agora, a
postura. Lição número um para quem quer traba- gente acha que o AT é o recurso, ou é o melhor
lhar com pacientes psicóticos: é preciso aprender recurso? Não! Porque o que estamos falando é de
a suportar a psicose! Esse é um ponto de partida manejo das relações vinculares. Se a gente tem
28
uma crítica ao abuso do setting tradicional que,
para manejar as relações vinculares, isola a relação vincular, que protege o lugar da relação vincular, que, para isso, tem de se fechar numa sala,
trancar seu diálogo entre quatro paredes, porque
só assim vai produzir esse laço que vai permitir
a interferência transferencial. Se a gente identifica tudo isso, é lógico que a gente valoriza o AT,
na medida em que o AT rompe com esse setting
e coloca o sujeito numa situação de exposição.
Ele cria para o AT a necessidade de flexibilidade,
de lidar com as situações de transversalidades,
com os atravessamentos, com a simultaneidade,
com a multiplicidade de situações. Então, o AT é
progressivo em relação ao tema de ruptura com
o setting clássico da clínica, que tenta reduzir a
relação do sujeito pelo recenseamento simbólico
que ele apresenta no contato. Ou pela postura
ou pela atitude física do paciente tenta-se deduzir
coisas sobre ele. O AT entra na vida do paciente, tem mais chances de receber do paciente informações, perceber, fazer leituras interpretativas
acerca das dinâmicas subjetivas, psíquicas do paciente psicótico.
E quais seriam as limitações do AT em relação
à proposta de vocês?
um psicólogo ou psicanalista, e aí tem um AT. O
AT para possibilitar as dinâmicas da sociabilidade. É como se cada um desses sujeitos tivesse de
preservar um campo de especificidade da sua
atuação para garantir a efetividade do que ele
faz. E aí nós estamos propondo algo diverso com
essa idéia de cuidado intensivo, baseado no manejo das relações vinculares, múltiplas, diversas,
aquelas que foram fundamentais para o desenvolvimento do CAPS como projeto de instituição
de cuidados aos psicóticos. Estamos perguntando, na verdade, que especificidade é essa onde
um escuta, o outro medica, e o outro circula pela
cidade? Que história é essa? Que lugar é esse?
O grande desafio é perguntar: alguém é capaz
de trafegar por tantas posições diante do sujeito e
sustentar sua posição de alteridade diante dele?
A exposição à convivência do profissional com o
sujeito atendido em múltiplas situações, múltiplos
espaços, múltipla referência, coloca que tipo de
risco? Coloca o risco de que a alteridade seja perdida, mas isso é um problema da relação vincular, esse é um problema do material, do preparo
do sujeito que está posto nessa relação. Talvez o
que nós estejamos dizendo, querendo dizer, é que
talvez seja possível para um sujeito experimentar
múltiplas posições diante do paciente sem perder
Marcus - O AT ainda está mantido no registro a posição da alteridade.
de uma sociabilidade privatizada, ou seja, a relação diádica ainda é tida como ponto principal Como se articula essa questão da alteridade
da sustentação. Mas acontece uma coisa interes- com a noção de vínculo?
sante, lá em São Paulo, onde essa prática é mais
Marcus - Esse tema é muito interessante, pordifundida, onde se vêem casos assim: um paciente, para ser cuidado, tem de ter um psiquiatra, que, muitas vezes, existe uma confusão entre a
29
posição que sustenta a alteridade e a perspectiva
moral que exige dos psicóticos uma submissão à
autoridade. Fica aquele papo da alteridade como
autoridade, e, muitas vezes, fica parecendo que
a figura da alteridade é exercício de autoridade.
Autoridade: eu sou um médico, eu sou um psicanalista, eu sou seu AT. Fica parecendo que o que
sustenta a relação vincular é uma certa autoridade do saber sobre a psiquiatria, sobre psicanálise,
sobre AT; e não a postura do cuidador que consegue manter-se na condição de um “Outro” válido
diante do psicótico. No CAPS, eles dizem não ser
possível suportar a convivência, suportar o grupo,
porque eles aprenderam teoricamente que têm de
lidar no espaço neutro, no espaço que não contamine. Se eles estão no grupo, se estão no espaço
da convivência, eles se expõem, entram em choque contra sua própria questão.
só vai exigir que esse profissional seja um profissional mais permanentemente atento e mais devidamente centrado na sua função, no seu saber,
na sua localização no mundo. Ou seja, vai exigir
um profissional mais sofisticado. Agora, nós não
podemos querer colocar as pessoas em ambientes, em settings absolutamente diversos, múltiplos,
movimentados, coletivos e manter a referência teórica, interpretativa da clínica no registro da relação diádica.
Eduarda - Temos podido desenvolver essa problemática, a problemática de como que a gente
pode, sem culpas e sem dar satisfações a nenhuma igreja teórica específica, tentar produzir uma
clínica baseada na alteridade e no vínculo, sobretudo considerando que, de vez em quando, você
pode não conseguir, que de vez em quando você
vai falhar, você vai se perder, mas ainda assim,
O vínculo seria um tipo de transferência?
sem culpa, sem aquela obrigação, sem aquela
imposição, sustentar a busca de uma clínica que
Marcus - Ou a transferência que é apenas mais se envolva na complexidade das relações sociais
um tipo de vínculo? Entendeu? Nós estamos, na concretas que definem as possibilidades e as poverdade, fazendo uma provocação do campo, o sições dos sujeitos no mundo. Resistir à tentação
principal campo orientador da fundação teórica de reduzir a complexidade do sujeito para caber
do preparo para a clínica mental que é a psica- nas nossas conveniências teóricas.
nálise. E ela toma a transferência ao modo de
uma relação vincular muito especial, e nós estaMarcus - Mas, sobretudo está a tarefa de promos partindo da transferência para dizer “tudo é duzir um elemento orientador para a prática clívínculo”. A grande questão é saber qual o prepa- nica: olhe, diante do paciente, eu tenho que o
ro que alguém tem de ter para se sustentar numa tempo todo estar fazendo alteridade, e a alteridaposição, em múltiplas localizações diante do su- de é estar sempre centrado na minha função, na
jeito, sustentando alteridade. Isto tem a ver com o minha escuta, na minha atitude, na minha posipreparo do sujeito, isso não é um ideal absurdo, ção. A gente está tentando que desenvolvam essa
30
habilidade, que é muito mais uma atitude, que
tem relação com o preparo, que tem relação com
as idéias que estão sendo orientadas. Então, é
por isso que aqui hoje eu disse assim: as pessoas
têm uma atitude, nós oferecemos uma presença
orientada por um certo pensamento que compreende o que é a psicose, o que significa o delírio,
o que significa a crise, o que significa um determinado tipo de produção dos pacientes em sua
vida, que os outros que estão lá com os pacientes, que também são sujeitos psíquicos, que também estão expressando sua condição de sujeitos
barrados, as suas dificuldades, suas limitações, e
nós produzimos uma interação entre sujeitos psíquicos precários. Somos todos sujeitos psíquicos
precários, inclusive o sujeito que está atendendo
o outro sujeito. Devia ser preparado, mas é precário, e, dentro dessa precariedade, ele busca se
preparar para superar a precariedade. Nós todos
somos sujeitos psíquicos precários, e os psicóticos sujeitos psíquicos com um tipo de precariedade, os seus familiares com as precariedades e
nós com nossas precariedades: “um encontro de
precários”.
os pacientes da dupla que está saindo. Então, a
passagem é uma fase do estágio, é o primeiro
contato do paciente com seu futuro acompanhante. Durante a passagem, ele é progressivamente
apresentado ao paciente, informado que substituirá e ele, durante um mês, vai sendo repassado,
então ele vai da posição de alguém que está chegando até a posição de alguém que está saindo.
Em momento nenhum o atendimento é interrompido. Nas duas primeiras semanas, você (a dupla
que está chegando), e nas duas outras, você (a
dupla que está saindo) atuam juntos. Então faz aí
o que a gente chama de “passagem”, aí depois,
após um mês, o paciente está por conta dos novos. Ele conhece o paciente nas 4, 5 semanas,
mas sabe muito pouco sobre qualquer coisa, seja
sobre clínica, seja sobre psicose.
Marcus – O aluno vem com uma experiência
mínima e, às vezes, nenhuma sobre a psicose. Ele
nunca viu alguém psicótico, ele nunca se relacionou com alguém psicótico, não viveu experiência
anterior, é virgem na relação com a psicose. No
máximo, viu pacientes internados na disciplina de
psicopatologia. E aí a gente deixa um período iniComo se dá a formação para atuar
cial de quase um mês e meio pelo menos (só aí
no programa?
já vão quase dois meses e meio de convivência).
Dizemos assim, só seja delicado e gentil, simpáEduarda - Se tem uma metodologia que é as- tico e presta atenção, esteja presente, mas não
sim: exposição durante dois meses, mera exposi- complique, não perturbe a vida do paciente, porção aos pacientes. O segundo momento é reser- que o contato com o sujeito psicótico é uma das
vado para a teorização; em seguida vem a ação. principais fontes de aprendizagem sobre a psicoEste programa é assim, quem quiser participar do se. Nada das idéias que são trazidas aqui podem
estágio tem de ficar durante as férias para receber substituir o contato com a experiência do sujeito
31
psicótico. Passagem e depois exposição à psicose. Aqui se tem uma concepção teórica: “a psicose ensina”. A psicose é uma obra da produção
psíquica que tem uma direção de trabalho, de superação. Então, são crenças teóricas de trabalho
que orientam essa atitude, de que a psicose ensina, de que quem quiser aprender aprende com
a psicose. É só prestar atenção, tem de ter uma
postura de abertura. Aí tem a questão: abertura,
suporte, acolhimento. Na primeira fase, a gente
está preocupado com as idéias mais gerais sobre:
vínculo, internação, fases da reforma, a base do
programa, o que é que a gente faz, e as pessoas
estão lá em contato. Então, está em descompasso
clínico, as pessoas estão angustiadas porque não
sabem o que fazer, são incompetentes, e a gente não está oferecendo recursos de interpretação
nesse momento.
E a formação teórica?
Marcus - Depois dessa fase, a gente começa,
paulatinamente, a oferecer mais recursos teóricos
das mais diversas fontes: pode ser teoria sistêmica, psicanálise lacaniana, psicanálise freudiana,
Pichon Riviére, dos grupos, das teorias da reforma
psiquiátrica, da clínica antimanicomial, podem ser
coisas úteis e interessantes para pensar em instruir
esse contato com os sujeitos (estagiários), com os
pacientes (também sujeitos). Então, essa interpretação é mais ou menos assim. Nós começamos
a perceber que começa a se instaurar um pensamento e atitude clínica. Ex: uma estagiária relata
que percebeu que precisa lidar de forma diferente
32
com as mães de diferentes pacientes, ou seja, não
há uma condição indicada a seguir, cada caso é
único. O que os estagiários apreendem são deles,
isso é aprendizagem clínica. É lógico que ninguém
vai sair daqui perito em intervenções precisas de
clínica da psicose. Ninguém pode ensinar, e não
há esta perícia, é muito mais a postura, a atitude,
a interpretação e a abertura e capacidade de suportar.
Seis meses dá para atingir o objetivo?
Eduarda - Claro que não, quem fica mais tempo desenvolve mais, mas percebemos que tem
uma mudança de postura, isso sim. Mudança de
postura, compreensão, atitude. Em seis meses,
as pessoas adquirem leitura acerca do psiquismo, um olhar sobre o psiquismo psicótico e uma
postura clínica. São seis meses intensivos também
para os estagiários. Eles atendem final de semana, à noite, pela manhã. Alguns pacientes eles
estão visitando três vezes por semana. Às vezes,
os estagiários saem da casa do paciente mais de
9h da noite, tentando negociar: “só saímos daqui após você tomar o remédio”. É intensificação
também de contato, de conhecimento, de convivência clínica, de impacto.
Marcus - Mas é também uma intervenção pedagógica. Ao falar da forma que lida, orienta os
estagiários, cada supervisor com seu estilo próprio
“pai e mãe”, rígido, brando. Tem pessoas aqui
que precisam deslocar de posição, elas tentam
nos enrolar, se você não der uma dura, uma desorganizada... E é melhor que ela se desorganize
aqui, na supervisão... Às vezes alguém chora, pois
somos todos sujeitos psíquicos precários. A provocação é um pouco calculada, cada um recebe do
jeito que pode agüentar. Não nos interessa desestabilizar a posição defensiva, estas coisas têm um
certo cálculo, um manejo da aprendizagem, das
transferências, do rigor, do esforço da ética.
ções para não fazer, mas o que é que tem de ser
feito, o que deve ser feito? O que a psicose precisa que seja feito? Nossa proposta é assim: “faça
segundo a necessidade da psicose”, não precisa
a gente mandar, faça segundo a necessidade da
psicose, a psicose vai lhe interpelar, e, se ela lhe
interpelar e você estiver sustentando ativamente,
você não vai ter para onde correr. Você vai ter
Eduarda - Eles, os estagiários, trazem um inte- de entrar e vai ter de responder, ou vai se demitir,
resse muito grande, que vai além da nossa exigên- cair fora, você não vai ficar no meio termo. E norcia, nós conseguimos gerar, a partir do clima de malmente, de modo geral, a atitude das pessoas
equipe, um ambiente de altíssimo envolvimento.
é muito bacana, só não elogio demais, porque
senão estraga. Fico muito orgulhoso, a gente
Marcus - Trabalhamos e operamos com o con- nota, que pessoas bacanas, que aprendizagem,
ceito de autonomia radical. Talvez assim as pes- voluntária, gastando dinheiro do próprio bolso,
soas acreditem na minha autoridade, pela minha é pura transferência com o trabalho. O fato de
forma forte e dura, às vezes, de tratar os temas, estarem ali por escolha facilita, porque permite
mas o grau de autonomia com que as pessoas que você tenha uma equipe ali que está a fim. A
operam é enorme, talvez seja essa a tensão, pois forma como a gente conseguiu criar o ambiente,
as pessoas operam com muita autonomia. A or- sem institucionalizações, mas muito nessa idéia:
ganização da dinâmica do atendimento é muito “tem de fazer aquilo que a psicose exige”. O que
por conta dos estagiários. Nós supervisionamos,
naturalmente. A avaliação é feita a partir da mudança de atitude, a fala, como falam com o paciente, o desenvolvimento psíquico do paciente,
a mudança no pensamento clínico, tudo. Um
alto grau de envolvimento, comprometimento.
A aprendizagem principal, que tudo move, é da
perspectiva ética. Uma perspectiva ética de abertura, de generosidade, de compreensão que esse
é o serviço, que eu posso até não querer fazer o
serviço, mas entender que esse é o serviço, isso é
que tem de ser feito. Tá certo que essa é a clínica,
eu posso achar pretextos, justificativas, explica33
mais fáceis de a gente dizer, né? A gente achou
um jeito, criou umas regras assim, tem uma idéia.
Mas essa coisa de dupla, por exemplo, é uma coisa fundamental. Hoje, não faria de outro jeito. Tá
certo, não sei se funcionaria de outro jeito. Trabalhamos em dupla, sempre que possível, duplas de
T.O. e Psicologia. Depois criamos uma coisa assim: dois pacientes com uma mesma dupla, e um
terceiro com uma dupla diferente, para criar alteEduarda -Tem alunas para as quais o estágio ridade. Porque três pacientes com a mesma dupla
significa, pela primeira vez, ter contato com as cria um vício na dupla. Para comparar: quando
realidades sociais muito duras, tem um aspecto eu trabalho com fulano, é assim; quando eu tramuito duro. Moças muitas vezes preservadas, que balho com cicrano, é de uma forma diferente. A
são de famílias de classe média, fazem cursos química das duplas é diferente na abordagem, na
pró-ativos, e as pessoas herdam essa generosi- atitude, na aprendizagem. A história das duplas,
dade. Pois esta coisa de terapia ocupacional e acho que traz assim, suporte recíproco para elas,
psicologia não vai dar dinheiro, mas você já tem o fato de estarem acompanhadas, a questão do
uma certa direção generosa, são pessoas protegi- testemunho, feedback, pensar junto, testemunhar
das socialmente. Para algumas delas, é a primeira o desenvolvimento e a dificuldade do outro. Envez que vão se expor à vida da pobreza, da de- tão, eu acho que o fato de fazer em duplas criou
sigualdade social, da miséria. Então, no final, há uma química interessante do programa. Não faria
um discurso como - “foi uma lição de vida” muito diferente, até porque o manejo, uma vai cuidar da
importante. Há casos das estagiárias que expres- mãe, elas vão se dividir, pois estão lidando com
sam não estar suportando a situação de vida/ transferências múltiplas, transversais, as pessoas
miséria de certo paciente, então a gente altera, podem se aproximar, fazer um revezamento.
inclui mais um na dupla/trio, e recua aquele que
Mas a troca destas duplas a cada semestre não
não está suportando.
cria dificuldades?
E a história de se trabalhar em dupla?
Marcus - Uma das nossas descobertas mais inMarcus - Na verdade, é outra sacação, tudo teressantes colocou em xeque uma das questões
assim, muito empírico. Na verdade, no primeiro centrais do programa que era a questão da psicosemestre foi muito difícil, porque a gente tinha de se, a questão vincular. Então, nosso eixo, nosso diinventar o programa. Algumas idéias agora ficam álogo, nosso enfrentamento de pensar a psicose,
é a clínica? Fazer o que a psicose exige. Na supervisão, orientamos assim: você está atendendo
o que a psicose está exigindo, o que é que o caso
está pedindo? O caso pede, você faz; ou você se
demite ou você atende. Eles são os responsáveis
pelo caso, são eles que devem prestar conta, são
eles que estão em contato com o paciente, às vezes, três vezes por semana.
34
que expressa uma dificuldade de pertencimento
social, de laço social, da condição de ser sócio da
sociedade. Então, a questão vincular passa a ser
para nós como uma questão de manejo delicado
na psicose, vínculo e manejo em todo lugar (filho,
pai, mãe, professor, aluno, etc). A psicose exige
uma delicadeza no manejo clínico. E o fato de o
paciente psicótico ser um sujeito, às vezes, refratário ou narcísico, no investimento vincular, torna
a questão de, de seis em seis meses, trocar as
pessoas um problema. Então, a cada seis meses,
nós vivemos um processo de reconstrução da relação vincular com as novas duplas. Então, esse é
um exercício que não era intencional, mas propõe
marcar uma transferência não com o sujeito, mas
com o lugar do outro, com o lugar de cuidador.
Então, eu acho que isso é uma coisa bacana, que
a gente precisa desenvolver teoricamente, porque boa parte dos pacientes tem ficado pacíficos,
não são todos, têm alguns que problematizam o
enigma vincular, para eles é muito radical. Vários
pacientes estão entrando numa um pouco assim:
“não quero nem saber, eu sei que tem alguém
aqui comigo. Se vai embora, fico com saudade,
mas vem outra pessoa e do que eu sei é que estou me dando bem, que tem alguém cuidando de
mim, preocupado comigo, com uma atitude boa
comigo, que me faz bem”. Entendeu? Como se
fosse uma espécie de treino psicótico com a questão dessa alteridade do vínculo, que seria uma
questão emblematicamente séria dos núcleos centrais da psicose. Até o fato de ter, de seis em seis
meses, de mudar de dupla, que pode ser, para alguns, um obstáculo, impossível. Como o paciente
não vai poder se vincular?! Ele vai construir uma
história, ele vai ter uma oportunidade de construir
uma não, 5, 6, 12, várias histórias vinculares, em
um curto espaço de tempo, com pessoas que têm
um zelo, um cuidado vincular, pessoas que estão
postas numa relação vincular, no lugar de alteridade, delicadeza com eles. Então, é como se
fosse (estou pensando nisso agora) uma espécie
de treino para o manejo desse enigma. Às vezes
dizem que o psicótico aprende de ouvido, que ele
não tem o outro dentro. Ele pode treinar que o
outro existe, que o outro tem certo modo de operação e que ele pode se adequar a isso, e a vida
pode ser menos tensa.
Como vocês vêem a possibilidade do programa, ao invés de ser um estágio, ser um trabalho permanente, de ele se tornar um recurso
desenvolvido dentro do CAPS?
Marcus - Na verdade, eu acho, a gente acha
que isso deveria ser não um programa, mas que
isso deveria ser uma orientação teórica, metodológica, técnica e ética para o trabalho com a
clínica psicossocial no interior dos CAPS. Na realidade, a gente acha, porque a gente não está
no CAPS, porque esse seria o trabalho do CAPS.
A gente está no Mário Leal, com essa condição
de ser uma unidade de internação, e por quê?
Porque nós queremos desenvolver uma metodologia com determinados arcabouços de interpretação teórica, a gente quer desenvolver uma
certa metodologia que possa ser orientadora da
ação clínica. Nós temos certeza de que estamos
35
preparando pessoas para trabalharem no CAPS.
Aqui, a turma daqui vai chegar ao CAPS e vai dar
show, show de atitude, de postura, de manejo, de
depoimento do que está fazendo na vida, show
de clínica. Pode não estar tão afiado do ponto de
vista da perícia técnica, da clínica, porque isso
exige muito treino, muita bagagem. Eles são éticos, fundamentalmente pela postura, pela atitude, na presença, na interpretação do fenômeno,
do jogo de cintura, da capacidade de movimentar-se no setting. Aos profissionais que atuam no
CAPS falta, muitas vezes, esse preparo prévio, o
saber se movimentar, saber sair para a rua, para
a cidade, saber juntar muita gente: eles têm medo
de misturar, tá certo? A turma aqui não tem medo
de misturar. Em uma situação de crise, as meninas
são muito bem resolvidas, escutam: tá delirando?
Estão lá dentro da casa com a família, calma aí,
sem alarmar, sem tragédia, com uma desenvoltura.
Eduarda – E, às vezes, a experiência do CAPS
é a de ficar esperando do paciente demanda espontânea. O paciente em crise, o CAPS fala “não,
não vai lá, que ele está em crise”. As meninas dizem “não, porque, se ele está em crise, é que a
gente precisa estar lá”; porque este treino de seis
meses dá essa perspectiva. Eu tenho certeza de
que nós estamos preparando recursos humanos
para trabalharem na Reforma Psiquiátrica, para
trabalharem no CAPS. O recurso básico, o recurso é isso, nem tinha essa pretensão toda. Aqui as
pessoas estão passando por uma formação que
tem pontos mais fortes, pontos altos, tem defici36
ências, certamente, coisas que Marcus e eu dominamos pouco.
Marcus - É muita coisa, o campo é múltiplo
demais, e, dentro do que a gente conseguiu sistematizar, a gente tem um roteiro de direção que
tem um clima de muita dedicação e interesse. As
pessoas estão atentas, estão interessadas, há uma
sintonia “quem o pode mais, pode o menos”. Se
esta atitude clínica desenvolvida aqui e voltada
para a psicose é o que mais desafia a clínica da
reforma psiquiátrica, eu acredito que, no futuro,
com treino especifico, nós poderemos ter bons
terapeutas para as outras clínicas, para CAPSI,
CAPS AD. A atitude principal que as pessoas adquirem, depois do treinamento específico que nós
damos, centrado na questão da psicose, lhes permitirá uma atitude clínica bastante diferenciada.
Artigos de crença
Alguns artigos de crença...
A
relação entre teoria e prática é, certamente,
uma questão central quando se trata do preparo para o trabalho com a coisa mental. Este
preparo envolve um tipo de treinamento no qual
o exercício do encontro empírico com o fenômeno mental deve se articular com a administração
da teoria. Não pode haver dúvidas em relação
ao lugar ocupado pela teoria nesse processo. Um
repertório teórico amplo e diverso deve estar à
disposição como pensamento disponível para iluminar este encontro. Somente assim a teoria pode
encarnar-se, ganhar as dimensões singulares de
uma aprendizagem subjetiva que define o estilo
de cada um que deseja ocupar este lugar de um
agente profissional de cuidados às pessoas que
demandam tal atenção. O encontro clínico que
ensina é aquele em que a mediação da teoria
ajuda a romper com a especularidade que marca
a relação entre dois sujeitos, introduzindo aí um
terceiro através da dimensão simbólica representada pela teoria. Mas é preciso cuidar para que
a teoria não assuma o governo desse encontro,
aviltando as dimensões complexas da realidade
empírica, pretendendo reduzir às categorias do
pensamento, os aquecidos fenômenos subjetivos
com os quais lida. Entendemos que todos os sujeitos que trabalham com a clínica têm a obrigação de responder à interpelação acerca dos seus
motivos de agir: como entendem o fenômeno que
trata e como o tratam. Todo sujeito tem a obrigação de explicitar as razões do seu fazer clínico,
ainda que ao modo de uma reconstrução que se
faz à posteriori da intervenção. Todavia, sem o
encontro empírico, é impossível apreender a clínica. Não há leitura teórica que possa prescindir
da experiência quando se trata de construir um
saber clínico de tipo intelectual, mas, sobretudo,
subjetivo. Tampouco podemos prescindir nessa
tarefa da companhia do Outro. Do outro mais experiente, e sempre haverá alguém mais experiente
ou com uma outra experiência, que nos cuidará
subjetivo, que nos escutará numa supervisão, que
nos transmitirá conhecimento num seminário ou
curso. De muitos outros colhi, ao longo do caminho, no esforço de produzir a minha sistematização, formas de entender, formas de explicar,
em nome das quais, hoje coordeno este projeto
de preparo para futuros trabalhadores de saúde mental. Nestes “artigos de crença”, explicito
as minhas fragmentárias construções, a partir da
quais tenho buscado criar pontos de partida para
as interrogações daqueles pelos quais academicamente sou responsável por orientar e que esperam de mim que eu seja uma boa companhia no
seu processo de iniciação. Através destes, textos,
aulas transcritas e notas de trabalho vão registrando um pensamento que se sabe, sempre, apenas
uma expressão nas fronteiras da ignorância. Mas,
por hora, é isso o que eu tenho oferecido.
Marcus Vinícius de Oliveira Silva
39
A CLÍNICA INTEGRAL:
O PARADIGMA “PSICOSSOCIAL” COMO UMA EXIGÊNCIA
DA CLÍNICA DAS PSICOSES
*Marcus Vinícius de Oliveira Silva
O
programa de atenção psicossocial a pacientes psicóticos com histórico de internações
psiquiátricas, marcados pela condição de início
da carreira manicomial (com vistas a sua interceptação) ou pela grande freqüência de internações motivadas por situações de fragilidade social
está baseado no conceito de “intensificação de
cuidados”, que decorre de uma compreensão das
necessidades clínicas de natureza “psicossocial”
presentes nessas situações e que, de um modo
geral, são negligenciadas pelos modos tradicionais de organização da oferta de assistência
aos mesmos¹. Por “intensificação de cuidados”,
compreende-se um conjunto de procedimentos
terapêuticos e sociais direcionados ao indivíduo
e/ou ao seu grupo social mais próximo, visando
o fortalecimento dos vínculos e a potencialização
* Psicólogo, Doutor em Saúde Coletiva IMS/UERJ, Professor Adjunto da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA, Coordenador do Laboratório de Estudos Vinculares e Saúde Mental do
Departamento de Psicologia da UFBA, Criador e Supervisor do PIC - Programa de Cuidados Intensivos
a Pacientes Psicóticos.
40
das redes sociais de sua relação, bem como o estabelecimento destas nos casos de desfiliação ou
forte precarização dos vínculos que lhes dão sustentação na sociedade. De caráter ativo, a “intensificação de cuidados” trabalha na lógica do “um
por um” e pretende colher o indivíduo no contexto de sua vida familiar e social, estabelecendo
um diagnóstico que respeite a complexidade de
cada caso em suas peculiaridades psíquicas e sociais. Baseada em visitas domiciliares regulares,
de prospecção e intervenção, a “intensificação de
cuidados” oferece desde os recursos terapêuticos
tradicionais até o assessoramento existencial do
qual os sujeitos psicóticos carecem, com vistas a
contribuir para o processo de re-organização de
suas vidas, para o enfrentamento das tendências
socialmente expulsivas motivadoras das re-internações freqüentes. Como elemento de suporte e
de organização do programa, a “intensificação
de cuidados” investe na produção de novos espaços de sociabilidade, sustentados no interior da
instituição, criando dispositivos coletivos de aco40
lhimento e convivência através da “grupalização”
dos sujeitos, bem como para os seus familiares,
apostando no poder do vínculo social como um
elemento fundamental da “continência psíquica”.
Como pressuposto e justificativa fundamental de
tal perspectiva, temos a compreensão de que, antes de se constituir como “doença mental” e ser
inscrita como um fato médico, a psicose, interpretada como loucura, caracteriza-se por ser um
fato social. Torná-la médica não retirou dela sua
condição de ser um fato social, mas a reinscreveu
numa certa perspectiva reducionista cujos únicos
beneficiários são certas instâncias de poder social
das quais os sujeitos loucos não participam ou
usufruem. O ponto de corte para a construção
do comportamento bizarro ou desviante como
alvo das intervenções psiquiátricas, sobretudo na
geração das demandas de internações, situa-se
antes em marcadores sociais do que em marcadores clínicos ou da sintomatologia estritamente
psíquica. Todo fato psíquico é um fato social. Não
existe fato psíquico que não se inscreva como fato
social. Não existe fato social que não se inscreva como psiquismo. A “loucura” ou a “psicose”
como fato psíquico encontra-se marcada pela
condição de ser um fato social estridente e significativo. Somente quando os sintomas interferem
na ordem social de forma relevante, o sujeito será
inscrito no quadro do desvio psiquiátrico, sobretudo quando afetadas as suas qualidades de autoregulação, autonomia pessoal e/ou econômica ou
de perturbação da ordem. Não que os elementos
de alteração do funcionamento psíquico deixem
de ser relevantes na definição da gravidade dos
casos psiquiátricos, mas apenas quando essas alterações ultrapassam um certo patamar da crítica
social, os encaminhamentos dos casos os direcionam na busca de ajuda e, mais especificamente,
na demanda de internações. Portanto pode-se
considerar que, nos casos denominados como
“urgências psiquiátricas” e que demandam internações, ao lado dos seus componentes psíquicos,
encontram-se envolvidos vultosos elementos de
administração de situações sociais complexas que
não são compatíveis com as simplificações analíticas e institucionais mormente encontradas na
estruturação dos dispositivos clínicos tradicionalmente disponíveis. Portanto o paradigma da clínica psicossocial das psicoses pretende devolver à
clinica a condição de operar com a complexidade
do seu objeto, manejando um conjunto heterodoxo de recursos e possibilidades que extrapolam
os limites disciplinares, acadêmicos e/ou corporativos que, tradicionalmente, moldaram de forma
reducionista os fenômenos sobre os quais pretende intervir, de modo a submetê-los às conveniências protocolares das instituições.
1- Os ambulatórios que não “ambulam” e oferecem consultas episódicas e intermitentes, com dispensa
insensível de psicofármacos, desresponsabilizando-se pelo conjunto complexo da vida dos sujeitos, que
seguem completamente à margem da abordagem médico-psicológica; as internações psiquiátricas que
somente intervêm se “responsabilizando” pelos sujeitos pela via da tutela, e, para tal, os seqüestram
da vida social por períodos longos, para, em seguida, devolvê-los a sua própria sorte, sem nenhum
tipo de acompanhamento; as emergências psiquiátricas que respondem quase que exclusivamente
pelo pico das situações de crise, sem nenhum compromisso com os casos que transcenda o mero
encaminhamento para os primeiros ou para os segundos.
41
Loucura, Cultura, Instituição e Sociedade1
Marcus Vinicius de Oliveira Silva*
H
oje, graças aos estudos de alguns autores da
história social da loucura, do manicômio e
da psiquiatria, tais como Foucault, Rosen e Castel, pelo menos no plano teórico, está solidamente
estabelecida a compreensão de que os transtornos mentais e emocionais sempre estiveram associados à noção de doença mental de forma tão
exclusiva como ocorre contemporaneamente.
A antiguidade judaica e greco-romana, por
exemplo, parece ter construído uma interpretação complexa desses fenômenos, relacionados
às condutas impulsivas, desordenadas, incomuns,
irracionais, que, reunidas sob o signo da loucura, comportavam variadas explicações acerca de
suas origens e de suas significações. Tais sistemas
de signos e de significados eram, por sua vez, ma*Texto extraído da Dissertação de Mestrado do autor. “A emergência da cultura Psicologica na Bahia;
ISC/UFBA, 1995, Salvador, Bahia.
2 - Psicólogo, Doutor em Saúde Coletiva ISC/UFBA, Professor Adjunto da Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas da UFBA, Coordenador do Laboratório de Estudos Vinculares e Saúde Mental do
Departamento de psicologia da UFBA, Criador e Supervisor do PIC - Programa de Cuidados Intensivos
a Pacientes Psicóticos.
42
nejados socialmente através de práticas institucionalizadas vinculadas a diferentes aspectos da vida
social: jurídicos, artísticos, religiosos, etc. (Rosen,
1968; Pelbart, 1989).
Aparentemente trans-histórica, trans-cultural, a
percepção da loucura, do transtorno como alteridade que chama atenção do grupo social no qual
se insere parece ser uma constante. Como afirma
Rosen:
“cada sociedad identifica ciertas formas de
conducta aberrante o extrema, como el transtorno
mental o locura. Em otras palabras, em la línea de
la conducta humana, desde aquello que uma sociedad considera normal hasta lo que juzga anormal, hay algun tramo em que surge uma critica
social y el individuo comienza a ser considerado
loco... la valorizacion de tales indivíduos y de su
conducta por parte de los miembros de la comunidad y su aceptacion como simplesmente excêntricos dentro de los limites socialmente toler ables,
dependerá de vários factores. Uno grupo de ellos
incluye el estilo y la coherencia de tal comporta-
miento, su orientacion respecto de la realidad, y
tambien la existência de instituiciones sociales que
hacen possible que esos indivíduos cumplan alguna funcion acetable”. (Rosen, 1968, pg 162).
Diferenciação! ... Alteridade frente a uma
norma social, em relação a qual ela é sempre
transbordante em algum aspecto: tal parece ser a
marca registrada da loucura! E é exatamente essa
condição de alteridade frente à sociedade instituída que “obriga” a mesma sociedade a reconhecer o distúrbio mental enquanto tal, instituindo os
signos e as práticas que deverão mediar o seu
relacionamento para com ele. Foucault comenta:
“Pareceria, sem dúvida, inicialmente que não
existe cultura que não seja sensível, na conduta
e na linguagem dos homens, a certos fenômenos
com relação aos quais a sociedade toma uma
atitude particular: estes homens, nem completamente como doentes, nem completamente como
criminosos, nem feiticeiros, nem inteiramente também pessoas comuns. Há algo neles que fala da
diferença e chama a diferenciação...” (Foucault,
1975, pg 87).
Assim, a loucura e os loucos parecem colocar,
de forma prática, uma série de questões a serem
“elaboradas” e “respondidas”, “na conduta e na
linguagem”, pelas comunidades nas quais eles
têm sua existência, derivando daí a possibilidade
de distinguirmos dois níveis solidários entre si e
de perspectiva relativizadora no processo de institucionalização das relações entre sociedade e
loucura.
Num deles, poderíamos agrupar aquele conjunto de questões que se inscrevem no campo
das Representações Sociais e que, de características simbólico-cognitivo-perceptuais, referem-se
à institucionalização de um conjunto de idéias,
signos e valores associados à loucura. Essa seria
aquela dimensão do processo de institucionalização da sociedade ao qual Castoriadis denomina
em seu ensaio “A instituição Imaginária da Sociedade” como a dimensão de “LEGEIN”: um momento fundamental do processo de instituição da
sociedade, âmbito das operações por meio das
quais o mundo social ordena-se através da lógica
Conjuntista Identitária, protótipo das operações
lógicas mais comuns na estruturação do nosso
pensamento ocidental, constituindo-se este leigein, segundo ele, em “uma dimensão essencial
e ineliminável, não apenas da linguagem, mas de
toda a vida e de toda atividade social” (Castoriadis, 1986, pg 260).
Tentemos, pois, esclarecer um pouco mais
essa dimensão. Segundo Castoriadis, é impossível pensarmos a nossa sociedade fora do referencial conjuntista que estrutura logicamente a
nossa percepção dos variados entes existentes no
mundo. E para podermos falar de um conjunto ou
para pensarmos um conjunto, é preciso recorrer
às operações que, se hoje são distintas para nós,
no grego antigo se incluíam na compreensão de
um único termo, no caso “leigein”, evidenciando
um tipo de unidade perceptiva da realidade que
enfatiza sua dimensão descritiva:
Distinguir-escolher-estabelecer-juntar-contardizer. Objetos, coisas, pessoas, tais são as operações fundamentais e essenciais do “leigein”:
“condição e ao mesmo tempo criação da socie43
dade, condição criada por aquilo mesmo que ela
condiciona. Para que a sociedade possa existir,
para que uma linguagem possa ser instaurada e
funcionar, para que uma prática refletida possa
desenvolver-se, para que os homens possam relacionar-se uns com os outros de maneira que não
no fantasma, é preciso que de uma forma ou de
outra, em determinado nível, em determinada camada ou extrato do fazer e do representar social
tudo possa tornar-se congruente com o que a definição (de conjunto) de Cantor implica...” (Castoriadis, opus cit).
Ou seja, a possibilidade da instituição da sociedade humana tem como pressuposto um modelo
lógico em que tudo seja consoante com a célebre
definição de conjuntos proposta pelo eminente
filósofo-matemático: “um conjunto é uma coleção em um todo de objetos definidos e distintos
de nossa opinião ou de nosso pensamento. Esses elementos são denominados os elementos do
conjunto” (Castor, apud Castoriadis Opus. cit).
O que o autor pretende ressaltar daí é a importância da idéia de que a instituição da sociedade, o ordenamento da sociedade como uma
(singular), e não como outra qualquer, pressupõe
as operações conjuntizadoras-distinguidoras-hierarquizadoras, pois o fazer/representar social,
base e suposto do processo de instituição da sociedade, pressupõe e se refere à existência de objetos percebidos como distintos e definidos, que
podem ser reunidos e formar todos, componíveis
e decomponíveis, definíveis por suas propriedades
determinadas e servindo de suporte à definição
dessas mesmas propriedades.
44
Limitados pelas necessidades próprias deste
texto a um aprofundamento na densa reflexão
que esse autor propõe no seu projeto de compreensão acerca do modo pelo qual se institui a
sociedade humana, pensamos que evocá-la aqui
ganha sentido, quando referido ao nosso interesse
de pensarmos a institucionalização das relações
entre sociedade e loucura, destacando a questão
das Representações Sociais que se constroem sobre a mesma, enquanto um momento fundamental de “ancoragem” dos elementos instituídos que
a referenciam.
Nesse sentido, ganha relevância a identificação dos signos utilizados para a definição do
que seja a loucura, as interpretações acerca das
suas origens enquanto fenômeno que se destaca
da normalidade social, a construção dos critérios
de identificação dos “atingidos”, as definições
das características e possibilidades que lhe são
associadas, dos vários códigos e regras relacionais com os loucos, a interação desses códigos
e regras com os diversos planos da vida social
(moral, jurídico, religioso, profissionais, etc.) definindo pelo menos parcialmente, (nas palavras),
um lugar para a loucura e os loucos no interior
da sociedade...
Se partirmos das teorizações do sociólogo-psicanalista E. Jaques acerca do papel das instituições enquanto “sistemas defensivos” contra as angústias persecutórias e as ansiedades depressivas
provocadas pelas incertezas referentes ao futuro,
podemos pensar que a loucura, na sua essência,
enquanto aquilo que transborda, enquanto registro de imprevisibilidade que foge a todas as nor-
mas sociais, coloca uma “exigência” de signos e
práticas capazes de neutralizá-la enquanto ameaça, estranhamento, diferenciação: nomeá-la e
inscrevê-la em algum conjunto de fenômenos,
abrindo as portas para as definições operativas
que se consubstanciam nas práticas instituídas
para o seu manejo social enquanto uma exigência para a sua suportação e manejo social da sua
presença. (Elliot, Jaques, s/d).
Tal seria, portanto, a outra dimensão em que
poderíamos distinguir, na teorização de Castoriadis, o segundo nível desse processo de institucionalização das relações sociedade/loucura, que
alude àquele grupo de questões que se inscrevem
exatamente no campo das “atitudes”, do “fazer
social” e referem-se à institucionalização das práticas através das quais a sociedade deverá se relacionar com a loucura segundo as definições que
ela tenha estabelecido para a mesma.
Mantendo-nos, por coerência, no mesmo registro da teorização proposta pelo já citado filósofo grego para a interpretação do processo de
instituição da sociedade, encontraríamos para
essa dimensão a denominação grega antiga de
“teukhein”: juntar-ajustar-fabricar-construir. (Castoriadis, opus cit.).
“Fazer ser como... a partir de... de maneira
apropriada a... com vistas a...” se o “leigein” é
a dimensão conjuntista-conjuntizante do representar/dizer social, o theukein corresponde à dimensão conjuntista conjuntizante do fazer social.
Divisão a partir da qual se instaura, mediante
uma instituição da realidade, uma nova divisão,
além das do ser/não ser, valer/não valer própria
do “leigein”: as do que seria possível/impossível,
factível/não factível no âmbito dessa mesma sociedade.
Dessa forma, no plano do fazer social, a realidade é instituída não apenas pelas suas possibilidades “técnicas” de realização, mas também pela
própria inscrição do fazer social no âmbito do que
é “admissível como possível” pela sociedade.
“Assim, sociedade e indivíduos vivem e funcionam toda vez na representação obrigatória de
‘possíveis’ e de ‘impossíveis’ pré-constituídos, isto
é, no estabelecimento imaginário de uma realidade cujo seio a fronteira entre o ‘possível’ e ‘impossível’ seria (mesmo que objetivamente assim não
o seja) rigorosamente delineada em definitivo; e
desde sempre. O próprio possível é assim estabelecido como o determinado (o que é, de cada vez,
possível e o que não o é, é definido e distinto); assim como são estabelecidos como determinados
os meios, instrumentos, procedimentos, formas de
fazer que o transformam em atual efetivo...” (Castoriadis, opus cit. pg304s).
Dimensões inalienáveis uma da outra, o teukein
implica intrinsecamente o leigein, remetendo-se
uma ao outro, reciprocamente, num movimento
de circularidade, não cabendo uma discussão sobre a primazia de uma das dimensões sobre a
outra. (Se a palavra, a designação precede o instrumento, a técnica ou o inverso).
Para dar um exemplo, na nossa cultura baiana,
diante de uma manifestação paroxística em um
sujeito, marcada por espasmos, tremores, descontrole motor, inconsciência, dentre outros, dois
45
signos, dentre outros, poderiam igualmente emergir interpretando-a e/ou nomeando-a com igual
propriedade: se o sujeito observador for vinculado ao universo da cultura médica, interpretará o
fato como “epilepsia”, mas caso já seja adepto do
candomblé, possivelmente diagnosticará como
um efeito de “santo”, identificando uma situação
de possessão. E, em cada uma dessas situações,
já estará incluída no ato da nomeação que faz
o observador a indicação de um tipo de ação a
ser desenvolvida, bem como os agentes, meios e
estabelecimentos capazes de oferecer-lhe resposta. Se a epilepsia, uma ação de caráter médico,
com uso de fármacos, em um estabelecimento de
saúde. Se santo, uma ação religiosa, via um sacerdote afro, em uma casa de candomblé.
Nesse sentido, poderíamos dizer, retomando a
questão relativa à institucionalização das relações
sociedade/loucura, que, ao mesmo tempo em
que a Sociedade conjuntiza-identifica a loucura e
os loucos, distinguindo-os/escolhendo-os/estabelecendo-os/juntando-os/contando-os/dizendoos; ela estabelece o conjunto das possibilidades
para que eles “sejam” no âmbito desta mesma
sociedade, definindo as factibilidades da sua existência, em coerência com as definições já pré-definidas em algum momento inaugural, marcado
pela criação social (Castoriadis, 1986r pg 225).
Patrocinar a Loucura no âmbito de uma valorização ritual, buscar a reversão das suas manifestações através de encantamentos ou lobotomias,
regular a sua presença ou controlá-la através de
tal ou qual instrumento, técnica ou instituição,
corresponderia, nessa perspectiva, mais do que
46
a uma escolha definida pelo grau de evolução
da técnica ou do conhecimento (ainda que objetivamente também o possa ser) a uma definição
do admitido como o possível para a loucura no
âmbito de uma dada sociedade.
Posta tal reflexão, entendemos estar indicando
um caminho para analisarmos numa ótica relativizadora os processos sócio-históricos que, a partir do século XVIII, alteraram os modos instituídos
de relacionamento sociedade/loucura, criando as
condições para a emergência de um novo “paradigma” estruturador dessa relação, que permanece até hoje como “matriz”, ditando as definições
sobre seu modo de ser.
A INVENÇÃO DO NOVO DISPOSITIVO
Vários esforços, alguns magníficos, têm estabelecido com riqueza de detalhes, a natureza desse
processo, as suas cronologias, seus momentos
fundamentais. (Foucault, 1978; Castel, 1978; Rosen, 1974; Birman, 1978). Não se trata, portanto,
de correr o risco de refazê-lo aqui apressadamente, empobrecendo a descrição já traçada.
Os vários pesquisadores que se debruçaram
sobre a tarefa de elucidação de uma história
social da loucura, mesmo diferenciando-se em
relação às bases teórico-metodológicas que fundamentam as suas pesquisas, são unânimes ao
assinalarem as profundas transformações operadas nestas relações nos fins do Séc. XVIII, que culminaram com o advento de uma Medicina Mental
cujo florescimento teve como palco a sociedade
francesa pós-revolucionária e que lança os fundamentos estruturais daquilo que viria a se constituir como a Psiquiatria Moderna (Foucault, 1978;
Castel, 1978).
Significativamente, a partir do Séc. XVIII, em virtude de certas condições historicamente estabelecidas, relativas ao processo de transformações sociais, econômicas e políticas que caracterizaram
o advento da sociedade industrial, refletindo-se
num processo de “mercantilização da existência”,
na questão constituída pela presença dos loucos
na vida sócio-comunitária, ocorreria um deslocamento que, empobrecendo a diversidade das
representações sociais acerca da loucura vigentes
na época, iria beneficiar uma outra questão, que,
pragmaticamente, se colocou de forma proeminente: o que fazer com os loucos?
Vários são os indícios de que tal questão tenha estado implícita e explicitamente colocada.
A loucura que estivera silenciada desde os fins do
Séc XVI, submersa no oceano de miserabilidade
que marcou o processo de constituição das grandes metrópoles européias, retorna nesse séc. XVIII
alguma coisa do tom trágico e ameaçador que
caracterizava a percepção da mesma ao final da
Idade Média, início do Renascimento.
Algo como o prenúncio de que aquele movimento que Foucault descreve como “a grande internação” – dramática resposta social frente ao desagregamento da ordem feudal e que se constitui,
segundo esse autor, na multiplicação dos espaços
de acolhimento/internação da pobreza, da doença, do desvio e do crime – já não era capaz de resolver, na indiferenciação, a problemática relativa
à presença social da loucura que aí estivera até
então, anonimamente inclusa e desapercebida.
Sintomaticamente, como registra ainda Foucault,
faz parte do discurso desse século um repetido
alarme de que a loucura estivesse aumentando,
mesmo que nenhuma evidência houvesse acerca
de qualquer efetivo aumento dos loucos que fosse
maior do que o aumento da população em geral
(Foucault, 1978, pg. 385).
Aparentemente, muito antes que na pré-aurora do século XIX (1792), o gesto mítico de Pinel
viesse reivindicar uma separação dos loucos daquela corja sórdida que infestava os espaços da
internação, o desenvolvimento lento de uma nova
sensibilidade frente à presença social da loucura
já lhe vinha diferenciando durante todo o transcorrer daquele século.
As razões do desenvolvimento da nova sensibilidade e das respectivas mudanças na atitude
social em relação à loucura, que tiveram lugar na
Europa da época, podem ser analisadas e compreendidas como resultantes de uma conjunção
de fatores sócio-econômicos, filosóficos e morais,
que apenas rapidamente vamos situar.
Sinteticamente, poderíamos dizer que esse século gesta e prepara, ao lado da revolução nas
técnicas produtivas, uma nova definição social da
realidade e do ser, que emergiriam como instintuintes das significações fundamentais que ainda
hoje orientam as nossas concepções acerca da
sociedade. A idéia do trabalho como fonte de riqueza, da razão como guia do conhecimento e
do comportamento, do caráter laico do poder
político são, sem dúvida, algumas das mais sig47
nificativas.
A nova sociedade que se projetava e buscava
instituir-se requeria uma nova representação dos
seus membros. Assim, ela os “idealizava” com um
novo dimensionamento da alteridade, ditada pelo
desenvolvimento da noção da individualidade.
Como afirma Barbu:
“el individualismo económico y político, el individualismo religioso a partir de la Reforma, así
como el individualismo en el arte, que comenzó
con el Renacimiento y culminó con el Romantismo, constituyen rasgos básicos en las pautas culturales de las sociedades de Occidente (Barbu,
1962, pg.10).
Projetando os seus membros como indivíduos,
sujeitos da razão, previsíveis, regulares, agenciáveis e confiáveis enquanto agentes econômicos,
a nova sociedade que se inaugurava, fatalmente
teve que se colocar a questão do “que fazer?”
com aqueles seus membros que não poderiam ser
“conjuntizáveis” a partir dessas características. O
que fazer com aqueles seus membros que, marcados por uma condição de imprevisibilidade, de
incerteza não correspondiam às exigências formuladas para a pertinência ao conjunto de sujeitos
aos quais, nessa sociedade, poderia se dar uma
“existência” plena? Seria, portanto, em função de uma certa autorepresentação que a sociedade projetava para si
mesma, auto-representação, por sua vez, derivada daquelas significações imaginárias sociais a
partir das quais esta sociedade estava a instituir-se
a si mesma como sendo “esta” e não outra qualquer, que iria, portanto, se produzir, se delinear
48
um sub-conjunto de sujeitos sociais exclusos, que
colocariam um conjunto de exigências próprias,
diferenciadas, relativas à institucionalização de
um novo fazer social que pudesse dar conta da
sua condição. Não um fazer social qualquer, mas
um fazer social que oferecesse os meios e que tomasse especificamente a loucura como seu objeto
privilegiado de intervenção, garantindo um lugar
aceitável e admissível para ela, ao mesmo tempo
em que a neutralizasse em seus efeitos de alteridade radical, incômoda à nova ordem vigente.
Tal necessidade, entretanto, apesar de já vir
sendo murmurada ao longo do séc. XVIII, sob a
forma de uma crítica que já distinguia e questionava a presença da loucura no universo promíscuo
dos espaços de internação, nos quais ela se encontrava incluída, só ganharia contornos de uma
exigência clara e explícita na conjuntura sóciopolítica característica do advento da Revolução
Francesa, ambiente no qual tal situação receberia
o seu equacionamento paradigmático.
Efetivamente, seria diante do valor da cidadania, emergente no quadro revolucionário francês
como a afirmação de uma nova possibilidade de
representação dos sujeitos frente ao Estado, definidora de um novo conjunto de direitos e deveres
do cidadão, decorrentes do novo pacto político
que se instituía em torno do ideal da contratualidade, que a loucura teria definida para si uma
condição de exceção frente aos direitos e deveres
aí definidos, fazendo presente a exigência de um
novo fazer social capaz de equacionar a sua presença enquanto uma situação política excepcional (Castel, 1978).
E seria como resposta a tal busca que, percorrendo complexos caminhos nos quais se combinaram os termos da episteme racional-iluminista,
certas exigências políticas estatais de gestão social e a disponibilidade de certos agentes sociais
para assumirem negociadamente a condição de
operadores práticos de uma nova solução para
a questão da presença social da loucura, que a
solução médico-asilar se projetaria como a possibilidade de tal equacionamento.
Racionalizadora, num momento em que a
episteme Iluminista transpirava o ideal da razão
enquanto projeto de ordenação da vida social,
a solução manicomial proposta e executada pelos alienistas compatibilizava um conjunto de interesses diversificados, ao mesmo tempo em que
oferecia mais segurança e garantias que as alternativas pré-existentes na solução dos problemas
representados pela presença dos loucos na vida
sócio-comunitária.
Encaixando-se perfeitamente nas exigências do
emergente paradigma do direito contratual (substituto do direito real), tal solução respondia também adequadamente às novas exigências econômicas, jurídicas, disciplinares, correlatas a este
paradigma, a saber: a definição da capacidade
da auto-responsabilização individual frente ao
trabalho; a subsistência é a lei, como condição
do gozo dos novos direitos conquistados.
Como analisa Castel, a loucura e os loucos
dificilmente podiam ser reduzidos a tal projeto de
poder contratual e, ao ficarem fora dele, criavam
questionamentos embaraçosos, relativos à universalização da igualdade enquanto direito político,
fragilizando a posição instituinte do projeto de
poder dos revolucionários. Projeto de poder que
se encontrava naquele momento onerado pela
sua obrigação de demonstrar superioridade frente ao poder aristocrático ao qual se colocavam
como alternativa. Por outro lado, para resolver tal
problema, não se poderiam contrariar os demais
pressupostos ideológicos e jurídicos sobre os quais
se baseava esta nova sociedade política. Entre os
quais, aqueles que garantiam, por exemplo, que
ninguém seria preso, senão por desobediência à
lei, como figurava nos textos legais, representativos desses mesmos pressupostos (Castel, 1978).
Como justificar, portanto, a manutenção da
prática de internamento, odiada como representação do poder absolutista contra o qual se insurgia a revolução, agora abolido para todos, mas
excepcionalmente mantida como uma exclusividade para os loucos?
Pela análise de Castel, em resposta a esta questão, um grupo de higienistas e filantropos, dentre
os quais a história reservou lugar especial para
Pinel, se ofereceram ao Estado, estabelecendo as
bases de um novo tipo de poder sobre a loucura,
caracterizado pelas suas características periciais,
fundado numa justificativa técnica e apoiado no
poder da instituição médica. Converter os antigos
espaços na internação, local de amontoamento,
durante o século XVII, de toda ordem de desviantes sociais (miseráveis, criminosos, vagabundos,
dissidentes políticos, loucos, etc.) em instituições
de caráter médico, onde só os loucos restassem
a título de uma exigência terapêutica - tal foi a
tarefa à qual se propuseram.
49
Reuni-los em um mesmo lugar, neutralizados
sob uma mesma ordem (agora terapêutica e não
mais policial), abaixo um mesmo poder (agora
técnico e não mais político), constituindo-se no
projeto de alienismo, desencadeado pelo mítico
gesto de Phillipe Pinel, considerado o patrono
criador da psiquiatria.
Segurança para a ordem pública, garantia
de sossego para os familiares, racionalização de
procedimentos para o administrador, desresponsabilização para o legislador, desembaraço para
a autoridade jurídica policial, tais são alguns
elementos responsáveis pela ligeira aceitação e
institucionalização do modelo fundado na exclusão manicomial da loucura. E foi com base nessa
oportuna conjugação de interesses que a emergência da psiquiatria pôde criar não só o campo
institucional (o campo das instituições psiquiátricas), mas também um novo campo teórico técnico e sobretudo um novo falo sócio-cultural.
A definição de exclusão manicomial inerente
a este paradigma psiquiátrico, posto como modalidade fundamental de relacionamento social
com a loucura, ao conceder-lhe um alto grau de
eficiência prática como resposta à questão “do
que fazer com os loucos?”, iria produzir a sua legitimação social, colocando-lhe como centro da
convergência de um amplo e diversificado leque
de interesses sociais relativos à loucura, agora
convertida em doença mental. Pelo mesmo processo, colocaria também os seus agentes e instituições numa posição privilegiada, enquanto
“emissores” de uma recodificação e ressignificação das percepções sociais que envolvem a ques50
tão, condicionando através das suas enunciações
os conceitos de Saúde/Doença Mental.
Legitimado socialmente pela sua filiação ao
prestigiado campo técnico científico e, de forma
prática, pelo rigor da exclusão da loucura por ele
propiciada, legalizado precocemente pela astúcia política dos seus pioneiros, que garantiriam,
já em 1838, no texto da lei, as prerrogativas da
sua exclusividade, esse modelo médico-psiquiátrico impôs a sua hegemonia, estabelecendo como
subalternas todas as outras práticas, saberes,
ideologias pré-existentes, logrando identificar-se
como a única forma reconhecidamente idônea de
abordagem dos transtornos mentais.
Chancelado pelos critérios da racionalidade
técnico-científica, este dispositivo médico-psiquiátrico, desde então, não mais parou de se expandir
e de se inscrever nas mais diversas esferas da vida
social, desde o seu surgimento, no início do século
XIX, até os dias atuais, ampliando e diversificando
os seus espaços e objetivos de atuação: “primeiro
a loucura, depois a doença mental, os conflitos
emocionais, a vida psíquica, a saúde mental, o
comportamento humano, as inadaptações e insatisfações, etc, etc.” (Pinheiro, 1981).
Referências
1. Birman, Joel (1978) A psiquiatria como discurso da
moralidade. Edições Graal: Rio de Janeiro.
2. Castel, Robert (1978) O Psicanalismo. Edições Graal: Rio de Janeiro.
3. Castel, Robert (1978) A Ordem Psiquiátrica: A Idade
de Ouro do Alienismo. Edições Graal: Rio de Janeiro.
4. Castoriadis, Cornelius (1982) A Instituição Imaginária
da Sociedade. Ed Paz e Terra: Rio de Janeiro.
5. Foucaul, Michel (1975) Doença Mental e Psicologia.
Ed. Tempo Brasileiro Ltda: Rio de Janeiro
6. Foucaul, Michel (1978) História da Loucura. Ed. Perspectiva: São Paulo
7. Jaques, Elliot (s/d) Os Sistemas sociais como defesa
contra a ansiedade persecutória e depressiva: uma contribuição para o estudo psicanalítico dos processos sociais IN
Temas de Psicanálise Aplicada. (xerox, s/d ed.)
8. Pelbart, Peter P. (1989) Da Clausura do Fora ao Fora
da Clausura: Loucura e Desrazão. Ed. Brasiliense: São Paulo.
9. Rosen, George (1974) Loucura y Sociedad: Sociología
Histórica enfermedad Mental. Aliaza Editorial S/A, Madrid.
10. Pinheiro, Luiz H. Psiquiatra, Prof. Do departamento
de Neuropsiquiatria da FAMED/UFBA. Depoimento concedido em 27/01/80, transcrição.
51
Psicose e ressonâncias sociais
Marcus Vinicius de Oliveira Silva*1
V
ocês se lembram que, lá no começo, nós fizemos uma grande discussão que estabelecia
que o que, efetivamente, vai parar na porta da
emergência psiquiátrica decorre mais da crítica
social sobre aqueles comportamentos que parecem fora das regras pactuadas socialmente do
que do sofrimento do sujeito ou da sua situação
psíquica? Lembram-se disso? O que é que vai parar na porta da emergência psiquiátrica? O que
vem para nós como crise? O que aparece para
nós como crise são aqueles aspectos que causam
alguma ordem de estranheza e uma perturbação
social importante.
do chegar... Isso nós já falamos lá no começo,
eu só estou retomando, porque essa é a primeira
dedução da psicose como questão social. Estou
querendo dizer, inclusive, que, se a psicose não
se apresentar sob esse formato disfuncional, ela
não é problema para ninguém, a não ser talvez
para o sujeito que vive essa estranha experiência.
Então, a primeira dedução é essa, de que a psicose é uma questão fundamentalmente social e o
que vai parar na porta da emergência psiquiátrica
é, fundamentalmente, aquilo que corresponde a
uma perturbação psíquica que gera algum tipo de
ressonância social importante. É muito óbvio, não
é? Sem ressonância social, o fato psíquico deixa
Lembram-se que vimos que é quando o sujeito de ser relevante.
perde a sua autonomia, principalmente a autonoMas, às vezes, é difícil lidar, assumir isso assim.
mia financeira, que ele vai criar uma perturbação Mas se pararmos para examinar qual é o objeà ordem? Vejam só onde é que eu estou queren- to que chega à porta da emergência do hospital
psiquiátrico, qual é o sujeito que trazem para a
* Psicólogo, Doutor em Saúde Coletiva IMS/UERJ, Professor Adjunto da Faculdade
gente, isso fica cristalino. Trazem o sujeito para a
de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA, Coordenador do Laboratório de Estudos
gente, porque ele está disfuncional psiquicamente
Vinculares e Saúde Mental do Departamento de psicologia da UFBA, Criador e Superou porque a sua disfunção psíquica gera algum
visor do PIC - Programa de Cuidados Intensivos a Pacientes Psicóticos.
1- Transcrições da aula de curso “Elementos teóricos para uma clinica psicosocial das
tipo de disfunção social? Então, o sujeito que chepsicoses” set. 2005 Salvador - Ba
52
ga até nós é o sujeito que perdeu a funcionalidade social. Estou querendo dizer que não é o crivo
estritamente psíquico, do modo de funcionamento psíquico, que gera a demanda psiquiátrica. O
que faz gerar a demanda psiquiátrica é basicamente uma relação dessa falta de funcionamento
psíquico com uma reação social; é a perda da
funcionalidade que converte esse sujeito num sujeito-cliente para os serviços psiquiátricos.
Essa primeira dedução é fácil de fazer; a nossa
prática cotidiana nos mostra isso o tempo todo:
quando alguém chega a levar um outro alguém
para a emergência psiquiátrica é porque esse outro alguém entrou na esfera de atrito com a ordem social, com a perda da autonomia, com a
capacidade do autogoverno, com a capacidade
da auto-responsabilização pelos seus atos. Isso
é a questão central da constituição da demanda
psiquiátrica, isso não é um detalhe a mais!
Eu não estou querendo desconsiderar que existem sofrimentos menores, que existe um conjunto
amplo de situações sociais que vão ser psiquiatrizadas, mas eu diria que o dispositivo psiquiátrico não se instituiu originalmente por causa desses males menores. O dispositivo psiquiátrico se
instituiu para enfrentar o grande mal que tem a
ver com a questão da governabilidade do sujeito.
Isso também já discutimos bastante, já apresentei
para vocês essa tese de que a grande questão da
constituição desse espaço do campo de saberes
e práticas em saúde mental está relacionada à
questão da governabilidade social.
Existem grupos de sujeitos que não são governáveis por si mesmos, e o principal deles, não di-
ria o principal, mas o destacado deles é aquele
constituído pelos sujeitos que ouvem vozes, que
saem da ordem social, rompendo com o ordenamento simbólico da cultura. Isso sim é imperdoável do ponto de vista da cultura... Agora, é
verdade que existe uma série de outras perdas da
autonomia, outras formas de apresentação de falta de funcionamento social... Você trazia aquele
dia a questão dos orgânicos; isso é importante...
Eu fui a Camaragibe, em Pernambuco, fazer uma
inspeção num hospital psiquiátrico que tinha 850
leitos e 100 pacientes neurológicos graves numa
ala. Aquilo é um impacto quando a gente entra
na ala. É um impacto, sobretudo porque se trata
de um mega hospital, um hospital muito grande,
e essa ala é uma jaulinha dentro daquela jaula
grande. Qual é a questão desses sujeitos? Eles
têm uma limitação para cuidar de si e da vida,
para responderem por si mesmos diante de suas
famílias e seu grupo social.
Então é verdade que esses sujeitos, na medida
em que existe o hospital psiquiátrico - vários deles
têm problema na esfera da autonomia - vão parar
no hospital psiquiátrico. Bem, o que é que eu estou
querendo com isso? Eu estou querendo com isso
saber se é possível, com tranqüilidade, a gente
afirmar que efetivamente a chamada “questão social” é uma questão extremamente relevante para
a compreensão do fato cultural e comportamental
da loucura. A crítica social, a percepção social,
o incômodo social é um elemento fundamental
para configurar as apresentações dos sujeitos que
nós recebemos como casos psiquiátricos. Será
que isso é passível de crença para nós? Será que
53
podemos aceitar isso com tranqüilidade?
Efetivamente, muitas vezes temos uma situação
em que um trabalhador experimenta grande sofrimento que o consome internamente, numa situação de construção delirante que fica oculta, mas
que lhe garante estabilidade para que ele esteja
hígido para o trabalho, que ele esteja funcional
para o trabalho; e, sendo então essa uma produção sintomatológica perturbadora, essa questão
não será percebida socialmente e não será objeto de uma intervenção, de uma movimentação,
de um encaminhamento, de uma busca de ajuda
ou contenção do sofrimento... Então, eu preciso
saber de vocês se isso é tranqüilo para vocês, se
vocês têm dúvidas, comentários, para que possamos prosseguir. Essa é a nossa primeira dedução
da psicose como um fato social relevante.
Por que estou chamando isso de “a primeira
dedução”? Porque estamos propondo um saber
clínico que leve em consideração as coisas que a
gente encontra na vida, um saber clínico que se
relacione com as produções sociais tais quais elas
chegam a nós. A crítica que nós fizemos há dois,
três encontros atrás, dizia: olha, o sujeito efetivamente se apresenta de forma perturbadora da
ordem, é a crítica social em relação a essa perda
de autonomia do sujeito; a crítica está localizada
aí, é isso que faz efetivamente com que o sujeito
seja objeto de uma preocupação social endereçada à emergência psiquiátrica. Isso não quer dizer que todos os sujeitos que têm problemas ou
dificuldades vão ter essa apresentação, mas era
importante afirmar essa hipótese. Tranqüilo para
vocês? Então, nós podemos chamar isso de “a
54
primeira dedução”, de que, efetivamente, é a crítica social, a perda de autonomia, a perturbação
da ordem os fatores que constituem a demanda
ou uma parte significativa da demanda e dos problemas que nós recebemos na emergência do
hospital psiquiátrico.
Se essa foi a primeira dedução, a segunda
será aquela que eu trouxe para vocês no outro
encontro: a idéia da questão da psicose como
profundamente associada à problemática da
constituição do “eu” e do “outro” como base da
organização psíquica e de todo o processo de
significação. A psicose estaria relacionada, então, a um evento que tem uma dinâmica psíquica
importante, independente de que nós possamos
descobrir no futuro que ela tem uma química ou
tem uma falta química, que tem um componente
genético; enfim, independente disso, há um conjunto de teorizações que apostam que a psicose
tem uma coisa que envolve essa dinâmica, que é
a dinâmica relacional que, ao sujeito psicótico,
corresponderia uma dimensão onde essa questão
do “eu” e do “outro” ficou estabelecida de uma
forma precária.
Nós estamos englobando aí várias teorizações,
nós estamos pegando Winnicott, Melanie Klein,
Bleger, Lacan... São várias teorizações no campo psicanalítico, mas há teorizações também no
campo da teoria sistêmica, que vão estabelecer
que a questão da psicose encontra-se localizada
numa esfera relacional, derivada da questão de
como esse sujeito estruturou o eu como uma função do outro. O “eu’ é uma significação mater,
primeira, matriz de toda a possibilidade da sig-
nificação. Significar é sempre significar para um
determinado sujeito. Se não existe este lócus do
sujeito instalado, então não haverá significação.
O que as teorias psicanalíticas nos trazem de
muito interessante é nos remeter a um raciocínio
sobre como em cada sujeito este processo de tornar-se um sujeito é singular e se produz como um
arranjo psíquico derivado da questão da significação. Esse é o interesse de chamar essa teorização
psicanalítica para compreender a psicose como
um arranjo psíquico que se dá no processo mesmo da instauração do sujeito psíquico. Portanto a
psicose seria uma forma de expressão do sujeito,
seria uma direção de organização do sujeito.
Alguns sujeitos se organizam nessa direção, é
um modo de se arranjar, fruto, fundamentalmente, da questão da cesura, da questão da separação. Mesmo lá na teoria sistêmica, a questão da
psicose aparece com a questão da separação. A
teorização de Gregory Bateson, que é o pai da
teoria sistêmica, que, aliás, nasceu das pesquisas com pacientes esquizofrênicos, investigando
os padrões de comunicação familiar entre mães
e filhos, toma esse tema da separação como relevante.
É interessante porque, vejam só, não precisa se
fazer recurso só à psicanálise; tem aí uma outra
teorização que não tem nada a ver com a psicanálise, mas que também se desenvolveu nessa direção. Eu já contei aqui para vocês sobre o
Gregory Bateson, que foi um antropólogo e pai
da teoria sistêmica. Ele estava trabalhando com
os Iatmul, uma tribo da Nova Guiné, nos anos
30, e lá descobriu um mecanismo através do qual
os sujeitos se diferenciavam uns dos outros dentro da tribo como pertencentes a certos grupos,
através do ritual do navem, e ele chamou isso de
sismogênese.
Posteriormente, ele foi para Palo Alto, onde estudou, fundamentalmente, a questão dos esquizofrênicos e a relação da produção da esquizofrenia
como função das relações de significação estabelecidas nas relações do grupo familiar. O que a
sismogênese tem a ver com isso? Nós não podemos chamar tudo de sismogênese, mas essa idéia
de separações, a castração inerente ao aprofundamento da individuação, é uma boa idéia.
Na história dessa idéia, nós a encontramos
também em Winnicott quando ele descreve as relações do bebê com a mãe e a importância dessa
experiência como estruturante para a organização
do processo de significado com base na definição
do espaço psíquico, onde se organiza o sujeito e
o espaço psíquico que, em contrapartida, estrutura o outro; nós poderíamos estar falando da mesma coisa, de separação, de afetação recíproca
entre eu e o outro que nos produz psiquicamente
e socialmente.
É obvio, já falei com vocês disso, que não vale
a pena ficar fixo numa teorização sobre esse processo, já que o tratamos como uma mera hipótese que tem várias construções. Vários autores,
teóricos trabalham essa hipótese, é uma hipótese
muito boa, muito interessante para a gente pensar a questão da psicose, para a gente pensar
num grupo de sujeitos que “vacila” ou que desliza
na questão da significação, que produz uma ordem de expressão de significados que são abso55
lutamente próprios e diferenciados. Então, se eu
chamar isso aqui de segunda dedução da psicose
como questão social, fica claro para vocês?
Por que nós vamos entender isso aqui como
uma questão social? Porque a produção da vida
psíquica, a organização da vida psíquica se dá
numa relação que parece absolutamente íntima,
próxima, dual, mas é uma relação que, de certa forma, reproduz o padrão da cultura, que é o
padrão da existência dos sujeitos para os quais
os outros sujeitos representam alguma coisa, alguma alteridade, representam algo que não são
eles próprios, que são diferentes deles. Essa é a
condição da possibilidade de ser na cultura.
Então, essas duas deduções estão claras? Desculpem por eu estar insistindo um pouco, mas é
que, se isso não ficar claro, vai atrapalhar um
pouco lá na frente, porque a idéia é de que toda
clínica deve dizer quais são as hipóteses que ela
tem acerca do fenômeno com o qual trabalha. Eu
estou dizendo para vocês que essa clínica que nós
estamos discutindo aqui deve levar em consideração essas duas deduções que localizam a psicose
num eixo eminentemente social.
Ela deve levar em consideração essa primeira dedução de que quando alguma coisa aparece para mim, aparece como situação social,
por mais que seja particular. Por mais que seja
individual, é um efeito social, é uma ressonância social da perturbação que chega. E, por outro
lado, também do ponto de vista da dinâmica que
produz o sujeito como uma subjetividade complexa, o arranjo psíquico complexo da psicose está
marcado por uma profunda questão social, que
56
é aquela questão que eu disse para vocês, a da
significação atribuível à condição de ser sócio da
sociedade.
Nós podemos pensar que a questão da psicose
é uma problemática referente ao pertencimento
do sujeito psicótico na sociedade – e não apenas quando ele se encontra em crise – ao invés
disso ser tratado como uma obviedade – que é
como alguns de nós, normo-neuróticos vivemos
a nossa presença no mundo, pois geralmente
não botamos em questão o nosso pertencimento
à comunidade humana, o compartilhamento das
experiências, sentimentos, compreensões com os
demais humanos. Para o sujeito que traz a marca
da psicose, isso se coloca de uma forma muito
enigmática.
Para o grupo de sujeitos psicóticos, isso não
se coloca dessa maneira. Isso produz um rebatimento na percepção, na sensação de estar no
mundo, na sensação de estar no mundo habitado
pelos homens, na sensação de que há algo que
não flui, não oferece a sensação de compartilhamento. Lembra de quando eu falei para vocês da
ilusão do compartilhamento intersubjetivo como
traço fundamental para a gente pensar a questão
da psicose e da neurose? De que nós, neuróticos,
temos a sensação de que compreendemos perfeitamente o que as palavras que vêm do outro
querem dizer, e que o outro, por sua vez, acha
que nós compreendemos como ele compreende
aquilo que acabou de dizer? É a ilusão da comunicação, da intersubjetividade.
Na neurose, a ilusão do compartilhamento
simbólico é algo tranqüilo. Nós até produzimos
desentendimentos – briga de casal, desavenças
– nós até podemos dizer radicalmente que a comunicação é uma coisa impossível dentro dessa
perspectiva que eu estou trazendo, mas a ilusão
do compartilhamento está sempre aí para fazer
de conta que a comunicação é possível. No sujeito psicótico, a experiência prática, clínica, evidencia a estranheza total, tanto em relação ao
que falamos para ele, quanto aos efeitos que o
discurso dele faz em nós, aquele mal-estar que é
estar diante de um discurso delirante. E por quê?
Porque não sentimos nele o rebatimento da nossa própria subjetividade, que eu estou chamando
de pertencimento, da condição de ser sócio da
sociedade.
Isso é bom para a gente pensar numa série de
outras coisas. Eu me lembro que causou muita
estranheza quando duas mulheres surdas, que
viviam juntas, quiseram ter um bebê de proveta.
Prepararam geneticamente e fizeram uma seleção
genética para a surdez, escolheram genes que
oferecessem mais probabilidade de que a criança
nascesse surda. Isso causou uma polêmica geral,
e as duas explicaram que a comunicação surda
é de outra ordem cultural, elas consideram que
não fazem parte da mesma cultura, elas acham
que existe um mundo próprio da experiência da
surdez, com sua comunicação, suas expressões,
e, recentemente, eu estava fazendo um trabalho
em que manejei esse recurso, e o sujeito surdo
que nós pegamos para conversar falava assim:
você acha que linguagem de sinais é universal?
Que nada! Os surdos do Rio de Janeiro conversam de um jeito; os de São Paulo, de outro. Há
alguma coisa em comum, mas são dialetos diferentes. Dialetos na linguagem de sinais, isso não
é muito interessante?
Estou, com isso, querendo chamar vocês a imaginarem outros mundos, para a possibilidade de
organização de outros mundos ou de outros registros da experiência de estar no mundo. A questão
na psicose, pelo menos no surto, é que o mundo
é outro. O que as mães surdas selecionaram foi
a condição de que o filho fosse sócio da surdez,
sócio desse mundo surdo, com compartilhamento
nesse mundo, inscrito nesse mundo. Para elas, o
que importa é que a sua filha se comunique com
elas, que ela esteja integrada com a comunidade surda. O mundo – diriam essas pessoas – nós
não participamos do mundo, nós participamos
do mundo dos surdos e queremos que nosso filho
nasça surdo para viver no nosso mundo. Quem
disse que viver no mundo dos ouvintes é a melhor
coisa? O mundo do surdo não é defeituoso, não
é errado, é um outro mundo, uma outra forma de
construir a sociedade, com importantes especificidades simbólicas.
Eu trouxe isso para comentar a questão da diferença, para pensar a psicose como registro de
diferença. É claro que a psicose guarda aí uma
radicalidade, porque não tem a comunidade
dos psicóticos, não é? Não é assim: a sociedade
dos psicóticos contra a sociedade dos outros, os
neuróticos. É que cada psicótico organiza certos
registros de significação ou pode organizar, porque a maior parte do tempo, inclusive, eles vivem
grudadinhos no registro da significação com uma
sensação de diferença, mas também não são des57
ligados desse registro não.
Temos de fazer esse reparo, senão a gente começa a pensar que a psicose é permanentemente o delírio, e a psicose não é permanentemente
o delírio. O delírio é justamente a expressão do
registro da diferença do arranjo psíquico no que
tange à questão da representação. Então, a isso
aqui eu estou chamando de “dedução”, dedução
da questão social. A psicose, portanto, não só ela
apresenta-se para o outro social como um distúrbio e perturbação, como ela se apresenta para o
próprio sujeito como distanciamento, como diferença, como alteridade; como divergência social.
Essas são as duas deduções que nos permitem
introduzir o tema de hoje, que é uma questão radical na psicose, que deveria ser uma primeira
questão que nós deveríamos levar em consideração numa clínica psicossocial das psicoses. Estou
me referindo à questão da solidão psicótica.
Toda vez que tomamos um caso, quando recebemos um sujeito, quando vamos abordar, quando vamos receber uma certa demanda social que
envolve o sujeito psicótico, eu acho que a gente
tem de pensar na hora, eu acho que a gente tem
de começar a pensar a psicose a partir da questão da solidão. Não sei o quanto vocês são sozinhos, o quanto refletem sobre a sua solidão, o
quanto já pararam para pensar quão importante
é a questão da solidão para a saúde mental. O
psicótico não fala da solidão. Quer dizer, às vezes
fala, mas o psicótico é principalmente a solidão.
O que impacta muitas vezes para nós é o quanto
esse sujeito é a solidão, no sentido que nós vamos
começar a refletir agora.
58
Quem nos faz pensar a solidão geralmente é
o deprimido. A depressão nos impõe muito essa
questão. Vocês entendem porque o deprimido nos
impõe a questão da solidão? Porque o deprimido,
de certa forma, reconverte libidinalmente para
dentro, o deprimido corta o sentimento para fora,
por isso é muito difícil lidar com o deprimido, não
é? Porque, de alguma forma, ainda que o deprimido não tenha nenhuma questão de compartilhamento de significação, ele é tomado por uma
certa ordem em que a significação também cai,
não é? O sentido também cai; aí ele não consegue fazer um investimento, ele faz uma reconversão libidinal, por isso ele nos remete à questão da
solidão. Talvez a expressão seja que o deprimido
problematiza a solidão.
Agora, o psicótico nem sempre problematiza
a questão da solidão; o psicótico, efetivamente,
expressa a solidão, ele é a solidão. Insisto com
vocês nas dezenas de falas desse tipo que colho
no contato com os sujeitos psicóticos: “meu problema é que eu sou muito sozinho”, “meu problema é que não tenho ninguém”, “meu problema é
que eu não tenho amigo, apoio”. Essa percepção
do psicótico impacta muito, e achamos que ela é
uma boa porta para a gente discutir o que é que
isso tem a ver com nossa clínica.
É muito curioso, porque nós nos produzimos
numa sociedade contemporânea, pós-moderna,
que tem como regime principal de direção da organização da vida social o individualismo narcísico. Nós vivemos numa sociedade – e nada disso
é totalidade, pois é óbvio que estou falando das
pontas urbanas, regiões e geografias avançadas
na sociedade, porque a gente não pode esquecer
que há lugares em que as coisas se passam ainda
do modo antigo, então há uma convivência entre
os modos antigos e os pós-modernos de expressão - mas, nos modos pós-modernos, nós podemos dizer que a expressão mais forte é a de um
individualismo narcísico, e que essa é a direção
civilizatória que a vanguarda da sociedade nos
tem apontado.
Então, a nossa questão é entender como é que
a solidão se coloca para o sujeito psicótico, porque, no caso do deprimido, o sujeito toma um
antidepressivo e deixa de ser deprimido, retoma
seus vínculos sociais, retoma sua vida e volta a
viver no compartilhamento simbólico; e, no psicótico, se ele toma um anti-psicotizante ou, eventualmente, um antidepressivo associado, ele não
volta a compartilhar, ele continua remetido a uma
certa condição de impossibilidade. Talvez o que
nos interesse dizer nesse momento é que o que a
psicose coloca para o sujeito é um registro radical
da solidão. Como é que isso chega para nós?
Como é que nós nos relacionamos com isso? O
que é que isso implica para a nossa clínica?
Porque, na sociedade do individualismo narcísico, é muito difícil, aliás, a questão do narcisismo
atravessa tanto a questão da depressão como a
da psicose do ponto de vista da hipótese teórica
que sustenta a construção desses estados; são estados que, fundamentalmente, têm alguma ordem
de perturbação na relação vincular com o outro,
um desinvestimento de um sentido e de uma produção de significado na vida do sujeito.
Uma clínica psicossocial das psicoses precisa
começar por considerar que esse sujeito se sente
muito desconfortável no mundo e que sua solidão deriva do seu profundo desconforto psíquico;
desconforto psíquico gerado, por um lado, pelos
efeitos sintomáticos da sua condição, pela sua bizarrice eventual, pelo seu retraimento, pelo caráter complexo do estabelecimento de relações, o
caráter estudado, medido, avaliado do comportamento para entrar em relação, o caráter travado
para entrar em relação, e isso por si só gera uma
crítica social, porque, de repente, a gente olha e
fala: “que pessoa esquisita, que pessoa estranha
que está convivendo entre nós”. Eles não chegam
a produzir esse problema da autonomia, às vezes
eles conseguem se manter estabilizados, mas num
registro de poucos amigos, de vínculos muito restritos, talvez seja essa a melhor expressão: mais
do que falar da solidão, falar em vínculos, já que
a questão da solidão é problemática. Os vínculos
são restritos.
E, por outro lado, a própria percepção do sujeito sobre si mesmo, o rebatimento: “o outro me
percebe e me confirma num lugar de estranheza,
de dificuldade, e eu mesmo me percebo nesse
lugar de dificuldade, de impossibilidade”. Muitas
vezes se diz: “o outro na psicose é um enigma”
porque, na medida em que essa relação não se
estabeleceu bem, em seu momento constitutivo
das primeiras experiências quando do ingresso na
sociedade humana, se diz que o outro impera na
psicose, ele não consegue nunca se livrar dessa
marca, dessa presença, dessa indistinção, razão
pela qual ele é avesso às relações, já tem “outros”
demais na vida dele, alteridade demais na vida
59
dele, e isso os perturba.
Na sociedade individualista narcísica, é responsabilidade de cada individuo cultivar a sua lista do Orkut, produzir a sua lista pessoal do Orkut,
cada um tem de dar conta de angariar seus afetos, os seus amores; cada um tem de construir a
sua região vincular para se sentir confortável. Eu
perguntei isso para vocês outro dia e repito porque acho interessante: quem são os sujeitos que
compõem o meu sociograma? – que é um recurso técnico proposto por Moreno. Quais são os
sujeitos que estão na esfera das minhas relações,
dos mais próximos aos mais distantes, mas cujas
existências estabelecem para mim sentido e significado para a minha própria existência? Quem
são então estes meus “outros” tão importantes
que me dão sustentação no mundo, sendo eu o
sujeito que eu sou? É interessante pensar isso,
porque essa teia de relação é fundamental para
nos produzir como sujeitos que nós somos. Existe,
nesse momento histórico, uma tendência declinante da família mononuclear burguesa, em favor
dos modos individualistas, como outrora declinou
a família extensiva em prol da família privada e
mononuclear... Vejam como era a produção do
sujeito no passado: a família extensiva era uma
benção para essa matéria vincular, concordam?
Entre as classes populares, inclusive - e nós
encontramos muitos casos desses tipos no nosso
programa de estágio - existem muitas situações
desse tipo, de dizer “fulano foi criado por sicrano”, que não eram seus pais e nem tinham laços
de sangue, mas acolhiam uma criança abandonada ou que os pais morreram, vizinhos com
60
grande generosidade social, entre aspas, porque
todo sujeito criado pelos outros tem uma querela
em relação a isso, de terem sido mais ou menos
amados, mas existiam enjeitados sociais que eram
albergados na família. E o que chama atenção é
que são pessoas pobres, não têm isso de adoção,
de ir ao juiz, de pedir guarda. É simplesmente ver
um ser vivente que está abandonado, que ninguém quer, e colocar dentro de casa, começar a
tratar... Um tipo genuíno de solidariedade. Obviamente que aí entram as queixas. Qual o grau
de incorporação que esse sujeito recebe pelo grupo que o acolhe?
Mas a idéia é afirmar que a questão vincular
para as classes populares está colocada de uma
forma muito diferente que nas camadas médias
urbanas. Nós, das camadas médias urbanas da
Bahia, estamos aprendendo a cultivar a impessoalidade - e eu digo sempre “aprendendo”, porque
acredito na hipótese da modernização tardia, percebo a tendência à impessoalidade, a morar nos
condomínios e não falar com as pessoas, o que
era impossível e inadmissível há 30 anos porque
havia um registro da sociabilidade comunitária
muito imperativo.
Estou trazendo isso para falar de um traço importante da sociedade ocidental moderna que é
essa tendência à privatização dos afetos, das relações, à produção do individualismo narcísico,
questão que se coloca, portanto, para a psicose,
como um problema a mais. Nessa direção nós
estamos tornando o mundo cada vez mais difícil
para os psicóticos.
Curiosamente, talvez nós estejamos nos apro-
ximando cada vez mais dos modos de vida isolados, em que a gente é sócio, mas a gente continua
sendo sócio no simbólico, a gente está deixando
de ser sócio da sociabilidade, estamos abrindo
mão da sociabilidade, estamos dizendo “eu não
quero que meu vizinho me cumprimente, eu quero subir no meu elevador sem que ele me encha
o saco, não quero que ele divida demais comigo,
que ele se relacione demais comigo, não quero
intimidade demais”. É interessante para nós, soteropolitanos, vermos essa tendência cada vez mais
aflorando. Nós vemos assim: “moderno não é
esse negócio que interage demais, conversa com
todo mundo”.
Gente, isso são fragmentos... Eu estou fazendo
assim para a gente pensar sobre como é que nós
temos compreendido a questão da solidão, como
é que a questão da solidão para nós vai deixando de ser uma experiência de imposição social
e vai sendo uma experiência de eleição social.
Nós estamos elegendo formas mais solitárias de
viver. Olha, gente, para isso tem uma estatística
do IBGE que mostra o número de residências monodomiciliadas.
No Brasil, já chega a 14% o numero de domicílios que são habitados por uma única pessoa.
Na França, dá 30%, e, nos Estados Unidos, 40%.
É uma direção societária, é um rumo que estamos
escolhendo na vida: é cada um por si e Deus por
todos, é o rumo da privatização dos afetos e dos
espaços. É interessante isso como direção civilizatória do ocidente, porque afronta fundamentalmente a questão do vínculo. Jurandir Freire em
uma fala dizia que devemos ser cuidadosos e não
olharmos para essa discussão do individualismo
narcísico numa perspectiva de tipo patologizante. Devemos fugir dessa forma de conversar sobre
esse assunto, dizendo que o individualismo narcísico é uma doença. E por quê? Porque todo mundo que fala sobre doença, fala sobre remédio.
Então, tem uma pergunta que é: “qual o remédio para isso e quem vai dar o remédio?” Uma
eleição social de valores morais que são sempre
parciais e que, no limite, remetem à possibilidade
da instauração de um fascismo.
Então, como é que nós devemos encarar isso?
O Jurandir comenta que o individualismo narcísico é uma produção civilizatória que está na contramão do vínculo social, da relação com essa
matéria da filia, que é a matéria humana que
produz coesão social. Psicanaliticamente, seria
uma comunhão libidinal, não é? Que é o compartilhamento dessas projeções que constroem a
sociedade como um ente resultante dos vínculos
entre os sujeitos.
Nós podemos dizer que o individualismo narcísico agride, de certa forma, o conceito de sociedade? É uma idéia interessante. O individualismo narcísico vai contra o próprio conceito da
sociedade. O Jurandir, então, fala que tomar isso
como doença é uma perspectiva profundamente
ameaçadora para a própria idéia de sociedade,
que coloca em questão o próprio conceito de sociedade, em que a sociedade é cada vez mais um
mero habitat, um receptáculo para as individualidades narcísicas. O Louis Dumont fala de uma
situação em que os tijolos são mais importantes
do que as paredes do edifício social; o valor do
61
tijolo é mais importante que o valor do edifício
que o conjunto de tijolos produz, que seria a sociedade, em que o valor principal não é ela, mas
cada tijolo.
É como se fosse a rebelião dos tijolos. Cada
tijolo está mais preocupado consigo mesmo, e o
fato de que eles estejam ali superpostos é uma
mera formalidade que produz a sociedade. Então, ele chama atenção para o fato de que a autodestruição pode ser uma perspectiva civilizatória. Ora, quantas civilizações acabaram assim?
Se auto-destruíram, e a gente hoje não tem senão
notícias delas.
Eu estava conversando com uma colega de
vocês, no intervalo, sobre as crianças neurológicas, sobre as crianças e adolescentes com quadro
neurológico importante que vivem lá no Hospital
das Obras da Irmã Dulce. Eu estava conversando exatamente que, de algum modo, todos eles
são sujeitos que têm problema de autonomia e de
como se poderia organizar o cuidado com eles,
no sentido da solidariedade humana, de garantir
as necessidades básicas da vida para esses sujeitos e, ao mesmo tempo, o quanto isso parece
insuficiente como perspectiva.
Sem dúvida nenhuma, esses sujeitos precisarão
de cuidado para o resto da vida. O interessante
é que, ao estarem sob os cuidados institucionais,
isso coloca uma questão muito interessantes, que
é a questão dos vínculos, e eu acho que é esse o
tema que nós devemos discutir, o tema da desfiliação, que é onde nós vamos nos interessar na
experiência psicótica. Já que nós podemos pensar
que filia é amizade, é vínculo, é o que atrai; quan62
do a gente fala da desfiliação, nós falamos da
curiosa e rara produção, poderia dizer até inusitada produção, do sujeito sem vínculo. Então, essa
é uma produção rara na história da humanidade.
Só essa sociedade a qual eu estava me referindo
anteriormente, que é essa sociedade moderna,
formata o sujeito social sob a égide da individualidade e permite essa experiência de uma radical
desfiliação dos que são menos funcionais nessa
habilidade de organizar uma rede de relações.
Eu diria que está ligado ao modelo da formatação do sujeito moderno, que é absolutamente orgânico com o modo de produção capitalista, que,
na sua dinâmica, por exemplo, olha com interesse
o ideal das moradas unidomiciliares para todos.
Assim, cada sujeito, como consumidor terá que
adquirir um fogão e uma geladeira, por exemplo.
Tem uma indústria que vai adorar isso, porque
multiplica os consumidores. E hoje, utensílios que
eram da casa de todos, como as televisões, são
de uso pessoal, tem quatro televisões numa casa
com quatro pessoas. Mas é muito mais interessante morar sozinho; cada um, sozinho, precisa
de todo um aparato.
Agora, temos de ter cuidado para não parecer
uma relação de causa e efeito. Efetivamente, é
uma sociedade individualista, narcísica e, obviamente, competitiva, que faz cada lar, cada família
cada vez menor... Os casais nos países europeus
não conseguem se reproduzir numa mera taxa de
reposição, estão virando países de velhos, porque
não conseguem dois filhos por casal para a reposição social. Todos esses fenômenos estão vinculados. O que nós temos de pensar é como, nessa
sociedade, aqueles indivíduos que são mais frágeis na dinâmica da autonomia vão ser, de certa
forma, excluídos socialmente.
E aí nós podemos pensar desde a exclusão do
mundo do trabalho. Robert Castel traz isso com
muita ênfase, e ele fala sobre a produção de um
homem, que não só não tem mais trabalho, mas
não tem um outro conjunto de vínculo social que o
sustente socialmente. Então, nós vamos começar
a produzir o homeless em grandes quantidades,
nós vamos começar a produzir essas populações
que estão extremamente fragilizadas, vulneráveis
do ponto de vista da sua questão vincular. O Castel tem o mérito de chamar a atenção assim: não
se trata só de pobreza, se trata de desvinculação
sócio-afetiva.
Claro, essa coisa toda de individualidade é
uma tendência, é uma direção. O que chama a
atenção é que, nessa tendência, tem um conjunto de sujeitos que estão menos aparelhados para
lidar com os desafios de situar relacionalmente,
certo? Que são vulneráveis para participarem da
sociabilidade dessa sociedade. Aquela sociedade
que inventou o manicômio, porque era uma sociedade na direção da industrialização e que via
que o louco perturbava a sociedade, perturbava
as dinâmicas do capital. Essa sociedade, ela, digamos assim, aperfeiçoou em muito as exigências para dizer quem é que cabe e quem é que
não cabe, gerando um grupo de sujeitos que fica
muito frágil, é um grupo que fica muito fragilizado. Eu queria considerar que, óbvio, não são
apenas os psicóticos, mas nosso caso, que mais
de perto nos interessa, é o grupo dos psicóticos.
Esse grupo recebe um impacto desses processos e
dessas dinâmicas sociais.
Se é que podemos afirmar, está ficando cada
vez mais difícil viver como um psicótico socialmente. As dinâmicas sociais vão ficando cada vez
mais restritivas, a disponibilidade social para produção vincular está cada vez mais restrita. Então,
temos de ter em foco, no caso das psicoses, a
questão vincular, que é onde sua destreza, sua
habilidade social, suas capacidades, suas chances, suas oportunidades vinculares já vêm com
um certo arranjo limitador.
E nós produzimos uma dimensão de sociabilidade, uma dinâmica que tende a aprofundar todos esses elementos do ponto de vista da fragilização e limitação. Por quê? Porque está cada vez
mais difícil viver nessa sociedade individualista.
Para todos. Estou dizendo assim, não é o único
efeito, hein? Não é o único efeito que se produz
assim, não é? Por exemplo, o Rio de Janeiro tem
uma população de idosos de classe média muito grande que foi beneficiada pela ampliação da
expectativa de vida com qualidade de vida. Impressiona-me o número de estabelecimentos que
existem no Rio de Janeiro para abrigos de terceira
idade, o comércio que existe no Rio de Janeiro
para a terceira idade.
Não é que os filhos do Rio de Janeiro são mais
cruéis, menos amorosos que os filhos de baianos,
mas que, no Rio de Janeiro, é mais comum na
cultura que, chegando num determinado momento, que cada um foi cuidar da sua vida, dos seus
interesses, sobre ao idoso o lugar de elemento
de perturbação da vida, porque eles exigem cui63
dados, e existe então a terceirização desses cuidados em outros espaços que comercializam os
serviços de asilo.
Essa não é uma tendência forte aqui em Salvador. Há centenas de espaços desse tipo no Rio
de Janeiro. Não estou falando de um ou dois;
são dezenas e centenas de lugares para agrupamento de pessoas que perderam a funcionalidade
social. Estou falando desse caso para dar idéia
de que podemos pensar esse fenômeno nas várias dimensões: das crianças de Irmã Dulce aos
idosos do Rio de Janeiro, aos pacientes psicóticos, porque, de alguma forma, estou querendo
configurar para vocês uma percepção de que a
grande questão do manejo dessas situações não
é exatamente o distúrbio psíquico psicótico, mas
é o difícil manejo da desfiliação psicótica numa
sociedade muito individualista.
É o difícil manejo de quem vai tomar conta,
de quem vai se responsabilizar, quem vai assumir o encargo? Então, isso entra na clínica batendo muito forte. Ora, vocês devem saber disso
pelas experiências cotidianas. Nós não estamos
trabalhando no plano do significado, da sintomatologia psicológica; nós estamos, muitas vezes,
administrando a limitação de um sujeito que perdeu a autonomia e que precisa de alguém para
se responsabilizar por ele, porque ele está numa
condição de dependência.
É interessante ver como é essa relação de dependência. É muito interessante quando se vê nas
emergências... Ainda encontramos muita filia...
Podemos até achar um familiar contrariado, que
já está aborrecido com aquela situação, sobretu64
do quando é o mesmo familiar que toma conta
do sujeito há muitos anos. Então, essa produção
impacta demais a clínica, se a gente for pensar no
paradigma do manicômio que é “eu delego cuidado institucional”, e, basicamente, quando você
vai ver, os crônicos são os que foram sistematicamente sendo limitados nessa relação de filia, ao
ponto que precisou que alguém se responsabilizasse, e ouviu um “tchau, não tenho nada com
isso mais, deixei para trás”, que é a questão do
abandono.
Essa é uma palavra dura dentro da instituição
psiquiátrica. Literalmente, ninguém mais os quer.
Então, não sei se vocês estão percebendo, mas as
chances do paciente psicótico fazer uma trajetória, um caminho nessa direção é muito grande, e
se os outros sujeitos que não têm essa limitação,
essa restrição vincular com problemáticas psíquicas comuns, têm se colocado na vida dessa maneira, imagine o sujeito psicótico. Ele é um sujeito
vulnerável ao processo da desfiliação. Por isso
eu estou trazendo para vocês o tema da solidão,
como tema fundamental, porque a desfiliação diz
respeito ao estatuto social, e a solidão diz respeito
ao sentimento e à percepção do sujeito em sua
posição.
Essas coisas podem ou não estar juntas. O sujeito pode manter algum registro de filiação, de
vínculo, e ainda assim se sentir profundamente só.
E a sua condição de se sentir profundamente só é
motor da produção da sua solidão e da sua desfiliação. Há algo na psicose que leva, que dirige
a produção da desfiliação. Só assim nós podemos explicar os pacientes crônicos, que nascem
de uma hora para outra, como cogumelos depois
da chuva na manhã de sol. Cada um daqueles
sujeitos crônicos que têm vinte anos de internação
resulta de histórico de desfiliação e abandono. Eu
estive em Feira de Santana semana passada e estava vendo os moradores que estão indo agora
para as residências terapêuticas que estão sendo
montadas na cidade. Entrei em contato com gente de 40 anos de internação. É uma vida inteira
de internação.
Quem são esses sujeitos fundamentalmente?
Esses sujeitos não aparecem com 40 anos de
uma hora para outra. Quero dizer, assim, esses
40 anos de internação foram construídos dia a
dia, num processo anterior que é o de produção
da desfiliação, da desresponsabilização social
até o seu processo de institucionalização, em que
eles passam a ser considerados sujeitos que, para
subsistirem socialmente, precisam da condição
básica de serem institucionalizados. Quero dizer,
assim, quem é o “outro” desse paciente institucionalizado? Qual é a sociedade para esses pacientes institucionalizados? O outro para o paciente
institucionalizado é a instituição. O outro social
para ele é a instituição; o outro não é o outro da
sociedade, o outro é o outro da instituição.
Para esses sujeitos não há quem os ame suficientemente. Pode parecer piegas, mas veja, é
fazer uma aposta de que nós podemos substituir a
filia pela técnica. Quando você traz essa perspectiva de racionalização do trabalho institucional,
nós estamos pensando que podemos substituir a
filia pela técnica. A questão dessas pessoas não
é se elas produzem ou não produzem, a questão
dessas pessoas é se elas são ou não são para
alguém, se elas representam ou não representam
algo para alguém, se elas fazem sentido ou não
fazem sentido, se elas contam ou não contam
para algum outro. O problema dessas pessoas
é que elas não contam, que elas não importam
para ninguém. Ninguém se importa com elas.
É difícil pensar que o problema de algumas
pessoas é derivado do fato de que não existe
quem com elas se importe suficientemente. Isso
é um problema radical que nós vamos encontrar
em diversos grupos bastante frágeis. Eu trago
isso, gente, porque, na nossa clínica, nós temos
de levar isso em consideração. Nós temos de organizar um discurso desse tipo clínico que leve em
consideração que, além de um desarranjo psíquico, esses sujeitos são marcados por uma profunda desfiliação.
No caso da psicose, como eu disse, é uma
desfiliação que tem vários rebatimentos, e para
tratar disso não tem fórmula, são inúmeras as
possibilidades. Na verdade, não existe solução
por atacado, entendeu? A única forma de trabalhar - eu sei que vocês ficam ansiosos em saber
como fazer – quando a gente reconhece que a
questão do vínculo é uma questão fundamental,
a gente tem de trabalhar no lugar de tecelões artesanais do vínculo, então não tem modinha de
C&A, só a prêt-à-porter. Um por um, cada caso é
um caso. E a gente vai dar conta do caso quando
a gente conseguir refazer esse delicado caminho
de reconstrução dos vínculos sociais, e aí pode
ser cooperativa ou não-cooperativa. Não é essa
a questão, a questão é que cada sujeito possa
65
produzir-se, de forma que ele signifique alguma
coisa para alguém.
Nada substitui essa possibilidade de que o sujeito signifique alguma coisa para alguém. É preciso ter um outro social que referencie, que crie,
que multiplique, que sustente, que alavanque ou,
para dizer na expressão lacaniana, que secretarie esse sujeito, que dê suporte, apoio, que esteja lado a lado para reconstruir os seus vínculos
com a sociedade. Se for oficina, é oficina para
reconstruir vínculo; se for passeio, é passeio para
reconstruir vínculo; se for teatro, enfim... Enfim,
não é essa a questão que nos impacta mais, essa
de saber qual a fórmula. Qualquer forma que nós
adotarmos, qualquer coisa que nós fizermos nessa clínica, nós temos de fazer nos dando conta de
que combater a questão da desfiliação social é
fundamental nessa clínica.
Não adianta tangenciar o fenômeno, a gente
tem de olhar o fenômeno de frente, e olhando
daí, nós veremos a dificuldade da vinculação social, e nada substitui essa tarefa. Quando a gente
não cuida disso, fica uma clínica manca, que recusa a evidência de que existe uma dinâmica social radical na questão da psicose. E aí eu cuido
de tudo, mas não desenvolvo a tecnologia para a
abordagem da questão social, não me preparo;
no máximo, delego para as assistentes sociais.
A questão que trago para vocês, então, é essa:
não dá para avançar nessa clínica se não considerarmos a dinâmica do vínculo. Por isso que
aí vem a questão dos labirintos das cidades: nós
estamos muito pouco preparados para intervir na
sociedade, na comunidade, e, nas nossas leituras,
66
profissionais do serviço psiquiátrico – sobretudo
os que são assistentes sociais, o máximo de social
que abordamos como técnicos é escutar na nossa
sala um familiar, um amigo que veio interceder
pelo paciente. Mas, mesmo no caso do serviço
social, a concepção de sociedade perde de vista
a questão vincular como sendo eixo, como sendo
estruturante, como central. É obvio que a gente
acaba trabalhando a questão vincular sem perceber a potência psíquica que ela tem.
O fato é que a nossa concepção de sociedade
exclui a dimensão vincular; a gente toma a sociedade como um conjunto de instituições. E o vínculo é psiquismo social, não é outra coisa. O vinculo
é dinâmica psíquica, porque senão a gente acaba
isolando e pensando que tudo é natureza intrapsíquica – estou, mais uma vez, discutindo a questão
das teorias psicológicas e das outras teorias que
não são estritamente psicológicas, que pensam a
questão do vínculo como dinâmica psíquica. E aí
vem a questão das intervenções na cidade.
Eu dei aula esses dias em Blumenau para uma
turma de trabalhadores de saúde mental, e falamos que lá é um município rico, dinheiro não
é um problema lá, a pobreza lá não é miserável
como a nossa, é remediada. Então eu perguntei
a eles se já pensaram em experimentar colocar os
pacientes ou uma parte deles dentro do ônibus
da instituição e fazer uma grande excursão, passando pelas casas de todos eles, fazê-los chegar,
todos eles, às suas casas. Estou dizendo assim,
“agora vamos conhecer a família de fulano de tal,
essa é a mãe, esse é o irmão”. “Quem são esses?
Esses são os colegas do tratamento”. Tomam um
café, depois voltam pro ônibus e vão até à casa
de outro paciente.
Não nos passa pela cabeça que isso possa ser
muito impactante, transformador nas relações,
nas percepções, na construção da significação,
nas relações que ele estabelece com a comunidade e que a comunidade e a família estabelecem
com ele. Numa outra vez, eu discutia sobre a
itinerância: tem um paciente perdido. Aí, ao invés de o técnico ir procurar fazer uma visita domiciliar, por que não saírem todos os pacientes
procurando a família de fulano? Todo mundo ali
junto procurando o fulano de tal. Quando o colega de vocês de lá de Irmã Dulce me perguntava,
eu dizia que, por mais técnico que a instituição
tenha, há a necessidade de um projeto. Qual era
o projeto?
Vá às escolas da psicologia, serviço social, e
avise que está procurando estagiários para trabalhar com reconstrução vincular. Cada estagiário cuidando de um paciente. Arranja gente que
queira levar um paciente desses para passar o fim
de semana em casa, arranje sociedade para esse
sujeito caber de alguma forma.
O programa de Liberdade Assistida de Belo
Horizonte colocou um anúncio no jornal: crianças
em conflito com a lei – uma turma até três oitão,
14, 15 anos, mas já com história de infração à
lei. Procuramos cidadão que queira se co-responsabilizar pelo cumprimento da medida de liberdade assistida de adolescentes infratores. Qual é
o espírito do programa? É introduzir a sociedade
que não tem obrigação, porque o juiz, os técnicos
da prefeitura são o Estado. Não ter obrigação de
fazer é fundamental. Então, esse sujeito da sociedade representa para esse adolescente que existe
alguém na sociedade que está disposto a dar um
prego por ele.
Isso tem uma potência, uma capacidade transformadora muito maior que a de dez psicólogos e
assistentes sociais juntos falando na cabeça dele,
doutrinando para que ele volte para o caminho do
bem. Isso porque é alguém que não tem nada a
ver com ele, alguém classe média que se dispõe,
no final de semana, a ir buscá-lo longe, colocá-lo
no seu carro e ir passar o domingo com a família,
lanchando junto, indo ao clube, deixando claro
que isso tudo é mera solidariedade, sem querer
nada em troca. Esse é o espírito que impacta esse
menino.
Eu estou trazendo esse exemplo para dar uma
visualização de que a clínica é essa que estamos
falando, da introdução da questão vincular como
dispositivo regular, permanente e orientador de
todo trabalho, para que esse sujeito possa produzir, reconstruir sociabilidade. Eu não estou dizendo a ninguém que abandone a psicoterapia,
a psicofarmacologia. Quero dizer que, ao lado
desse arsenal que a gente adota, nós temos de ter
o entendimento de que a filia que se produz na
cidade, de que as soluções para qualquer coisa
na cidade estão dentro da cidade.
Eu, às vezes, comento no nosso programa de
estágio sobre o entendimento, o domínio da cidade. O que é que nós sabemos da cidade? Quais
os recursos que existem na cidade? Eu comento
sempre aquele caso da Engomadeira. O serviço
social do Hospital Juliano Moreira, certa feita, fa67
zia uma reunião em torno da questão da família,
em que se trabalha muito a questão informativa.
Muitas vezes, eu dizia que não se produz vínculos com a informação, não adianta dizer para o
sujeito se vincular, para produzir. Isso é outra tecnologia, construção do vínculo é outro modo de
relação, de operação.
Mas então tinha a reunião, e falavam com a
família da necessidade de respeitar o paciente,
de administrar as relações com o paciente, que
é uma informação insuficiente, e, num dado momento, uma mãe levanta a mão e diz: “olha, eu
não tenho problema nenhum com ele, meu problema é que, na rua que eu moro, tem uma turma
lá que pega meu filho como saco de pancada, a
gente sai na rua e todos começam a debochar
dele, e aí ele pira, porque não tem condição, e eu
tenho que trazer ele aqui pro Juliano, porque ele
fica muito mal”. O que é que ela está dizendo?
Ela está dizendo que vive em uma comunidade
que construiu uma relação de hostilidade com seu
filho e que o impede de produzir uma outra ordem
de significação, senão aquela que está inscrita no
discurso social, que é extremamente agressiva e
negativa em relação a seu próprio sujeito. Mas
ela, como mãe, diz que, por ela, não internaria
nunca, que interna porque ele faz crise nessa circunstância. E aí duas estagiárias de serviço social foram fazer um trabalho em torno do caso.
Começaram a visitar a comunidade, identificando
as situações existentes lá, vendo outros pacientes que moravam lá, atraindo as outras pessoas
da comunidade, as pessoas válidas, com algum
tipo de presença, a se implicarem com o caso dos
68
portadores de transtorno mental do nosso bairro.
E aí o trabalho foi tendo um rendimento, produziram uma organização, fizeram passeios, reuniões com a comunidade, e foram produzindo
suporte social. E o mais interessante é que um
dos lugares onde a turma mais chateava aquele
paciente era uma loja de material de construção
onde ele ficava para carregar os materiais. E foi
feito um trabalho com o proprietário da loja de
material de construção, que criou uma proibição
aos seus funcionários de molestarem os pacientes
da área. Criou-se uma conscientização, produziuse um efeito psicossocial. Um dos trabalhadores
mais folgados insistiu na chateação, o dono da
loja mandou ele embora e contratou o doidinho
para ir trabalhar na loja de material de construção.
Veja só que coisa interessante do ponto de vista de produção de resposta para uma certa dinâmica. Quando foram atrás de um, encontraram
vários. Ao encontrarem vários, produziu-se uma
articulação social na comunidade, produziu-se
suporte social, sustentação na comunidade, e
essa produção na comunidade gerou uma outra
possibilidade para aqueles sujeitos de estarem
presentes na comunidade. Então, nós cuidamos
da psicose desse jeito? De algum modo, cuidamos, porque, se o fator principal da internação
era a intransigência, a intolerância social e o estigma, fomos ao local trabalhar isso.
O nosso serviço tem muita dificuldade de circular pela cidade. É isso que nós estamos chamando de circular pela cidade, desvendar os labirin-
tos da cidade, construir ou reconstruir essa teia de
relação social. Eu costumo dizer que, para cada
paciente que a gente atende, a gente precisa ter a
lista dos sujeitos que se interessam pela vida dele,
o sociograma dele. Esse é o recurso que todo
CAPS deveria ter, todo técnico de referência tem
a obrigação de construir essa lista. Esses são os
sujeitos que a gente tem de acionar, esses são os
recursos que a gente tem... Para tratar das pessoas, é preciso conhecer as pessoas, conhecer seus
vínculos, como é que elas se colocam no mundo.
E eu não estou falando para deixar de fazer nada,
estou falando de incorporar uma outra prática no
serviço de saúde mental que não se restrinja a
trabalhar a questão vincular estritamente pelo registro simbólico.
69
A Família na Psicose
Marcus Vinicius de Oliveira Silva*¹
H
oje nós vamos trabalhar um pouco o tema
desse grupo social tão relevante para os sujeitos portadores de transtorno mental, que é o
grupo familiar. Nesse sentido, possivelmente, nós
teremos poucas novidades em relação ao que vai
ser trazido, já que é algo óbvio que a questão
da família é muito importante para o portador de
transtorno mental.
Antes de entrarmos especificamente neste
tema, vou retomar a seqüência que tem orientado
esta idéia de uma clínica psicossocial. Quando
se fala que a loucura representa um elemento de
alteridade social, é exatamente no grupo familiar
que isto vai realçar e aparecer. É o primeiro grupo
que entra em contato com a estranheza, com a
bizarrice e que promove a sua resposta através
das internações psiquiátricas, depois que os suO que eu quero introduzir é uma problema- jeitos apresentam estados psíquicos alterados e
tização acerca das questões relacionadas à fa- complexos.
mília em nossa sociedade e sua relação com a
Vamos pensar então que as nossas configuraresponsabilidade pelos cuidados com os loucos. ções vinculares estão na base das produções do
A ausência dessa abordagem tem sido limitadora que nós somos hoje como sujeitos, nos nossos asdo entendimento e da proposta de inscrição que pectos saudáveis e nos nossos aspectos bizarros,
esse grupo tem recebido em nossos serviços de problemáticos, estranhos, singulares e que estas
saúde mental.
se relacionam com certas experiências adquiridas
por nós, nos grupos originários, a partir dos quais
nós nos constituímos como sujeitos sociais.
* Psicólogo, Doutor em Saúde Coletiva IMS/UERJ, Professor Adjunto da Faculdade
de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA, Coordenador do Laboratório de Estudos
Eu participei de um trabalho proposto pelo
Vinculares e Saúde Mental do Departamento de psicologia da UFBA, Criador e Superprofessor Luiz Fernando Duarte durante o meu
visor do PIC - Programa de Cuidados Intensivos a Pacientes Psicóticos.
1- Transcrições da aula de curso “Elementos teóricos para uma clinica psicosocial das
doutorado, e foi muito interessante, em que ele
psicoses” set. 2005 Salvador - Ba
70
solicitava aos alunos que fizessem uma rememoração, reconstituíssem um mapa dos sujeitos significativos do ponto de vista de cada aluno, das
pessoas significativas para as nossas vidas, dessas
pessoas que ficam perdidas na memória; destacando quem foram as pessoas fortes, que foram
balizadores para o avanço das nossas existências
como sujeitos sociais. Foi muito interessante perceber a ampliação significativa das pessoas que
merecem esta qualificação em contraste com a
ilusão autobiográfica centrada na família imediata, que é como a psicanálise, por exemplo, a sobre valoriza. Isso questiona que o nosso quadro
identificatório estaria dado estritamente pelo núcleo familiar em si. São dezenas os sujeitos significativos que interferiram nas nossas vidas de uma
forma forte para sermos quem somos. E mesmo
que estejam acobertados pelo esquecimento, foram eles, e de certo modo são ainda, que hoje,
identificatoriamente, nos dão sustentação para
nos situarmos no mundo como o sujeito que nós
somos.
E se trago isso, é porque acho interessante
pensar, no caso da psicose, sobre quais são as
configurações relacionais que nós efetivamente
podemos conceber como significativas para a organização destes sujeitos no mundo. Psíquica e
socialmente falando. Será que imaginamos que
isso está restrito ao papai e à mamãe, irmãos...?
Ainda que as relações parentais possam ser extremamente significativas, elas não resumem os
sujeitos. As afetações dos sujeitos que ofereceram
os elementos que nos constituem são múltiplas.
Vamos passar, então, para a outra parte, que
diz respeito ao texto que vocês têm como referência para o nosso trabalho de hoje, que é o texto
do Jonas Melman, “Família e Doença Mental”.
Talvez a questão desse texto seja a de pensar essa
família – não que ele faça essa crítica que acabei
de fazer aqui – como uma aliada fundamental na
abordagem psicossocial das psicoses.
Geralmente, nos serviços de Saúde mental, tradicionalmente, existem dois lugares possíveis para
a família: culpada e responsável ou culpada e irresponsável. Só existem esses dois lugares para a
família se localizar nessa abordagem tradicional
da saúde mental. O primeiro é o de culpado: “se
ele – o paciente – é assim, deve ser porque alguma coisa errada se passou nesse arranjo que
produziu o sujeito dessa maneira; logo essa família já está, a priori, sob suspeita”. Como culpada,
ela pode ser responsável e colaboradora ou culpada e irresponsável. Entendem o absurdo disso?
É como se fosse possível aos sujeitos elegerem as
tramas que levam à produção dos males psíquicos dos membros da família. Essa questão nos
remete a um juízo moral sobre a família, que é
algo extremamente problemático, é uma interpretação da família a partir de uma perspectiva do
julgamento moral.
E digo a vocês: de modo geral, os profissionais
de saúde mental são muito moralizantes em relação à família. Mesmo em contextos um pouco
mais avançados da teorização, o modo de olhar
da família é um modo moralizante, o paradigma
é um paradigma moral. Tem um livro da Maud
Mannonni, creio que é “A criança retardada e sua
71
mãe”, em que ela nos chama atenção sobre isso.
Ela diz que é frustrante, narcisicamente, para a
mãe perceber que algo que é seu, que foi produzido por ela – no caso aqui, algo que a família
produziu – foi produzido com defeitos ou erradamente. Essa percepção é uma derivação da relação privatizante que hoje assume o modo de
compreensão da família como um grupo privado
no interior da sociedade e que tem de se responsabilizar pelos sujeitos “errados” que, nas suas
tramas psíquicas, ela produziu.
A questão da privatização das relações sociais
afeta a questão da atribuição de responsabilidade acerca dos sujeitos que apresentam limitações
na sua autonomia. É um entendimento de que há
uma obrigação estritamente familiar. As alternativas, neste caso, se radicalizam: ou é a institucionalização total ou a sobrecarga do cuidado privado para a família. No caso da psicose, se interna
na crise e depois se devolve para a família, sob a
forma de responsabilidade total, dizendo: isso é
problema privado seu. Quem pariu Mateus que o
embale! Vocês têm de fazer a guarda, fazer a proteção social, fazer o gerenciamento desse sujeito
que perdeu a funcionalidade e depende do seu
grupo. Por isso digo, em tom de reprovação, que
nós, da saúde mental, quando queremos saber
quem é a família geralmente é para mandar a
conta, para depositar a responsabilidade.
Penso que essa é a perspectiva dominante do
nosso olhar na saúde mental, e acho que o Jonas,
de certa forma, alerta sobre este ponto e aponta porque é que nós temos de mudar esse olhar
que temos hoje sobre esses atores. Primeiro, nós
72
temos de interpretá-los como atores que são também dotados de psiquismo e que é a dinâmica da
interação psíquica desse sujeito com o paciente
que produz a maior parte dos fatores que nós temos de cuidar. As situações que nós temos de cuidar não surgem aleatoriamente, são derivadas de
certos modos de relação, e é interessante que nós
não queiramos abordar esses modos de relação,
é interessante que não nos interesse aprofundar.
A nossa modalidade hegemônica de abordagem privilegia a esfera do intra-psíquico. Nós
achamos que é mobilizando primeiro as dinâmicas intra-psíquicas que nós vamos produzir efeitos,
que nós vamos alterar as produções dos sujeitos.
É porque nós valorizamos isso, que toda a nossa
arquitetura institucional de cuidados está voltada
para a abordagem do sujeito como uma subjetividade em si mesma, para sua individualidade. Não
estou dizendo que não se deva fazer isso. Mas o
que não se pode é destinar toda a nossa energia
para isso. Estou dizendo que a nossa arquitetura
institucional de cuidados não prevê a possibilidade de tomar uma outra dinâmica que trabalhe na
perspectiva vincular, que trabalhe a questão da
configuração desse fenômeno como associado
às dinâmicas amplas das relações concretas que
sustentam a presença desses sujeitos no mundo.
Às vezes, parece que não nos lembramos, não
nos importamos e nem queremos saber o que
é que está acontecendo na vida concreta dessas
pessoas. As tomamos exclusivamente a partir do
discurso, das representações simbólicas que nos
chegam através da comunicação verbal que elas
nos trazem em suas consultas.
No programa de estágio que ora realizamos
no Hospital Mário Leal, temos nos especializado em ir às casas das pessoas, ou seja, tem sido
possível desenvolver essa perspectiva, testar essa
hipótese. Nós estamos no começo, mas isso já
nos indica que é possível fazer uma arquitetura de
cuidados que prevê outra abordagem. Está aí o
Programa de Saúde da Família indo às casas dos
cidadãos para levar cuidados na atenção básica
à saúde. O que a gente precisa é de um PSF
Mental. Quero dizer que os nossos CAPS precisam ter um PSFM, nossos CAPS deveriam ter uma
abordagem regular, um Programa de Saúde da
Família Mental, com ênfase na atenção domiciliar. Não nas visitas domiciliares esparsas, mas na
atenção domiciliar.
Então, nós deveríamos ter uma perspectiva
que oferecesse uma abordagem dessa dinâmica
como uma atividade, uma responsabilidade regular dos nossos serviços de saúde mental. De
certa forma, é essa a nossa tese atual no trabalho
de intensificação de cuidados: é preciso produzir
uma tecnologia que seja capaz de lidar com essa
dinâmica como uma atividade regular do serviço, atendendo aos pacientes mais graves de uma
forma personalizada que inclui tomar o domicílio
como setting.
Hoje mesmo, na supervisão do estágio, nós estávamos falando do caso de alguém que mora
numa caverna, num buraco, e, em cima, mora
um irmão normal, que parece ser normal e que
diz que não tem nada a ver com isso aí. A pessoa que mora com o sujeito também é sua irmã,
uma pessoa também gravemente enferma, é uma
pessoa que tem problemas mentais graves, então ficam esses dois sujeitos coabitando um espaço insalubre, com uma relação extremamente
conflituosa. E, no estágio, percebíamos como
essa irmã, aos poucos, foi também se tornando
paciente do programa. E como também os dois,
efetivamente, passam a estabelecer uma nova relação, como a gente tem trabalhado uma relação
vincular entre os dois e destes com seus vizinhos;
assim, artesanato puro, indo lá toda semana, ouvindo, apoiando, acompanhando.
Esse caso ilustra bem como a nossa tecnologia
de cuidados pode fazer isso. A família dele, nesse
momento, passa a ser a irmã, quem sabe o irmão
também não entra para a família, entenderam?
Aí tem um pai lá em Alagoinhas, e a dúvida dos
estagiários era se deveriam ou não ir até lá, se entravam em contato com o pai para sensibilizá-lo e
ver se ele também entra para a família. Quer dizer,
a família vai estar dada pela relação vincular que
o sujeito construir. A responsabilidade da família
vai ser dada na medida em que se reconstruam
as relações vinculares. Se não se reconstroem as
relações vinculares, não adianta falar que o outro
é responsável, “eu não sou responsável por quem
eu não me sinto vinculado”.
Então, é necessário operar sobre as relações
vinculares para instalar responsabilidades. Estão
entendendo o que eu estou falando? Os serviços,
geralmente, estão operando num conceito normativo da responsabilidade, temos operado numa
perspectiva meramente institucional e burocrática
de atribuição de responsabilidade a alguns sujeitos familiares, a partir dos elementos formais das
73
relações sociais supostas como tal.
É preciso parar de buscar um canal de conexão institucional para que nós possamos depositar
parte da responsabilidade que é da nossa instituição de cuidados, que é nossa, profissionalmente,
nos mesmos atores de sempre. Não adianta ficar
depositando sobre estes sujeitos do ponto de vista
moral, “toma lá que o filho é seu”, do ponto de
vista normativo. E ainda tem mais: não é só esse
lugar de familiar que temos como possibilidade
para reconstruir os vínculos e a vida das pessoas.
O que o Jonas Melman nos chama a atenção
nesse texto, na página 99, é que ou você produz
uma dinâmica nessa situação que seja subjetivante, que produza um sentido e significação para os
sujeitos envolvidos ou não vai funcionar. Não que
aceitaremos que qualquer um possa simplesmente se desresponsabilizar, sem maiores problemas.
Mas a responsabilização não é um dado derivado
de relações formais, meramente jurídicas, ela é
um processo afetivo, emocional, vincular.
Então, é muito trabalho. E é trabalho forte,
consistente, para colher frutos bastante salutares,
para interferir no processo. Vínculo não se produz instantaneamente, nós alcovitamos relações
vinculares, nós acionamos possibilidades de contato, nós operamos sobre os enriquecimentos das
significações, trabalhamos dissolvendo a cristalização das identidades, dos lugares que as préfixam, uns na relação com os outros. Só o ato de
alguém ir até ali, estar com os familiares no seu
ambiente de vida, produzirá transformação, modificação. Como agentes terapêuticos, carregamos
como recursos a nossa presença – diferenciada
74
em relação aos “outros outros” que se colocam
no mundo, algumas idéias sobre essa dinâmica
vincular e a possibilidade de abertura de novas
significações seja através da palavra ou do nosso
olhar ou ação. Se formos analisar o que oferecemos, é relativamente muito pouco, mas efetivamente opera. Quando você coloca em situação
na atenção domiciliar, esse recurso opera.
Por último, eu queria comentar sobre a questão
da crise, que tem muito a ver com a questão da
sua recepção. A recepção da crise é um momento
extremamente privilegiado para que estabeleçamos a confiabilidade dos agentes que vão intervir,
e esse é um dos nossos problemas. Quando se
faz a recepção da crise, os agentes se apresentam
absolutamente não confiáveis, o sujeito que aparece como representante da instituição se coloca
numa perspectiva, nesse sentido, moralizante, “eu
não sou responsável por esse sujeito estar assim
e sim vocês” e “tomem conta”, “o que eu posso fazer por vocês é efetivamente oferecer uma
medicação, ficar aqui por alguns dias internado,
mas, quando ele ficar minimamente funcional, ele
retorna pra vocês”.
Então, isso é extremamente impossibilitante do
ponto de vista de qualquer seguimento futuro,
porque essa hora é a hora da maximização de
todas as ansiedades dentro desse grupo familiar,
é quando toda aquela produção que vem se gestando se atualiza como angústia pura, como ansiedade em níveis excessivos, quando os sujeitos
estão à flor da pele, emerge essa confusa configuração. Tem um autor que fala como se fosse uma
dramatização esse momento da crise. É mais ou
menos como se ele dissesse que tudo que esteve
na origem dessa produção se atualiza com a crise. Por um momento, o arranjo foi insuficiente, e
aí toda a desorganização vem à tona.
Eu acho que temos de construir – é o que eu
espero que vocês façam no NAC- Núcleo de
Atenção à Crise - uma tecnologia de abordagem
familiar na recepção de pacientes em surto. Nós
precisamos de um dispositivo que seja ágil, que
tenha uma capacidade de intervenção técnica, na
expressão, na organização, no envolvimento, na
convocação, no chamamento do agrupamento
familiar para a questão da crise. Eu quero falar
que nossos serviços têm de atender a crise com
muita confiabilidade, de forma a dar autoridade
ao chamamento de que importa colaborar para a
compreensão disso.
Estou dizendo assim: recebeu o paciente pela
manhã? Na outra manhã tem de estar agendado, responsabilizado, depois de uma entrevista
familiar, quem é, qual é a pessoa da família, ou
vizinho ou amigo que tem de vir ao nosso serviço
de emergência para conversar conosco sobre o
futuro do caso e suas necessidades. Isso faz com
que fique uma promessa de que o caso não será
abandonado! Por isso é que eu estou dizendo que
tem de se investir na vinculação, na sociabilidade;
no despertar da generosidade dessas pessoas já
tão cansadas, que anos após anos lidam com a
condição trágica de ter um familiar portador de
transtorno mental. E temos de ser agentes que
ponham fim a essa condição trágica e ofereçam
uma nova perspectiva para as suas vidas e o seu
futuro.
A moeda da confiança na instituição, que se
mostra capaz de reconhecer o sujeito e que busca
fazer – não é garantia não – mas que busca fazer
o melhor, que é visível para todos que ela está fazendo o possível para agilizar, para atender bem,
para considerar, para respeitar, para abordar. Estou dizendo que a perspectiva é uma perspectiva justa, e é essa a perspectiva que a gente tem
de apresentar, é uma perspectiva que diga que a
instituição faz a sua parte, que nós somos confiáveis e nós temos conseguido ser confiáveis. E sem
construir essa confiança, dificilmente nós vamos
poder ter autoridade para interferir nessa relação
de convocação.
Mas penso que temos de insistir, que temos de
enfrentar, porque é uma evidência dessa clínica
fazer a convocação. Então, por favor, ‘quantos irmãos são’, ‘o que fazem’, ‘em que trabalham’,
‘quem é o pai’, ‘quem á mãe’, ‘quem é o tio’,
‘quem é a família’, ‘quem é o vizinho’. Pronto,
visto isso, ora, ‘para cuidarmos bem dele, nós
precisamos que vocês estejam aqui amanhã às
oito horas da manhã; façam um esforço, porque
é muito importante! Vocês querem que a gente
trate ou não o sujeito? Se querem que tratemos, é
preciso que as pessoas venham’. E, na seqüência,
é preciso que nós possamos ir, ir até onde eles
estão, nós temos de instaurar confiabilidade.
Então, o que é que eu estou falando? Estou falando que é preciso fazer uma clínica que leve em
consideração, e, dentre todas as abordagens, a
abordagem desse núcleo é uma abordagem fundamental para que se transforme o modo de relação. Vocês podem pensar que isso é muito difícil,
75
mas eu vou dizer para vocês que não é. Sabem
por quê? Considerando o número de psicóticos,
se a gente tomasse conta deles direito e parasse de tratá-los dessa forma tão fragmentada, tão
mequetrefe, talvez a gente não tivesse esse problema. Se a gente construísse uma tradição de
dar seguimento aos casos de psicose e não esporadicamente, teríamos um número absolutamente
administrável, se a gente tratasse adequadamente.
Eu estou dizendo que todos os serviços de saúde
mental têm de ter uma divisão de atenção familiar,
nós temos de criar essa divisão com um protocolo
que defina a sua presença na emergência, que
defina a sua presença no acompanhamento domiciliar e que, se nós tivermos isso aí, nós vamos
economizar dinheiro, nós vamos economizar uma
porção de coisas. Fazer as coisas de um jeito bem
feito é muito mais barato do que fazer as coisas
de um jeito mal feito. Por quê? Porque do jeito
mal feito a gente tem de refazer a vida toda.
Estou falando disso e me lembrando dos CAPS,
porque os CAPS estão no território e têm a tarefa
de conhecer todos os pacientes que são atendidos pela instituição. E esse trabalho é um trabalho
que pode, efetivamente, oferecer um descortinamento. E isso não é o trabalho com família; o trabalho com família é o apelido disso. Na verdade,
nós estamos trabalhando as relações vinculares
com os sujeitos significativos que estejam na esfera da relação desse sujeito, que sejam determinantes para a produção do seu sintoma psíquico
e que sejam sujeitos-recursos para fazer a reversão, porque, quando o sujeito sai da emergência,
76
o que nós temos de fazer é pegar na mão deles e
levá-lo de volta para casa.
Então, o serviço tem, ao receber o sujeito louco, em surto, a obrigação de voltar com ele para
casa. Então nós temos de ser um serviço que, efetivamente, seja uma referência para o sujeito. Se
não for assim, é porque a gente quer fazer de
outro jeito, uma outra clínica, paliativa, sintomática. O Jonas Melman nos fala dos familiares que
parece que não querem nada com a gente, mas
quando eles são acolhidos, ouvidos, apoiados,
quando eles são convidados por um serviço que
já é de sua confiança, eles se desenvolvem como
grupo, como conjunto, eles multiplicam as suas
possibilidades, fazem intervenções culturais, se
tornam protagonistas das suas próprias vidas.
O trabalho com o grupo primeiro originário do
sujeito não é um detalhe, uma opção; não é alternativo. Ele deve ser eixo no trabalho psicossocial.
Da outra vez, nós trabalhamos aqui que, se juntarmos psicóticos num grupo, estaremos criando a
possibilidade da movimentação de certas coisas,
conteúdos, experiências, emoções, significações
cristalizadas e de estabilização de outras situações
instáveis. Hoje, estou dizendo que, além desse espaço próprio onde eles possam estar e exercer
essa sociabilidade, é preciso abordar o núcleo da
vida deles em torno desses personagens.
Aliás, me referia antes ao fato de que as famílias são essas configurações confusas, lugar de
possibilidade de identificações confusas, e lembrando de um caso de um adolescente muito jovem que teve um filho com uma moça também jovem e depois foi embora e nunca mais apareceu.
Essa criança foi criada como irmã do pai, já que
a diferença de idade não era tão grande assim,
e foi criada por uns pais que não eram seus pais,
mas o padrasto do pai, mas que para ela, efetivamente, era o sujeito que era o pai. Então, veja, é
difícil, não é? Aí ele tinha, na realidade, uma relação transferencial muito forte não com o irmão
que era o pai, mas com um outro irmão que, na
verdade, não era irmão, era tio e acabou se registrando uma situação trágica – esse tio-irmão-pai
foi assassinado, e ele psicotizou. Então, na hora
que fazemos o raciocínio freudiano clássico sobre
o Édipo, a gente pira, não é? Porque, na verdade,
existe uma questão identificatória super complexa,
e essas configurações podem gerar isso e outras
coisas mais. É família?
É, mas não exatamente nas posições, e, se essas configurações afetam os sujeitos do ponto de
vista de produzir o efeito nefasto e de impossibilidade do sujeito se expressar ou se organizar psiquicamente, é esse grupo a potência com a qual
nós temos de trabalhar, porque é esse o grupo
mais sensível. Pode ser que a gente desista desse grupo depois de anos trabalhando, chegando
à conclusão de que não vai sair nenhum coelho
desse mato, mas, antes de desistir, nós precisamos investir, e, se não tiver jeito, a gente passa
para outras configurações, porque sabemos que,
na nossa sociedade, ninguém vive sozinho, e nós
dependemos fundamentalmente dessas relações
vinculares para nos sustentarmos no mundo.
77
Psiquismo e Sociedade: a psicose e os grupos
Marcus Vinicius de Oliveira Silva*
O
psiquismo tem uma dimensão que se expressa no grupo, nas instituições e na multidão.
Essas são as mediações principais: o grupo, as
instituições e a multidão. Essas são as três unidades principais de organização da sociabilidade
que nós temos. É o grupo que pode ser a família;
o grupo que é uma pequena reunião de pessoas
que interagem entre si, em que a instituição já é
uma mediadora – percebam como a instituição
opera mediando, porque vocês vieram aqui, não
porque já se conhecem, mas porque vocês se conhecem da instituição que é a Universidade, então, de alguma forma, aqui está um grupo do Juliano Moreira, ali está um grupo dos estagiários,
algumas pessoas talvez não se sintam pertencendo a nenhum dos grupos. Permanentemente, esse
tipo de processo está acontecendo. Não existe
a possibilidade de nós estarmos no mundo fora
desses registros. Nós estamos imaginariamente,
* Psicólogo, Doutor em Saúde Coletiva IMS/UERJ, Professor Adjunto da Faculdade
de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA, Coordenador do Laboratório de Estudos
Vinculares e Saúde Mental do Departamento de psicologia da UFBA, Criador e Supervisor do PIC - Programa de Cuidados Intensivos a Pacientes Psicóticos.
1- Transcrições da aula de curso “Elementos teóricos para uma clinica psicosocial das
psicoses” set. 2005 Salvador - Ba
78
mesmo quando sozinhos, carregando nossas diferenças e nossos pertencimentos que dão base
para a nossa existência.
Bleger nos ensina que, quando a gente entra
em contato com alguém, com o desconhecido,
quando a gente entra num coletivo desconhecido, nosso movimento psíquico é o de produzir
um certo fechamento, nós produzimos uma certa
adequação paranóide. Na medida em que nós
vamos interagindo com os outros, que vamos adquirindo confiança, nós vamos afrouxando e nós
vamos admitindo o outro. O que é o afrouxar? É
incorporar o outro na dinâmica do meu psiquismo, é, de certa forma, neutralizá-lo como agente potencial de uma agressão, de uma ofensa. E
quando a gente se acostuma com uma pessoa,
a inscreve com uma identidade e valor em nossa
coleção psíquica, a gente não percebe, mas as
pessoas viram suportes de nossas vidas.
Então, a gente vai fazer um trabalho agora
com um texto, e eu queria que vocês notassem
que vocês estavam num enquadre que não obrigava vocês a interagirem entre si. Ora, um regi-
me de contato já estabelecido é uma dinâmica
psíquica, é você funcionando psiquicamente na
relação com os demais humanos que compõem
um quadro no qual você se localiza. A instituição
era o quadro que mediava a relação entre vocês,
mas agora eu os estou mobilizando para uma
interação produtiva com um forte elemento relacional. Então vocês todos agora estarão menos
confortáveis do que estavam, pela iminência que
eu estou apontando agora, para vocês cooperarem com pessoas que vocês não têm intimidade,
que não eram da relação imediata de vocês. Os
mais “tímidos”, os mais “introvertidos”, os mais
“sociáveis” o farão com um estilo próprio de interação que está relacionado com vários aspectos,
alguns exteriores e outros interiores, que envolve
o treino que cada um teve para o exercício da
sociabilidade, a familiaridade com o contexto em
que a mesma se dá – no sentido de conhecimento
prévio das regras do jogo – e também de acordo
com uma estrutura egóica e com os respectivos
mecanismos defensivos que esta estrutura egóica
comporta.
Estou trazendo isso, porque, na questão da psicose, esse fenômeno tem uma característica muito
particular. Durante muito tempo, acreditou-se que
a psicose não fazia laço social. A psicose vivia
num regime de relação tão própria, tão singular,
tão num mundo de significações particulares, que
o psicótico não faria laço social; o psicótico, então, não seria um sujeito que teria a sua disposição essa característica que é uma característica
de todos nós humanos.
O que seria então essa experiência na psicose?
É que esse movimento de regulação, de incorporação do outro compartilhado, de avaliação, de
administração, para nós todos normo-neuróticos,
tem referência numa experiência centralizada,
numa experiência egóica que nos sustenta como
uma ficção unificada diante do outro e a ilusão
do compartilhamento intersubjetivo. É a partir do
ego que nós fazemos os nossos mecanismos de
projeção, de introjeção, dentre aqueles que Freud
chamou de mecanismos de defesa. Então, é nesse movimento de administração do incômodo do
“outro” – o que eu falei para vocês da última vez
e é bom retomar isso - nós temos uma verdadeira
condenação ao “outro”. Essa é uma idéia importante que deduzimos do Freud: nós estamos condenados ao “outro”. Não sei se vocês já pensaram nessa perspectiva: nós estamos condenados
ao “outro” é uma perspectiva muito radical. Nós
não temos alternativa: o “outro” se impõe para
nós como condição inevitável para nossa existência.
Nós podemos falar em dois tipos de solidão:
positiva e negativa. Quando eu falo da solidão
positiva, é da possibilidade de qualquer um de
nós poder se recolher na sua condição solitária,
com o outro, é óbvio, atravessando o imaginário;
mas quando eu falo da solidão negativa, é do
fato de poder se recolher para uma certa introspecção, para um acerto de contas acerca de uma
percepção de mim mesmo, uma certa ruminação
mental, é um movimento que nós fazemos na direção de nos restabelecermos do ponto de vista
desta condição egóica.
Se isso, para nós, é dessa maneira, na psico79
se, isso é muito mais problemático. É isso que é
problemático na psicose, é o controle desse movimento que é muito problemático na psicose. Então, durante muito tempo, a psicanálise afirmou
que o psicótico não fazia laço social. Qual era a
idéia? É impossível analisar o paciente psicótico,
é impossível analisar a psicose. Por que é impossível analisar a psicose? Porque o psicótico não
transfere. Vocês lembram que, da outra vez, eu falei para vocês da questão da transferência. Então,
essa é a dinâmica que é complexa na psicose, é
esse movimento de poder fazer isso, de se destacar, de andar no grupo, de estar exposto.
A idéia é que o delírio é um momento de muita
desorganização. Aí temos de pensar por que é que
alguém delira. O que é o delírio? Nós podemos
pensar que o delírio é uma saída, quando o lugar
onde o sujeito está posto na significação imaginária, o lugar onde ele se põe na significação imaginária é insustentável, impossível e insuportável
para ele. É como se o sujeito, não pelo que ele
é, mas pelo que ele constrói, o lugar de onde ele
se projeta como sendo ele – porque nós estamos
sempre nos projetando, a identidade, como queira chamar esse lugar imaginário onde a gente se
projeta. E, eventualmente, quando o sujeito projetado nessa condição imaginária ou, às vezes,
fruto de uma equação real, de uma situação real
de expressões muito tensas, esse lugar fica insustentável. Então, como ele experimenta isso, como
ele vive isso? Ele vive com uma angústia radical,
impossibilidade de sustentar estar naquele lugar
que significa submeter-se a uma morte ou a uma
destruição.
80
Então, nós podemos pensar o delírio como
uma desorganização benéfica e necessária, que
suspende o regime das significações e libera o sujeito dos sentidos mortíferos em que havia se aprisionado. Quando o Antonio Lancetti está falando,
nesse texto, da experiência da desorganização,
nos ajuda a marcar que esta é uma experiência
muito angustiante. A desorganização é acompanhada por muita angústia, porque é como se fosse
um sem fio, sem rumo, sem direção, sem parâmetro. O sujeito vive a desorganização movida por
muita angústia, e o que o Lancetti está chamando
a atenção é que essa angústia, às vezes, encontra
umas palavras menos virulentas, que desmontam
a ameaça, que criam miraculosamente, podemos
dizer nesse sentido, a repentina sensação de que
aquele delírio não é tão delírio, de que aquela
desordem não é tão desordenada, de que o mundo não vai acabar, de que tem solução.
Então, creio que ele esteja falando em continência, nesse sentido de oferecer um referencial
de alteridade. Então, ele diz assim, nada melhor
que alteridade – e não autoridade. Autoridade é
quando a gente diz assim: ‘pára de delirar, toma
conta, toma tenência, você já está passando do
limite; ô fulano, não fica assim não’. Isso aí é autoridade, é a tentativa de exercitar sobre o sujeito
um certo comando de poder. Autoridade pressupõe ordem, hierarquia, valor, lugar de quem
manda e de quem obedece.
O sujeito está fora da ordem, então o que pode
conter o sujeito? O que pode conter o sujeito é
algo que lhe inspire, de alguma forma, ordem;
que lhe inspire, não que lhe submeta; que lhe ins-
pire, que produza sentido, que produza significação. Então, nós podemos pensar que, quando um
psicótico fala pro outro: ‘olha, eu também já passei por isso e posso te afiançar que daqui a pouco
o seu delírio vai passar’ , isso tem um efeito e um
poder. A verdade que essa fala carrega tem um
imenso poder de afetação do sujeito, diferente da
fala do psiquiatra e do psicólogo que diz ‘ô fulano, fique tranqüilo, vai ficar tudo bem’. Essa fala
produz uma continência para a angústia, essa
fala ressoa pro sujeito. Essa palavra do outro que
dá o testemunho de que isso já se passou com ele
é como se tivesse um poder de comunicação naquele horizonte caótico, poder que a gente despreza muitas vezes.
Poder de comunicação do compartilhamento
da experiência, porque a gente sabe que o trabalho com os Alcoólicos Anônimos e os demais
grupos de auto-ajuda têm uma grande importância, só que, normalmente, com o psicótico, a
gente diz que não vai funcionar, ‘ o que pode um
delírio dizer para outro delírio?’, ‘o que pode um
delirante dizer para outro delirante?’ É como se
houvesse um preconceito de que há uma sociabilidade, mas que não será uma sociabilidade instalada nos moldes que nós instalamos nos grupos
de neuróticos.
Esse regime regular de comunicação produz
algo, mas o que é que nós podemos aproveitar
quando reunimos sujeitos que são marcados por
essa mesma condição? O que é que um oferece para o outro do ponto de vista de suporte, de
sustentação? Como é que esses sujeitos também
entram nesse jogo? É claro que entram, e entram
ao seu modo; se não entram ao modo como nós,
neuróticos, estamos mais acostumados, não podemos desprezar o seu modo de entrar em relação. E a grupalidade, a grupalização dos psicóticos pode ser um passo fundamental para
sustentar essa coisa que responde à problemática
da solidão, que é a de dizer assim: ‘ai, que bom,
existe outro bizarro como eu’, ‘existe alguém tão
bizarro quanto eu’, ‘eu não controlo tudo do ponto de vista da estranheza. Como é que eu compartilho com o outro a diferença que ele tem e
como é que ele compartilha a diferença que eu
tenho. É que eu compartilho, de repente, que há
outras formas de existir, e que elas são legítimas,
que elas têm direito de estar no mundo’. É isso
que um psicótico, às vezes, oferece ao outro, essa
sensação de que existem outras formas, formas
bastante singulares de estar no mundo e que elas
podem se complementar.
Nós, quando trabalhamos num grupo, achamos que o grupo funciona porque um vai falar,
outro vai falar, e as coisas vão se complementando. Mas temos de valorizar o impacto da própria
presença, por isso esse trabalho apresenta sempre
surpresas, porque trabalhamos no grupo como se
ele fosse uma ferramenta para os “nossos” propósitos, os da instituição, queremos fazer grupo para
os interesses particulares, para o benefício de oferecer algo, para a nossa finalidade, nós estamos
sempre pensando que essas pessoas poderão se
encaixar através desse recurso. Então, penso que
o Lancetti nos alerta como se dissesse assim: ‘gente, nós abusamos dos grupos, nós muitas vezes
aviltamos os grupos’, porque, quando estamos
81
trabalhando com pacientes com essas características, nós precisamos suportar o grupo que eles
são, precisamos dar conta desse grupo que é possível e entender que, dentro desse grupo que é
possível, há um trabalho que não depende só da
nossa fala, de nós dizermos coisas para eles, e
que o que eles se dizem dentro de uma dinâmica
grupal, muitas vezes, tem muita potência.
E uma das potências que está em jogo é a potência da continência, de que isso produz continência, de que isso produz um alívio por parte
do sujeito que encontra um referencial para sua
presença na companhia dos demais, um sentido
na companhia dos demais, e é esse sentido que
nós chamamos de continência.
Mas a enfermaria do hospital psiquiátrico não
produz essa possibilidade, apesar de lá encontrarmos muitos pacientes. Talvez a questão seja a de
que nós não patrocinamos, porque isso não é espontâneo, não é da relação de um psicótico com
outro psicótico; pelo contrário, o que nós vemos
é um dar cadeirada na cabeça do outro. É que é
preciso unir um mínimo de técnica, um mínimo de
enquadre, mas é o mínimo, e aí, quando vamos
lá, queremos botar o máximo de ordem, queremos enquadrar tudo. Será que suportaríamos, no
manejo de grupo com psicóticos, essa questão do
mínimo do enquadre, será que daríamos conta
de entender que a nossa tarefa, o nosso papel, é
um mínimo de enquadre, será que vamos suportar assistir o grupo, secretariar o grupo, apoiar o
grupo?
Se não atrapalhamos, já ajudamos muito. Vejam, isso é importantíssimo. A idéia é de que há
82
uma potência no vínculo e na sociabilidade, já
que eles é que sustentam a possibilidade de deslizamento da significação – as significações deslizam a partir dos lugares concretos que o sujeito
pode se colocar diante dos outros sujeitos. A questão psicótica define-se pela questão do sujeito, da
posição que o sujeito imagina que está colocado
diante do outro.
Ora, o grupo é esse espaço onde coisas podem acontecer para o sujeito, muitas coisas podem acontecer para o sujeito no grupo. O grupo
é um espaço de aproximação, de trocas bilaterais. Por que, em um grupo, temos de estar todos
centrados em um mesmo lugar? É isso que pira
os coordenadores de grupo. Quantas interações
transversais se produzem no grupo? O que é que
vai fazer sentido para alguém? A que horas alguma coisa vai fazer sentido? Nós nunca sabemos exatamente; agora, estar em grupo é muito
confortante. É uma coisa muito poderosa, a roda
grupal é uma coisa muito poderosa, talvez vocês
não percebam, porque já estão muito acostumados com isso, mas há um poder nessa configuração em que todos estão diante de todos. Quando
alguém diz algo, ele está dizendo para todos, ele
é para todos.
O samba de roda é lindo nesse sentido, essa
matriz afro-brasileira. É um belo dispositivo cultural de relacionar o particular com o universal,
o direito à experiência narcísica, a administração
do narcisismo. Faz-se uma roda – como se diz lá
na Pirajuía, cada um tem seu samba para mostrar
– e cada um vai lá mostrar o seu jeito de sambar.
Aí todos os outros te apreciam, e o sujeito de-
pois volta para ser o apreciador, para oferecer a
especularidade, porque dançar sem ter ninguém
para olhar não tem graça, não é, mesmo? Então,
a roda, do ponto de vista de dispositivo, tem um
poder muito grande.
Toda vez que resolvemos colocar pacientes psicóticos na roda sem querer previamente que ela
tenha uma missão a cumprir com isso, vamos nos
surpreender... É que nós somos muito produtivistas,
e, muitas vezes, quando estamos atrás dessa certa
produção, nós perdemos de vista o que está se
produzindo nas transversalidades, nessas formas
vinculares. Trata-se de uma relação especial com
o grupo, de sustentação. Então, podemos pensar
que não há grupalidade entre psicóticos - se, por
grupalidade, entendermos essas formulações genéricas e alegóricas que se enunciaram sobre os
grupos. Mas os humanos se tornam humanos em
grupo, e a produção de subjetividade não pode
acontecer sem um processo coletivo. Essa é uma
idéia que precisamos considerar, pois, de modo
geral, somos muito descrentes na ordem de sociabilidade que se produz na experiência psicótica.
A nossa clínica tem de se aportar nisso. Não é
que a clínica psicossocial negue as outras coisas,
mas ela fala: ‘olha, tem um poder aí, um poder
inexplicável, um poder curioso que se estabelece
na relação vincular, produzindo um deslizamento
das relações de significação’.
Tem um texto, no módulo de vocês, que se
chama “O grupo como instituição e a instituição
como grupo”, do Bleger, que traz conceitos muito
interessantes, que são o de sociabilidade organizada e sociabilidade sincrética. Nós temos dois
níveis de sociabilidade, e é o nível de sociabilidade organizada que passa pelo simbólico, que
passa pela interação com o simbólico. Mas, ao
mesmo tempo, existe uma dimensão que ele fala
também que são os estados psicóticos da personalidade. Isso serve para a gente pensar que nós,
neuróticos, somos uma entidade ficcional organizada, em torno da idéia original do ego, um eixo
de ordenamento simbólico. Mas nós não somos
somente ordenamento simbólico, e esse ordenamento sob o regime do ego, tem um poder de
manter submetidas as forças disruptivas, as forças
desorganizadoras, a dimensão desorganizada do
nosso psiquismo.
Gosto de pensar que é um iceberg, uma pontinha organizada para fora e um monte de desorganização profunda. Este seria o estado estável
da organização neurótica. No psicótico, às vezes,
é o contrário, e essa pontinha fica de ponta cabeça, e a desorganização emerge como um todo
visível. Mas o que vale a pena ressaltar é que
uma dimensão de desorganização é constitutiva
da condição humana, e que a desorganização
não é uma ilha, e sim um continente, submetido
à potência da organização simbólica do ego. Se
o ego falha, toda a desorganização emerge. É
fácil perceber isso no cotidiano: diante de situações inesperadas muito invasivas e ou violentas,
na maioria dos sujeitos se produz uma perda do
controle, e a desorganização emerge, numa ruptura com o quadro simbólico. Os sujeitos se tornam irracionais e imprevisíveis.
Podemos pensar também que a sociabilidade
sincrética estabelece um certo estar no mundo
83
que se estabiliza depositando certas dimensões do
psiquismo no outro, que deposita psiquismo nas
coisas e no ambiente, através de uma projeção de
matéria psíquica investida. Um exemplo curioso
disso diz respeito às dificuldades de se produzirem
mudanças nas instituições: nas repartições públicas, quando você quer mudar uma mesa do lugar,
o funcionário resiste. O que é a resistência? Quer
dizer assim, a mesa não é só uma mesa, ela está
ali segurando uma identidade, uma vida, uma experiência, um sentido no mundo, uma certa localização psíquica, espacial e identitária. Por isso
que as instituições não gostam de mudar, porque
se extrai segurança dessas depositações psíquicas
no ambiente, se estabiliza psiquicamente fazendo
essas depositações no ambiente e nas pessoas.
Por isso que se procuram sempre os mesmos grupos e pessoas; as pessoas têm esse poder de nos
garantir uma certa estabilidade para nos referenciar.
Mas, ao lado disso, existe uma sociabilidade
organizada. E a questão no grupo de psicóticos
é que essa dimensão tem vindo à tona, ela surge muito, ela não está sob controle, ela explode
muito como desorganização, e isso, para nós que
coordenamos o grupo, é extremamente inquietante. Então, podemos pensar que, para coordenar um grupo de psicóticos, devemos desenvolver
uma atitude muito plástica, de uma plasticidade
mental.
do capaz de recebê-las. A desorganização não
pode nos atingir ameaçadoramente, a ponto de
ouriçarem os estados desorganizados que mantemos guardados à pena de muita energia dispendida para garantir que a apresentação individual
diante do mundo pareça o de uma pessoa organizada. Muitas vezes, custa, para alguns de nós,
manter a sua dimensão organizada sob seu próprio controle. Aí quando o sujeito se desorganiza
na sua frente, é como se fosse uma convocação
aos seus estados desorganizados.
Nós podemos pensar isso em todas as situações de crise, não só de crise psicótica, mas nós
podemos pensar em situações que se caracterizam como sendo de crise do ponto de vista do
psiquismo e da subjetividade. A leitura sobre a
multidão, sobre o fenômeno da multidão, é muito
interessante nesse sentido do contágio da turba.
A turba é um conceito interessante para a gente
pensar esse funcionamento psíquico: o linchamento, a destruição das torcidas, essa força disruptiva desorganizada que, de repente, é convocada
toda para fora e toma completamente o estrato
organizado, domina o estrato organizado.
Então, essa é uma forma interessante; o Bleger
fala em clivagem, esse movimento que nós temos
de submeter o estrato desorganizado do psiquismo a uma certa subordinação, e como, muitas
vezes, diante da experiência de desorganização
do sujeito, isso convoca que nós reajamos defensivamente. Então, nós podemos pensar que,
Cada vez que fizermos a atividade, isso signifi- na lida com psicóticos, nós temos de levar em
cará acolher esse conjunto de produções, de ex- consideração sempre a possibilidade de que nós
pressões, sem nos afetarmos muito com ela, sen- atrapalhamos, porque reagimos defensivamente
84
frente à produção, nós, muitas vezes, terminamos por resolver os nossos problemas, as nossas
ansiedades, tentando dar conta delas e, de certa
forma, impedindo a expressão do próprio sujeito,
a verdade dele.
Então, por isso é difícil coordenar o grupo ou
o coletivo de psicótico. É preciso ser plástico para
coordenar. Eu acho que nós precisamos, todos,
desenvolver essa capacidade. E falo disso a partir
de um tipo de experiência que tenho compartilhado com outros colegas, nos últimos anos, de
produzir eventos que reúnem quatrocentos, quinhentos usuários do serviço de saúde mental nos
dispositivos políticos chamados de reunião das
“assembléias”. É muito interessante, antropologicamente falando. Quando você reúne duzentos,
trezentos sujeitos que têm essa condição de, às vezes, sair fora e desorganizar, as coisas que acontecem, os esforços para manter a organização, os
tipos de enunciação, os métodos de participação,
as formas de expressão desses sujeitos são muito
interessantes e proporcionam uma grande oportunidade de aprendizagem.
Trago essa informação para dizer assim, que,
com o passar do tempo, talvez esse tipo de experiência traga para nós uma posição um pouco
mais, de fato, não é contemplativa; mas assim,
de abertura para a experiência com a novidade
desse tipo de sociabilidade, e que seja de mais
confiança também, de uma aposta mais decidida
de que a ameaça de que vai tudo se desorganizar tem mais a ver com uma fantasia nossa do
que com as limitações dos sujeitos psicóticos para
estarem juntos em grupos e em coletivos. Acho
que os subestimamos, que, se a gente juntar um
bando de doido, a confusão vai pegar, e a gente
acaba por colocar certas exigências formais que
acabam oprimindo a expressão desses sujeitos.
De qualquer forma, é isso, coordenar grupo não
é fácil. Até que ponto coordenação de grupo corresponde ao que nós aprendemos como coordenação de grupo?
Nós temos um fascínio em descobrir significados. Coordenar grupos, nesse caso, não é dessa
ordem. Nós somos fascinados em significados,
achamos que, se pegarmos o fio da meada do
delírio, se escutarmos aquelas palavrinhas todas
que vêm do delírio e fizermos um esforço, nós vamos compreender, nós vamos entender o que é
que o paciente está falando, que, efetivamente,
o que o paciente está falando não está dito nas
palavras que ele diz, é como tradução da experiência da impossibilidade, e aí fazemos o caminho
de buscar o sentido e a significação.
A questão da interpretação é importante, mas
tem seus limites, porque não se interpreta o vínculo, não se interpreta sociabilidade. “Fulano está
bem com sicrano”, o máximo que eu posso dizer
é: vejam, que interessante, hoje o fulano está tão
bem com o sicrano. Vejam, o que eu estou fazendo é sendo um speaker, um crooner da corrida de
cavalos, do futebol; estou narrando um conjunto
de eventos que está colocado nessa esfera, do
que está colocado, sem profundidade nenhuma.
Fazer essa narrativa do que está acontecendo na
superfície é, muitas vezes, emprestar à narrativa o
papel de sustentadora do vínculo entre os sujeitos,
é uma forma de noticiar para o sujeito aquilo que
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está se dando com ele e que é visível para todos,
que é assimilável por todos.
Então, retomando o texto do Lancetti, vemos
que o grupo produz a possibilidade de uma matéria inventiva, o grupo produz algo de novo como
experiência. E aí ele diz: “vai inteirando uma rede
vincular, os componentes dos grupos vão sendo
atraídos pelos seus companheiros por gestos, por
expressões verbais e por atitudes, as mais variadas, a que denominamos elementos massa”. É
óbvio que nós temos de enfrentar a questão do
mutismo, da destrutividade, do narcisismo que
emerge, da centralidade que um paciente assume
na cena grupal. Mas nós não interpretamos, nós
enfrentamos como questões que estão se dando
ali. Então, esse chamado ‘outro’ não é uma interpretação, mas uma constatação, e isso tem um
grande efeito nessa rede vincular.
Há um dado interessante que temos desenvolvido na nossa clínica no programa de Intensificação de Cuidados, que gostaria de compartilhar
com vocês: a constatação de que o psiquismo se
produz incessantemente e nós podemos escutálo o tempo todo, e não apenas nos settings que
convencionamos! Alguns acham que só se escuta
quando se marca uma hora, um momento particular que o sujeito vai até ali para ser atendido
e o outro para atendê-lo. Não estamos negando
que essa demanda se instaure no paciente psicótico. Eventualmente, ela se instaura mesmo. Mas
o tempo todo que os sujeitos estão nas mais diversas modalidades grupais, eles estão produzindo
psiquicamente, a psicose está produzindo psiquicamente.
86
Então, nosso desafio é, em todos os grupos,
em todos os momentos de reunião, todos os instantes em que o sujeito se agrega ou é agregado
à dinâmica institucional em que é proposta alguma coisa, em todos esses momentos, nós estamos
escutando a produção do inconsciente do sujeito. Em todos os momentos, o inconsciente está se
produzindo, é um presente para o analista, você
não sabe exatamente quando é que algo significativo vai ser despertado, será trazido à tona,
você não sabe qual evento, qual palavra de outro
paciente vai desencadear, como um sinal, para o
outro sujeito na produção profundamente reveladora de um conjunto de experiências que são
marcantes na experiência psíquica desse sujeito.
Então, todos nós que estamos acompanhando
esses sujeitos, somos ouvidos, olhos, percepção.
Então, permanentemente, deve estar havendo
um trabalho clínico de conexão das preciosas
informações que nós precisamos para estruturar
a compreensão do caso. Nós não somos aquele
que vai para a anamnese e fica ali escutando o
sujeito falar sobre si naquele momento. Eu estou
o tempo todo sabendo da relação dele com a
mãe, com os irmãos, das vivências, dos acontecimentos, do dia anterior, de dez anos atrás, da sua
memória mais remota... Essas coisas vêm! Nós
precisamos todos, independente da formação
profissional, seja psicanalista, assistente social, ter
uma leitura e interpretação da psicofarmacologia,
da psicodinâmica da psicose, da compreensão da
psicose enquanto um efeito. Então precisamos todos também desenvolver uma certa interpretação
dos efeitos sociais do psiquismo psicótico. Eu fico
pensando que vemos acontecer muito as pessoas falarem diante de uma agitação, de um surto:
‘leva pra enfermaria, leva pra emergência’. É interessante essa relação que, diante da agitação,
manda levar para a emergência. É curioso esse
modo de operar com os fenômenos com os quais
a gente lida. A agitação também deve e pode ser
escutada.
Todos nós precisamos ter uma apropriação e
uma compreensão do que significa essa posição
psíquica da psicose, todos que vão trabalhar nessa clínica; pois é tendo uma compreensão organizada, que nós vamos poder pensar em como intervir nele, saber que sentido tem essa produção,
para ver que possibilidade nós temos de intervenção. Eu estou trazendo isso, porque os grupos de
trabalho, os passeios, as praias, em todos esses
lugares, os sujeitos estão produzindo psiquicamente. O que nós precisamos é aprender a colher os dados para fazer uma compreensão do
que está acontecendo com estes sujeitos nesses
diversos eventos.
Uma outra coisa relevante seria a coisa do preparo possível para o trabalho com a coisa mental,
o quanto nós somos humanamente defendidos em
relação à desordem da coisa mental, e aí a gente
tem de entender que a defesa que nós temos são
as nossas mediações identitárias. O Franco Basaglia falava disso. Todo recurso que façamos às
identidades corporativas profissionais significa um
esforço defensivo. Defensivo de que e para quê?
Defensivos da desordem e para criar organização
e se proteger através dela.
Não estou querendo dizer aqui que não de-
vamos nos defender – isso seria impossível - mas
essa é uma interpretação interessante, sobretudo
se nós recorrermos à receita técnica. Mas temos
a obrigação de colocar em análise as nossas defesas. Toda vez que a gente deixa de entrar em
contato com o fenômeno para prescrever o que o
fenômeno é a partir de um construto qualquer que
a gente traga mentalmente, a diferença é muito
sutil. A diferença é que, quando você entra em
contato com o fenômeno e vai buscar uma fórmula dentro do saber organizado que você tem para
interpretar o fenômeno ou se você, ao entrar em
contato com o fenômeno, impõe ao fenômeno,
antes de entrar em contato com ele, pela mera
aparência do mesmo, você já o destacou como
uma hipótese.
E, toda vez que a gente trabalha com hipóteses, a gente está fazendo a tentativa de se aproximar do fenômeno e exercer domínio sobre ele,
controlá-lo, porque isso afasta a angústia da ignorância. Uma atitude mais interrogativa é mais
adequada do que uma atitude que tem certezas.
O que será isso aqui? O que é que está acontecendo aqui? Essa curiosidade sincera de saber o
que quer dizer aquilo que o sujeito fala. O que
ele está vivendo, o que está experimentando desperta a empatia. E muito rapidamente, antes de
fazer esse movimento, você diz “é um delírio”, “é
uma histeria”. E isso vai te dar segurança. Isso é
muito sutil, óbvio, porque envolve uma questão
de atitude, de abertura, de disponibilidade, e isso
envolve outra questão que é a nossa relação com
a ignorância.
Nós temos um problema, já que não podemos
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ser ignorantes. As nossas profissões e o exercício
delas está baseado na pressuposição de termos
um saber. Quanto mais as instituições são competitivas, menos nós podemos ser ignorantes. Como
é que eu posso, diante do outro que quer me destruir, me abrir e dizer “desculpa, eu não sei”. Vão
me dizer que eu sou um estúpido, que não sei.
Não estou querendo dizer para entrarmos no registro do gozo da ignorância, mas de poder ter
uma relação tranqüila com a ignorância, porque,
no gozo da ignorância, não se quer saber, se quer
ficar seguro naquele lugar e pronto; é uma posição que não possibilita muita coisa. Falo de reverenciar esse outro tipo de ignorância e construir
uma cultura em torno dela, de poder compartilhar
com o coletivo o não saber, de poder construir
interpretações coletivas sobre o que está acontecendo, poder perguntar como é que o outro está
vendo, admitir que está com dificuldade.
Então, no fundo, nós estamos falando que a
nossa relação com a ignorância depende da nossa relação com o poder, tem a ver com o poder
que nós atribuímos ao saber. Se nós acharmos
que o saber é a coisa mais importante do mundo,
nós não vamos conseguir admitir que não sabemos, mas aí nós estamos colocando o saber num
lugar de falo, e aí, o grupo de psicóticos não decola.
O grupo pode ser um lugar de profundas
aprendizagens, em todos os sentidos, de aprender
a coordenar, de ter de dar conta da ansiedade,
de se perguntar por que aquilo que acontece me
mobiliza tanto e é uma escola e tanto do ponto de
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vista da criatividade psicótica. Nós aprendemos
com a psicose o seu grande poder de reinventar a
forma da vida para o sujeito, recriar a vida do sujeito de uma forma que possa ser viável para ele.
Nós já estamos na metade do curso, então,
não vou mais enganar vocês: não tem nenhuma
novidade nesse assunto de clínica psicossocial da
psicose. O que tem de novo é que, em tudo o
que nós formos fazer, nós vamos considerar que a
questão da sociabilidade e a questão do vínculo
são questões fundamentais para o sujeito psicótico, e a clínica não pode seguir ignorando-as.
A psicose e as relações vinculares:
um esforço de referenciação teórica
Marcus Vinicius de Oliveira Silva*
T
omada como a significação mater, raiz da possibilidade de toda e qualquer significação, a
significação de cada sujeito como um “eu” só
pode ser estabelecida na trama complexa das relações humanas, ensejadas desde a sua aparição
num mundo pré-existente, organizado simbolicamente, no qual ela emerge como uma função do
“outro”.
A aquisição do recurso psíquico da simbolização, condição de uma construção interna do “eu”,
derivaria, nesse caso, da operação original de
ruptura com o patamar da experiência especular
e fusional, onde, ilusoriamente, este sujeito, sem
consciência própria dessa condição, se plasmava
como extensão ou contigüidade dos organismos
adultos que lhe emprestavam sustentação tanto
material como emocional pela via das impressões
e sensações. (Lacan, Escritos)
A operação de censura psíquica fundadora
*Psicólogo, Doutor em Saúde Coletiva IMS/UERJ, Professor Adjunto da Faculdade
de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA, Coordenador do LEV - Laboratório de
Estudos Vinculares e Saúde Mental do Departamento de Psicologia da UFBA, Criador
e Supervisor do PIC – Programa de Cuidados Intensivos a Pacientes Psicóticos.
da significação original do “eu” que se identifica
como uma porção diferenciada nessa mescla indistinta e básica recortaria imaginariamente uma
porção da angustiante experiência possível – marcada pelas características singulares da sua proto-história como sujeito – para criar, ao mesmo
tempo, o ser, o sentido do ser e o próprio regime
da significação.
A contra parte da qual o sujeito se descolou – o
domínio do, a partir daí, definido como “outro”
e “distinto do si” – e os sentidos e significações
que receberá como “outro”, encerrará, portanto,
sempre uma dimensão de arbítrio, resultante do
modo como essa operação de censura buscou
ser eficiente para enfrentar a questão da angústia, mola propulsora da individuação e condição
fundamental de instauração do registro psíquico.
A fundação da sociedade se produz e se reproduz na experiência singular através da qual as
crias humanas, movidas pela angústia, são impulsionadas a instaurar uma clivagem entre o seu
organismo biológico vitalmente autônomo e os
organismos biologicamente autônomos, cultural89
mente estabelecidos, que lhe oferecem suporte e
cuidados para viabilizar o seu desenvolvimento.
Entretanto, mais do que uma direção biologicamente apontada e dada como inevitável, a
individuação psíquica seria uma resultante das
dinâmicas do trabalho singular operado pela
angústia que se instala pelo descompasso entre
a autonomia biológica de dois organismos, desigualmente autônomos, colocados em relação,
sendo que o mais autônomo deles se localiza em
relação ao menos, a partir de um regime de significações que, além de indisponível para esse, inclui uma significação própria para cada um para
o conjunto formado por ambos e instrui e orienta
a ação do primeiro em relação ao segundo.
Assim, seria o descompasso entre as expectativas brutas – biologicamente orientadas - do organismo indistinto e as resultantes da movimentação
culturalmente orientada do adulto o que ofereceria a base experiencial da angústia geradora do
movimento da individuação psíquica, marcada
por uma profunda especificidade em cada situação, responsável pelos modos absolutamente
singulares de como cada indivíduo se significa
no mundo, bem como, ao mesmo tempo, estabelece certas possibilidades para a existência do
“outro”.
Ao mesmo tempo, tal condição explicaria certos modos ou direções do “arranjamento psíquico” dos sujeitos, a partir do caráter melhor ou pior
sucedido dessa operação, sucesso compreendido
como uma eficiência no enfrentamento da angústia através da aquisição do registro simbólico.
O recurso à simbolização seria percebido, desse
modo, como um mecanismo de defesa contra as
ansiedades persecutórias através de uma operação de controle do mundo pela via da sua incorporação interna como significação1.
Tal seria a marca distintiva da estrutura existencial que caracterizaria os sujeitos designados genericamente como “psicóticos”: um modo singular de arranjamento psíquico em que se evidencia
o caráter precário dessa operação fundamental
em que se estabelece a possibilidade da instauração de um psiquismo compreendido como uma
delimitação ficcional da existência de um “eu”
que guarda em si um registro do “outro” e que
pressupõe nos outros empíricos a possibilidade de
que contenham algo do “eu próprio” como lócus
identitário, base da organização simbólica e interna do mundo.
A precariedade estaria dada pela descompensada construção do “outro” como instância interior (introjeção) ao psiquismo ou como possibili-
1 - Tal hipótese, de extração psicanalítica, oferece interessantes possibilidades para
pensar a instauração do psiquismo como instauração orgânica do regime social da
vida humana, rompendo com a dicotomia indivíduo /sociedade. A instauração do
psiquismo individual converte a cria humana em “sujeito social”, ao estabelecer,
concomitantemente, o acesso ao registro simbólico da cultura pela via singular da
demarcação do “eu” e do “outro”, como matriz ou base de apoio de toda a sucessão de significações que a partir daí se tornam viáveis. A aquisição individual do
psiquismo, baseada na aquisição do registro matriz do “eu” e do “outro” constitui-se,
portanto, numa operação social em todos os sentidos: porque o pressupõe – o social
– como sua condição radical; porque resulta das primeiras relações de “socialização”
do candidato a sujeito com os outros humanos da cultura; porque estabelece as condições básicas da identidade por diferenciação, etc. Tornar-se “sócio” da sociedade
é, portanto, realizar a operação de censura imaginária, num certo estágio do
desenvolvimento, permitindo a instalação de uma instância do “eu” como uma
função derivada da imposição da existência autônoma do “outro”.
90
dade da pressuposição no “outro” (projeção) dos
registros que seriam próprios do “eu”, condição
básica da regulação das relações vinculares mediadas simbolicamente.
Dessa forma, o efeito de alienação, que pressupõe a ilusão da intersubjetividade, é constituído
na condição do bem sucedido arranjo psíquico
ao modo da neurose:
“É assim que, em toda esta relação com o outro, haverá essa ambigüidade para o indivíduo,
que se trata de alguma maneira de escolher, ele
ou eu, que em toda relação com o outro, mesmo
erótica, haverá algo do eco que se produzirá desta relação de exclusão que se estabelece a partir
do momento em que o ser humano é um individuo
que, sobre o plano imaginário, é constituído de tal
maneira que o outro é sempre prestes a retomar
este lugar de domínio em relação a ele, enquanto que nele há um eu que é sempre, em parte,
alguma coisa que lhe parece de algum modo estranho, que é uma espécie de senhor implantado
nele acima das tendências globais suas, dos seus
comportamentos, de suas pulsões... a síntese do
eu não se faz nunca, alguma coisa que talvez fosse melhor chamar de função de senhorio, de domínio. E este senhor, onde está ele? No interior?
No exterior? Está sempre, ao mesmo tempo, no
interior e no exterior; e é por isso que qualquer
equilíbrio puramente imaginário com o outro sempre é atacado por uma espécie de instabilidade
fundamental” (Lacan, Seminário de 18 de janeiro
de 1956, apud Mannoni, M. , 1967)
Ainda seguindo a mesma construção, poderíamos dizer que tal jogo oscilatório instalado no psiquismo humano seria a condição de produção da
própria vida social, como um registro possibilitador das trocas, em diversos níveis, entre os sócios
neuróticos da sociedade. Na psicose, os arranjos
psíquicos disponíveis, resultantes das construções
possibilitadas pelas interações dos sujeitos com o
ambiente – material e humano - instabilizariam
radicalmente a posição do sujeito em relação ao
“outro”, posto ora na condição da proximidade
excessiva e fusional própria do registro simbiótico
ora na condição de alteridade radical paranoicamente ameaçadora. Deste modo, enquanto o
registro psíquico “normo-neurótico” do funcionamento da vida social2 pressupõe como condição a alienação vincular – colocado o vínculo
como modo fundamental de ligação com o outro,
“philia”3 – propiciadora da ilusão do compartilhamento intersubjetivo; no registro da psicose, o
“outro” aparece como um elemento enigmático
diante do qual o psicótico titubeia, problematiza a
2 - O individualismo moderno, conforme anteriormente referido, veio problematizar
sobremaneira a condição destes sujeitos com registros precários da instauração do
psiquismo, conferindo-lhes a condição de baixa funcionalidade social, na medida
em que toda a avaliação e validação do sujeito social está baseada na competência
performática dos indivíduos, medida sobretudo pela sua capacidade de interação
com os outros indivíduos.
3 - Aristóteles afirma que, como o homem é um ser social, não basta ser bom intrinsecamente, mas sim atuar na comunidade como um ser político. Se ele deve atuar, não
pode prescindir de ser afetado por meio da noção de philia. Não se traduzem philia
e philos simplesmente como amizade e amigo. Philia inclui os variados vínculos, bem
como os mais afetivamente intensos. Os requisitos básicos para que haja autêntica
philia: Reciprocidade - a philia exige compartilhar e devolver o benefício e o afeto.
Independência: o philos deve ser percebido como um ser totalmente independente,
dotado de um “bem próprio”, e o verdadeiro philos deseja o bem do outro por ele
mesmo, “a troco de nada”. Os philoi devem ser e perceber-se reciprocamente como
centros individuais de decisão e ação. A necessidade da convivência é fundamental
91
volvidos em iniciativas do tipo psicoterapêuticas
ou, como enunciamos, para o “preparo para
o trabalho com a coisa mental” ou ainda para o
trabalho com as dimensões da subjetividade.
Mais do que simplesmente estabelecer uma
compreensão acerca do que hoje é possível denominar como fenômeno transferencial - dos modos de atualização de certos afetos originalmente
reprimidos, reeditados em certas circunstâncias
específicas e direcionados a um agente estrategicamente posicionado diante do sujeito – a noção
de transferência, como um saber do agente sobre
si mesmo, inaugura novas possibilidades de que
este agente suporte certas cargas afetivas, que,
não fora esse o recurso, imprimiriam ao relacionamento em questão destinações absolutamente
Vínculo, fragilidades vinculares e tecnologias
imprevisíveis.
de gestão social
Saber de natureza originalmente intelectual
A descoberta da transferência ou a invenção da – como conceito que pode ser apreendido e que
noção de transferência por Freud pode ser con- incide sobre a subjetividade do agente - a noção
siderada como a matriz de toda a produção de de transferência opera por via de uma clivagem
tecnologias de intervenção relacional que reco- psíquica que, objetivamente, alarga as possibilinhecem a condição do “outro” - alvo de alguma dades da experiência do mesmo, permitindo-lhe
iniciativa intencionada de um agente especializa- um certo exercício de controle dos efeitos nele
do - como um sujeito. No advento da transfe- provocados pelos afetos que lhe são dirigidos
rência, podemos identificar também a condição pelo outro sujeito, ao separar a sua pessoa dainaugural que estabeleceu as bases dos processos quela identidade de agente da função exercida.
Ao modo do teatro, é possível ao agente susde uma “formação possível” para os agentes ententar como personagem – a função analítica
para os philoi. “Não há nada tão característico do amor como a convivência”. Os
pode ser pensada como uma interpretação de um
philoi devem conviver, compartilhar atividades intelectuais e sociais e o gozo, o prazer
sofisticado papel – e não como a sua pessoa mespela companhia do outro. “A convivência é preferível a tudo”.
ma, certas cargas de afetos endereçados, sem se
deixar, imediatamente, afetar por isso, no sentido
reacional. Ao mesmo tempo em que se alarga a
relação e encontra limitações relacionais.
Poderíamos pensar, portanto, os psicóticos
como uma dissidência vincular – “os arautos do
vínculo” – pois eles oferecem visibilidade para o
mais elementar dos traços da vida social, estabelecidos como condição mesma da própria, a saber,
o fenômeno através do qual o compartilhamento
simbólico se torna possível entre os sujeitos não
apenas a partir da aprendizagem vinculante de
signos e significados como a partir da sua introjeção tornada possível pela formatação psíquica de
cada indivíduo como um sujeito da cultura. Dos
embaraços vinculares da psicose, das estratégias
organizadoras dos seus “arranjamentos”.
92
possibilidade de suportar as expressões da afetividade alheia, pela via de uma desidentificação
com a condição de sujeito originariamente destinatário da mesma, torna-se possível ao agente
manejar essa relação afetiva no sentido de certos
objetivos pré-estabelecidos como terapêuticos.
Como conceito capaz de produzir um efeito
subjetivo no agente alargador da sua capacidade
de “suportar” a experiência do outro e sustentar
diante dela uma intervenção eticamente dirigida
a certas finalidades, a invenção da transferência
como um conceito operacional inaugura um novo
modo de relação entre teoria e prática, no que diz
respeito à clínica, edificando as bases de todo o
preparo para lidar com a coisa mental.
De algum modo, tal como ocorre mais explicitamente com o conceito de transferência, todos os
conceitos operativos da clínica mental deveriam
colaborar para a produção de uma expansão,
para uma ascese subjetiva, da condição prévia do
sujeito em treinamento para uma nova condição,
em que resultaria alargada a sua possibilidade
objetiva e subjetiva de suportar um conjunto de
fenômenos e expressões que lhe são dirigidas em
função do seu trabalho pelos sujeitos atendidos
e que, não fora tal recurso, impactar-lhe-iam de
modo absolutamente diverso.
Mas é de outra natureza a conseqüência que
achamos mais significativa e que devemos destacar em relação à invenção freudiana do conceito de transferência. Tal como ela foi postulada,
revela uma forma específica, no olhar de Freud,
de modo de vinculação entre dois sujeitos marcados por certas características dentre as quais
ele destacou a diferença objetiva e subjetiva de
posição que permite a atribuição de autoridade
a um dos pólos da relação, a demonstração de
disponibilidade e interesse em relação às questões trazidas pelo outro pólo, a suposição de que,
no pólo oposto, se encontraria alguém com um
saber capaz de atender a certas necessidades do
mesmo e a repetição regular do encontro entre os
dois, etc.
Como afirma Zigouris (2002) “Freud introduziu no ocidente um vínculo até então inédito entre duas pessoas, dois desconhecidos: chamouo “transferência”. No início de sua atividade,
referia-se à relação médico-doente, mas muito
rapidamente esse novo conceito veio a designar
não mais o encontro médico-paciente, e sim um
vínculo específico em relação ao inconsciente, às
pulsões e à repetição. No início, a transferência
foi transferência de amor... e, para Lacan, “alguma coisa em relação ao amor”.
Desde aí uma interrogação cultural não cessa de se produzir: o que desse campo relacional, definido originalmente como relativo a certas
relações de características específicas – médicopaciente, professor-aluno, chefe-comandado –
seria compartilhado e poderia nos informar sobre
o conjunto das relações humanas “amorosas”,
socialmente estabelecidas, em suas distintas versões, mesmo nos casos em que os sujeitos nos
parecessem neutros afetivamente ou revestidos de
“amorosidades” negativas ( desprezo, raiva, asco,
irritação).
93
Em que poderíamos articular essa noção de
transferência com as dinâmicas mais gerais do
modo de produção dos “afetos”, tomados transitivamente como os impactos ou efeitos produzidos
subjetivamente em um sujeito a partir da presença real ou imaginada de um outro sujeito ou de
símbolos, objetos ou coisas ligados a outro sujeito
ou sujeitos? E como derivar daí uma abrangência
extensiva para a noção de vínculo como uma noção central para a compreensão das dinâmicas
psiquismo/sociedade?
Aí se torna necessário introduzir a questão da
significação como uma questão referida ao vínculo. A relação entre dois ou mais sujeitos encontrase sempre antecedida pela significação que cada
um deles atribui a si mesmo e pela significação
adquirida pelo(s) outro(s) para o sujeito que com
ele interage. Isso fica reforçado pela idéia de que
as relações de dependência são básicas em todas
as relações sociais: dependência real, simbólica
e/ou imaginária. É impossível existir fora das relações de dependência.
De algum modo, podemos formular que todas as relações humanas sejam entre humanos e
lugares, entre humanos e objetos de sentido humano, pressupondo, portanto, a presença desse
elemento vincular, pois o campo da significação,
o campo simbólico da cultura, se constitui a partir
das relações do tipo vincular. O sentido é a forma
mais elementar do vínculo: vínculo entre um signo
e um significado mediado pela experiência singular do sujeito promotor dessas articulações.
Tais temas derivados dessa apreensão tão original da obra freudiana vêm sendo desdobrados
94
em esforços teóricos variados de esclarecimento,
que constituem o campo do manejo das relações
vinculares, estabelecendo as bases das tecnologias de intervenção social, incluindo aí as tecnologias do tipo psicoterapêuticas ou sócio-terapêuticas.
De alguma maneira, a invenção da transferência veio introduzir um suporte teórico para o manejo técnico de relações interpessoais no interior
dos quadros institucionais reguladores do governo da pessoa, encontrando-se presentes nos mais
variados projetos de gestão social, tanto como recurso para a reprodução disciplinar da sociedade
quanto como recurso de administração dos seus
elos mais frágeis.
Fazendo o PIC acontecer
*Todos os nomes dos pacientes citados nos artigos a seguir são fictícios.
A Clínica Psicossocial da Psicose:
Aprendizagem, Cuidado Intensificado
e Reinserção Social
Adriana Bittencourt Nunes*
Ana Luísa Marques Fagundes**
Isadora de Andrade Pinheiro***
Lucineide Santiago de Souza****
Milena Silva Lisboa*****
Resumo: O presente artigo objetiva relatar a
experiência de um ano vivida por estudantes de
Psicologia e Terapia Ocupacional, atuando como
acompanhantes terapêuticos de pacientes com
transtorno mental e desenvolvendo trabalhos de
cunho biopsicossocial. As atividades foram realizadas com o apoio de uma instituição psiquiátrica
(Hospital Especializado Mário Leal) tendo como
premissa básica promover a reinserção social e o
estreitamento de vínculos dos pacientes. Para tal,
foram utilizados, fundamentalmente, os pressupostos teóricos da clínica psicossocial da psicose que
contribui para um novo olhar sobre o fazer clínico
e sobre o fenômeno da psicose. Ademais, esta experiência de estágio curricular contribuiu para a
formação profissional e acadêmica dos estudantes, demonstrando a possibilidade de construção
de novas formas de intervenção, pensamento e
reflexão acerca do fenômeno em questão.
* Estudante de Psicologia da UFBA e ex-estagiária do PIC
** Psicóloga graduada pela UFBA e ex-estagiária do PIC
*** Psicóloga graduada pela UFBA e ex-estagiária do PIC
**** Psicóloga graduada pela UFBA e ex-estagiária do PIC
Introdução
A busca de uma atuação em saúde mental que
respeite a integridade e autonomia dos psicóticos
e seja capaz de oferecer o suporte necessário aos
pacientes e familiares de maneira menos invasiva
é um desafio constante para todos os profissionais
da área. Desde meados do século passado, vêm
sendo propostas, no Brasil e no mundo, alternativas terapêuticas que vão além do velho recurso da
internação psiquiátrica. Na Bahia, tais propostas
ainda se encontram muito pouco desenvolvidas,
de modo que merecem uma atenção especial os
esforços empreendidos nessa perspectiva.
O programa de estágio implantado pela Universidade Federal da Bahia, em parceria com a
Fundação Bahiana para o Desenvolvimento dsa
Ciências (FBDC) e a Secretaria de Saúde do Estado da Bahia, vem inaugurar uma nova forma de
***** Psicóloga graduada pela UFBA e ex-estagiária do PIC
97
atuação e formação em saúde mental em Salvador. O Programa de Intensificação de Cuidados
a Pacientes Psicóticos (PIC), implementado em janeiro de 2004, insere-se na perspectiva de uma
clínica psicossocial da psicose e objetiva oferecer
cuidados intensivos a alguns pacientes atendidos
pelo Hospital Especializado Mário Leal (HEML),
situado no bairro do IAPI, em Salvador, Bahia. A
equipe inicial contou com a participação de sete
estudantes de graduação de Psicologia da UFBA
e cinco de Terapia Ocupacional da FBDC, supervisionados por dois professores das referidas
áreas de saber. Dentre os principais objetivos do
programa destacam-se o fortalecimento das redes de suporte social dos pacientes e a promoção
de discussões acerca das novas formas de atuação em saúde mental no ambiente acadêmico,
contribuindo para uma prática profissional mais
competente e ética.
A proposta do Programa coaduna-se com
as reflexões da reforma psiquiátrica e com as diretrizes da nova legislação em saúde mental. A
reforma psiquiátrica, ao analisar os fundamentos
do modelo assistencial do hospital psiquiátrico,
constata sua incapacidade para a atenção à saúde mental, no que diz respeito à promoção do
bem-estar físico, mental e social dos seus usuários. O modelo centrado na instituição do hospital
psiquiátrico não permite a participação da comunidade, já que centraliza as decisões e dificulta
a participação dos pacientes e de seus familiares
na gestão do tratamento de uma forma integral
e preventiva. Ademais, promove a exclusão dos
pacientes, o estigma social e a alienação quanto
98
à própria doença, anulando o papel do portador
de sofrimento psíquico enquanto agente e sujeito;
rompe-se, assim, com os direitos humanos e civis
(GOFFMAN, 1985).
Diante disso, uma reforma psiquiátrica
pautada na necessidade de reestruturar esse modelo de dominação e domesticação dos pacientes
caminha na direção de promover modelos alternativos que tomem como centro da discussão e
foco de atuação a comunidade e suas redes sociais. A Declaração de Caracas (1990), enquanto
um documento que expressa essa necessidade de
uma reforma psiquiátrica, propõe que a legislação em saúde mental garanta os direitos humanos e civis dos usuários, descentralize a assistência através da promoção de serviços comunitários
e aloque a assistência a emergências psiquiátricas
em hospitais gerais.
A lei n˚ 10.216, de seis de abril de 2001, protege os direitos humanos e civis dos “portadores
de transtorno mental”, sem qualquer tipo de discriminação. São listados nove direitos: melhor tratamento referente às suas necessidades; tratamento
com humanidade e respeito; proteção contra exploração ou abuso; sigilo de informações; acesso
aos meios de comunicação; assistência médica;
conhecimento sobre a doença; tratamento com
os meios menos invasivos possíveis e, preferencialmente, em serviços comunitários. Além de
garantir os direitos fundamentais para um tratamento mais humano, a lei prevê a criação de políticas em saúde mental pelo Estado, oferecendo
a possibilidade de participação da comunidade.
Atendendo à necessidade de descentralização, a
lei também incentiva a reinserção social do doente e desestimula a internação psiquiátrica.
A reforma psiquiátrica e a nova legislação vêm
lançar um novo olhar sobre a loucura, abordada
tradicionalmente de forma excludente devido a
uma série de fatores. Em primeiro lugar, a loucura reflete um mal-estar social, denuncia que algo
está funcionando mal. Em nossa cultura, a única
forma de existência que a loucura encontra é sob
a forma de doença. A vida do sujeito fica limitada
ao tratamento, sendo que o projeto-doença, de
fato, é a única forma de se ter o sofrimento reconhecido; sofrimento que, na verdade, é social. O
louco funciona como porta-voz de um mal estar
que diz respeito a toda sociedade, e sua diferença representa uma ameaça ao modus vivendti da
mesma. O modo de abordar a alteridade da loucura é, conseqüentemente, a exclusão. (CARRETEIRO, apud GARFUNKEL, sd).
A exclusão denuncia a falta de recursos da sociedade para lidar com o psicótico e acaba por
fragilizar as suas redes sociais. Qualquer atuação
que vislumbre a inserção social deve debruçarse sobre a questão vincular, passando a valorizar
os laços sociais. Na psicose, uma dificuldade na
formação de vínculos coloca essas pessoas numa
posição diferente no mundo; qualquer abalo na
sua estrutura de vínculos pode significar uma dificuldade na sua experiência subjetiva compartilhada e individual.
A vulnerabilidade relacional do psicótico está
calcada na forma de estruturação psíquica do sujeito. A dificuldade de inserir-se no mundo e criar
instâncias de significações relevantes configura-se
a partir de uma espécie de retorno aos padrões de
comportamento vivenciados no desenvolvimento
infantil. Os conceitos de depositante, depositado e
depositário de Pichon Rivière (apud Bleger, 1977,
p.20) contribuem para a compreensão da psicose
enquanto fenômeno intrapsíquico. Esta teoria estabelece um tripé, no qual o sujeito (depositante)
projeta determinado conteúdo (material depositado) sobre o outro ou si mesmo (depositário), uma
vez que a introjeção do mesmo pode causar desestabilização psíquica (BLEGER, 1977).
O sujeito psicótico utiliza a transferência autista e simbiótica para relacionar-se com o outro e o
mundo externo; o autismo e a simbiose como formas de vinculação remetem às relações narcísicas,
pois estas se dão com objetos internos (material
depositado, mente, corpo). Autismo e simbiose
coexistem, o que permite compreender o caráter
paradoxal das relações objetais de psicóticos, a
alternância entre relações de profunda dependência e outras de isolamento/distanciamento. Tanto
a simbiose quanto o autismo são expressões dos
conflitos de dependência/independência, que têm
por base uma cisão entre o projetado e o introjetado. No autismo, o sujeito deposita conteúdos
sobre parte de seu próprio corpo e/ou mente,
distanciando-se do mundo externo, enquanto na
simbiose, há uma interdependência entre duas ou
mais pessoas, com o objetivo de satisfazer as necessidades da parte mais primitiva (imatura) da
personalidade, mantendo-a imobilizada. A depositação simbiótica maciça e frágil ocorre sobre o
mundo externo (outro). Não obstante, ambas as
maneiras de vinculação funcionam como meca99
nismos que visam a conservação do estado psíquico (certo grau de organização) através da não
intervenção do mundo externo e conservação do
princípio do prazer. Na simbiose, embora o vínculo pareça muito intenso, há um empobrecimento
do depositário, que funciona como mero locus de
depositação. É com o material depositado que o
psicótico se relaciona, não com o outro propriamente.
Estes padrões narcísicos de vinculação podem
ser compreendidos sob a luz da teoria Kleiniana.
M. Klein (apud BLEGER, 1977) denomina estado
esquizoparanóide à fase do desenvolvimento infantil na qual a criança começa a distinguir características contraditórias presentes em um mesmo
objeto. É o estágio em que a diferenciação está
presente e se faz necessário dividir, separar, para
que, posteriormente, o ego possa se estruturar solidamente.
O retorno ao autismo e simbiose como padrões
de relacionamento remetem à fase desenvolvimental anterior, ao estado esquizoparanóide. Nesta
fase, a criança encontra-se em um processo de
indiferenciação. Não há clivagem entre eu e nãoeu. Os aspectos contraditórios e divergentes fazem parte de um todo e não são percebidos como
tais pelo sujeito. É uma fase caracteristicamente
ambígua e contribui para a formação da parte
psicótica da personalidade ou núcleo aglutinado,
esfera mais desorganizada, densa e complexa.
Esta, como um amálgama fusional, permanece
separada do ego na vida adulta. É exatamente a
parte psicótica da personalidade que é projetada
pelo paciente, como uma espécie de organização
100
primitiva e depositada no mundo externo de maneira intensa (simbiose) ou sobre o próprio indivíduo (autismo), já que sua reintrojeção ameaçaria
a parte mais organizada do ego (parte neurótica
da personalidade) (BLEGER, 1977).
Em grupos narcísicos ou simbióticos, as pessoas não se vinculam de forma objetiva. Cada
uma delas representa para as demais mero depositário de suas tensões. Por outro lado, cada
sujeito internaliza e atua papéis correspondentes
às tensões dos demais (BLEGER, 1977). Tal tipo
de organização grupal é freqüentemente encontrada em famílias de psicóticos, especialmente na
relação entre os pacientes e seus cuidadores primários. Constantemente, ocorre uma fusão entre
o material depositado e o depositário, de modo
que o depositário acaba assumindo o papel que
foi nele projetado, contribuindo para a não distinção entre o mundo interno e o mundo externo do
psicótico.
Assim, a partir do entendimento da estruturação psíquica pertinente à psicose, pode-se compreender a outra face deste fenômeno (além das
questões de cunho sócio-histórico) que contribui
com o processo de estreitamento e ruptura dos
laços sociais e com a dificuldade de inscrição do
sujeito no mundo.
A partir da compreensão de tal dificuldade vincular dos psicóticos, a qual freqüentemente é fortalecida pela exclusão social da loucura, as novas
atuações em saúde mental se direcionam para a
inclusão através de uma atuação biopsicossocial.
Novas formas de cuidado começaram a ser
pensadas como alternativas à exclusão dos muros
do manicômio: Centros e Núcleos de Atenção Psicossocial (CAPS e NAPS), Lares Abrigados, Casas
de Acolhimento e hospitais gerais. A psicologia
aparece aqui como uma abordagem que atenta para a questão dos sujeitos psíquicos em suas
dimensões familiares, sociais, políticas e econômicas. A direção da mudança caminha do isolamento para a convivência social da loucura, por
mais difícil e paradoxal que possa parecer. Fazer
caber a loucura no seio da sociedade de origem
passa a ser o objetivo quando se acredita serem
os vínculos sociais os suportes para o convívio. O
caminho da ressocialização da loucura tira das
mãos da psiquiatria a tarefa de compreender e
tratar o louco em asilos de exclusões, e coloca a
comunidade em contato mais direto com a loucura, criando novas formas de relacionamento e
novos recursos interacionais e institucionais.
É dentro dessa perspectiva que o Programa de
Intensificação de Cuidados se insere. A partir da
criação de espaços terapêuticos pouco convencionais, o Programa foi sendo pensado e construído para atender em torno de 30 pacientes divididos em dois grupos, em sua maioria, psicóticos
jovens provenientes da internação ou ambulatório
do HEML. Em diversos contextos de atuação, que
ultrapassam os serviços oferecidos pelo HEML, a
escuta de suas subjetividades foi realizada, ampliando a própria noção de clínica e fortalecendo
uma atitude transdisciplinar que gira em torno da
noção de cuidado.
A noção de cuidado, segundo Roselló (1998)
é uma derivação da idéia de fragilidade humana.
Não se trata de querer solucionar a tragédia, mas
de compartilhar o sofrimento e estar presente. Trata-se não de piedade, mas de reconhecimento da
sua própria fragilidade para a compreensão da
fragilidade do outro. Cuidado implica uma atenção especial aos aspectos que podem estar sendo
negligenciados para uma aproximação do sofrimento do outro. Isso requer uma apreciação do
sujeito de uma maneira mais integral, para além
das especificidades das áreas do saber.
Os espaços considerados terapêuticos foram
organizados em diferentes categorias: encontros
semanais no hospital, visitas domiciliares regulares, encontros com cuidadores, passeios terapêuticos, acompanhamento a consultas, contribuições no encaminhamento de documentações e
benefícios, além de atendimentos psicoterápicos
de caráter individual ou participação em oficinas
terapêuticas, quando se detectavam estas necessidades. Essas atividades podem estar inseridas nos
modos de atuação conhecidos como grupos terapêuticos e acompanhamento terapêutico (AT).
A noção de manejo aparece, no campo do AT,
como técnica privilegiada de atuação, partindo
do princípio winnicottiano (apud Barretto, 1998)
de que o indivíduo se desenvolverá caso encontre
condições favoráveis, cabendo ao acompanhante
terapêutico (at) suprir as falhas ambientais. “(...)
o manejo se refere a uma intervenção no setting
(enquadre) e/ou no cotidiano do sujeito, levando
em conta suas necessidades, sua história e a cultura na qual está inserido, a fim de promover seu
desenvolvimento psíquico. É através dessa técnica
que se exercerão as diversas funções ambientais
que são fundamentais na constituição do self de
101
um sujeito” (BARRETTO, 1998, p.196-197).
Barretto (1998) descreve onze funções do at, as
quais foram referenciais para a prática do estágio:
Holding (função de amparo, apoio, sustentação,
estar junto com, fornecendo à pessoa a experiência de continuidade, constância); Continência
(envolve a compreensão da situação angustiante
por um outro significativo e discriminação desta,
de modo que se possa, através da imaginação,
transformar as experiências do sujeito); Apresentação do objeto (possibilitar a vivência de uma
experiência completa em que o sujeito se interesse por um objeto, ouse usá-lo e, por fim, possa
separar-se dele); Handling (função de manipulação corporal e contato com as necessidades corporais); Desilusão (capacidade de discriminação
entre a realidade subjetiva e a realidade compartilhada); Interdição (associada à função paterna,
ao terceiro objeto que interfere na relação simbiótica mãe-bebê. A interdição só é enriquecedora
se o sujeito tiver vivenciado anteriormente a experiência de satisfação); Interlocução dos desejos e
angústias (não se trata de interpretar o paciente,
mas sim de atentar para suas questões psíquicas
relacionadas aos desejos e necessidades que são
expressas por preocupações, angústias, dúvidas
através de conversas cotidianas); Discriminação
de campos semânticos (apreender as significações do discurso para ampliar o campo da experiência, oferecendo novos olhares, novos recortes
do fenômeno); Função especular e emergência
da função estética (ocorre a partir do encontro
com o outro ou com um objeto da cultura que
revela um aspecto do próprio self); Função de ali102
viar as ansiedades persecutórias (objetiva permitir
que o indivíduo estabeleça uma troca enriquecedora consigo e com a vida, já que intensificadas,
as angústias paralisam o mundo psíquico do sujeito); Modelo de identificação (o at pode auxiliar no desenvolvimento de diversas funções psíquicas, como responsabilidade, cuidado pessoal,
além de, muitas vezes, servir para resgatar algum
aspecto da história do sujeito).
Tais funções foram exercidas nos diversos espaços de atuação do PIC. Os encontros semanais
dos dois grupos foram realizados no ambulatório
do HEML (às segundas e quintas-feiras) e tinham o
objetivo de estimular e fortalecer a sociabilidade.
Tarefas e temáticas que dizem respeito a algumas
questões que ressoam diferentemente no modo de
viver psicótico (como a vivência do corpo, a autonomia, os projetos de vida) foram trabalhadas,
sempre relacionadas com a criação e o fortalecimento de suas redes sociais. O grupo tornou-se,
ao longo do tempo, um espaço de troca de experiências, onde amizades foram construídas junto
com o sentido de cuidado e atenção.
É essencial observar a relação do sujeito com
a família, visto que esta representa o grupo primário, o qual, geralmente, funciona como depositário no núcleo aglutinado. Desse modo,
constata-se que o paciente comporta-se de maneiras divergentes, estando na presença do grupo primário ou de grupos secundários. É comum
a sensação de perda de sentido da realidade na
presença do grupo primário, justamente porque
o sujeito entra em contato com a parte da personalidade que foi projetada, ou seja, a primitiva e
imatura. As visitas domiciliares proporcionaram o
entendimento dessa dinâmica, já que foi possível
entrar em contato mais direto com o cotidiano dos
participantes do programa, compreender suas dinâmicas familiares, suas redes de apoio locais e
como transitam, vinculam-se e se colocam diante
do outro. Cada paciente era visitado regularmente por uma dupla de estagiários que cuidava de
forma mais próxima e intensa das peculiaridades
de cada caso. Essa aproximação possibilitou intervenções mais fundamentadas nas interações
desses pacientes junto a seus familiares, amigos e
cuidadores. Assim, pôde-se interferir nos padrões
de relacionamento objetais que poderiam estar
trazendo dificuldades à sociabilidade. Foi possível
também uma apreciação dos recursos sociais e
institucionais acionados pelos seus cuidadores em
momentos de crise.
Segundo Melman (2001), algumas teorias
psicológicas contribuíram para a instauração da
idéia da família como causa de doença mental,
a exemplo da psicanálise e da teoria do duplo
vínculo. Pode-se ir além dessa concepção, considerando a família como um contexto, retirando
a culpabilização materna do seio da cultura e do
técnico de saúde mental o papel de juiz. Ou seja,
não se trata de considerar o sujeito inocente e
o entorno familiar culpado, mas sim de compreender o sujeito para buscar facilitar os vínculos.
Pode-se ir ainda mais além, pensando a família
não como causa ou contexto, mas como recurso.
Família passa a ser a solução ao invés de problema. Isso implica a escuta, o acolhimento, de
fato, da família, sem limitá-la apenas ao papel de
controle do sujeito.
Dentro dessa perspectiva, o Programa de Intensificação de Cuidados realizou encontros com
os cuidadores. Essas reuniões configuraram-se
como trocas de experiências em um espaço onde
dúvidas, medos, preocupações, crenças, idéias e
sugestões foram ouvidas e compartilhadas, onde
o sofrimento e a alegria daqueles que convivem
cotidianamente com a psicose puderam ser escutados e validados.
Uma vez que as atividades externas mostraram-se de cunho terapêutico, por se tratarem de
iniciativas legitimadoras do convívio social e do
exercício dos direitos e deveres que os pacientes
merecem dispor, alguns pacientes com dificuldade de sair do ambiente familiar puderam, com os
passeios, sentir-se mais seguros para transitar em
outros espaços, o que viabilizou o aumento da
autonomia. Os vínculos estabelecidos com pacientes e estagiários ofereceram a continência necessária para que o sentimento de pertença grupal garantisse segurança e confiança.
Acompanhamentos a consultas psiquiátricas e
neurológicas possibilitaram uma maior compreensão do fenômeno da psicose em seu aspecto
fisioquímico, auxiliando na lida diária com os benefícios e dificuldades trazidas pelas medicações
psiquiátricas. O acompanhamento concomitante
dos pacientes junto a psiquiatras ambulatoriais
trouxe importantes benefícios para uma clínica
que acredita na não internação, mas que se beneficia do saber psiquiátrico medicamentoso, o
que contribui para o diálogo entre os diversos saberes que atuam na saúde mental.
103
Tarefas como tirar documentos, dar entrada ao
benefício de aposentadoria, denunciar abandono
ao Ministério Público, acompanhar consultas clínicas, podem não se configurar como uma atuação
propriamente de cunho psicológico, mas através
delas foi possível abordar questões centrais nas
vidas dos pacientes (às vezes questões emergenciais) tornando-se mais um meio de aproximação
de suas subjetividades. São atitudes transdisciplinares como estas que devem permear o modo de
atuação dos profissionais de saúde que querem
cuidar da psicose numa perspectiva ampliada em
favor da ressocialização.
Após mais de um ano do início das atividades do Programa de Intensificação de Cuidados,
observa-se uma melhora significativa no quadro
clínico da maioria dos pacientes, merecendo destaque a redução das reinternações e o aumento
da autonomia e dos laços sociais dos mesmos. As
recaídas e pioras que aconteceram durante o ano
foram abordadas pelos cuidadores de uma forma
mais compreensiva e cuidadosa, surgindo outros
recursos sociais e institucionais, como a procura
pela emergência psiquiátrica, a ida a uma igreja, a conversa mais estimulada e a escuta mais
atenta. O recurso da internação começou a ser
questionado pelos pacientes e seus cuidadores;
alternativas mais acolhedoras trouxeram as crises
psicóticas para mais perto do convívio social e
mais longe da exclusão do manicômio.
Percebe-se também um amadurecimento profissional dos estudantes dentro de uma perspectiva de atuação, em geral, pouco trabalhada nos
104
meios acadêmicos tradicionais. Além disso, o caráter inovador e transitório deste tipo de atuação
é cerceado por algumas questões de ordem macro. O enquadramento de atuação calcado na
psiquiatria tradicional dificulta a viabilização de
propostas que ultrapassem este molde. O Estado, os serviços de saúde e a própria cidade não
estão preparados para lidar e dar suporte a um
portador de transtornos psíquicos que seja mais
autônomo, mais cidadão. A internação como recurso terapêutico é largamente utilizada, destarte
os esforços que convergem para o oposto desta situação. O paciente ainda não tem um lugar
genuíno de escuta nestas instituições tradicionais,
o que pode ser confirmado nas consultas médicas de curta duração. Também ocorre, freqüentemente, a falta de medicação nas farmácias,
que prejudica o andamento do tratamento. No
entanto, alguns espaços como o promovido pelo
PIC têm surgido, com uma visão mais integrada
e abrangente. Trata-se de uma visão psicossocial
que compreende o tratamento não só do ponto
de vista médico (através do uso de medicações)
como também envolve a família e a comunidade,
com o intuito de resgatar laços sociais. A predominância do modelo médico em detrimento de
uma abordagem mais flexível dificulta muito a
prática das mudanças preconizadas pela Reforma
Psiquiátrica. Muitas barreiras hão de ser enfrentadas pelos profissionais engajados nessa luta, mas
as conquistas alcançadas, ainda que longe do
considerado “ideal”, podem ser encaradas como
vitórias e estímulos para os que desejam que seja
destinada uma outra posição para o “louco” em
nossa sociedade.
Referências
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Terapêutico: andanças com Dom Quixote e Sancho Pança.
São Paulo, UNIMARCO, 2000.
BLEGER, J. Simbiose e Ambigüidade. Rio de Janeiro, Ed.
Francisco Alves, 1977.
Declaração de Caracas. 14 de novembro de 1990.
GARFUNKEL, J. L. Inclusão/Exclusão: Limites e Possibilidades desse conceito. São Paulo, Instituto de Psicologia
PUC – SP, p. 9 – 26, s/d.
GOFFMAN, E. Manicômios, prisões e conventos. São
Paulo, Editora Perspectiva, p. 109-143, 173-259 e 261312, 1985.
Lei n˚ 10.216, de 6 de abril de 2001.
MELMAN, J. Família e Doença Mental. São Paulo, Escrituras, 2001.
ROSELLÓ, F.T. Antropologia Del Cuidar. Cap. 8: La radical vulnerabilidad del ser humano. Institut Borja de Bioética.
Fundación MAPFRE Medicina. Espanha, 1998.
105
Programa de Intensificação de Cuidados: Um Caminho para
a Qualidade de Vida
Fernanda Abreu R. Nascimento*
Resumo: O presente artigo é um resumo de
monografia do curso de Terapia Ocupacional da
Fundação Bahiana para Desenvolvimento das Ciências (FBDC) / 2005, que tem como título “Programa de Intensificação de Cuidados: Um Caminho para a Qualidade de Vida”. O Programa de
Intensificação de Cuidados (PIC) é um trabalho de
acompanhamento de cunho biopsicossocial destinado a portadores de transtornos mentais desenvolvido por professores e estudantes de psicologia e medicina da Universidade Federal da Bahia
(UFBA) e de Terapia Ocupacional da FBDC em
parceria com Hospital Especializado Mário Leal
(HEML). Este trabalho consistiu numa pesquisa
de campo, onde buscou-se avaliar as mudanças
que podem ter ocorrido na Qualidade de Vida dos
usuários inscritos no programa.
*Terapeuta ocupacional graduada pela FBDC e ex-estagiária do PIC
106
Introdução
A
o longo da história, a forma de ver e tratar
o doente mental tem sido transformada e
reconstruída. O Programa de Intensificação de
Cuidados (PIC) para psicóticos do Hospital Especializado Mário Leal é um trabalho de acompanhamento de cunho biopsicossocial desenvolvido
por estudantes da Universidade Federal da Bahia
e da Fundação Bahiana para Desenvolvimento
das Ciências, sob a supervisão de professores que
idealizaram o programa. A partir de uma lógica de
trabalho que tenta transpor as barreiras manicomiais, o PIC, compartilhando com os pensamentos da Reforma Psiquiátrica, vem questionando o
saber clínico da psiquiatria clássica e construindo
um novo olhar e fazer clínico no cuidado aos portadores de transtornos mentais.
Reconhecendo que a psicose é um fenômeno
de intensas ressonâncias sociais que fragilizam as
relações interpessoais do sujeito, o PIC dispensa
uma atenção intensiva aos aspectos das vincula-
ções sociais com vistas à melhoria da continência social e qualidade de vida do paciente. Para
atingir tais objetivos, os estudantes do programa
realizam um trabalho de acompanhamento terapêutico a esses pacientes, que inclui visitas domiciliares, encontros grupais e familiares, passeios,
assessoramento e outros.
Foi realizado um estudo, onde se buscou avaliar se o programa tem sido um dispositivo que
promove a Qualidade de Vida dos usuários inscritos no mesmo e a repercussão na vida daqueles.
Tal pesquisa foi apresentada no trabalho de conclusão de curso do curso de Terapia Ocupacional
da FBDC no ano de 2005, que tem como título
“Programa de Intensificação de Cuidados: Um
Caminho para a Qualidade de Vida”.
O impacto da doença mental repercute imensamente na qualidade de vida dos portadores de
transtornos mentais. Um estudo feito pelo The
Global Burden Disease (OMS / Banco Mundial /
Harvard) revelou que das dez doenças mais incapacitantes no mundo, cinco são de natureza psiquiátrica. (PITTA, 2000).
A OMS definiu qualidade de vida (QV) em um
conceito amplo que inter-relaciona o meio ambiente com aspectos físicos, psicológicos, nível de
independência, relações sociais e crenças sociais.
Essa organização define qualidade de vida como
“a percepção do indivíduo de sua posição na
vida no contexto da cultura e sistema de valores
nos quais ele vive e em relação aos seus objetivos, expectativas, padrões e preocupações” (The
WHOQOL Group, 1995, apud FLECK, 2000).
Esse conceito valoriza a percepção própria do in-
divíduo frente a todas as dimensões de sua vida.
Metodologia
Para a realização da pesquisa, foi aplicado um
questionário com dez pacientes inscritos no PIC
que foram escolhidos através dos seguintes critérios: não estar institucionalizado e estar participando há mais de um ano do programa.
A elaboração do questionário foi baseada no
Instrumento de Qualidade de Vida da WHOQOL-100, considerando os aspectos que mais se
relacionam aos objetivos do PIC e ao cotidiano
dos portadores de transtornos mentais, buscando
avaliar as mudanças que podem ter ocorrido na
qualidade de vida dos pacientes pela participação no PIC.
O questionário é composto de 24 itens, que
podem ser agrupados em categorias, conforme
segue: Relacionamentos Sociais (averigua as relações com familiares e amigos do sujeito), Atividades Sociais (averigua as atividades que o indivíduo tem realizado), Estado de Saúde (averigua a
saúde do indivíduo quanto à freqüência de internações, bem como sua dependência de terceiros
e utilização de medicações), Auto-estima (averigua sentimentos positivos em relação a si mesmo)
e Projeto de Vida.
Dos dez pacientes participantes da pesquisa,
sete são do sexo masculino e três do sexo feminino, sendo que as idades variaram entre 20 e 43
anos. Cinco possuíam o primeiro grau incompleto, um tinha o primeiro grau completo, três com
segundo grau incompleto e apenas um com se107
gundo grau completo. Nove eram solteiros e um
casado. Apenas um entrevistado possuía emprego
remunerado, dois dependiam da renda familiar e
sete recebiam benefício do INSS.
Resultados
Segundo os dados obtidos referentes à categoria de Relacionamentos Sociais, percebeu-se uma
mudança significativa quanto ao sentimento de
solidão. Os dados mostraram que a maior porcentagem de pacientes – 80% – passou a se sentir
menos sozinho. Verificou-se também que 80% dos
pacientes conseguiram fazer novos amigos, apenas 20% deles não conseguiram ampliar o número de amizades, continuando com os mesmos
amigos de antes. O resultado mostrou que 60%
das pessoas afirmaram ter tido melhora na convivência com as pessoas em casa, enquanto 20%
delas disseram que continuou ruim a relação, e
os outros 20% disseram que a relação sempre foi
boa. A maioria dos pacientes - 70% - passaram
a receber mais ajuda de outras pessoas. Metade
respondeu haver mudança no quadro de atividades que realiza com outras pessoas, e a outra
metade diz não ter havido mudança. 50% dos pacientes disseram que sentimentos depressivos e de
tristeza diminuíram, em 30% não mudaram esses
sentimentos, enquanto que 20% disseram nunca
se sentir assim.
Sobre a categoria de Atividades Sociais, 50%
dos pacientes disseram sempre ter saído de casa
para passear ou fazer outras coisas, 30% disseram que não passaram a sair mais de casa para
108
realizar essas atividades. Dentre os motivos para
isso, alguns responderam não ter vontade, não
ter oportunidade ou a confiança da família para
sair mais de casa. Os dados apresentaram que
30% dos pacientes passaram a se sentir mais seguros para sair de casa sozinhos, enquanto 30%
ainda não se sentem confiantes. A maioria dos
pacientes - 80%, disseram sempre ter feitos coisas
para se divertir. Os dados mostraram que mais da
metade dos pacientes – 60% – voltou ou passou
a realizar atividades fora de casa. Dentre essas
atividades, encontram-se: voltar aos estudos, freqüentar a academia, dar aula de dança, freqüentar a igreja e vendas de produtos por encomenda.
Apenas 20% não passaram ou voltaram a realizar
alguma atividade.
Referente à categoria de Estado de Saúde, os
dados mostraram que a maioria dos pacientes já
estiveram internados, sendo que 30% já estiveram
várias vezes e 30% já estiveram, porém poucas
vezes. Verificou-se que a maioria do pacientes 70% - não se internaram nesse ultimo ano, 20%
foram internados poucas vezes e 10% foram internados, mas apenas uma vez. 40% dos pacientes
passaram a tomar sua medicação corretamente,
sem precisar da ajuda de outra pessoa; 10% passaram a tomar, mas ainda precisando de orientação; enquanto a maioria dos pacientes – 50%
– disseram sempre ter tomado corretamente. Os
dados destacam que nenhum dos pacientes teve
a quantidade de remédios aumentados, enquanto
70% pacientes tiveram a medicação diminuída. A
maioria dos pacientes – 80% – tiveram menos necessidade de ir ao médico, enquanto apenas 20%
não diminuíram a ida ao médico. Observou-se
que para 60% dos pacientes, houve uma melhora no quadro de sono, enquanto para 20% deles
nada mudou. Metade dos pacientes passou a ter
bons sentimentos em relação a si mesmo, enquanto 20% disseram não haver mudança nesse
quadro, e 30% sempre se sentiram bem consigo
mesmos.
Em relação à categoria de Auto-Estima, observou-se que metade dos pacientes disse achar que
as pessoas passaram a se importar mais com eles,
sendo que 20% responderam que não acham que
passaram a ser mais percebidas pelas outras pessoas. Observou-se que 50% dos pacientes responderam que sempre sentiram vontade de se
cuidar e se arrumar, porém 30% disseram que
houve mudança nestas questões e 20% não têm
sentido vontade de cuidar de si. Metade dos pacientes passou a acreditar mais na sua capacidade de realizar suas atividades, enquanto apenas
20% relataram não ter havido mudança quanto
ao sentimento de capacidade para fazer bem as
coisas.
No que tange à categoria de Projeto de Vida,
ficou bem destacado que a maioria dos pacientes
– 60% – sempre tiveram um sonho a ser realizado,
20% passaram a ter um e 20% não possuíam um
projeto de vida. Dentre os projetos de vida relatados pelos pacientes estão: ter um carro, comprar
uma casa melhor, estudar, casar, ter filhos, dar
continuidade à carreira profissional e ficar bom.
Discussão
De acordo com as questões referentes à categoria de Relacionamentos Sociais, pode-se notar
que houve uma mudança significativa para melhor nesses aspectos. Os dados mostram que os
pacientes passaram a se sentir menos sozinhos.
Tais achados podem estar relacionados ao aumento do número de amizades, a um maior apoio
prestado pela família ou vizinhança, à realização
de atividades fora de casa junto com outras pessoas, pela própria presença constante dos acompanhantes terapêuticos (ats). Logo, esses fatores
podem também ter influenciado na diminuição de
sentimentos de tristeza e depressão.
As atividades realizadas pelo PIC, como o funcionamento do grupo com os pacientes, podem
ter contribuído para a formação de novos amigos,
pois é um dispositivo que proporciona a eles um
espaço de construção de novas amizades, que alguns conseguem manter fora do ambiente institucional. Para muitos, depois da doença, os amigos
se afastam, às vezes, até os próprios parentes. A
doença também causa um grande peso na estrutura familiar, tornando a convivência doméstica
ruim e conflituosa. Os ats atuam muito no sentido
de intermediar as relações entre os pacientes e
seus familiares que, em alguns casos, não compreendem as dificuldades psíquicas do doente,
orientando e conscientizando estes sobre a importância de assumirem a responsabilidade de se cuidar. Quando se consegue o apoio dos familiares
ou do cuidador, estes passam a melhor valorizar o
sujeito. Em algumas situações, quando os familia109
res se dão conta da atenção prestada ao doente
pelos ats, também acabam por mudar o trato com
estes. O grupo de familiares do PIC proporciona
a troca de experiências. Todos esses são fatores
que podem ajudar na convivência familiar, o que
é de extrema importância para o sentimento de
acolhimento do psicótico. A intervenção na rede
social do paciente também é realizada, principalmente quando o paciente não possui uma família.
Muitas vezes, faz-se necessário fazer parceiros na
comunidade do indivíduo que possam colaborar
com os objetivos do programa.
Na categoria relacionada às Atividades Sociais
dos pacientes, destacou-se também um aumento
no quadro de pessoas que voltaram ou passaram
a realizar atividades fora de casa. Segundo as repostas obtidas na pesquisa, voltar aos estudos, freqüentar academia, dar aula de dança, freqüentar
a igreja e vender produtos por encomenda foram
as atividades mencionadas por eles. Esses dados
são um bom sinal de mudança, na medida em
que, quando estão estudando, estão ampliando
seu conhecimento, suas oportunidades e sua rede
de relações, assim como quando realizam alguma atividade remunerada, que proporciona uma
melhora de suas condições econômicas e sociais.
Muitos, quando ficam doentes, deixam de fazer
suas atividades costumeiras, principalmente os estudos e o trabalho, tornando-se ociosos. Existem
famílias que não incentivam e até não permitem
que o doente volte ao trabalho ou estude, pois
considera que essas atividades podem provocar a
recaída deles. O próprio estigma da doença mental leva-os a acreditar que são incapazes de reali110
zar qualquer tipo de atividade, desprestigiando-os
socialmente e diminuindo sua auto-estima.
Esta questão pode ter ligação com o sentimento de capacidade para realização de certas atividades. Segundo os dados, 20% dos pacientes
relataram não se sentirem capazes. Alguns se desestimulam facilmente e não se sentem seguros
frente às dificuldades, deixando de acreditar em
si mesmos e na sua capacidade de fazer suas atividades costumeiras. Por isso, desistem de continuar essas atividades, seja o trabalho, os estudos,
algum curso, etc, e acabam também por diminuir
sua rede de relações sociais, já que muitos passam a se isolar, ficando a maior parte do tempo
em casa. Também é importante comentar que alguns pacientes se acomodam quando passam a
receber o benefício pelo INSS e não acham mais
necessidade de fazer alguma atividade, como as
discutidas anteriormente.
A mudança no quadro de atividades realizadas
pelos pacientes pode ter sido influenciada pela
intervenção dos ats junto ao paciente e a sua família. Os ats incentivam o paciente, ajudando-o a
encontrar segurança e desmistificar seus anseios.
E, quando necessário, faz-se uma intervenção familiar quando, em alguns casos, os parentes não
são a favor que o indivíduo retorne a esses tipos
de atividades.
De acordo com a categoria referente ao Estado de Saúde, percebe-se um bom resultado nas
freqüências de internações psiquiátricas. Nota-se
que apenas 20% dos pacientes não tinham sido
internados antes do programa, sendo que, dos
que já se internaram, apenas 30% relataram te-
rem sido internados várias vezes. Porém neste último, a maioria – 70% – não ficou internada, 20%
ficaram poucas vezes e 10% uma única vez. Esses dados são muito importantes, uma vez que se
trata de um dos principais objetivos do PIC. Este
programa pode ter contribuído para essa redução
do número de internações psiquiátricas, devido a
um acompanhamento constante dos estagiários
aos pacientes, que estavam atentos aos sinais e
sintomas da doença, intervenção familiar através
de conversas e orientações quanto à experiência
que o sujeito passa na internação e continência
nos momentos de crises.
Os dados referentes ao controle e freqüência
no uso de medicações mostraram que a metade
dos pacientes sempre tomou corretamente as medicações, 40% passaram a tomar sem precisar de
ajuda e 10% passaram a tomar, mas ainda necessitam do auxílio de outra pessoa. A correta medicação é bastante importante para a estabilidade
psíquica do paciente, reduzindo o número de crises e a probabilidade de futuras internações. É tarefa também dos ats orientar os pacientes quanto
à importância de tomar os remédios corretamente e também tornar os familiares parceiros nesta
função quando se fizer necessário. Outro dado
importante relacionado à saúde do doente apresentou que para 70% dos pacientes a medicação
foi diminuída. Os pacientes se queixam que algumas medicações estimulam o sono e os deixam
indispostos para fazer as atividades do dia-a-dia,
e estimulam o apetite, engordando-os.
Considerações finais
A convivência com os não iguais é o que se
tem buscado nesta luta em prol daquelas pessoas
que sofrem de algum transtorno psíquico. Num
momento social em que se prega e valoriza os
direitos humanos, a cidadania e a democracia, o
programa tem procurado oferecer um tratamento
que permita a esta clientela viver em liberdade,
respeito, dignidade e reconhecimento de seus pares, pois é essa condição desse sujeito no mundo,
como alguém que pertence, se relaciona, pensa,
decide, escolhe e participa, que se encontra mais
afetada, refletindo na diminuição da sua qualidade de vida.
O PIC, aos poucos, tem conseguido alcançar
seus objetivos, promovendo mudanças significativas na vida do paciente, atuando e mediando as
relações sociais destes. É imprescindível conhecer
e fazer parte do cotidiano desses indivíduos para
ser colocado no lugar de depositário de confiança e, conseqüentemente, estabelecer um vínculo
capaz de permitir as intervenções nas diversas situações de cada um.
A maior repercussão da doença mental se dá
no campo dos relacionamentos sociais, razão
pela qual o programa procura mediar as relações
interpessoais dos pacientes, reconhecendo a importância desse convívio para a estabilidade psicossocial do indivíduo.
De acordo com os resultados da pesquisa realizada, podemos constatar que um bom número de
pacientes conseguiu formar novos vínculos e fortalecer outros, passaram a estar menos isolados e
111
a receber mais apoio e ajuda familiar, tornando
a relação mais sustentável e tranqüila; ampliaram o número de amizades, passaram a realizar
atividades externas, como retornar aos estudos,
trabalho, saídas para passeios e outros, atividades que ocupam o tempo e dão sentido à vida.
Merece destaque também a redução do número
de internações psiquiátricas durante o ano, pois
estas desestruturam e interferem na vida social e
cotidiana do sujeito.
Este modelo de tratamento tem uma repercussão positiva, pois não exclui e não interrompe a
vida do sujeito, dá continuidade a ela no seu próprio meio social. O acompanhamento terapêutico
dispensa uma atenção especial ao indivíduo e o
faz sentir valorizado, pois há espaço para escuta
de suas subjetividades, desejos, partilha de novos
vínculos e experiências que o ajudam a compreender e dar sentido ao seu mundo de significações. Essa prática se torna importante por levar
em consideração aquilo que é de significado para
o indivíduo: sua família, suas atividades, seu cotidiano, seus desejos, projetos, etc., eles passam
a perceber que a doença mental não invalida a
capacidade das pessoas e que muitos podem ter
uma vida ativa, trabalhando, estudando e se relacionando.
A despeito das respostas positivas que o programa vem alcançando, sua realização tem representado um grande desafio para os estudantes,
que, ao longo de seu caminho, têm enfrentado alguns obstáculos. Este trabalho exige comprometimento, disponibilidade de tempo e recursos financeiros. A maioria dos pacientes foi selecionada
112
a partir dos casos mais graves, pois são estes os
que mais se encontram à margem da sociedade
e necessitam de um cuidado especial. Alguns demandam maior atenção, requerendo tempo para
um acompanhamento mais constante. Muitas residências visitadas são distantes, implicando num
investimento financeiro significativo.
Outro grande desafio a ser vencido é o que diz
respeito à forma de pensar das pessoas na família
e na comunidade acerca da doença mental que,
na maioria dos casos, está baseada fortemente
na exclusão e no preconceito. Isso se reflete numa
resistência e falta de apoio ao modelo de tratamento proposto, pois a concepção de excluir para
tratar está arraigada na mente das pessoas, além
de ser, muitas vezes, uma condição cômoda para
a família, a comunidade e a instituição.
Pode-se concluir, então, que, apesar das dificuldades encontradas, o Programa de Intensificação de Cuidados é um dispositivo que, ao seu
tempo, tem promovido a qualidade de vida dos
pacientes. Para o programa, esta busca da qualidade de vida não se limita a eliminar os sintomas
que o indivíduo produz para, assim, normalizá-lo
e adequá-lo dentro da sociedade, mas antes de
tudo, reconhecê-lo como um ser humano capaz
de conviver no seio social com suas diferenças e
ampliar suas possibilidades sociais que proporcionam uma melhora na sua qualidade de vida.
Referências
FLECK, M. P. DE A. O Instrumento de avaliação de qualidade de vida da Organização Mundial da Saúde (WHOQOL – 100): características e perspectivas. Ciência & Saúde Coletiva, ABRASCO. Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, 2000.
MINAYO, M. C. S.; HARTZ, Z. M. A.; BUSS, P. M. Qualidade de vida e saúde: um debate necessário. Ciência
& Saúde Coletiva, ABRASCO. Rio de Janeiro, v. 5, n. 1,
2000.
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Projeto desenvolvido no Brasil pelo Grupo de Estudos em Qualidade de
Vida. Versão em português dos instrumentos de avaliação
de qualidade de vida (WHOQOL). Porto alegre. Universidade Federal do rio de Janeiro, 2001.
PITTA, A. M. F. Qualidade de Vida: uma utopia oportuna. Ciência & Saúde Coletiva, ABRASCO. Rio de Janeiro, v.
5, n. 1, 2000.
113
Programa de Intensificação de Cuidados: Uma Experiência de Intervenção
Psicossocial
Allann da Cunha Carneiro*
Lygia Silva Pedreira de Freitas**
Resumo: Este artigo objetiva descrever o Programa de Intensificação de Cuidados, vinculado
ao Hospital Especializado Mário Leal. Esse programa coaduna-se com as novas diretrizes políticas
de atenção à saúde mental e atende pacientes
psicóticos, em sua maioria, jovens, em casos de
primeira internação ou de internações recorrentes sobretudo por motivações sociais. A clientela
é proveniente da internação e ambulatório do
HEML, selecionada e indicada pelos profissionais destes setores, com base nos critérios supracitados. Parte-se da perspectiva teórica e prática
de uma clínica psicossocial da psicose, que visa
proporcionar aos pacientes inscritos uma ação
intensiva dirigida aos aspectos da sociabilidade
e das vinculações sociais, com vistas à melhoria
da continência social e da qualidade de vida dos
mesmos. Para tanto, são realizados encontros de
grupo semanais, visitas domiciliares, reuniões com
cuidadores, etc. Os resultados dessa experiência
têm apontado para uma melhora significativa no
*Picólogo graduado pela UFBA e ex-estagiário do PIC
**Psicóloga graduada pela UFBA e ex-estagiária do PIC
114
quadro clínico dos pacientes, com aumento de sua
autonomia e redução das internações e das crises;
busca por outros recursos terapêuticos que não a
internação, fortalecimento dos vínculos sociais e
ampliação das redes sociais de apoio, além de
um significativo amadurecimento pessoal e profissional dos estagiários. Introdução
O
Programa de Intensificação de Cuidados a
Pacientes Psicóticos (PIC) integra o programa de estágio supervisionado de Psicologia e Terapia Ocupacional, a partir de uma parceria entre
a Universidade Federal da Bahia e a Fundação
para o Desenvolvimento das Ciências com a Secretaria de Saúde do Estado da Bahia. Uma equipe multidisciplinar, composta por estudantes de
Psicologia (UFBA) e Terapia Ocupacional (FBDC),
atende pacientes psicóticos que já utilizavam serviços tradicionais em saúde mental do SUS, como
internações, emergências e serviços ambulatoriais
psiquiátricos.
Este programa insere-se na perspectiva de uma
clínica psicossocial da psicose e tem por objetivo
proporcionar aos pacientes inscritos uma ação
intensiva dirigida aos aspectos da sociabilidade
e das vinculações sociais, com vistas à melhoria
da continência social e da qualidade de vida dos
mesmos. Busca-se, sob esta perspectiva, interferir na dinâmica da “carreira manicomial” dos
pacientes, diminuindo a recorrência das reinternações; fortalecer as redes sociais dos mesmos,
ampliando os suportes extra-assistenciais de base
familiar e comunitária; colaborar com os objetivos assistenciais da unidade por via da promoção
de discussões e seminários teóricos, bem como
ampliar os recursos humanos disponíveis por via
do trabalho dos estagiários e supervisores; e, por
fim, contribuir para a formação profissional dos
estagiários no campo da clínica psicossocial, oferecendo referências teóricas e técnicas compatíveis com as novas diretrizes políticas de atenção
à saúde mental.
No campo da reforma psiquiátrica, onde se
percebe a atuação de diversos saberes, encontrase a formulação de programas baseados no modelo de reabilitação psicossocial, em que são oferecidos aos indivíduos incapacitados e debilitados
a “oportunidade de atingir o seu nível potencial
de funcionamento independente na comunidade.
(...) Inclui assistência no desenvolvimento das aptidões sociais, interesses e atividades de lazer que
dão um senso de participação e de valor pessoal”
(Organização Mundial de Saúde, 2001, p. 94).
De acordo com a nova legislação brasileira
de saúde mental, fundamentada na Lei 10.216,
de autoria do deputado Paulo Delgado (PT-MG),
que entrou em vigor em seis de abril de 2001, o
sistema de atendimento a pessoas com transtorno mental passa a ter como princípio norteador
a substituição progressiva dos hospitais psiquiátricos por recursos extra-hospitalares, tais como
os CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) e NAPS
(Núcleo de Atenção Psicossocial), Lares Abrigados, Casas de Acolhimento e Hospitais Gerais.
Nesse sentido, busca-se oferecer aos pacientes
psiquiátricos um tratamento mais amplo e de melhor qualidade, em que a internação só ocorra
quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes. Para tanto, é primordial um
maior investimento na rede de apoio social, no
intuito de que esta se implique no tratamento, já
que toda pessoa portadora de transtorno mental
deve “ser tratada com humanidade e respeito e
no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcançar sua recuperação pela inserção na
família, no trabalho e na comunidade” (Ministério
da Saúde, 2004, p. 17).
Essa reorientação do modelo de assistência em
saúde mental inaugura, dessa forma, um novo
olhar sobre as abordagens dos transtornos mentais, marcado pela crítica ao reducionismo biologizante, em que a internação dos pacientes e
a utilização indiscriminada dos psicofármacos se
constituem na única estratégia terapêutica eficaz.
Assim, o progresso das neurociências e da psicofarmacologia apontam para a importância de se
demarcar um limite ético no questionamento das
práticas que incidem sobre o sofrimento do paciente psiquiátrico (Assad et all, 2003).
115
Vínculo social e psicose
A abordagem psicossocial, nesse contexto,
mostra-se como peça chave no trato com a loucura, em virtude de uma das principais questões
que se colocam diante do sujeito psicótico dizer
respeito à formação de vínculos e conseqüente exclusão social. Esse sujeito, por ter uma acentuada
dificuldade de estar no mundo com o outro, tende
a formar vínculos sociais muito frágeis. Acrescido
a isso, há a idéia de que “lugar de louco é no
hospício”, amplamente difundida e, sobretudo, o
próprio embaraço do outro em lidar com ele, já
que o louco torna flagrante a loucura e a possibilidade de desorganização presente em cada um.
Esses fatores favorecem a exclusão do psicótico
através de sua internação em hospitais psiquiátricos. Esse afastamento do convívio social e as
precárias condições de tratamento, por sua vez,
cronificam o quadro patológico, tornando o retorno do paciente à sociedade ainda mais árduo.
A vulnerabilidade relacional do psicótico está
alicerçada na forma de estruturação psíquica desse sujeito. Bleger (1977) considera que o homem,
no início de seu desenvolvimento enquanto sujeito, passa por um período de indiferenciação primitiva, em que não consegue estabelecer um limite entre si e o mundo externo. Ainda que não haja
essa distinção, cabe salientar que se trata não de
um estado de indiferenciação, mas de uma organização particular que inclui, sempre, o sujeito e
o meio que o circunda. Quando a personalidade adulta organiza-se a partir da persistência de
núcleos dessa etapa inicial (núcleos aglutinados),
116
tem-se o surgimento de uma personalidade ambígua, com traços, simultaneamente, de simbiose
e autismo.
Para uma melhor compreensão desses dois fenômenos, faz-se necessário um breve comentário
acerca dos conceitos de depositante, depositado
e depositário, oriundos dos estudos de Pichon Rivière (apud Bleger, 1977). O tripé por ele formulado é composto por um sujeito (depositante) que
projeta determinado conteúdo (material depositado) sobre o outro ou si mesmo (depositário), uma
vez que a introjeção do mesmo pode causar desestabilização psíquica (BLEGER, 1977).
De acordo com Bleger (1977) por considerar o outro ou como um enigma ou como uma
extensão de si mesmo, o psicótico tem visíveis dificuldades vinculares, orientando-se ora por uma
postura autista ora por uma simbiótica. Ele postula que a primeira caracteriza-se por um isolamento do ambiente externo e predomínio relativo
ou absoluto da vida interior, que reflete uma conduta defensiva diante de situações persecutórias.
O vínculo, nesse caso, é, fundamentalmente, de
caráter narcísico, pelo fato de predominar uma
relação com objetos internos.
A conduta simbiótica, em contrapartida, é marcada por um vínculo de dependência intensa com
um objeto externo, ocorrendo uma projeção de
parte do ego do indivíduo nesse objeto. Há, na
realidade, uma identificação projetiva entre o psicótico e o objeto, que tem por finalidade manter
um certo nível de organização e satisfazer as necessidades do âmbito mais primitivo da personalidade do sujeito (Bleger, 1977).
Tanto a simbiose quanto o autismo são exemplos de vínculos narcísicos e, portanto, constituem
relações com objetos internos, que objetivam
assegurar a satisfação do princípio do prazer e
proteger tais objetos da intromissão da realidade
externa. Ambas coexistem no modo de funcionamento do sujeito psicótico, podendo haver três
formas de ascendência de uma sobre a outra:
ou há predomínio absoluto ou relativo, havendo
ainda a possibilidade de ambas se alternarem no
modo de funcionamento psíquico do sujeito (Bleger, 1977, p. 20).
Entendendo a psicose como um fenômeno psíquico de intensas ressonâncias sociais, em que a
questão da vinculação dos sujeitos se coloca de
forma crítica, considera-se a necessidade de intensificação de cuidados direcionados a reforçar os
laços sociais destes indivíduos em seus contextos
relacionais. A reconstrução da cidadania dessas
pessoas visa assegurar-lhes uma participação ativa, digna e verdadeira, consistindo na tentativa de
criação de um espaço em que possam expressar
a dimensão política do seu discurso (Garfunkel,
sd, p. 21).
Para tanto, o trabalho do PIC é realizado com
base nos princípios do acompanhamento terapêutico, que consiste num novo modo de manejo
clínico pautado nas reflexões de Winnicott acerca
das intervenções no campo da Psicanálise. Nessa
abordagem, a atuação do terapeuta se dá não só
através da palavra, mas também pela utilização
de objetos da cultura. O manejo clínico objetiva
possibilitar ao sujeito a simbolização de alguma
questão existencial e/ou o desenvolvimento de al-
guma função psíquica (Barretto, 2000, p. 17) por
meio de uma intervenção que não se restrinja à
prática puramente clínica, alcançando um caráter
também social.
O acompanhamento terapêutico constitui-se,
portanto, numa peça fundamental à desinstitucionalização dos pacientes, ao se utilizar dos espaços públicos como alargamento do campo possível de tratamento e, desse modo, dar visibilidade
à doença mental, além de possibilitar a reorganização subjetiva e social dos pacientes através de
dispositivos e estratégias terapêuticas descentradas de seu antigo aspecto assistencial (Pelliccioli,
Guareschi & Bernardes, s.d.).
Barretto (2000) descreve onze funções inerentes ao trabalho do acompanhante terapêutico:
holding, continência, apresentação de objeto,
handling, desilusão, interdição, interlocução dos
desejos e angústias, discriminação de campos semânticos, função especular, função de aliviar as
ansiedades persecutórias e função de servir de
modelo de identificação.
A função de holding refere-se ao apoio e amparo, tanto físicos quanto psíquicos, oferecidos
pelo acompanhante terapêutico (AT) como forma
de propiciar ao acompanhado a experiência de
constância e continuidade através de uma atitude empática. A continência, por sua vez, embora
guarde semelhanças com a função anteriormente
descrita, corresponde à capacidade de o AT ajudar a manter as experiências do sujeito dentro de
limites suportáveis, por lhe apresentar novas possibilidades de simbolização. Do contrário, correse o risco de transbordamento de afetos, emoções
117
e impulsos, como se, por exemplo, o sujeito fosse
possuído por sua ansiedade e não apenas a possuísse (Barretto, 2000).
Outra função, a de apresentação de objeto,
diz respeito ao oferecimento, por parte do AT, de
possibilidades de que o acompanhado entre em
contato com um dado objeto, permita-se utilizá-lo
e possa, por fim, separar-se dele sem que isso se
constitua numa experiência disruptiva. As experiências do sujeito passam, portanto, a ser vivenciadas de modo completo, isto é, passam a ter início,
meio e fim. Já a função de manipulação corporal
(handling) trata da leitura do corpo do acompanhado a partir do próprio corpo, possibilitando
que ele vivencie suas necessidades corporais de
modo a integrar psique e soma (Barretto, 2000).
A desilusão ou capacidade de discriminação
relaciona-se à possibilidade de utilização de uma
situação potencialmente frustrante e desagregadora, como forma de enriquecer o campo de experiências do acompanhado. Assim ele torna-se
capaz de suportar suas angústias e frustrações, ao
tempo em que pode alcançar uma melhor noção
de realidade subjetiva e realidade compartilhada.
Como auxiliar do processo anterior, existe a interdição, que ocorre quando o AT exerce a função
paterna, barrando uma situação potencialmente
satisfatória. Para que essa ação tenha o efeito
desejado, é necessário que o sujeito já tenha vivenciado uma experiência de satisfação anterior
(Barretto, 2000).
A função de interlocução de desejos e angústias trata do processo por meio do qual, através
de conversas, o acompanhado pode elaborar
118
seus conteúdos e questões subjetivas. Por meio da
discriminação de campos semânticos, o AT pode
auxiliar o sujeito a ampliar sua consciência a respeito de si e do mundo, ao lhe apresentar novas
categorias de significação. A função especular
efetiva-se no momento em que o acompanhado
identifica no AT, ou em algum objeto da cultura,
algum aspecto de si mesmo. Já o apaziguamento
das ansiedades persecutórias consiste no aumento, por parte do acompanhado, da percepção de
si e do mundo e conseqüente redução dos fenômenos alucinatórios. Por fim, a função do AT como
modelo de identificação opera na ampliação dos
repertórios de vinculação e dos mecanismos de
defesa fornecendo ao acompanhado diferentes
modos de atuar e reagir diante dos percalços que
permeiam seu cotidiano (Barretto, 2000).
Metodologia
O PIC conta com a participação, preferencialmente, de pacientes psicóticos, em sua maioria,
jovens, em casos de primeira internação ou com
histórico de reinternações freqüentes, sobretudo
por motivações sociais. A clientela é de baixa renda e proveniente da internação e ambulatório do
HEML, selecionada e indicada pelos profissionais
destes setores, com base nos critérios acima definidos.
O Programa de Intensificação de Cuidados efetiva-se por meio de algumas atividades tais como:
visitas domiciliares, encontros grupais, reuniões
com cuidadores, acompanhamento a consultas,
atividades externas, assessoria em questões de cidadania e atendimentos individuais.
As visitas domiciliares consistem em contatos
sistemáticos com a dinâmica familiar e o entorno social mais próximo dos pacientes. Cada um
deles é visitado, regularmente, por uma dupla de
estagiários. Essa aproximação possibilita intervenções mais fundamentadas nas interações desses
pacientes junto a seus familiares, amigos e cuidadores. Assim, torna-se possível interferir nos padrões de relacionamento objetais que podem estar
trazendo dificuldades à sociabilidade. Além disso,
pode-se também constatar os recursos sociais e
institucionais aos quais os cuidadores recorrem
em momentos de crise e, dessa forma, intervir de
modo mais eficaz no manejo destas situações.
Outra atividade desenvolvida no programa diz
respeito aos encontros grupais, que constituem
espaços de troca de experiências semanais cujo
objetivo é ampliar o espaço de convivência entre
os participantes do programa, além de estimular
e fortalecer sua sociabilidade. Para tanto, são realizadas diversas atividades, que incluem vivências
corporais através de dança e dramatizações, trazendo à tona aspectos significativos do cotidiano
dos participantes; e discussões sobre temas variados, como autonomia, projetos de vida, relações
familiares, uso de medicações, dentre outros.
Ainda são efetuadas reuniões mensais com cuidadores, em que a troca de experiências abre espaço para o compartilhamento de dúvidas, preocupações, crenças e sugestões acerca do manejo
da psicose. É muito freqüente familiares relatarem
vivências que são comuns a outros participantes,
criando, assim, um ambiente de acolhimento e
cumplicidade que favorece sobremaneira o convívio deles com os que estão sob seus cuidados.
Ao mesmo tempo, viabiliza-se uma relativa desmistificação do transtorno mental e uma mudança
na forma de lidar com o mesmo, já que os cuidadores podem vislumbrar novas possibilidades
de interação e deixar de lado vícios adquiridos
ao longo dos anos, muitas vezes nocivos ao desenvolvimento da sociabilidade e autonomia do
paciente.
Nas atividades externas, são realizados, periodicamente, passeios terapêuticos em diversos
locais da cidade, iniciativas legitimadoras do
convívio social e do exercício dos direitos e deveres, que viabilizam o aumento da autonomia e
o sentimento de pertença grupal dos pacientes.
Estas vivências objetivam ainda dar visibilidade à
psicose, possibilitando uma diminuição do estigma social que a envolve ao levá-la a espaços públicos como shoppings, praias, museus, cinema,
zoológico etc.
É realizado, igualmente, acompanhamento a
consultas psiquiátricas, que se apresenta como
um importante espaço de interlocução entre saberes que atuam na saúde mental, possibilitando
uma maior compreensão do fenômeno da psicose, por promover uma interação entre seus aspectos fisioquímico e psicossocial.
Devido às dificuldades enfrentadas pelos pacientes no manejo de questões relativas à cidadania, também é prestado um auxílio nessa área.
Os participantes do programa são acompanha119
dos pelos estagiários em tarefas como tirar documentos, dar entrada a benefício e aposentadoria,
além de serem realizadas denúncias ao Ministério
Público em casos de abandono.
Por fim, ocorrem, excepcionalmente, atendimentos individuais nos casos em que são percebidas demandas por este tipo de serviço, seja por
meio de atendimentos psicoterápicos seja pela
participação em oficinas terapêuticas ocupacionais.
Para dar suporte teórico às atividades desenvolvidas, acontece, semanalmente, durante três
horas, supervisão coletiva com um Professor do
Departamento de Psicologia (UFBA) e uma Professora de Terapia Ocupacional (FBDC). Nesta
atividade, são apresentados, pelos estagiários,
seminários teóricos acerca do tema da psicose,
acompanhamento terapêutico, encontros grupais,
etc, sendo realizadas discussões sobre o texto exposto. Além disso, os casos atendidos pelo programa são apresentados e debatidos.
Resultados e Discussão
No decorrer destes mais de dois anos de Programa de Intensificação de Cuidados, pode-se
observar uma relevante melhora no quadro clínico da maioria dos pacientes acompanhados,
merecendo destaque a redução das reinternações
e o aumento de sua autonomia, assim como o
fortalecimento de laços sociais. Mesmo nos casos
em que houve crises, os familiares, com a ajuda dos estagiários, puderam lidar com a situação
de uma forma mais compreensiva e acolhedora,
120
buscando outros recursos terapêuticos que não a
internação. Passaram a procurar o auxílio de autoridades religiosas de referência, como pastores
e padres; vizinhos e parentes; dos próprios acompanhantes terapêuticos; e da emergência psiquiátrica. Com isso, a recuperação dos pacientes tem
se tornado mais rápida, e diminui não apenas o
tempo em que ficam desestabilizados, como a intensidade das crises.
Pode-se perceber também um gradual e relevante incremento na autonomia e inserção social
de muitos pacientes. Alguns, por exemplo, que
não saíam de casa ou só saíam acompanhados, passaram a freqüentar lugares públicos com
maior regularidade e grau de ansiedade reduzido. Como exemplo de ampliação da autonomia,
podemos citar um caso em que o paciente foi
sozinho à formatura dos alunos do curso de psicologia que haviam lhe acompanhado durante a
atividade de estágio. Do mesmo modo, outra paciente, cuja relação com a família e o ex-marido
era conflituosa em virtude da falta de compreensão, por parte deles, dos problemas associados
ao seu transtorno; deu início a um processo de
reconciliação, e hoje os visita, com freqüência, no
interior da Bahia, onde residem.
Também tem se tornado possível notar as repercussões positivas da atuação dos estagiários
junto aos pacientes em questões relativas à cidadania. Um determinado paciente, por exemplo,
recebia uma aposentadoria da Marinha, mas vivia em situação precária, em razão de seu irmão,
responsável judicialmente pelo recebimento da
quantia em questão, não arcar com as despesas
relativas às suas necessidades básicas. Os estagiários, então, entraram com uma ação no Ministério Público, denunciando o abandono sofrido
pelo paciente e requerendo a substituição de seu
irmão por outro tutor legal. Embora não tenha
havido essa modificação de tutela, o irmão do
paciente foi obrigado a repassar-lhe os recursos
necessários a sua sobrevivência digna.
Ainda é digna de nota a experiência dos grupos semanais, realizados no Hospital Especializado Mário Leal, que evidenciou a importância
desses encontros na criação e fortalecimento de
laços sociais entre os pacientes, na promoção de
discussões sobre temas, em geral, relacionados
ao transtorno mental e suas repercussões na vida
dos pacientes e familiares; e, por fim, na produção de continência, que constitui uma experiência
psíquica de contorno, limite, possibilitada pela
alteridade, ajudando o sujeito a se sentir mais organizado.
Ademais, vale salientar que a atuação no Programa de Intensificação de Cuidados permite aos
estudantes um significativo amadurecimento pessoal e profissional, uma vez que é possível entrar
em contato com diferentes realidades sociais e,
sobretudo, subjetivas. Dessa forma, pode-se obter
um entendimento mais abrangente do ser humano e de suas idiossincrasias, o que enriquece muito a nossa formação, conferindo-lhe consistência
e uma gama de conhecimentos mais coesa. Além
disso, é possível adquirir uma visão consonante
com as novas diretrizes políticas de atuação em
saúde mental e devidamente voltada para a influência dos aspectos sociais na vida dos sujeitos.
Conclusão
Durante o desenvolvimento do Programa de
Intensificação de Cuidados, a proximidade com
a psicose, a precariedade do SUS na Bahia, o
persistente predomínio da lógica manicomial e
realidades sociais muito distintas possibilitou-nos
um aprendizado único, não só em termos profissionais como pessoais.
O contato com pacientes, em sua maioria psicóticos, gera um conhecimento desse fenômeno
psicossocial que ultrapassa em muito o obtido nos
bancos da universidade. Afinal, por mais fundamentação teórica que se adquira sobre esse saber, dificilmente ele será contemplado de modo
tão vasto quanto o é com a convivência cotidiana
junto à loucura.
Em relação às novas diretrizes políticas de assistência aos portadores de transtorno mental,
vale dizer que, na Bahia, por mais boa vontade
que, eventualmente, se tenha, o modelo de atenção em saúde mental ainda deixa muito a desejar, por não acompanhar, devidamente, as novas
regras. Os serviços substitutivos, na capital, especificamente, estão longe de abarcar a população
que necessita de atendimentos em saúde mental.
Não raro, os pacientes ficam sem os medicamentos, em virtude de estarem em falta na farmácia
do hospital; sem falar nas consultas psiquiátricas,
cujo intervalo entre uma e outra é muito espaçado
(em geral de quatro a cinco meses), todos esses
fatores contribuindo para dificultar a interação
entre o tratamento médico e o psicossocial e, em
121
conseqüência, o sucesso terapêutico.
Assim, fica clara a persistência da lógica manicomial, pelo fato de, dadas as dificuldades de se
conseguir medicação e atendimento psiquiátrico,
as crises psicóticas terem maior probabilidade de
acontecer, o que leva a família e os próprios hospitais especializados a recorrerem em, primeira
instância, ao internamento como forma de conter
e tratar os pacientes em surto.
Ademais, cabe ressaltar a dificuldade de enfrentamento de situações em que a pobreza é
alarmante, impondo uma necessária flexibilização
e manejo por parte dos estagiários. Cabe citar,
por exemplo, situações nas quais alguns pacientes nos pediam dinheiro emprestado, porque não
tinham o que comer. Em outras, as circunstâncias eram tão graves que exigiam providências
urgentes, como quando uma paciente estava com
a casa com risco de desabamento, em razão das
fortes chuvas que assolavam a cidade.
Esses casos denotam a importância de se levarem em conta os aspectos sociais que constituem,
também, a subjetividade dos indivíduos quando
o que se pretende é o alcance de um tratamento
diferenciado e de qualidade.
O Programa de Intensificação de Cuidados
funda, na Bahia, uma possibilidade de construção de novas formas de intervenção, pensamento
e reflexão acerca da assistência em saúde mental,
evidenciando a relevância de uma abordagem
psicossocial para a consecução deste objetivo.
Referências
122
ASSAD et all. A Clínica da Psicose: Uma Articulação
Necessária entre a Extensão Universitária, a Psicanálise e
a Reforma Psiquiátrica. Disponível em: www.prac.ufpb.br/
anais/anais/saude/psicose.pdf. Acesso em: 10 de setembro
de 2005.
BARRETTO, K. Ética e Técnica no Acompanhamento Terapêutico: andanças com Dom Quixote e Sancho Pança.
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2003, Florianopólis. Identidade, Diferença e Mediação.
Florianopólis : Rizoma, 2003.
Estratégias
A Assistência Domiciliar no Âmbito
do Cuidado à Saúde mental
Júlia Mignac dos Santos*
Wellington Carlos Moreira Júnior**
Resumo: A assistência domiciliar pode ser pensada como uma possível estratégia terapêutica
para os sujeitos afetados por desordens mentais.
Ela pode ser compreendida enquanto atendimento, visita e internação domiciliar. Este artigo atémse às duas primeiras, que embasam as atividades
do Programa de Intensificação de Cuidados a Psicóticos (PIC), vinculado ao Hospital Especializado
Mário Leal, na cidade de Salvador/BA e que objetiva a clínica ampliada como proposta de cuidados para a saúde mental, entendendo que os
portadores de transtorno mental caracterizam-se,
particularmente, pela fragilidade nas formas de
vinculação. Deste modo, delineiam-se os estudos
de Lacan (1985) no que se refere à postura de secretariar o alienado e as teorizações propostas por
Barretto (1998) acerca do surgimento do acompanhante terapêutico (AT) e da importância da
função de holding neste processo. A família surge
*Psicóloga graduada pela UFBA e ex-estagiária do PIC
**Estudante de Psicologia (UFBA) e ex-estagiário do PIC
nesse âmbito de práticas extra-institucionais como
co-autora da continuidade da assistência. As mútuas relações entre a assistência domiciliar e as redes sociais são ressaltadas, porque se acredita ser
imprescindível o apoio destas últimas como possibilitadoras de novas alternativas para os sujeitos.
E, evidenciando-se um pouco da estranheza que
a loucura ratifica, buscou-se ilustrar o texto com
expressivas citações de Clarice Lispector.
Introdução
“... para os gregos não se esgotava aí seu sentido; na sua crença de que seu destino era comandado pelos deuses, a loucura tinha um sentido de
místico, de revelação, sem nenhuma conotação
pejorativa. Os gregos não descartaram o sagrado, presente em todas as manifestações humanas” (FOUCAULT, 1994).
A
saúde mental, assim como tantos outros fenômenos sociais, pode ser apresentada como
125
um fenômeno composto, em seus domínios, por
representações históricas e socialmente construídas. O excerto supracitado condiz a uma passagem da obra de Foucault – Doença Mental e
Psicologia. Nesta, o autor faz ressaltar como as
formas de exclusão e estigmatização desse conceito se delineiam até a constituição do cerceamento social a que, por longos anos, esteve e
ainda encontra-se refreada a loucura.
O texto de Foucault (1994) aponta que é com
o advento da era clássica que a loucura vai esvairse das significações míticas que a ela estavam associadas e passa a ser apreendida enquanto desvio. Não existia uma preocupação médica com
o louco e muito menos com o seu isolamento.
A exclusão, àquele momento, incidia sobre os
leprosos, que eram ao mesmo tempo temidos e
sacralizados. A sua doença era símbolo da cólera
e da bondade de Deus, uma vez que simbolizava
para o leproso o caminho à purificação e a salvação.
Uma análise da forma da produção de saberes
e do exercício do poder se evidencia necessária
na compreensão dos fluxos conceituais que incidem sobre esses sujeitos e que são fundantes do
pensamento moderno. A história da loucura nos
séculos XVIII e XIX é quase sinônimo da história
do seu enlace pelos conceitos de alienação e, por
conseguinte, de doença mental. Esse desdobramento de conceitos encerra seu significado vinculado à criação de um novo modelo de homem ou
de um novo sujeito na modernidade (AMARANTE,
2001). A emergência do valor aferido à razão à
época do renascimento consentiu com surgimento
126
de um ‘sujeito da Razão’. A loucura, deste modo,
se torna seu contraponto. O seu representante
major – o louco – passa, desde então, a ser concebido como sujeito da desrazão.
Por conseguinte, surge a criação de espaços
para confinamento daqueles que conformam a
falha nas concepções quiméricas de ser humano. Nesse modelo de terapêutica dispensado
ao cuidado da loucura, sobejam sentidos, ditos
científicos, de ordem marcadamente nosológica,
que enquadram e representam a figura do louco
para a humanidade. De tal modo, assenta-se a
denominação de alienado, enquanto indiferente
ao universo de concepções compartilhadas pelos
demais ‘indivíduos sociais’.
“A alienação é entendida como um distúrbio
das paixões humanas, que incapacita o sujeito de
partilhar do pacto social” (AMARANTE, 2001). Os
sentidos conferidos ao alienado expressam um estar fora de si, fora da realidade, seria aquele indivíduo que tem alterada a sua possibilidade de
juízo. Como efeito da aplicação deste conceito,
delimita-se um modo particular de relação social
com o sujeito representante da loucura. Destarte,
sendo o alienado incapaz do juízo, incapaz da
verdade, determina-se, por extensão, simbolizar
perigo, para si e para os demais. Neste ponto,
funda-se uma lógica que circunda as justificativas
à implementação dos espaços de isolamento institucionais – o manicômio ou hospital psiquiátrico
encontra deste modo, sua legitimidade.
A proposta deste estudo é conferir sentidos à
desinstitucionalização das práticas de cuidado
dispensadas à saúde mental entendendo que uma
ressignificação da loucura mostra-se conexa nesta
caminhada. Para tanto, será desenvolvida a proposta da assistência domiciliar como estratégia
de cuidado aos sujeitos que sofrem de desordens
psíquicas.
(pp. 235). Por conseguinte, ao desenvolver essa
noção de secretariar, ele ressalta, com metáforas,
formas de compreensão outras que escapariam a
uma apreciação de investigação superficial. Assim, ele expõe a relevância de oferecer ao delírio
do psicótico uma escuta que permita significá-lo
A Clínica Ampliada como Terapêutica
na sua linguagem. “Por que então, condenar de
à Saúde Mental
antemão à caducidade o que se externa de um
sujeito que se presume estar na ordem do insenA Psicose pode ser pensada como um fenôme- sato, mas cujo testemunho é mais singular, e mesno psíquico de intensas ressonâncias sociais que mo inteiramente original?” (pp. 237).
fragilizam as relações interpessoais dos sujeitos
Essa ‘condenação à caducidade’ de que nos
(NASCIMENTO, 2005). Desta maneira, atenta-se fala Lacan poderia ser elucidada na magnitude
à importância de novos modelos que proporcio- de estranheza que o fenômeno psicótico parece
nem à saúde mental um cuidado e atenção con- revelar. Esse real que fascina a uns tantos e expõe
tinuados.
a outros encontra um caminho nas alíneas disLacan (1985) aponta as nuances imperativas a corridas por Clarice Lispector. No seu primoroso
serem alcançadas no momento de proporcionar texto ‘a paixão segundo GH’ ela torna evidente a
cuidado a um sujeito que apresenta uma forma sensação de estranhamento provocada diante da
de funcionamento diversa daquela compartilha- percepção do inusitado: “... mas só enquanto eu
da pelos neuróticos – que representam a grande não assustar ninguém por ter saído dos regulaparcela dos cuidadores em saúde mental. “Mas, mentos. Mas se souberem, assustam-se, nós que
contrariamente ao sujeito normal para quem a re- guardamos o grito em segredo inviolável. Se eu
alidade lhe chega de bandeja, ele tem uma cer- der o grito de alarme de estar viva, em mudez e
teza, que é a de que aquilo de que se trata – da dureza me arrastarão, pois arrastam os que saem
alucinação à interpretação – lhe concerne. Não é para fora do mundo possível, o ser excepcional é
de realidade que se trata com ele, mas de certeza. arrastado, o ser gritante” (pp. 62-63). O ‘ser griMesmo quando ele se exprime no sentido de dizer tante’ caracteriza as desconexões representativas
que o que sente não é da ordem da realidade, isso da psicose. Secretariar esse indivíduo torna-se
não atinge a sua certeza, que lhe concerne. Essa uma possível maneira de experienciar estratégias
certeza é radical” (LACAN, 1985). Lacan ainda de cuidado que acresçam novas significâncias à
define o cuidador do sujeito psicótico como ‘se- loucura.
cretário do alienado’. “Vamos aparentemente nos
Um novo modelo de pensar a saúde mencontentar em passar por secretários do alienado” tal surge a partir das contribuições advindas do
127
movimento psiquiátrico inglês, da psiquiatria democrática italiana e da psicoterapia institucional
francesa. Em torno dessa nova proposta, surgem
algumas denominações conferidas àqueles que
implementavam terapêuticas com os loucos. Amigo qualificado, atendente terapêutico, auxiliar psiquiátrico. Com os desdobramentos dessa atividade de cuidar, surge o Acompanhante terapêutico,
à medida que o trabalho extrapolava as paredes
das instituições psiquiátricas (BARRETTO, 1998).
Dentre a totalidade de intervenções terapêuticas destinadas à saúde mental, o Acompanhante
Terapêutico (AT) despende um cuidado de amplo
alcance de maneira que a subjetividade do sujeito
possa ser acompanhada em suas constantes metamorfoses. A figura do AT poderia ser pensada
como a de alguém que busca estar ao lado do
seu acompanhante sem lhe imprimir formas de
conduta, mas constantemente atento aos possíveis acontecimentos expressos. Deste modo, o AT
surge como o fiel escudeiro que observa atentamente os passos do seu senhor. Barretto (1998)
ressalta o valor da experiência do acompanhamento porque esta se processa não apenas pela
existência de um corpo físico. Sua primazia reside na crença de que esse corpo passa a ser “um
corpo habitado, um corpo atento, um corpo que
carrega a história do próprio vínculo. Em outras
palavras, a experiência é integradora porque o
sujeito está sendo acompanhado por um corpo
simbólico (simbolizado e simbolizante), e não somente matéria física” (BARRETTO, 1998).
A função de Holding desenvolvida por Winnicott e retomada por Barretto encontra um parale128
lo no conceito de secretariar esboçado por Lacan
no seu seminário do livro III – as psicoses. “A essa
função... Winnicott denominou holding” (BARRETTO, 1998). Este autor define a função de holding
(a qual ele também chama de sustentação) como
os múltiplos elementos que, encontrados no ambiente, fornecerão a uma “pessoa a experiência
de uma continuidade, de uma constância tanto
física quanto psíquica” (BARRETTO, 1998).
Essa experiência de holding seria delineada por
quaisquer objetos concretos que fornecessem aos
sujeitos possibilidades terapêuticas ou, de igual
forma, pelo desejo de um indivíduo em acolher à
demanda de um outro no percurso de sua trajetória. Nos seus desenvolvimentos concernentes ao
conceito de holding, Barretto fala da importância
da mãe cuidadora que dispensa atenção às necessidades do bebê e lhe provê do que necessita.
Winnicott a chama de mãe suficientemente boa,
aquela que fornece cuidados e limites (BARRETTO, 1998).
Nesse contexto de novas propostas que atentem à saúde mental, é que se implementou o Programa de Intensificação de Cuidados para psicóticos (PIC) no Hospital Especializado Mário Leal,
fundando um novo molde de estágio interdisciplinar que compreende a primazia das relações
vinculares no manejo e cuidado à psicose.
A reforma psiquiátrica e o Movimento Nacional da Luta Antimanicomial defendem a negação
do manicômio como forma de tratamento para a
saúde mental. Deste modo, propõem novas alternativas terapêuticas ao indivíduo portador de
transtornos psíquicos. Embasado nessa premissa,
o PIC tem como objeto norteador de sua prática
o cuidado intensivo ao indivíduo em crise, de forma que a internação seja evitada. Assim, como
apontou Nascimento (2005) em seu estudo sobre
a qualidade de vida dos pacientes participantes
desse programa, o mesmo reduziu em aproximadamente 70% as recorrências a internações psiquiátricas durante o seu decurso.
As atividades do programa compõem a implementação de duplas de estagiários para o
acompanhamento de cada paciente. O trabalho
acontece em dois momentos: encontros grupais
no supracitado hospital ou em recintos públicos
da cidade; e as visitas domiciliares. Estas permitem aos acompanhantes uma compreensão do
lócus que referenda cada sujeito e objetivam a
reinserção dos mesmos em suas originárias redes
sociais. Barretto (1998) afirma que a função de
holding poderia ser pensada como um ‘suporte’
ao acompanhado. Assim, os encontros em locais
diversos daqueles já conhecidos pelos participantes possibilitariam a descoberta de novos espaços.
Destacando-se a fragilidade das formas de
vinculação empreendidas pelos psicóticos em
suas redes sociais e familiares, faz-se mister a
concepção de modelos que imponham um olhar
diferenciado a este sujeito, abarcando as inumeráveis idiossincrasias a que este personagem encontra-se arraigado. A assistência domiciliar, em
concordância com o acompanhamento terapêutico, revela-se uma promissora estratégia no percurso desta prática.
A Assistência Domiciliar
A assistência domiciliar é definida como um
conjunto de procedimentos hospitalares possíveis
de serem realizados na casa do paciente. Abrangem ações de saúde desenvolvidas por equipe
interprofissional, baseadas em diagnóstico da realidade em que o paciente está inserido, visando
à promoção, à manutenção e à reabilitação da
saúde (FABRICIO & cols., 2004).
O histórico da prática de assistência domiciliar
localiza seus primórdios nos EUA, particularmente
no hospital de Boston com ‘as enfermeiras visitadoras’. Ainda ressaltam-se os possíveis desenvolvimentos dessa atividade na Europa, em virtude
do incremento da população idosa (FABRICIO &
cols., 2004). No Brasil, acredita-se que esta atividade tenha surgido com a implementação do
Serviço de Enfermeiras Visitadoras no Rio de Janeiro, na primeira metade do século passado, e
com a criação do serviço de Assistência Médica
Domiciliar e de Urgência (SAMDU).
A promoção dessa nova prática surge prioritariamente para dispensar cuidados a pacientes
com doenças crônicas que pudessem ser acompanhados no domicílio, pacientes convalescentes
que não necessitassem de cuidados diários de
médicos e enfermeiros, e ou portadores de enfermidades que exigiam repouso. Observa-se que
a inclusão da doença mental nessa proposta de
cuidado parece também ter surgido em meados
do século passado com a criação dos atendentes
psiquiátricos na cidade de Porto Alegre e a figura
do auxiliar psiquiátrico na clínica Vila Pinheiros no
129
Rio de Janeiro (BARRETTO, 1998).
A assistência domiciliar pode ser compreendida
enquanto três esferas de prestação de cuidados:
visita domiciliar, atendimento domiciliar e internação domiciliar. Bellido (1998 citado por Rehem e
Trad, 2004) refere que esta diversa nomenclatura deriva das dificuldades históricas de expressar
claramente as características dessa modalidade
assistencial, diferenciando-a das outras formas de
assistência. Dentre as denominações constituintes
dessa prática, enfoca-se, particularmente, a visita e o atendimento domiciliar, pois constituem os
tópicos que embasam a atividade de cuidados intensivos à saúde mental ora em foco.
A visita domiciliar pode ser entendida como
atendimento realizado por profissionais de saúde
ou por uma equipe, que se desloca da instituição e vai à busca do paciente. A atividade almeja
uma avaliação das necessidades do paciente, de
seus familiares e do ambiente adscrito em que vivem. Assim, visa estabelecer um plano assistencial
voltado à recuperação e/ou reabilitação. As visitas são realizadas levando-se em consideração
a necessidade do cliente e a disponibilidade do
serviço de saúde. Ela abarca atividades de orientação às pessoas responsáveis pela continuidade
do cuidado no domicílio – em grande parte a família.
O Atendimento domiciliar abrange atividades
assistenciais exercidas por profissionais e/ou equipe de saúde na residência do cliente. Este objetiva a execução de procedimentos mais complexos,
que demandam formação técnica para tal. De
igual forma, são realizadas orientações aos res130
ponsáveis pelo cuidado no domicílio, e a periodicidade do atendimento acontece de acordo com
a complexidade do cuidado requerido.
A internação domiciliar também constituiria
um tipo de assistência especializada, exercida por
profissionais da equipe de saúde na residência do
cliente, e diferencia-se das demais pela disponibilidade de maiores recursos técnicos e humanos.
Como ela objetiva a criação de um ‘mini-hospital’
na residência do sujeito, ratifica-se a necessidade
da oferta de medicamentos e atenção de longa
permanência, o que caracterizaria um ambiente
hospitalar.
Como já referido outrora, o programa de cuidados intensivos para pacientes psicóticos (PIC)
engloba as primeiras duas dimensões da assistência. No ínterim das visitas domiciliares, os estagiários freqüentam as residências dos pacientes e
buscam estabelecer hipóteses das formas de vincular até então assumidas pelos sujeitos e demais
membros integrantes de sua rede social. Por conseguinte, empreende-se uma atividade de ressignificações das formas de pensar a saúde mental
naquele âmbito.
Essa forma de cuidar da saúde implica no encontro com a família e demais constituintes da
rede social na qual o sujeito está imerso. Esta, a
família, pode representar um entrave ao desenvolvimento das práticas ou emergir como co-autora
no processo de cuidado que lhe for dispensado.
De tal forma, evidencia-se a primazia em situar os
intercursos a que estão expostos, família e cliente,
nesta nova forma de trato.
O desencadear da crise psicótica expõe senti-
mentos que, em muitos momentos, são avassaladores para o familiar do doente mental. Melman
(2001) afirma que “o surto psicótico de um filho,
de um irmão ou de um companheiro rompe e
desorganiza a vida de muitas famílias. O evento
representa, de certa forma, o colapso dos esforços, o atestado da incapacidade de cuidar adequadamente do outro, o fracasso de um projeto
de vida, o desperdício de muitos anos de investimento e dedicação”. Portanto, faz-se imprescindível atentar ao sofrimento da família em presença
das vivências traumáticas desses sujeitos, ainda
que a mesma pareça revelá-lo de forma hostil.
É pertinente ressalvar que formas silenciosas no
trato com o sujeito psíquico afetado por distúrbios
mentais, de igual modo, poderiam ser reveladoras das dificuldades por que passa a família. “P”,
paciente acompanhada no programa, (PIC) parecia encontrar diversas dificuldades em falar sobre
a sua doença. No trabalho de assistência que lhe
foi prestado, observou-se que o seu genitor referia, continuamente, que sua filha não apresentava
quaisquer comprometimentos psíquicos (“Minha
filha não ouve vozes, ela está curada”). Assim, foi
possível aventar como se processava a circulação
do discurso entre esses sujeitos. Atendendo a um
desejo paterno, “P” parecia não expor as suas
construções fantásticas. Ela afirmou para as estagiárias que a acompanhavam que elas seriam
as moças das vozes e lhes mostrou, em um outro
momento, seu guarda-roupa repleto de acessórios
para bebê – evidenciando uma possível fantasia
de gravidez. Desta forma, “P” parece encontrar
um arranjo psíquico para lidar com suas dificulda-
des e para não falar dessas possíveis construções
delirantes. Neste caso, percebe-se que, embora
o genitor da paciente pareça contribuir para que
ocorra um bloqueio no seu discurso, “P” mostra
que encontrou uma forma de escoamento para
o mesmo, evitando o desencadeamento de situações que, porventura, suscitassem sofrimento ao
seu núcleo familiar.
Uma outra circunstância ocorrida no estágio
parece ser reveladora da função de holding exercida pela família – por um membro desta – na
estabilização dos sintomas. “R” é um paciente
masculino, jovem, que residia com sua mãe e
sua irmã, numa localidade próxima desta cidade.
As visitas domiciliares eram realizadas quinzenalmente em virtude da distância. Contudo, quando
preciso, os estagiários o visitavam semanalmente
ou ainda duas vezes por semana. “R” possuía um
relacionamento difícil com sua irmã, que havia
se casado e aguardava a chegada de um bebê.
“R” mencionava constantemente as brigas e discussões travadas com sua irmã. Era o som, a televisão, o aparelho de DVD, sempre existia algo
que os irritava. Durante as visitas, “R” falava sobre
sua irmã e relatava suas desavenças e o respeito
pela mesma. Demonstrava muito desejo em poder ‘virar tio’, era algo que aguardava com muita
expectativa. Barretto (1998) salienta que a função de holding pode ser estabelecida por diversos
elementos do ambiente que proporcionem uma
experiência terapêutica para o sujeito.
Deste modo, é possível supor que o nascimento desta criança na família de “R” alvitra-se como
um objeto que lhe permite encontrar satisfação
131
e um lugar outro na estrutura familiar. “R” agora
deixa de ser ‘o filho caçula, mimado, que tem problemas’, para figurar como o tio do bebê. Neste
ponto, evidencia-se como o nascimento do sobrinho de “R” emerge como um recurso terapêutico
para a estabilização do seu sintoma. Retomando
as discussões empreendidas por Melman (2001),
no que tange à esfera da família, depreende-se
que existe uma dificuldade grande dos serviços
de saúde em “conseguirem reconhecer o familiar como um importante recurso terapêutico a
ser mobilizado”. Portanto, a experiência da assistência domiciliar parece ser favorecedora de que
esse recurso seja validado e utilizado. A observação dos sujeitos e familiares, aliada ao desenvolvimento de vínculos, possibilita a emergência de
sentimentos de parceria e atenção àqueles indivíduos que estão sendo cuidados.
No momento em que os estagiários freqüentam
as comunidades dos seus acompanhados, eles
mostram que ali há um sujeito, há uma pessoa
com quem se pode preocupar e que é merecedora de cuidados. Imagina-se que possa ocorrer
nesta hora um processamento de novas acepções
diante da percepção daquele indivíduo para a
sua rede social. Melman (2001) afirma que “além
dessa ampliação territorial do espaço terapêutico,
as intervenções na rede social podem mobilizar
importantes recursos internos e externos à família; muitas vezes recursos esquecidos, deixados à
margem, que podem ser acionados e ser de grande utilidade no tratamento”.
Assim, poder-se-ia pensar que a função das
visitas domiciliares também seria fornecer ao su132
jeito que sofre de adoecimento psíquico novas
possibilidades diante das pessoas que compõem
a sua rede social. Esta não se restringiria apenas
à família “nuclear ou extensa, mas inclui todo o
conjunto de vínculos interpessoais significativos
do sujeito: família, amigos, relações de trabalho,
de estudo, vínculos na comunidade, vínculos coletivos, sociais e políticos” (MELMAN, 2001).
Adentrando ao campo das relações mútuas
entre redes sociais e visita domiciliar é importante
salientar passagens de dois casos acompanhados
no PIC. Ambos os pacientes são do sexo masculino. Os chamaremos de “W” e “V”.
“W” é um paciente morador de rua. Durante
as visitas e atendimentos domiciliares, o trabalho era desenvolvido sempre em algum local do
bairro onde ele morava – que funcionava como
a sua casa. Ele demonstrava sentir uma tristeza
muito grande e, entre momentos de crise, expunha uma grande revolta pelo bairro e por todos
os seus moradores. Contudo, era nesses mesmos
momentos, precisamente quando “W” atentava
contra si, que os moradores intervinham. Eles o
levaram ao hospital em um episódio em que “W”
utilizou uma cartela inteira de sua medicação. Esses mesmos moradores retiraram “W” do bueiro
de esgoto quando ele resolveu que iria morar lá
dentro. Destarte, percebe-se como é imprescindível o apoio da rede social como possibilitadora
de novas alternativas aos sujeitos. Melman (2001)
observa que a presença de enfermidades crônicas
poderia comprometer a qualidade de suas interações sociais. E, dessa maneira, as visitas domiciliares atuariam como corroboradoras dos cuida-
dos dispensados àquele sujeito, evidenciando a
importância de que se busque tentar compreendê-lo, ainda que o mesmo esboce comportamentos de tamanha estranheza.
Melman (2001) define a Rede Social de Sustentação como “a soma de todas as relações que
um indivíduo percebe como importantes ou diferenciadas da massa anônima da sociedade”. Ele
ainda postula que essa rede alude a “um nicho
interpessoal, uma microecologia na qual a pessoa desenvolve um modo particular de expressão de sua singularidade” (Sluski, 1997 pp. 42
citado por Melman, 2001). Assim sendo, durante
as visitas à “W” era importante a construção de
redes de referência que dessem continuidade ao
trabalho desenvolvido pela dupla. A barraquinha
de lanches de Dona “A”, a casa de Dona “T”, a
banca de artesanato de “R”, todos esses – que
eram os locais em que combinávamos para nos
encontrarmos com “W” – figuravam como pontos
de apoio estratégicos na busca de ‘suportes’ terapêuticos para o paciente.
O caso de “V” ressalta-se como ratificador dos
resultados advindos da efetiva participação das
redes sociais no trabalho de assistência domiciliar.
“V” sempre referiu ser uma pessoa muito sozinha.
Durante o período em que o acompanhamos não
chegamos nem mesmo a conhecer sua família nuclear (“eles não querem saber de mim não”). Ele
residia num quarto alugado. As visitas domiciliares primaram, inicialmente, pelo estabelecimento
de vínculos com a dona e os moradores da casa
onde ele residia. A senhora dona do estabelecimento funcionava como elo entre os estagiários
e “V”. Apenas uma irmã dele morava próximo.
Contudo essa irmã trabalhava o dia todo, e era
muito difícil encontrá-la. O bar de dona “J” também funcionou como um outro ponto de suporte para a continuidade do trabalho desenvolvido
com “V”. Este fazia suas refeições naquele local
e as pagava mensalmente. Convidamos dona “J”
a nos auxiliar no cuidado com suas medicações.
“V” precisava tomar a medicação juntamente às
refeições, e, dessa forma, a participação de dona
“J” se mostrava necessária porque ele sempre se
esquecia dos horários. Os membros da igreja
evangélica que “V” freqüentava também foram
promotores de uma assistência continuada. Percebendo as dificuldades encontradas por “V”,
contribuíam junto à comunidade, explicitando-lhe
as dificuldades por que ele passava.
De tal modo, salienta-se a importância do trabalho de assistência domiciliar em continuidade
com a formação de pontos de apoio nas redes
que referendam o sujeito para a comunidade. A
presença dos acompanhantes terapêuticos dentro
da realidade social dessas pessoas possibilitaria,
portanto, a ressignificação de conceitos arraigados sobre o portador do sofrimento psíquico.
Contiguamente, a edificação de novas redes de
suporte contribuiria com o sustento do trabalho
e a continuidade da assistência. A rede emerge
como ancoradouro para a prática do AT ou mesmo da assistência domiciliar. Melman discorre
sobre as aquisições que o grupo poderia proporcionar: “o poder grupal tem a função de proteger
seus integrantes das forças ameaçadoras” (Melman, 2001).
133
Portanto, compreendendo que a saúde mental
caracteriza-se por um mal-estar crônico na vida
dos sujeitos, formas terapêuticas que dispensem
uma atenção global e continuada mostram-se necessárias. Dessa maneira, como apontam Andrade
e Vaitsman, “muitas vezes, o enfermo experimenta fragilização da identidade, do próprio sentido
da vida e da capacidade de resolver problemas
que o afetam, já que tudo aquilo que organizava a identidade é alterado de forma brusca com
a doença” (Gibson, 1991 citado por Andrade &
Vaitsman, 2002). Esta fragilidade que permeia o
vínculo na psicose fundamenta a implementação
desses novos modelos de práticas.
de significados e valores aos sujeitos em desordem
mental. Melman (2001) esboçou a importância
de compreendê-la como um recurso terapêutico e
enfatizou o valor de que se atente a todas as possíveis representações condizentes à loucura que
nela se encontram fixadas. A função de holding
ou suporte destacada por Barretto (1998) corrobora as formas de cuidar desses indivíduos, além
de incluir neste espaço a rede social que sustenta
e promove a vinculação.
No percurso deste artigo, constatou-se que a
disponibilidade do trabalho de atendimento (ou
assistência) domiciliar ressalta-se como um prérequisito fundante para o trabalho com sujeitos
afetados por desordens mentais.
Considerações Finais
A magnitude do estranhamento que as manifestações do sujeito psicótico desencadeiam no
A assistência domiciliar demonstra ser revela- outro semelhante poderia ser suscitada como um
dora da promoção de novos significantes dispen- dos elementos contributivos ao cerceamento do
sados à saúde mental. A inserção de práticas de louco. Freud salienta que ocorreria na psicose
cuidado que atentem às diversificadas demandas uma substituição da realidade – perdida, por ouexpressas pelos sujeitos brotam como um possível tra. “Na psicose o que ocorreria é que um mundo
móbil de compreensão dos fenômenos psíquicos. novo seria recriado e colocado no lugar da realiDestaca-se que a assistência domiciliar pode dade perdida” (FREUD, 1915). Em meio a tantas
aferir ganhos diversos àqueles que se destinam teorizações concernentes ao que seria ‘esta realidesde que a sua implementação aconteça de for- dade’, o que se depreende é que a loucura não se
ma responsável, com competência e planejamen- confina a estes parcos critérios. Ela tão somente
to. Assim, o cuidado e a reconstrução das redes é: inconstante, exuberante e múltipla em suas expodem ser realizados de forma mais segura e efi- pressões. “É que eu não estava mais me vendo,
caz, proporcionando um cuidado embasado na estava era vendo” (Lispector, 1998, pp. 63).
realidade social em que vive o sujeito a partir de
uma melhor compreensão da mesma.
A família surge, neste contexto da assistência
domiciliar, como peça fundamental na atribuição
134
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135
Atenção Domiciliar:
Uma tecnologia de cuidado em saúde mental
Allana Moreira*
Ana Paula M. da Hora**
Maria Clara Guimarães***
Resumo: Desde o surgimento dos debates em
saúde mental no Brasil, há dificuldades no desenvolvimento de práticas mais eficazes e que tenham
um olhar mais humanizado segundo os princípios
da Reforma Psiquiátrica. Neste terreno, a Atenção
Domiciliar surge como proposta de atuação, apostando na relação vincular como alicerce para a
construção de novos laços sociais para as pessoas em sofrimento psíquico. Algumas dificuldades
operacionais são apontadas para a implementação desta tecnologia, bem como alguns caminhos
são vislumbrados.
Introdução
D
esde o surgimento dos primeiros debates em
saúde mental no Brasil, que culminou com a
Reforma Psiquiátrica Brasileira e a lei Paulo Delgado, é trazido como discussão principal qual
forma de cuidado deve ser prestado ao portador
de transtornos psiquiátricos. Este dito “cuidado”
que, durante muito tempo, resumiu-se ao confi*Estudante de Medicina (UFBA) e ex-estagiária do PIC
**Psicóloga graduada pela UFBA e ex-estagiária do PIC
***Estudante de Psicologia (UFBA) e ex-estagiária do PIC
136
namento de pessoas em hospitais psiquiátricos e
que hoje, pela legislação, é proposto como uma
abordagem humanizada voltada para cidadania
e ressocializacão, ainda encontra entraves e posturas heterogêneas quando posto em prática, devido a dois principais questionamentos:
1) Os atuais profissionais em saúde mental
estão realmente preparados para atuarem neste
novo modelo de assistência preconizado pela Reforma Psiquiátrica Brasileira?
2) Como vêm sendo democratizados os conhecimentos em saúde mental, até então restritos aos
“profissionais psi”, para que todos possam se responsabilizar por este cuidado?
A atual legislação em saúde mental, no Brasil,
tem buscado progressivamente substituir os hospitais psiquiátricos por outros serviços como os
CAPS, NAPS, enfermarias psiquiátricas em Hospitais Gerais, Residências Terapêuticas e serviços
de saúde mental na rede de atenção básica e
Programa de Saúde da Família. Muitos destes serviços substitutivos utilizam a estratégia de visitas
domiciliares, visando um acompanhamento mais
“humanizado” do paciente. Mas no que consiste e
para que realmente serve a visita domiciliar?
Sendo utilizada primeiramente pelo Programa
de Saúde da Família, a visita domiciliar assume,
muitas vezes, um caráter compulsório de atendimento em casa para pacientes impossibilitados de
irem ao Posto de Saúde (idosos, acamados, portadores de alguma deficiência) ou para cumprir
algum objetivo preestabelecido (reconhecimento
familiar, por exemplo) reproduzindo a lógica tradicional de consultório sob o pressuposto de humanização. Seguindo lógica semelhante, os atuais serviços de saúde mental, a partir do momento
que buscam os seus pacientes em casa somente
por conta de ausências repetidas nas atividades
propostas, situações de crise e não adesão a medicação, acabam por não abarcar as reais necessidades deste tipo de paciente que apresenta
especificidades em suas relações.
O presente artigo visa contrapor a visita domiciliar à atenção domiciliar, acreditando nesta
como tecnologia fundamental no cuidado em
saúde mental, proposta-base do Programa de Intensificação de Cuidados ao Paciente Psicótico,
do qual as autoras participaram.
do profissional? Quem é ele que, mesmo quando
recluso, calado, absorto, mobiliza família, comunidade e trabalho? Ele tem nome? Tem desejos?
É cidadão?
Na perspectiva da abordagem do sujeito é que
ampliamos a percepção da psicose para além de
um conjunto de sintomas psicopatológicos, dos
estigmas e medos da população de uma maneira
geral, inaugurando uma nova forma de atuação
e formação em saúde mental a qual prioriza as
relações vinculares, responsabilização e quebra
do enquadre terapêutico. Propomos, desta forma,
um “ambulatório que verdadeiramente ambula” e
se preocupa com este grupo específico de pacientes e sua relação com o meio em que vive.
Da Atenção Domiciliar...
Em contraposição à visita domiciliar, a atenção
domiciliar apresenta-se como uma tecnologia
que propõe cuidar integralmente do indivíduo,
preocupando-se em ampliar suas redes de apoio,
responsabilizando a família e apoiando-a, buscando meios que melhorem a qualidade de vida
do paciente.
Esta tecnologia busca ser sistemática e contíDo psicótico...
nua. Os encontros com o paciente, a família e
a comunidade não pressupõem retirar uma inSingular, fragmentado, frágil, misterioso, im- formação, mas estabelecer relações vinculares
previsível, rindo e chorando de maneira peculiar... com finalidade de se aproximar e contribuir com
Será realmente inacessível o diferente? Temos nós eles, estando à disposição e secretariando a realguma interferência na direção dos seus moinhos lação deste paciente com o meio. Neste aspecto,
de vento? Será que se depararão com a violência podemos ilustrar como um exemplo o holding,
do vizinho, o grito do parente ou a indiferença definição introduzida por Winnicott como sendo
137
“tudo que, no ambiente, fornecerá a uma pessoa
a experiência de uma continuidade, de uma constância tanto física quanto psíquica” (BARRETTO,
1998: 60). Estas atitudes favorecem mecanismos
para que o paciente se movimente, se questione,
se coloque no mundo, estabelecendo uma ampliação da troca de poder contratual.
Por se propor a ocupar a função de um acompanhante dentro desta relação, o profissional
acaba transcendendo os protocolos técnicos existentes hoje em dia, no que se refere às restrições
de acompanhar o paciente somente em situações
especiais e pré-estabelecidas, como os momentos
de crise. Amplia-se o atendimento, atuando nos
espaços urbanos e rompendo com o enquadre e
a proteção que o setting proporciona. Este tipo de
atenção expõe o profissional ao afetamento com
as questões do paciente, permitindo-se tocar com
seus sentimentos.
Haja vista suas características de funcionamento, a tecnologia da atenção domiciliar se faz necessária e fundamental no atendimento da saúde
mental dentro dos moldes da nova proposta psiquiátrica.
Das dificuldades...
trar isso com um caso do estágio em que, depois
de algum tempo de acompanhamento, quando
fomos visitar o paciente, encontramo-lo na frente
de casa com um pedaço de “pau” na mão levantado pro alto nos dizendo “ninguém entra em
casa, só parente e amigo”; ou situações de manejo do vínculo de um paciente que se “apaixonou”
pela acompanhante.
Outro fator dificultador é o da disponibilidade, o estar disponível requer entrega afetiva bem
como temporal. Combinar esses itens nem sempre é possível e viável, tornando-se umas das dificuldades centrais do acompanhamento.
Há também as dificuldades de âmbito operacional, como a falta de profissionais capacitados
para lidar com situações “previstas” de atuação
neste tipo de atenção, bem como a inexistência de
formação permanente. Dificuldade de um apoio
para este tipo de atendimento foi se estendendo
ao longo dos anos, o que gera uma contratação
defasada de profissionais na área, tanto pela falta
de incentivo de contratação quanto pela falta de
profissionais capacitados. Juntamente a isso, há a
falta de incentivo educacional, como a não-reformulação dos currículos objetivando formação de
profissionais preparados para as reformas institucionais como a reforma psiquiátrica.
Dentre as dificuldades do processo de trabalho,
podemos citar a exposição criada pela quebra do
Considerações Finais
enquadre terapêutico, que pode ser exemplificada
Com o advento da Reforma Psiquiátrica e a imnão somente como exposição de afetos em que
há uma troca com a questão do outro, como tam- plementação da lei Paulo Delgado, foram precobém nuances físicas ao se adentrar em um territó- nizados novos princípios para o cuidado em saúrio que até então é desconhecido. Podemos ilus- de mental. A Atenção Domiciliar é desenvolvida
138
neste contexto como uma tentativa de resposta ao
novo modelo de atuação que se faz necessário.
Esta nova tecnologia leva em consideração aspectos singulares do indivíduo, apostando na relação vincular como base para intervenção.
A Atenção Domiciliar busca desenvolver a autonomia do sujeito, oferecendo dispositivos para
sua sociabilidade e formação de vínculos. O profissional atua como um secretário, gerenciando as
relações do paciente, negociando com familiares
e agentes da comunidade, ampliando suas redes
sociais e de apoio, de modo a oferecer-lhe maior
poder contratual na sociedade.
Não obstante a relevância desta tecnologia de
cuidado, existem alguns entraves que precisam
ser superados para fins de sua implementação.
O primeiro deles é o preparo dos profissionais.
Existe um descompasso entre a atuação desses
técnicos e as novas diretrizes para a reforma da
saúde mental. O lidar com pessoas em sofrimento psíquico, principalmente psicóticos, exige uma
tecnologia de cuidado especial que vai além dos
conhecimentos técnicos e científicos. Corrobora
para esta constatação a observação de pessoas
que, embora desprovidas desses conhecimentos
técnicos, possuem grande habilidade no manejo
das relações com este público. Um outro obstáculo a ser superado é a burocracia dos serviços
públicos de saúde. A implementação desta nova
tecnologia de cuidado encontra dificuldades,
uma vez que exige recursos humanos e materiais
freqüentemente em falta nesses serviços, como
transporte, profissionais etc.
Em contrapartida, iniciativas de inserção da
saúde mental na Atenção Básica têm apontado
para direções possíveis quanto à implementação
da Atenção Domiciliar. Tem-se observado que
muitos agentes comunitários de saúde (ACSs), nos
Programas de Saúde da Família (PSFs), possuem
grande habilidade no trato com os usuários de
saúde mental. Quando capacitados tecnicamente, esses trabalhadores adquirem um preparo, no
qual se combina sensibilidade, vínculo estabelecido e saberes teóricos e técnicos. Tal iniciativa
apresenta-se como tentativa de aproveitamento
dos recursos já existentes, mas não resolve o problema da capacitação de novos profissionais que
encontra na reformulação curricular e na mudança de posturas os seus principais desafios.
Com a proposta da Atenção Domiciliar, vislumbra-se um novo saber em saúde mental que
pressupõe a socialização dos saberes até então
restritos às disciplinas. Ainda não há respostas
que atendam a todas as dificuldades para a implementação desta tecnologia de cuidado. Portanto, fazem-se necessários maiores estudos e novas
estratégias para formação de recursos humanos
com práticas consoantes aos princípios da Reforma Psiquiátrica.
139
Referências
BARRETTO, Kleber Duarte. Ética e Técnica no acompanhamento terapêutico. São Paulo: Unimarco, 1998.
LANCETTI, Antônio. Saúde Mental nas entranhas da metrópole. In: Saúde Loucura, 7. São Paulo: Hucitec
MELMAN, Jonas. Família e Doença Mental: repensando
a relação entre profissionais de saúde e familiares. São Paulo: Escrituras, 2001.
PICHON-RIVIÉRE, Enrique. Teoria do Vínculo. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
ROSA, Walisete; LABATE, Renata. A contribuição da saúde mental para o desenvolvimento do PSF. In:Rev. Bras. Enferm., Brasília (DF), vol 56(3): 230-235, maio/jun: 2003
TENÓRIO, Fernando. A reforma psiquátrica brasileira,
da década de 1980 aos dias atuais: história e conceitos.In:
História, Ciências, Saúde-Manguinhos-Rio de janeiro, vol
9(1): 25-59, jan-abr, 2002.
140
A Formação de Díades no Trato com a Loucura:
Acompanhando o acompanhante
Lorena Almeida*
Lygia Freitas**
Resumo: Este artigo enfoca o trabalho em dupla realizado durante os atendimentos em domicílio, que constituem uma das estratégias do Programa de Intensificação de Cuidados a Pacientes
Psicóticos (PIC). Faz-se uma tentativa de elaboração teórica sobre este tema por parte das autoras, com subsídio de alguns depoimentos colhidos
junto a estagiários e ex-estagiários do PIC. Cada
paciente atendido pelo programa é acompanhado
por uma dupla de estagiários (um de Psicologia e
outro de Terapia Ocupacional), numa freqüência
estabelecida de acordo com a demanda do caso.
O trabalho em dupla visa amenizar as dificuldades encontradas nesse, em geral, primeiro contato
dos estagiários com a questão da loucura e de seu
manejo clínico. O compartilhamento de angústias,
sofrimentos e questionamentos é, sem dúvida, um
fator de grande destaque no andamento do estágio, na medida em que engendra o surgimento de
questões não só na relação dos estagiários com os
*Psicóloga graduada pela UFBA e ex-estagiária do PIC
**Psicóloga graduada pela UFBA e ex-estagiária do PIC
pacientes, como deles entre si e consigo mesmos.
A possibilidade de acompanhar um caso junto à
outra pessoa propicia uma observação muito mais
rica e fidedigna, em razão de ser feita durante o
próprio acompanhamento, ampliando, assim, as
“versões dos acompanhamentos” que são apresentadas durante a supervisão grupal. Sem falar
na possibilidade de auto-observação a partir do
olhar do outro, fundamental nesse processo de
formação profissional. Desse modo, evidencia-se
que a experiência vivenciada pelos estagiários que
passam pelo PIC é não apenas informativa, como
também, e essencialmente, formativa.
Introdução
O
Programa de Intensificação de Cuidados
a Pacientes Psicóticos (PIC) é efetivado por
diversas formas de trabalho: atenção domiciliar,
encontros terapêuticos grupais entre pacientes e
estagiários/ extensionistas, atividades externas,
reuniões com cuidadores, atendimentos individuais, quando necessário; acompanhamento a
141
consultas médicas e psiquiátricas, supervisão em
grupo semanal, etc.
Neste artigo, será enfocado o trabalho em dupla, realizado durante os atendimentos em domicílio. Será feita uma tentativa de elaboração teórica sobre este tema por parte das autoras, com
subsídio de alguns depoimentos colhidos junto a
estagiários e ex-estagiários do PIC.
No Programa de Intensificação de Cuidados a
Pacientes Psicóticos, cada paciente do programa
é acompanhado por uma dupla de estagiários,
numa freqüência estabelecida de acordo com a
demanda do caso. Há pacientes que são acompanhados semanalmente; outros, quinzenalmente e, em algumas situações, sobretudo quando o
paciente está em crise, as visitas são realizadas
todos os dias.
Inicialmente, quando os estudantes são selecionados para o programa, é feita uma breve explanação, por parte dos estagiários que estão saindo
ou mesmo dos que vão permanecer no estágio,
acerca dos casos que compõem a clientela do
PIC. Formam-se as duplas, buscando-se, sempre
que possível, que, em cada uma, haja um estagiário de Psicologia e outro de Terapia Ocupacional,
no sentido de propiciar a troca de experiências
técnicas e teóricas que o trabalho multidisciplinar
possibilita. Além deste critério, que é o principal,
outro que fundamenta a formação das duplas é a
questão da empatia, interesse e/ou identificação
por cada caso apresentado, além, logicamente,
da compatibilidade de dias e horários para a realização dos atendimentos domiciliares.
Depois de formadas as díades que acompa142
nharão os pacientes, tem início a passagem dos
casos, em que cada nova dupla realiza um contato inicial com os mesmos, acompanhada dos
antigos estagiários. Num primeiro momento, convém aos ingressantes no programa uma postura
mais discreta e de observação, no intuito de irem
se familiarizando com a dinâmica de cada paciente e, em contrapartida, serem reconhecidos
como alguém de confiança, em que eles podem
depositar suas angústias, alegrias e sofrimentos.
Após esse primeiro contato, os novos responsáveis pelo caso vão adotando um estilo mais ativo
e participativo, com intervenções sobre o que, na
etapa anterior, eles apenas observaram. Assim,
dá-se a despedida dos antigos estagiários, e uma
nova relação vai se estabelecendo. Com a saída
deles, os iniciantes assumem o caso em definitivo,
tendo respaldo técnico e teórico para suas condutas durante as supervisões. O aprimoramento
teórico, portanto, vai se dando simultaneamente
à ação propriamente dita, que é feita junto aos
casos.
2 – Por que trabalhar em dupla?
Inicialmente, o trabalho em dupla pode ser
justificado como uma tentativa de amenizar as
dificuldades encontradas nesse, em geral, primeiro momento em que os estagiários se defrontam
com a questão da loucura e de seu manejo clínico. Tendo em vista que, geralmente, tanto os
estudantes do curso de Psicologia como os de Terapia Ocupacional só se deparam com essa problemática já no fim da graduação, o trabalho em
dupla mostra-se um recurso de apoio àqueles que
estão iniciando na prática em saúde mental que
complementa a supervisão.
“Assim como os cavaleiros andantes saem à
cata de emendar todas as situações que, porventura, carreguem algum erro ou injustiça e exijam
do seu exercício alguma intervenção ou mediação, também os escudeiros os acompanham, a
fim de poderem, igualmente, dar amparo a seus
senhores em ocasiões adversas”.
Kleber Barretto (2000, p. 59)
Embora, na situação ora focalizada, não se
trate de uma relação hierárquica, mas horizontal entre os estagiários, essa citação de Barretto
explicita bem a nuance de suporte exercida, mutuamente, durante o trabalho em dupla. O compartilhamento de angústias, sofrimentos e questionamentos é, sem dúvida, um fator de grande
destaque no andamento do estágio, na medida
em que engendra o surgimento de questões não
só na relação dos estagiários com os pacientes,
como deles entre si e consigo mesmos.
Ademais, a possibilidade de discussão e de busca pela questão dos sujeitos que são acompanhados pelos estagiários, por aquilo que deve nortear
o trabalho feito com eles, propicia a indispensável
experiência de “pensar em voz alta”. Esta, por sua
vez, permite um melhor entendimento do caso e
conseqüente alcance das estratégias de manejo
clínico mais adequadas a cada um deles.
Segundo Barretto (2000), para exercer a atividade de apoio (holding) aos pacientes, é necessário que o (futuro) profissional tenha vivido e internalizado essa função, uma vez que só é possível
dar holding a alguém na medida em que já se
tenha experimentado tal vivência. “Na maior parte das vezes, o profissional não consegue exercer
essa função, porque lhe é difícil aceitar e compreender que ‘faz algo’ ao não fazer absolutamente
nada – só estar presente”. (p. 64)
Desse modo, fica claro que a função de holding acaba sendo praticada tanto na relação dos
estagiários com os pacientes (e entorno social dos
mesmos) como na dupla de estagiários entre si.
“Em um dos casos que acompanhei, a função
de holding foi exercida entre os próprios estagiários. O suporte e o apoio psíquico tão falados
entre estagiário e usuário (ou acompanhante e
acompanhado), neste caso, foram também percebidos entre estagiário e estagiário (acompanhante
e acompanhante). Um deu apoio ao outro tanto
na divisão como no revezamento do que precisava ser feito para evitar ou amenizar a sobrecarga
psíquica característica do caso.”
Ana Cláudia Braga (estagiária de Terapia Ocupacional do PIC durante 1 ano)
Cabe salientar que não se trata de uma atitude
exclusivamente ativa, incluindo também, em certos momentos, uma certa passividade, apenas um
estar junto, estar presente.
Também é digna de nota a importância da troca de conhecimentos e experiências que o trabalho em duplas formadas por estudantes de Psicologia e Terapia Ocupacional possibilita. Esse tipo
de experiência favorece a construção de um saber
teórico-prático comum às duas disciplinas, num
verdadeiro trabalho interdisciplinar.
Em algumas situações, entretanto, pode-se ob143
servar certa dificuldade em se atingir esse compartilhamento de saberes, em virtude, muitas vezes,
de alguns estagiários se fecharem dentro das teorias obtidas nos bancos da faculdade, não sendo
flexíveis a idéias que divirjam, em algum aspecto,
daquilo que acreditam ser terapêutico ou mesmo
o mais adequado à dada circunstância.
Vale assinalar que também há outras ocasiões
em que o trabalho a dois não funciona de modo
satisfatório, o que sugere que a dinâmica entre os
membros de cada díade precisa ser trabalhada,
de modo que se compreendam as diferenças de
estilo individual e mesmo de valores e concepções, que podem tanto contribuir como prejudicar
o andamento dos casos. Em diversos períodos, foi
possível perceber que um dado caso, que não se
desenvolvia satisfatoriamente com determinada
dupla de estagiários, obteve avanço significativo
quando houve a mudança dos responsáveis pelo
caso.
“Na primeira experiência em dupla não pude
aproveitar muitos diálogos sobre a experiência
com os pacientes, o que empobreceu um pouco o
trabalho. Já nesta
segunda, está sendo ótimo. Acho que conseguimos, em várias oportunidades,
compartilhar, principalmente antes e depois das
aulas de xadrez e dança,
muitas experiências, interpretar e discutí-las. Assuntos como receios, do
que poderia acontecer conosco e com o paciente, medos de um surto acontecer,
já que achamos nossa intervenção corporal, a
dança, um pouco ousada. Pudemos
144
suportar uma a outra diante de situações inusitadas, quando a força acabou as aulas eram puxadas, quando “bateu um
branco” ou tomamos um susto ou uma
surpresa. Sempre uma das duas encontrou uma
saída. Rimos muito juntas, o que
aliviou a ansiedade em algumas situações difíceis e dividimos também a
responsabilidade”.
Vera Hittel (estagiária de Psicologia do PIC durante 1 ano)
“Intensificar cuidados em dupla é interessante,
na medida em que se torna possível compartilhar
as experiências vivenciadas com o sujeito acompanhado. Compartilhar com um outro (a dupla) o
estranhamento diante da desorganização do discurso de um paciente foi fundamental para refletir
sobre os desafios de se estar com o sujeito que
possui um sofrimento mental e um arranjo psíquico diferenciado”.
Tatiana Medeiros (estagiária de Psicologia durante 1 semestre)
3 – Considerações Finais
Diante do exposto, fica claro que o trabalho
em duplas de estagiários, desenvolvido no Programa de Intensificação de Cuidados a Pacientes
Psicóticos, pode ter tanto aspectos positivos como
obstaculizantes.
A possibilidade de acompanhar um caso junto
à outra pessoa propicia uma observação muito
mais rica e fidedigna, em razão de ser feita durante o próprio acompanhamento, ampliando,
assim, as “versões dos acompanhamentos” que
são apresentadas durante a supervisão grupal.
Sem falar na possibilidade de auto-observação a partir do olhar do outro, fundamental nesse
processo de formação profissional. Desse modo,
evidencia-se que a experiência vivenciada pelos
estagiários que passam pelo PIC é não apenas
informativa, como também, e essencialmente, formativa.
“Acho que o legal de trabalhar em dupla é poder contar com um outro que sinaliza para algo
que você fez de errado, que dá suporte, que percebe coisas que você não vê. Intervém quando
faltam palavras, age quando você está falando
demais. É um equilíbrio necessário e produtivo”.
cansaço e desânimo causado pelo esforço inerente a essa prática clínica. O parceiro, muitas vezes,
pode constituir um terceiro na relação muitas vezes
dual com o paciente e, assim, diluir a depositação
intensa direcionada ao estagiário. Para mim, a
importância de um companheiro na caminhada foi
essencial para conseguir planejar, organizar e dar
continuidade nos momentos de angústias e tristeza e para poder continuar acreditando, enfrentando dificuldades e obstáculos. Como a relação
entre os estagiários é bastante intensa, acabamos
por constituir grandes amizades e até alguns desafetos”.
Mabel Jansen (estagiária de Terapia Ocupacional do PIC durante 1 ano e extensionista durante
1 semestre)
Érica Coelho (estagiária de Psicologia do PIC,
durante 1 semestre)
Dividir anseios, expectativas, intervenções adequadas e outras frustradas com um parceiro gera
um trabalho muito mais consistente do que se o
acompanhamento dos casos fosse feito de modo
individual. As contribuições obtidas com essa modalidade de trato da loucura favorecem, sem dúvida, tanto o âmbito do manejo clínico como o da
formação profissional de cada um.
“Um parceiro possibilita compartilhar dúvidas,
pensar em estratégias, como também dividir as
angústias, tristezas e alegrias. Um estímulo ao
145
Supervisão:
Espaço de continência, aprendizado e reflexões
Eduarda Mota*
N
as terças à tarde, ocorre um momento crucial
do Programa de Intensificação de Cuidados
- a supervisão dos estagiários, que é coordenada
por uma dupla de supervisores, com formações
(psicólogo e terapeuta ocupacional), instituições
(UFBA e FBDC) e estilos diferentes, mas complementares, que se esforçam para criar um espaço
ao mesmo tempo acolhedor das mobilizações dos
estagiários e gerador de uma tensão provocadora
que estimule o compromisso com o aprendizado
e o cuidado intensivo. Essa parceria vem ocorrendo há quatro anos com uma sintonia crescente;
as diferenças citadas enriquecem o trabalho conjunto, demarcando que a clinica psicossocial não
pertence a nenhuma categoria profissional, mas
sim àqueles que se detêm em estar constantemente se preparando para trabalhar na área da saúde
mental dentro de uma visão ampliada.
A metodologia foi se consolidando ao longo
da experiência. A supervisão é dividida em dois
momentos: um de discussão teórica, que pode ser
por explanação, leitura e discussão de textos, fil-
*Supervisora de Terapia Ocupacional do PIC
146
mes, e outro de discussão dos casos e da direção
dos atendimentos. Complementando o embasamento teórico, o Professor Dr. Marcus Vinícius
(pesquisador e estudioso da psicose) oferece um
seminário à parte – Elementos Teóricos para uma
Clínica Psicossocial das Psicoses, como disciplina
de extensão da UFBA.
Trabalhamos com o princípio da autonomia e
do compromisso com os casos. Apesar de termos
alguns acordos de participação (grupo semanal
e visita domiciliar semanal), o tempo, a presença
dos estagiários é regulada pela necessidade de
cuidado com os casos. Quando o cuidado é insuficiente, aparece sob a forma de crise; o descuido ou não implicação nos casos são trabalhados
na supervisão dentro da clínica, e não somente
como uma questão burocrática. Vale ressaltar que
os estagiários, de modo geral, nos surpreendem
pela disponibilidade e investimento pessoal e profissional, indo muito além do esperado.
Iniciamos com a constituição das duplas interdisciplinares de estagiários, que serão a referência
para cada paciente e responsáveis pelo caso. Os
estagiários, tanto de terapia ocupacional quanto
de psicologia, chegam desprovidos de uma experiência significativa com relação à psicose. Acreditamos que o maior aprendizado vem do contato
com o psicótico. A orientação inicial é de exposição à psicose; estar com, escutar, olhar o paciente de referência e tudo o que está a sua volta,
ler os registros das estagiárias e não atrapalhar
o trabalho da psicose (partindo do pressuposto
que a psicose trabalha em direção de retorno à
cultura).
Os primeiros meses são dedicados à formação
de vínculo, pois acreditamos que esta é a condição necessária para que se dê alguma possibilidade real de intervenção. Nessa fase, as supervisões atuam como um suporte, recebendo e
acolhendo as ansiedades e inseguranças comuns
nos primeiros encontros. Os contatos iniciais dos
estagiários novos são acompanhados pelos que
estão saindo do programa, fase conhecida como
passagem.
Paralelamente, vamos construindo um respaldo teórico, entrelaçando as teorias que tecem a
complexa teia da psicose. As temáticas teóricas
passam pela crítica ao modelo de internação
como forma de tratamento, pela clínica psicossocial, reforma psiquiátrica, estruturas psíquicas,
simbiose, acompanhamento terapêutico, vínculo,
redes sociais, família, grupos, interdição, solidão,
entre outras.
Tendo acompanhado até o momento oito grupos de estagiários, percebemos que algumas
questões e situações são recorrentes – a desestabilização de alguns pacientes no momento da troca de estagiários; discussão a respeito de quando
devemos concordar quando um paciente recusa
atendimento; o que fazer com o “investimento
amoroso” do paciente. Apesar das repetições,
não existe regra ou respostas prontas. Cada caso
é ouvido e pensado a partir de sua história, contexto e relações, analisado à luz de uma teoria
que contribua para o entendimento da psicose,
seja esta lacaniana, winnicottiana, rosellóniana ...
No entanto, o que está por trás das questões tem
quase sempre a ver com a dificuldade do psicótico na relação com o outro.
Surpreendentemente, não é o contato com o
discurso delirante ou a estranheza da experiência
alucinatória, nem mesmo situações de crises onde
eles são chamados a intervir o que mais mobiliza
os estagiários, mas sim a miséria, a fome, a falta
de condição básica para existência, a solidão, as
dificuldades institucionais até mesmo nos serviços
atuais de saúde mental.
A supervisão, segundo os próprios estagiários,
é o local de organizar o pensamento e a ação.
Porém muitas vezes temos que desorganizar idéias
preconcebidas, cristalizadas a respeito da loucura, para que possa surgir um posicionamento diferenciado diante do psicótico. Na saúde mental,
não basta fazer, é preciso saber o porquê, para
quem e como fazer. E isso se constrói com experiência, estudo, reflexão e delicadeza.
Não é somente cada caso de paciente que
acompanhamos, e sim cada caso na ótica de
cada estagiário que o acompanhou, e isso é um
repertório imenso de aprendizado e reflexão para
os supervisores, que também aprendem com cada
estagiário e com cada paciente.
147
Complexidades
A abordagem da Crise na Psicose
Fernanda Blanco Vidal*
Ana Claudia Silva Braga**
Adelly R. Orselli Moraes Sodré***
Resumo: Este artigo pretende tratar de uma forma de abordagem da crise na psicose à luz do cuidado integral e intensivo. O sujeito é aqui entendido como uma construção histórica, fundamentada
num projeto societal normo-neurótico que exige
autonomia e capacidade de produzir vínculos.
Os sujeitos psicóticos dispõem de poucos recursos para tal. Sendo assim, a psicose se configura
como um embaraço na ordenação da sociedade
moderna, o colapso do modelo ideal de sujeito. A
crise, que emerge quando o sujeito é colocado em
questão, representa a tentativa de lidar com o insustentável, sendo um arranjo providencial que se
tem quando todos os recursos psíquicos já foram
utilizados. Por essa perspectiva, o que precisa ser
tratado é o sujeito, e não a crise. Nesse sentido,
na proposta de cuidado apresentada, o acompanhamento terapêutico, cujo recurso básico é o estabelecimento do vínculo acompanhante-usuário,
*Estudante de Psicologia (UFBA) e estagiária do PIC
**Terapeuta ocupacional graduada pela FBDC e ex-estagiária do PIC
***Terapeuta ocupacional graduada pela FBDC e ex-estagiária do PIC
é uma prática possibilitadora do manejo da precariedade dos recursos subjetivos e objetivos dos sujeitos, uma tentativa de (re) significação da vida.
N
este artigo, a partir do relato de algumas situações vividas como estagiárias do Programa
de Intensificação de Cuidados - PIC e de referenciais teóricos que embasam esta prática, pretende-se justificar algumas das abordagens utilizadas
e, assim, estruturar elementos que possibilitem
contestar outras. A experiência com o caso que
aqui será discutido levantou questões acerca das
formas de abordagem do sujeito em crise. Para
tal, faz-se importante apresentar, brevemente, a
proposta de ação deste programa, visto que, para
nós, constitui-se como uma referência importante
no cuidado com pacientes psicóticos, e mais especificamente, no trato com situações de crise.
O Programa de Intensificação de Cuidados,
em conformidade com as diretrizes da Reforma
Psiquiátrica, tem como principal objetivo promo151
ver a qualidade de vida de pessoas com transtorno mental, especificamente a psicose, por meio
do cuidado intensivo e do desenvolvimento das
redes sociais de apoio. Nesse sentido, a atenção
é dirigida para os diversos âmbitos da vida dos
sujeitos, visando a (re) significação subjetiva, o
reconhecimento da alteridade, a construção e o
fortalecimento de vínculos sociais, a inclusão na cultura, na escola, no trabalho, nos espaços
da cidade, etc. - a responsabilização da família,
comunidade, instituições e outros, no cuidado a
essas pessoas, de modo a produzir a descoberta
de novas possibilidades de vida e, acima de tudo,
a efetivação dos direitos humanos.
A prática dessa forma de cuidar integral, como
aponta Silva (s/d, a), é possível através da noção
de Intensificação de Cuidados, definida por ele
como:
“Um conjunto de procedimentos terapêuticos
e sociais direcionados ao indivíduo e/ou ao seu
grupo social mais próximo, visando o fortalecimento dos vínculos e a potencialização das redes
sociais de sua relação, bem como o estabelecimento destas nos casos de desfiliação ou forte
precarização dos vínculos que lhes dão sustentação na sociedade (s/d, p.01”.
Nessa proposta, a intensificação de cuidados se efetiva através do Acompanhamento Terapêutico, em que o estabelecimento do vínculo
acompanhante-usuário é o recurso básico por
meio do qual este último pode “desenvolver e/ou
(r)estabelecer funções psíquicas que na sua história de vida ficaram comprometidas” (BARRETTO,
1998, p.43).
152
Nesse sentido, considerando o redirecionamento da atenção à saúde mental e a ampliação da oferta de serviços, é pertinente indagar
de que modo, na atual conjuntura, a crise vem
sendo abordada. Quais são os recursos acionados? Lança-se mão de mecanismos terapêuticos
flexíveis que estejam em consonância com as propostas de uma Clínica Integral ou ainda se reproduzem modos de intervenção descontextualizados
e segregadores?
Na tentativa de responder a tais questionamentos, serão trazidas as vivências de estágio
documentadas em diário de campo. Essa experiência proporcionou o contato direto com o sujeito
e seu cotidiano, por meio do trânsito na sua família, na sua comunidade e nas redes sociais de
suporte com as quais ele possui relação, como,
por exemplo, o CAPS de sua região.
1 – A Crise do Sujeito
Convencionalmente, supõe-se que o sujeito é
idêntico a si mesmo; (...). Ele é o centro da identidade, estável e inabalável(...).O sujeito é Um:
universal, indivisível e eterno. O sujeito é o sujeito e, portanto, cumpre duas funções distintas na
topografia social: universalização e individuação.
Por um lado, o sujeito é uma figura de universalização na medida em que é o grau-zero da
humanidade (...).Em suma, o re-conhecimento se
transfere- por meio de corpos e faces individuais
(DOEL, 2001, p. 86 e 87)
Problematiza-se, nesta primeira parte do artigo, a noção de sujeito e, por conseqüência, a
interpretação desta noção como uma produção
teórica e política datada no projeto social da revolução burguesa e que pressupõe a existência
de seres humanos como seres iguais, universais,
autônomos e racionais.
Simone de Beauvoir, em seu livro O segundo
sexo, foi uma das precursoras na crítica ao sujeito, desafiando sua presumida universalidade,
neutralidade e unidade, argumentando que, no
mundo social, existem aqueles que ocupam a
posição não específica, sem marcações (sexual,
racial, religiosa), “universal”; e aqueles que são
definidos, reduzidos e marcados por sua “diferença”, sempre aprisionados em suas especificidades, designando o Outro.
Essas críticas colocavam em evidência o fato
de que a noção de sujeito estava marcada por
particularidades que se pretendiam universais e,
na medida em que pretendiam universalizar as especificidades do homem branco, heterossexual e
detentor de propriedades e “autônomo”, este sujeito tornava-se uma categoria normativa e opressora, para usarmos a definição de Judith Butler.
(MARIANO, 2006)
Tomando-se estas importantes problematizações como pontos de partida, é preciso perceber
e conceber, além destas questões colocadas, o
lugar do registro psíquico na fundação das sociedades humanas, a fundação simbólica do lugar do Eu e do Outro como etapa fundamental
para produção das organizações sociais. Neste
sentido, as diversas formas de organização sócio-
cultural desenvolvem, nos diversos lugares e momentos da história, certos modos de estruturação
e instauração do Psiquismo.
O sujeito social, tal como conhecemos, não é
a-histórico. O que somos, portanto, deve ser tomado como uma forma de organização, um arranjo particular de certo processo civilizatório que,
em nosso caso, podemos considerar como parte
do projeto da sociedade moderna ocidental. Em
cada sociedade, produzem-se os modos de formatação dos sujeitos e as falhas desse projeto.
Consideramos que o modo de apresentação da
loucura, na experiência da psicose, guarda íntima
relação com a produção humana na sociedade
moderna (SILVA, 2006).
Em nosso projeto civilizador mais atual, datado
de cerca de 300 anos, produzimos um nível de
individuação muito radical na história humana.
Mais do que nunca, a habilidade da individuação é requerida dos sujeitos para viver nesta sociedade. O êxito da vida humana nesta sociedade é medido pela nossa capacidade de produzir
vínculos. Essa sociedade exige dos sujeitos certa
competência para a autonomia radical. Se a sociedade está posta desta maneira, a relação com
ela fica constrangida para os sujeitos psicóticos,
que dispõem de poucos recursos para o trato com
as relações vinculares. Nesta perspectiva, a psicose se apresentaria como a expressão dos sujeitos
embaraçados com o Outro e com a ordenação
societal moderna (SILVA, 2006).
Além disto, é neste contexto, que pressupõe
a regulação social dos atos e comportamentos
a partir de uma certa instância administrativa e
153
controladora no “interior” dos sujeitos, que os
psicóticos, enquanto sujeitos nos quais tais instâncias são precárias, representam uma crise e a desordem deste projeto. É sob estas condições que a
sociedade ocidental moderna pode ser vista como
denominaremos aqui: Normo-neurótica. Ela torna o modo de estruturação neurótica não só o
modo universal de produção humana necessária,
mas também o modo regulador da existência em
sociedade. Torna-se, portanto, uma normatização
dos modos de registro psíquicos suportáveis no
interior desta organização social. Os psicóticos,
neste processo, são uma crise, a crise dos projetos
de sujeito. São a expressão da crise dos modelos
de sujeito ideal de nossa sociedade.
A partir destas problematizações e tomando-as
como pressupostos de análise, começaremos a
exposição da história de um sujeito em crise e da
crise deste sujeito. Como será possível notar, este
é um sujeito cuja individuação imposta é extremamente radical e torna-se um desafio constante e
complexo, num contexto em que a competência
para o gerenciamento e a autonomia da vida e
de suas circunstâncias se colocam como única
opção para a sobrevivência.
O acompanhamento a Joaquim foi realizado em um período de dez meses pelas autoras
do presente artigo. Ele faz parte do PIC há três
anos, sempre sendo atendido semanalmente, por
dois ou três acompanhantes. Joaquim (35 anos) é
portador de esquizofrenia e tem um longo histórico de internações recorrentes desde a adolescência. É considerado um dos mais complexos casos
atendidos pelo programa, por sua precária con154
dição familiar, social e de saúde, a qual se configura como uma extrema situação de desfiliação/
exclusão social. Na história dessa família, a perda
pode ser considerada uma palavra constitutiva,
visto que, na entrada de sua adolescência, a mãe
de Joaquim morre, e o pai abandona os filhos
quase que à própria sorte, deixando apenas uma
pequena casa que hoje é disputada entre os irmãos. Joaquim e seus cinco irmãos foram criados
separados por senhoras da vizinhança e uma avó.
Um dos irmãos foi morto, não se sabe exatamente
como, mas aparentemente o motivo guarda relação com a história de loucura que atravessa os
membros dessa família. Dos outros quatro irmãos
vivos, três possuem algum tipo de transtorno mental. Conforme informação do usuário e da irmã,
ele apresentou a primeira crise, quando foi internado pela primeira vez, aos dezessete anos.
A situação da família é de extrema pobreza.
Quase todos têm renda muito baixa e vivem da
ajuda de poucos. Joaquim vive com uma irmã no
térreo do prédio deixado pelo pai. Sua condição
social é precária. Serviços básicos como fornecimento de água e energia elétrica estão cortados. A
casa é um lugar extremamente escuro, onde morcegos, ratos e baratas encontram abrigo. A comida é pouca, episódica e não garantida. O pouco
que conseguem vem da doação de terceiros, da
ajuda de alguns vizinhos mais compreensivos e
solidários e de algum dinheiro que conseguem
catando papelão, ferro velho e lixo reciclável.
Joaquim mora num bairro de baixa renda,
muito violento, com ações comuns de grupos de
extermínio e com convivência cotidiana com a
morte. O tráfico de drogas também é parte da
rotina, e a convivência com a vizinhança é marcada por conflitos e desentendimentos constantes. A
relação com os irmãos é quase uma não relação.
Vivendo seus próprios problemas, ninguém se responsabiliza por apoiá-lo, e as poucas intervenções que fazem são para interná-lo em momentos
mais críticos. Internando-o, não realizam visitas e
reatualizam a história de abandono da família.
Alfabetizado, Joaquim gosta de escrever histórias com conteúdos diversos. As histórias têm relação com sua vida, com o convívio diário com
a violência e com suas esperanças de, por exemplo, ser um grande escritor. Faz uso de medicação
controlada e é usuário intensivo do CAPS de sua
região. Devido à gravidade de seu caso, Joaquim
tem grande dificuldade em gerenciar e tomar as
medicações nos horários indicados e todos os
dias, ficando longos períodos sem tomá-las.
Outras dificuldades somam-se a estas tão objetivas. A dificuldade no cuidado com o corpo,
consigo, com a higiene pessoal e alimentação
são algumas de suas peculiaridades. A precária
vinculação com a família, com a comunidade e
com o CAPS agrava sua condição. Joaquim está
posto num lugar fora das normas sociais, sendo
repudiado e pouco tolerado pelos que o cercam.
O desamparo, por não achar esse lugar no mundo, e a ausência de estrutura para lidar com essas
situações - se é que se pode lidar com elas - lançam Joaquim para um estado de crise. A experiência da angústia e da destruição de si é parte
dos sofrimentos envolvidos neste caso.
2 – O Sujeito em Crise
...que eu me organizando posso desorganizar
que eu desorganizando posso me organizar...
(Chico Science)
Durante os vários meses do atendimento a Joaquim, o trio de acompanhantes pôde conhecer
não só sua história de vida e seus modos de relação, mas também perceber os primeiros sinais de
sua crise. Essa foi uma crise longa e muito difícil.
Intensa e bastante angustiante tanto para Joaquim
quanto para as estagiárias. Durou cerca de 60 e
poucos dias e oscilou entre momentos de maior e
menor intensidade.
Para o Programa de Intensificação de Cuidados, a crise deve ser concebida na esfera da falta
de tratamento, como uma expressão do desacompanhamento e, em certa medida, de uma série de
etapas de falta de cuidados que pode começar na
escassez de medicações no SUS (Sistema Único
de Saúde) e ser ratificado em outras esferas da
vida caracterizadas por abandono e descuidado. É preciso, portanto, tratar o sujeito, não a crise. O
sujeito tem tratamento. A crise é um arranjo providencial que se tem à disposição quando todos
os outros recursos psíquicos do sujeito já foram
utilizados. A crise é ponto de corte. Ela representa
a experiência de inconsistência subjetiva que se
coloca para o sujeito quando este é colocado em
questão.
Nem todo evento externo produz crise, e nem
sempre é com um evento objetivo e concreto que
estamos lidando, mas com aqueles que colocam
155
em questão as significações fundantes e constitutivas dos sujeitos, aquelas que, em sua fragilidade, dão a consistência do que é o sujeito para
o sujeito. Tais significações são pontos de apoio
que o ajudam a SER-NO-MUNDO e, portanto,
ao colocá-las em xeque, produz-se a experiência
de Desmoronamento, a Angústia da Destruição,
do Não-Eu, do que não é possível significar.
O vínculo é um importante sinalizador do
modo de estruturação e desestruturação dos sujeitos psicóticos. Entendemos que o psicótico detecta, registra permanentemente que é de natureza vinculante a estruturação das relações sociais.
A alienação deste registro permanente do vínculo
permite aos neuróticos a sensação de conforto
diante do outro, o conforto de não se perceber em
relação continuamente. Na psicose, esta questão
vincular se coloca como um elemento problemático em sua experiência com o mundo, já que,
na relação com o Outro, existem poucos recursos
para uma mediação simbólica. O Outro como
algo enigmático e invasivo em certos momentos
(SILVA, 2006).
Outro ponto importante é que, diferentemente
dos neuróticos, que possuem recursos como os
mecanismos de defesa do ego para mediar simbolicamente suas relações com o mundo e com o
Outro, a psicose não possui tais recursos disponíveis, ou os tem em precariedade. Na psicose,
o “corte, portanto, é no real”. Há a experiência
psíquica da morte, do Não-Ser, da destruição de
si, quando certas condições insuportáveis para o
sujeito colocam em questão sua capacidade de
permanecer como tal (SILVA, 2006).
156
Para BARRETTO (1998), o homem necessita
intermediar suas experiências – afetivas, pulsionais, existenciais - do contrário estas podem ser
disruptivas, pois o sujeito passa a viver o horror de
não mais sentir uma emoção ou sentimento, mas
transformar-se neles; não mais experimentar um
impulso, mas ser este impulso.
Neste momento da experiência da destruição,
uma possibilidade de lidar com tal sensação torna-se disponível para o psicótico, ele abre a porta
de emergência e suspende a significação, descolando os signos dos significado. No delírio, os signos deslizam sobre os significados, e as palavras
se descolam umas das outras (...). A crise é o fim
da angústia, a angústia precede a organização.
Quanto mais desorganizado, menor a experiência
da destruição. Este afastamento de tal sofrimento,
entretanto produz um outro sofrimento: desconexão com a cultura, o estranhamento do compartilhado e a perda da conexão de sentido com o
mundo. Diante da experiência da proximidade da
morte, o psicótico faz um suicídio simbólico (SILVA, 2006).
Tomando estes pressupostos como pontos de
partida de nossas análises e intervenções, traremos um pouco da nossa leitura da entrada na crise de Joaquim. Sinalizaremos aqui alguns de seus
comportamentos que consideramos indícios desta
entrada e apresentaremos algumas de nossas hipóteses, norteadas por estes pressupostos anteriores. A seguir, traremos cerca de três ou quatro
relatos de episódios de nosso atendimento nos
quais a crise era mais intensa e difícil e de como
intervimos em tal situação, a fim de fornecermos
certas exemplificações que ajudem a compreender um tipo de manejo apropriado, mas não único, para situações como esta.
A ocorrência da crise pode ser conseqüência
de vários fatores. No caso de Joaquim, supõe-se
que tenha ocorrido devido a algumas situações
insustentáveis em que ele mostrou-se inquieto e
desorganizado. Consideramos estes fatores: a saída de estagiárias anteriores com as quais tinha
um forte vínculo, o falecimento de um tio próximo, o aluguel de um ponto comercial que fica em
sua casa pela irmã cujo valor também tem direito
a receber - e não recebe - e os recorrentes desentendimentos com esta, além da irregularidade no
uso da medicação.
O riso imotivado, delírios freqüentes, comportamento libidinoso e agressivo foram os sintomas
apresentados de forma mais acentuada no período anterior e durante a crise. Várias situações
desconfortantes decorriam deste momento, e o
contato com Joaquim precisava ser cauteloso,
preciso e cuidadoso. Ele recusava aproximação
de qualquer pessoa nos momentos em que não
estava bem, sendo nossa permanência junto a ele
sempre algo cauteloso e cuidadoso, de tal maneira que, aos poucos, ele conseguia retomar o
contato conosco. A fala desorganizada, assuntos
íntimos como homossexualidade e orgias, convites a práticas sexuais com as acompanhantes, delírios sempre voltados à morte e destruição, tanto
de si e dos outros, além de agressões físicas se
tornaram freqüentes nesse período de 60 dias.
Joaquim passou por sofrimentos intensos, e este
sofrimento interferiu também nas estagiárias.
Nas primeiras visitas em que a crise foi evidenciada, fomos à casa de Joaquim, que estava muito agitado e agressivo. Ele gritava bastante, dizia
não querer nos ver e entrava e saia de casa diversas vezes. Ficamos muito ansiosas com a agressividade até então não vivida. Conversamos um
pouco, tentando compreender as motivações de
seu comportamento tão diferente. Relembramos
a questão do enquadre trazida por Thiago - antigo acompanhante de Joaquim - que o levava
para passear sempre que, chegando a sua casa,
percebia-o inquieto e violento. Este local parece
ter grande efeito sobre Joaquim, e foi importante
a percepção deste elemento para nossa intervenção.
Joaquim repetia os gritos e tentativas de nos
agredir - importante ressaltar que eram sempre
tentativas, nunca chegando a realizar o ato. Convidamo-lo a sair de sua casa para irmos a uma
praça lá perto. Ele estava muito apreensivo e se
comportava como se todos ao seu redor o estivessem olhando ou o invadindo. Sentamos em
torno dele, fazendo uma espécie de proteção que
o acalmava. Falávamos que estávamos com ele,
que nada deixaríamos ocorrer e que as pessoas
não o iriam machucar. Aos poucos, ele se acalmou e começou a nos presentear. Interagiu conosco de forma mais tranqüila e alegre, contandonos de nossa importância em sua vida. Cantamos
algumas canções, e o clima ficou menos hostil e
invasor. Imaginávamos o tipo de experiência que
ele devia estar vivendo e como o ambiente e as
pessoas (os Outros), em seu estado de crise, colocavam-se mais ameaçadores e devastadores do
157
que efetivamente eram. Tentamos, neste sentido,
dialogar com a angústia que vivia, criar uma situação mais favorável, alterando o enquadre do local e produzindo certo nível de proteção corporal
a partir de nossa proximidade com ele.
A elaboração de um discurso sobre morte se
fazia cada vez maior. Joaquim começou a falar do
desejo de matar um vizinho, misturado a um delírio de este ter tentado estuprar as antigas estagiárias que o acompanhavam. Ele detalhou, a cada
visita, o desejo de matar diferentes pessoas, e nós,
sempre que podíamos, pontuávamos, levemente,
que tal ato não resolveria seus problemas e que o
levaria para um lugar pior, coisa que não queríamos. Em certa etapa de elaboração das mortes
de pessoas com quem convivia, Joaquim pensava
em matar sua irmã - fonte de muitos conflitos no
dia a dia. Visita após visita, ele trazia dados mais
reais de sua intenção, primeiramente, dizendo
que havia conseguido uma arma com um amigo
“bicho-solto” chamado Bartolomeu; depois, que
faltavam as munições, e por fim, que estava perto
de conseguir as balas com alguém. Este ponto é
importante, por nos ter trazido muitas angústias e
ser o discurso mais organizado e aparentemente mais real. Nossa agonia aumentava junto com
nossa preocupação e, buscando o amparo do
CAPS, pouco conseguíamos evoluir na melhora
do quadro. No dia 14 de agosto, quando vamos
realizar uma nova visita, somos surpreendidas
por um momento ímpar e complexo de sua crise.
Traremos aqui trechos de nosso diário de campo
para contar sobre este momento e sobre nossa
intervenção.
158
Chegamos às 9:15h na casa de Joaquim e
batemos na porta, como sempre, chamando-o.
Ouvimos uma leve gritaria, quando, de repente,
Maria (sua irmã) abriu a porta e começou a gritar
conosco, dizendo que devíamos levá-lo ao hospício, pois ele estava maluco (...). Então Joaquim
aparece com uma madeira enorme na mão e tenta bater com bastante força na cabeça de Maria
que escapa e é empurrada por ele para fora da
casa. Imediatamente, e movidas pelo susto, saímos da frente da casa. Ele continua empurrando a
irmã, que se senta em casa mesmo, numa cadeira
na pequena salinha, e começa a rezar. Ele sai da
casa transtornado e começa a nos procurar com
os olhos, entrando em casa em seguida. Ficamos
distantes um tempo, por acharmos perigoso entrar em contato com ele portando um pedaço de
madeira na mão.
Este tempo em que permanecemos afastadas
foi utilizado para nos acalmarmos e pensarmos
em como agir numa situação como aquela, visto
que nunca havíamos nos deparado com algo assim. Sabíamos que Joaquim não tomava as medicações regularmente, e, em momentos de crise,
esta dificuldade se agravava. Discutimos um pouco, nos acalmamos umas as outras e resolvemos
levá-lo à emergência do Hospital Mário Leal para
que tomasse uma medicação e pudesse descansar um tempo e se reorganizar minimamente.
Ficamos num local em que podíamos ver a
casa, mas de onde não éramos vistas. Decidimos
ligar para o SAMU para levá-lo ao hospital. O
SAMU nos informou que precisávamos de um familiar ou comprovante de residência. Não havia
unidade disponível no momento. Neste intervalo
começamos a perceber certa movimentação na
comunidade de pessoas com paus e pedaços de
ferro em punho - cerca de cinco pessoas. Não
tínhamos certeza se tinha relação com Joaquim,
mas, diante da tentativa de machucar a irmã - visível para todos - e dos conflitos comuns na comunidade, achamos que poderia ter relação com
ele. Ligamos para a supervisão, buscando orientação sobre como agir em relação à comunidade. Nos orientaram a conversar com as pessoas
que estavam armadas e a colaborar com o SAMU
quando este chegasse.(...)
Esperamos o SAMU por cerca de 20 a 30
minutos, tempo utilizado para conversarmos sobre o que faríamos, como falaríamos com ele e
como agiríamos em caso de violência contra nós.
Era mais difícil lidar com nossas fantasias do que
acreditar que tudo daria certo. Pensávamos que a
situação ficaria impossível de ser controlada, que
a comunidade começaria a agredi-lo e também a
nós. Com a agressão da comunidade, ele ficaria
mais desorganizado e violento e não agüentaríamos a pressão do conflito. Produzíamos fantasias
tão destrutivas quanto as sensações que Joaquim
devia viver. Pensávamos em ir embora, já que
uma situação de violência nos colocaria em risco,
e não deveríamos ir tão longe. Com esta racionalização, conseguíamos nos sentir mais calmas,
mas mais irresponsáveis também. Pensávamos na
importância de nossa permanência e auxílio num
momento como aquele e que, como responsáveis
pelo caso, não devíamos deixá-lo entregue à própria sorte como acontecia tantas vezes. Despedi-
mo-nos de nossas fantasias decididas a fazer o
que deveria ser feito e não o que, no fundo, mais
gostaríamos de fazer. Lembramos alguns elementos teóricos importantes, como a importância da
delicadeza para abordá-lo e a experiência de invasão e destruição a que ele deveria estar submetido.
Após certo tempo, as pessoas se dispersaram, e o SAMU chegou. Fomos ao seu encontro
para combinar a estratégia. Combinamos com o
SAMU que, caso o paciente não aceitasse ou estivesse agressivo, a policia não seria chamada. Ao
chegarmos à casa, chamamos Joaquim, e Maria
abriu a porta com a bíblia na mão e com um
amigo de sua igreja que estava dentro da casa
rezando. Joaquim sai, ainda transtornado, e fala
que irá conosco, mas apenas se for internado,
porque não agüentará chegar lá e retornar para
casa novamente. Se isso ocorrer, prefere se jogar
pela janela do SAMU e acabar com isso. Tentamos acalmá-lo, e o escutamos. Ele continua dizendo seguidamente que precisa ser internado e
que não vai conosco se for para tomar medicação
e voltar. Falamos que vamos com o SAMU, e lá
conversaremos tudo com a médica. Ele vai buscar
sua mochila, e ficamos fora, conversando com os
atendentes do SAMU que não devemos falar de
injeção, pois ele não ficou bem quando usou a
injeção e está recusando bastante este procedimento. Ele retorna, falando que o Diabo está em
sua casa, e, num momento breve, sai da casa e
fala “oh meu Deus porque esse Armagedon não
vem logo e acaba com tudo”. Há um pequeno
conflito entre ele e Maria , mas negociamos com
159
ele que pegue a mochila para irmos logo, pois
precisava de cuidados. Maria se recusa a ir com
ele ou entregar qualquer documento. Ela pouco
fala conosco. Ele retorna, e falamos que vamos
com ele. Joaquim fala que sabe que só se interna
com familiar e que nós não poderemos interná-lo
e que, portanto, não vai. Falamos que ele deve
ir para tomar a medicação, e decidimos tudo lá
(...). Enfim, entramos na ambulância e vamos.
Diferentemente de tudo que imaginávamos,
Joaquim aceitou de imediato nossa ajuda e não
tentou nos atacar ou agredir. Como é possível notar em algumas falas dele, como a destruição do
armagedon e algumas relacionadas à existência
de um diabo em sua casa, Joaquim vivia um momento de enorme desespero misturado a um desejo da destruição, de término da angústia, do fim
daquele mortífero sofrimento que estava vivendo
e que não conseguia mediar simbolicamente, vivendo como uma experiência que o tomava em
absoluto. Como Barretto afirma, é o sofrimento
de não viver um sentimento de angústia, mas tornar-se a Angústia. Tentávamos dialogar e mediar
o que imaginávamos estar vivendo, não nos referindo aos temas dos delírios, mas sim dialogando
com as experiências que vivia e com as quais buscávamos nos relacionar.
Joaquim está com alguns plásticos enrolados
no pé, dizendo que foi um corte ocorrido na noite
anterior por uma briga com o vizinho, que jogou
uma garrafa em seu pé, ocasionando um corte
profundo. Na ambulância, ele fala que queria
matar seu irmão Pedro Sérgio. Ana pede que repita, porque não escuta bem, e ele grita com ela e
160
diz que não mexa com ele ou lhe dará um murro.
Ana se cala, e ele continua o relato. Fala de uma
violência bastante confusa, ora em relação a ele
ora dele em relação aos outros. Pergunta a Fernanda se Maria pegou a arma que conseguiu e
guardou embaixo da cama numa caixa de sapato
e diz que pegará a munição logo. Ela responde
que não sabe, mas que ele não deve ter arma, pois
isso trará problemas e não resolverá o que quer,
que devemos agora cuidar dele e depois resolvemos outros problemas. Ele faz variadas perguntas.
Pergunta sobre a arma. Pergunta sobre a internação. Num dado momento, fala: “Fernanda, sabe
que eu tô com vontade de me matar aqui agora”.
Pedimos que se tranqüilize, que estamos ali com
ele e que tudo ficará bem. Ele sacode a cabeça
positivamente. Pergunta se ficará com essa loucura para sempre. Fala que tem “ouvido vozes e
visto visões”. Diz que quer ver o pai para tentar
conseguir o cartão da Coelba para se internar no
Bom Viver. Que pode ficar lá seis meses até melhorar um pouco e organizar a cabeça. Tentamos
acalmá-lo e falamos que vai melhorar e que tudo
ficará bem. Falamos que é preciso cuidar do corte
no pé e dele para que não fique pior. Ele conta
sobre seus livros, diz ter terminado dois. Falamos
que compramos um caderno e que traremos na
próxima visita. Ele se alegra, mas retorna para os
outros temas.
Sobretudo no momento de crise, quando para
todos é difícil lidar com o sem sentido produzido
pelo sujeito, é preciso manter-se e suportar estar
com este em sua estranheza, em sua bizarrice, de
modo que possibilite certa posição de alteridade
diferente das alteridades comuns que o cercam
e que se relacionam com sua estranheza como
se fosse apenas isso. Acreditamos que tudo que
está desorganizado busca se reorganizar. No momento da crise, o sujeito faz um grande esforço
para se reorganizar. É preciso, no acompanhamento destes momentos, estar atentos à angústia,
dialogando com esta e buscando uma reconexão
do sujeito com o mundo e com a possibilidade de
compartilhamento (SILVA, 2006).
Chegamos ao Mário Leal e entramos na emergência. Ele só quer ficar e ser atendido se for ser
internado, saindo algumas vezes do local e dizendo que estávamos armando para ele. Às vezes ri
sozinho. Fala sobre o corte, conta novamente a
situação (...). Falamos que cuidaremos disso também. Ele continua falando da arma para matar
Maria e que teme que ela a encontre e entregue
no módulo. Diz que conseguiu com um “bicho
solto ali de perto” e só falta a munição. Falamos
que não deve matar ninguém e que deve cuidar
de si e que os problemas tentaremos resolver de
outra maneira. Ele fala que tudo que está ocorrendo com ele é culpa das antigas estagiárias que
o tiraram do Hospital. O tiraram e o deixaram
só. Pontuamos que estávamos ali com ele (...). Ligamos para a supervisão por acharmos que ele
ficaria em observação um tempo e que poderíamos aproveitar para ir à comunidade e conversar
com Maria. A supervisão nos orienta a esperar ele
tomar a medicação, acalmar-se e deixá-lo falar
com a médica.
dendo pontualmente a suas falas. Não falávamos muito nem com frases extensas, visto que tal
ação não tinha nenhuma eficácia, sendo inclusive
pouco adequada para momentos críticos como
aquele. Dialogávamos apenas com os pontos que
nos articulavam com ele, no sentido da experiência que vivia e do cuidado que buscávamos ter,
lembrando-lhe sempre que precisava ser cuidado
e que estávamos ali para realizar este cuidado.
Sabíamos que não estava bem e estávamos com
ele no que precisasse.
Após certo tempo, entramos na sala, e ele diz
à médica que quer se internar e que não tomará
injeção. Ela fala que injeção seria melhor e que,
como ele se internava sempre, estava acostumado com este procedimento. Ele fica agressivo e
sai da emergência em direção à rua. Vamos atrás
dele, alguns funcionários o chamam, e ele retorna. Fala que não quer injeção e que quer ser internado. Ela fala que passará outra medicação
e que deve tranqüilizar-se. Ele fica olhando para
a enfermeira que prepara a medicação para ver
se será injeção e fica muito inquieto e agressivo.
A médica sai e chama os seguranças, que ficam
com ela do lado de fora da sala. Ele fala que não
tomará Haldol em gotas porque lhe faz mal, e
ela retruca, dizendo que ou toma isso ou injeção.
Ele fala conosco que devemos impedir, e falamos
que deve tomar o remédio para melhorar e que
fique calmo, porque a dosagem é menor e não
lhe fará mal. Ele levanta, grita e se inquieta, mas
depois toma a medicação. Ficamos com Joaquim
na sala o tempo todo. Após tomar medicação, a
Ficamos todo o tempo a seu lado e respon- médica faz a receita e diz que está liberado. Ele
161
quer falar com ela, que lhe diz que só poderá
fazer mais uma pergunta e sair. Ele pergunta se
ainda há vagas para se internar, ela diz que não.
Explica-lhe que os manicômios foram fechados.
O paciente pega a receita, e vamos buscar sua
medicação.
Diante do quadro apresentado na emergência,
acreditávamos que deveria permanecer um tempo deitado até o efeito da medicação acalmá-lo.
Entretanto, para aqueles que o atendiam, era preciso apenas receitar e pedir-lhe que se retirasse.
Em nenhum momento a médica dialoga com suas
inquietações e por vezes usa de sua posição para
questionar e interpelar o sujeito em sua exigência
por não tomar injetável. Sair da sala correndo e
chamar seguranças foi o único procedimento encontrado pela equipe, que o tratava como se fosse um perigo para todos. Claro que suas atitudes
nos assustavam, mas sabíamos do enorme desespero que vivia e de como a posição invasiva dos
médicos, por vezes exigindo que tomasse a injeção, só agravavam o quadro. Permanecemos na
sala todo o tempo, mediando o desejo da equipe
de livrar-se dele com o remédio mais eficaz e a
experiência de invasão do outro e do ambiente
vivido por Joaquim.
Vamos à farmácia buscar suas medicações (...)
Explicamos como deve tomá-las. Ele pergunta
constantemente se a médica mentiu, porque não
queria interná-lo ou se não tem mais vaga mesmo.
Falamos que não tem mais vaga. De tempos em
tempos, ele retoma a pergunta. Explicamos como
tomar a medicação e dizemos que deve tomá-la
para ficar bem. Falamos que entendemos que,
162
quando fala de internação, o que quer mesmo
são cuidados e um tempo distante dos problemas,
mas que não deve se preocupar, porque o ajudaremos a lidar com os problemas e cuidaremos
dele lá fora. Ele quer voltar para casa. Falamos
que seria melhor que voltasse ao CAPS, para almoçar e ficar lá à tarde até melhorar. Ele prefere
voltar para casa. Pergunta que horas são, para
esperar e ir para o grupo no Mário Leal . Falamos
que eram 11 horas e que talvez fosse melhor descansar e ir ao CAPS perto de sua casa, por conta
da distância (achamos ele ainda muito agressivo
e agoniado para retornar andando para o grupo).
Vamos com ele pegar o ônibus para voltar para
casa. O retorno no ônibus é difícil para Joaquim.
Quando vamos entrar no ônibus, ele pega com
força o braço de Ana e diz para não subirmos,
que não tem dinheiro e depois pagará (...). Falamos que deve se acalmar e que vamos pagar
sua passagem. Ele quer ir a pé, e falamos que a
pé não podemos. Uma de nós senta a seu lado
e a outra em sua frente fazendo uma espécie de
muralha que o protege do contato com outros.
(...) O caminho é longo, e Joaquim varia entre a
agressividade e a “normalidade”. Achamos que,
pelo tempo e pelo horário, deve estar com fome,
então lhe oferecemos uma barra de cereal. Chegamos a sua casa às 12:15. Ele quer que entremos, mas achamos melhor não. Nos despedimos
e falamos para tomar medicação e descansar.
Tentamos, durante esta longa intervenção,
abordá-lo de uma forma tranqüila e delicada,
mediando as circunstâncias tão difíceis para ele
e para os outros. No momento da crise, é preciso
cuidar do tom. Ser delicado na presença e no uso
sutil e leve das palavras. Num momento de crise, a
experiência de invasão e destruição de si, para os
sujeitos, é demasiado grande para que atuemos
de forma comum. É preciso mediar o insuportável
para o sujeito. Acalmar o em torno para que seu
momento seja possível. Saber esperar e saber intervir, dialogando com a angústia, e não com as
frases em si. Dialogar com a comunidade em que
vive é também uma etapa importante. Acalmar
a família, acreditando que o sujeito irá melhorar.
Tentar mediar a pressão que vem de fora, as falas e atos que se dirigem aos sujeitos, de modo
a evitar as interpelações radicais que o atingem
de forma invasiva e destrutiva. A desorganização
do sujeito tem lógica. É preciso conhecer sua história, perceber o que lhe é ameaçador, hostil e
destrutivo. O sujeito faz uma interpretação desta
hostilidade e ameaça, derivando daí a importância de se mediar as situações enquanto este busca
se reestruturar.
Da técnica do Acompanhamento Terapêutico,
baseada nas teorias de Winnicott, utilizamos, ao
longo desta intervenção, o conceito de Holding
como uma função importante no manejo da crise.
O Holding é dado pelos aspectos invariantes do
meio ambiente que tanto podem ser objetos concretos de um lugar, quanto a disponibilidade de
outra pessoa estar junto de nós, atenta às nossas
necessidade ao longo do tempo (...). No Acompanhamento Terapêutico, em muitos momentos,
essa função HOLD exerce papel marcante. São
momentos em que simplesmente estamos ali, juntos (...) o fato de estarmos ali, nossa presença, já
significa bastante (...) o valor dessa experiência
não se dá somente por haver um corpo junto (...)
mas por ser um corpo habitado, um corpo atento,
um corpo que carrega a história do próprio vínculo(...) a experiência é integradora porque o sujeito
está sendo acompanhado por um corpo simbólico e não apenas matéria física. Um outro capaz
de testemunhar e compartilhar as experiências do
acompanhado. A estabilidade e a constância nas
atitudes do terapeuta também exerciam uma função de Holding (BARRETTO, 1998 p. 64)
Durante os dias que se seguiram a essa semana, intensificamos as visitas e os cuidados,
investindo naquilo que consideramos ser parte
da expressão da crise: o descuidado. A vivência
nessas situações novas e angustiantes interpelounos psiquicamente, afetando inclusive o vínculo
que estava sendo construído, visto que Joaquim
passava a ser temido. O apoio buscado junto ao
CAPS foi insuficiente e precário, demonstrando a
dificuldade na equipe em lidar com o caso. Foi
preciso aprender a lidar com este modo de estar
e produzir uma presença suave, sem interpelações bruscas nem julgamentos, para restabelecer
e fortalecer o vínculo com ele, produzindo a experiência para Joaquim de um suporte psíquico
necessário em momentos como este.
Os dias seguintes foram repetições deste relatado anteriormente. Após uma semana, sem terminar a crise, Joaquim tem um primeiro momento
de maior tranqüilidade e reelaboração dos momentos vividos. Traremos aqui este dia pela riqueza de aprendizados que ele apresenta. Em outros
momentos, ao longo dos 60 dias da crise, tivemos
163
dias de maior complexidade na abordagem e dias
de melhoria no quadro. Essas melhoras, entretanto, não permaneciam por muito tempo, visto que
a única intensificação de cuidados que o paciente
vivia era advinda de nossos encontros.
As dificuldades com a irmã permaneciam, os
conflitos com esta e com a comunidade também.
Realizamos algumas visitas aos vizinhos, tentando explicar o momento que vivia e a importância
em saber respeitar este momento, mas o cansaço
visível da comunidade era claro e a lembrança
da dificuldade em lidar com Joaquim era sempre
convocada como justificativa dos comportamentos. O tratamento no CAPS não era particularizado e ampliado neste momento. O gerenciamento
da medicação continuava difícil. A vida continuava a mesma, com pouca comida, pouco abrigo
e nenhum cuidado. A esperança era menor, para
ele e para nós, e, por tudo isto, a crise não cessava mesmo quando havia momentos de significativa melhora. O dia que se segue é exemplo de
muitas aprendizagens compartilhadas, de trocas e
de demonstrações de que o cuidado humano tem
efeito na vida e nas crises de usuários como este,
mas que sozinho e sem uma rede social real que
signifique apoio e suporte, torna-se insuficiente e
limitado. Vejamos alguns trechos dos relatos da
semana seguinte:
Chegamos às 9:30h e conversamos antes de
adentrar ao CAPS e encontrarmos Joaquim. Conversamos sobre a melhor estratégia e sobre como
estávamos compreendendo os acontecimentos.
Consideramos que a ausência de Mabel e Lygia,
antigas estagiárias que o atendiam, estava sen164
do trazida junto com o tema da internação, pela
sensação que tem destes momentos e por considerarmos que está vivendo momentos difíceis em
sua relação familiar e comunitária. Consideramos
que a dificuldade de lidar com tais circunstâncias,
bem como o não uso das medicações e a ausência no tratamento no CAPS têm contribuído na
sua desorganização e crise. O discurso sobre a
morte de Maria vem sendo mais e mais elaborado, deixando-nos preocupadas com a veracidade
dos dados: primeiro sinalizou que seria uma boa
idéia, depois que teria conseguido a arma com
Bartolomeu, fuzileiro Naval que é seu amigo e
“bicho-solto”, faltando apenas a munição, e, em
seguida, que está tentando arranjar a grana para
comprar a munição. Não conseguimos delimitar
bem o que seria delírio e o que seria real, e, portanto, tememos que a arma pudesse existir, já que
a idéia da morte da irmã vinha ocorrendo há três
semanas (...) Na ultima reunião do CAPS, eles nos
informaram que sua conclusão sobre o caso era
de que Joaquim deveria ser internado e que deveríamos parar de nos arriscar tanto, demonstrando
assim a limitação da equipe e da instituição para
lidar com momentos e pacientes como este.
Nossa esperança estava diminuída, e as opções de trabalho no caso tornaram-se poucas.
Vivemos o que, possivelmente, vivia Joaquim: a
impossibilidade de encontrar meios para sobreviver e suportar a vida. Ele tentava, de maneiras
variadas e divergentes, lidar com sua difícil condição. A destruição de si e dos outros que o cercam
parecia-lhe uma possibilidade sempre disponível.
Ele não lidava, ou lidava pouco, por meio de es-
tratégias simbólicas tais como a tentativa de compreender ou conversar sobre estas questões que o
angustiavam. Os conflitos freqüentes, a vida difícil
ou as perdas que acabara de viver não encontravam mecanismos relativizadores e simbólicos para
que pudessem ser elaboradas. Diante do quadro
colocado, a autodestruição ou a destruição total
da situação e dos outros por meio da morte, do
assassinato ou de um “Armagedon” foram uma
saída.
Encontramos Joaquim no CAPS às 10:00h
conforme havíamos combinado. Ele estava com
aparência abatida e inicialmente parecia fortemente dopado. O segurança, que inúmeras vezes
nos ajuda a conversar com Joaquim, reclama que
ele tem dormido muito e participado pouco das
atividades. Começamos a conversar com o paciente, que nos mostra seu braço engessado - teria brigado na rua e quebrado o braço (...). Após
certo tempo, notamos que não estava com o pé
enfaixado ou com plástico cobrindo como antes,
quando teriam lhe jogado uma garrafa e cortado
seu pé. Olhamos discretamente, e não havia nenhum corte. Parte da enorme confusão dos dias
anteriores começava a ser dissipada. Após um
tempo conosco, começa a conversar animado.
Num dado momento, pergunta sobre o passe-livre e os benefícios . Falamos que estamos pegando o documento que atesta sua condição junto
ao CAPS, para começarmos a tirar sua documentação. Ele nos mostra alguns documentos, como
um relatório de sua doença que, aparentemente,
recebeu quando tentou internação com seu irmão
semanas atrás. Após certo tempo, mostrou-nos
uma carteirinha que estava em sua carteira dentre
os documentos. Era uma carteira de papelão que
ele mesmo havia feito onde estava escrito PasseLivre de Joaquim Souza Silva e tinha duas fotos
de revistas de homens do exército. Ele nos diz que
um deles é Bartolomeu, seu amigo fuzileiro que
serviu com ele no quartel e teria lhe dado à arma.
Perguntamos, bastante surpresas, se era ele mesmo, e ele confirma novamente.
Este foi, sem dúvida, um momento muito mágico para nós, ver o desejo de tirar seu passe-livre
num documento de papelão feito por ele mesmo
e descobrir, de forma tão simples, que tudo que
nos estava deixando ansiosas e amedrontadas era
parte de um delírio. Por não ser tão irreal a possibilidade de conseguir a arma e por este delírio
aparentar um discurso “normal”, linear, lógico e
bem elaborado, estávamos, por que não dizer,
“delirando junto com ele” e fantasiando todas as
formas de tentarmos resolver algo que, até então,
nos parecia real e iminente. Quando Joaquim nos
mostrou parte de sua realidade num recorte de
revista, passamos a notar que não era mais tão
compartilhada a possibilidade da existência da
arma. Foi balsâmico e mágico este momento, e
todas nós ficamos muito alegres e nos sentindo
“pegas pelo delírio” - como alguém que nos prega uma peça e, no final, tudo se dissipa.
Fernanda entregou-lhe o caderno que havia
comprado conforme tinha prometido (...) Ele então buscou um de seus cadernos-livro e começou
a mostrar algumas histórias. Algumas que falavam de uso de drogas e práticas sexuais que teria
participado numa “heavy” foram vetadas por ele.
165
Depois de um tempo, mostrou-nos um pequeno
trecho em seu caderno que falava algo parecido
com isto: “e naquela noite de insônia e gritos, demônios e neblina, fez-se a guerra, muita guerra e
neblina e no meio da Neblina chegou Fernanda
e as Estagiárias trazendo a felicidade”. Perguntamos a ele sobre o que era esse trecho, e nos
disse que era sobre aquele dia que chegamos a
sua casa, e Maria teria tentado bater com um pau
em sua cabeça, o derrubando no chão onde ele
teria batido a cabeça. Diz ter saído de casa, correndo pela rua armado, quando chegou a polícia
(viatura) e o liberou após a apresentação de seu
documento do exercito. Perguntamos se este foi
um momento de neblina. Fala que sim. Comenta
sobre como é difícil viver com Maria. Fala que sua
irmã sempre mexia com ele, eles brigam há muito
tempo, pois ela que tinha epilepsia e ficava chamando ele de maluco. Diz então ter se desfeito
da arma, pois Bartolomeu teria dito que poderia
machucar alguém.
Deste trecho, duas questões nos chamam atenção. A primeira diz respeito à primeira possibilidade, depois de alguns dias, de viver e significar o
vivido a partir dos pequenos trechos de textos de
seus cadernos. Após o dia de crise aguda, no qual
investiu contra a irmã e estava bastante desorganizado e delirante, Joaquim consegue mediar e
reviver simbolicamente o que houve e demonstrar,
por meio da escrita, a importância de nossa presença para “dissipar a neblina e terminar com a
guerra”. Outro ponto importante é perceber, a partir do que nos conta sobre os fatos do dia da crise,
como, para Joaquim, a percepção e vivência do
166
eu e do outro neste dia era imprecisa, confusa e
fundida. Para ele, Maria teria lhe batido, ele teria
caído e batido com a cabeça, e não o contrário,
como ocorreu. Como vimos em discussões iniciais
deste artigo, a produção da separação simbólica
do eu e do outro na psicose ocorre de forma precária e imprecisa, de tal forma que, em momentos
de menor organização, este processo de viver a
relação com outro pode ser apreendida como se
o outro fosse um invasor, hostil, destruidor, que o
toma de seu lugar no próprio corpo.
Continuando a leitura de seu caderno, Joaquim escreve sobre sua fama como escritor e
como esta fama estava sendo conseguida graças
a nossa ajuda na busca pela Editora abril, mais
importante editora do Brasil, nas palavras dele,
que lançaria seu livro. Esse trecho tem formato de
uma nota de jornal e fala dele e de outros grandes escritores como Saramago e Paulo Coelho.
Após vermos esta nota, ele retorna ao tema das
mortes e do desejo de matar algumas pessoas, e
novamente falamos que não deveria fazer isso.
Dialogamos com ele, dizendo que, como escritor,
não deve fazer isso, porque nunca vimos escritores famosos matando ninguém, e isso não era
bom para a história e futura carreira dele. Joaquim sorri, fica pensativo e fala que é verdade,
que matar não é coisa de escritores.”
O desejo de tornar-se escritor é enorme para
Joaquim. Ao tentarmos esta intervenção, relacionando seu desejo de ser um outro alguém com o
desejo de cometer um ato que o afastaria deste
sonho, o toca de uma forma diferente de outros
momentos em que pontuávamos que não deveria
resolver seus problemas dessa forma. Desde então, de tempos em tempos, quando há um retorno
para este tema com muita intensidade, relembramos o seu sonho e a importância de persistirmos
para que sua vida mude e torne-se melhor e mais
possível para ele.
Após um tempo, começa a nos presentear. Deu
um presente para cada uma de nós. Comentou
que sua madrinha havia lhe dado aquelas coisas
para ele dar a sua namorada, mas, como não
tinha uma, quis dar o presente pra gente, pois
somos suas amigas. Fernanda ganha uma capa
de celular, Ana ganha uma flor e uma bandeira
do Brasil para pôr na mesa e Adelly, uma bolsa
e um Papai Noel. Fala que quer nos presentear,
porque ajudamos muito ele. Ana pergunta se ele
tem certeza que quer nos dar, já que sua tia tinha
dado para dar a namorada. Ele fala que sim, que
sabe que somos apenas suas amigas. Ele retoma
o tema de manter relações sexuais com as acompanhantes, e, quando novamente falamos que
não estamos lá para isso, ele, diferente de momentos anteriores, diz que está brincando conosco e que resolverá isso num “brega”. Aproveitamos o assunto para falarmos sobre a importância
da higiene pessoal para arrumar uma namorada.
A importância de estar limpo, ter as unhas cortadas e os dentes escovados para abraçar e beijar alguém. Ele concordou. Diz para Adelly que
ela lembra sua mãe, e então ela fala que deve
ser pelo cuidado que tem com ele e que por isso
acaba se lembrando dela. Ela sorri, e continuamos papeando até termos de ir. Antes, ele nos
pede para escutarmos uma música, e depois nos
despedimos alegres por esta nova etapa que se
iniciava.
“... a gente espera do mundo e o mundo espera de nós... um pouco mais de paciência...”
(Lenine)
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168
Dança e xadrez:
O papel da intensificação de cuidados no fortalecimento da autonomia de
Felipe
Luane Neves*
Vera Rittel**
A raposa calou-se e observou por muito tempo o
pequeno príncipe:
- Por favor... cativa-me! – disse ela.
- Eu até gostaria – disse o principezinho -, mas
não tenho muito tempo. (...)
- A gente só conhece bem as coisas que cativou
– disse a raposa. – Os homens não têm mais tempo de conhecer coisa alguma. Cativa-me! (...)
- Que é preciso fazer? – perguntou o pequeno
príncipe.
- É preciso ser paciente – respondeu a raposa.
– Tu te sentarás primeiro um pouco longe de mim,
assim, na relva. Eu te olharei com o canto do olho
e tu não dirás nada. A linguagem é uma fonte de
mal entendidos. Mas, cada dia, te sentarás um
pouco mais perto...
Antoine de Saint-Exupéry em
“O Pequeno Prínipe”
*Estudante de Psicologia (UFBA) e ex-estagiária do PIC
**Estudante de Psicologia (UFBA) e ex-estagiária do PIC
Resumo: O presente artigo constitui-se num
relato sobre o direcionamento clínico adotado
com um usuário do Programa de Intensificação de
Cuidados a Pacientes Psicóticos do Hospital Especializado Mário Leal, com vistas ao fortalecimento da autonomia. Este paciente é acompanhado
pelo programa há três anos e por nós há aproximadamente seis meses, por meio de visitas domiciliares semanais. Um ponto central para o desenvolvimento adotado neste caso foi o fato de a
intensificação de cuidados ser realizada em dupla.
Isso permitiu que pudéssemos tomar consciência,
discutir e elaborar as questões em nós suscitadas
pelo paciente e pelos direcionamentos que consideramos mais adequados.
O
presente artigo constitui-se num relato sobre o direcionamento clínico adotado com
um dos usuários do Programa de Intensificação
de Cuidados a Pacientes Psicóticos no Hospital
Especializado Mário Leal (PIC), com vistas ao fortalecimento da autonomia. Compreendemos que
a autonomia constitui eixo central na relação do
169
sujeito consigo e com o mundo externo e adotamos a conceituação explicitada no Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, pelo qual a
autonomia é definida como a “1. Faculdade de
se governar por si mesmo. (...) 3. Liberdade ou
independência moral ou intelectual. (...) 5. Propriedade pela qual o homem pretende poder escolher as leis que regem a sua conduta”. Destaca-se ainda que o PIC, ao contrário do modelo
tradicional de atenção à saúde mental - baseado
no princípio normatizador psiquiátrico - considera
a extrema vulnerabilidade vincular do paciente e
por isso atua na intensificação de cuidados focando no desenvolvimento e fortalecimento do sujeito
e das redes sociais do mesmo, aumentando desta
forma sua qualidade de vida. Sendo assim, o PIC
funda-se na clínica psicossocial, que ao invés de
centrar sua atenção na pessoa doente, considera
a “existência-sofrimento dos pacientes e sua relação com o espaço social” (Nascimento, 2005,
p. 34).
Este paciente é acompanhado por nós há aproximadamente seis meses. Vera o conheceu quando ele fez uma apresentação de dança numa festa de confraternização do estágio e depois o viu
apenas uma vez no grupo dos pacientes, quando
ele estava se queixando de dor de cabeça e percebeu seu jeito gentil e muito calmo. Já Luane o
conheceu a partir das passagens, momento em
que é feita a transição de estagiários. A dança é
um processo marcante na vida de Felipe e acreditamos ter sido significativo Vera o conhecer em
uma de suas apresentações, pois fortaleceu diante
de nós a expressão dele como um sujeito psíquico
170
multifacetado, em que a posição de dançarino se
sobressaiu à de doente mental.
Após algumas visitas da passagem, começamos a juntar mais as peças do quebra-cabeça de
sua biografia, inicialmente através de conversas e
depois quando ele tirou alguns álbuns de fotografias do baú para nos mostrar, o que ressuscitou
muitas memórias, principalmente sobre a época
em que ele trabalhava como dançarino de dança de salão. Felipe foi adotado quando criança,
numa família de oito irmãos. Sua mãe biológica
ainda está viva e mora na região litorânea acerca
de 30 km de Salvador. O paciente mantém um
contato esporádico com ela e atualmente reside
com sua família adotiva, numa casa de classe
média baixa com dois cômodos e um pequeno
quintal, onde a mãe cria aves.
Há quatro anos, ele teve a primeira crise psicótica com internação por 26 dias. A partir de
então, toma medicação com antipsicóticos e já
foi internado outra vez. Nessas ocasiões, o prontuário médico destaca que o comportamento de
Felipe era muito agressivo. Entretanto, sua forma
de nos receber, sempre solícita e afetuosa, nos
fez questionar onde foi parar sua raiva e agressividade. Posteriormente, percebemos que essas
nuances de sua personalidade se apresentam no
delírio e nos momentos de crise. Considerando
a perspectiva psicanalítica de que o homem se
constrói a partir das relações que desenvolve com
o ambiente, é interessante refletir sobre o tipo de
ambiente a que ele estava exposto no período
de internação. Além disso, destaca-se também a
condição psicológica precária da família para li-
dar com os desconfortos que uma crise psicótica
produz.
Embora conste que sua crise foi paranóica, a
família sempre se refere à sua doença como sendo depressão, destacando que, nesses momentos, ele ficava em casa, sem vontade para fazer
nada. Felipe era dançarino profissional (com formação em ballet), tendo feito cursos e algumas
apresentações na região sudeste. Aparentemente,
foi o surgimento da doença mental, aliado a seus
desdobramentos, que interromperam sua carreira profissional. Apesar do relato de que, a partir
da crise, Felipe passou a não sair muito de casa
devido a este suposto estado depressivo, nos momentos em que ele nos acompanha até o carro,
no término da visita, podemos observar que, na
vizinhança, tem muitos conhecidos com os quais
ele conversa. Além disso, sua casa é bastante
movimentada, o que inicialmente não nos leva a
pensar num quadro de isolamento social.
Visto que ele não se apresenta muito disponível
para realizar saídas de casa conosco, as primeiras visitas a Felipe (período de transição de estagiárias) seguiam sempre um mesmo padrão: nós
chegávamos e ficávamos na sala com ele e seu
pai, sempre com a televisão ligada. O diálogo
entre nós circunscrevia-se a questões do cotidiano, em geral, desenvolvidos a partir de comentários sobre programas televisivos. Vale ressaltar
que Felipe mantinha rotinas bem estabelecidas
em relação ao decorrer da visita: sempre nos recebia com alegria, sorriso no rosto, ficávamos na
sala quase sempre nas mesmas posições e, no fim
das visitas, ele nos acompanhava atenciosamente
até o carro. Além disso, ele não se apresentou
disponível para trocar o dia e horário das visitas,
proposta feita por nós em um dos primeiros encontros.
Neste sentido, ganha relevo a constante apresentação de Felipe como uma pessoa gentil e
solícita, aparentemente com pouca demanda de
cuidado. Destaca-se ainda que a necessidade de
se apresentar socialmente conforme o suposto
desejo do outro pode denotar pouca autonomia.
Segundo Tatossian (2006), a atitude de alegria
constante não significa que a pessoa realmente
esteja alegre, podendo refletir uma inautenticidade não somente das expressões afetivas, mas dos
sentimentos mesmos; o que pode se traduzir em
alguns sintomas psiquiátricos.
Compreendemos que essa atitude, apesar de
reforçada socialmente, nem sempre é positiva
para o desenvolvimento psíquico de Felipe, pois
pode cristalizá-lo no papel de buscar sempre
sentir e atender as necessidades externas. Teoricamente, essa questão é também abordada por
Keleman (1992) que, ao analisar a estrutura do
sujeito, a partir de sua postura corporal emocional, observou traços de imaturidade em pessoas
que apresentam “estruturas corporais inchadas”
(possível caso de Felipe, segundo nossa percepção). De acordo com o referido autor, essas pessoas preocupam-se em ser aquilo que os outros
querem que ela seja. Almeida (2006, p. 89) complementa tal questão, ressaltando que “o psicótico goza de ser, ser o falo que completa o Outro,
o que equivale a dizer que o gozo está localizado
no Outro”.
171
Notamos, então, a necessidade de desenvolver
outras atividades que favorecessem a Felipe apresentar suas necessidades e desejos. Neste sentido,
Barretto (1998) afirma que - para ser interlocutor
dos desejos e angústias do paciente - o terapeuta não deve se limitar a interpretações, mas sim
agir como pessoa real, por exemplo, num simples
bate papo. Outro ponto importante era estabelecer uma maior aproximação da família, para perceber como Felipe inseria-se neste contexto. Para
tanto, demonstramos interesse por aquilo que sua
mãe gostava: a criação de galinhas e codornas e
algumas pequenas plantações no quintal, o que
propiciou alguns momentos de diálogo. Somente a partir daí, fomos convidados a entrar mais
no interior da casa. Destaca-se, entretanto, que
a aproximação com a mãe de Felipe ficou estagnada na compra de ovos de codorna, que se tornaram quase sempre semanais. Percebemo-nos,
depois, neste sentido, submetidas tanto quanto
Felipe à força do desejo de sua mãe.
Atentas para o surgimento de alguma necessidade apresentada pelo paciente, ele nos revelou que sempre quis aprender xadrez, após Vera
lhe contar uma história, a “Novela de Xadrez”, de
Stefan Zweig, em que um preso político se defende de enlouquecer durante a tortura através da
prática do jogo de xadrez na imaginação. Combinamos com ele, então, uma troca: nós lhe ensinaríamos xadrez e ele nos ensinaria dança de salão;
forma por nós encontrada de incentivá-lo a voltar
para sua antiga ocupação (a dança) e re-experimentar como se sente na posição de bailarino e
professor. Essa também foi uma forma de valo172
rizar o saber do paciente e propiciar um espaço
em que ele pôde atuar como sujeito no mundo.
Considerando a noção de complementaridade
ou reciprocidade exposta por Fumagalli (1995)
em concordância com a teoria de Pichon-Rivière
- pela qual a constituição de um papel implica a
instituição do papel contrário - colocamo-nos no
lugar de alunas para propiciar um espaço em que
ele pudesse assumir a posição de professor. Além
disso, sentimos que as aulas de dança fortaleceram o vínculo entre nós, o respeito no estar junto,
a alegria espontânea e a criatividade de Felipe
ao planejar as aulas. Ressalta-se ainda que, no
caso dele, a escolha pelas aulas de dança ocorreu por, aparentemente, constituir-se no elo capaz
de fortalecer mais sua rede social, engajando-o
na cultura; uma vez que ele demonstrava interesse
pela atividade e já possuía uma história vinculada
à mesma.
Felipe aceitou prontamente a troca, e, a partir
daí, começou dinamicamente a conduzir o planejamento de nossos encontros, alterando em diferentes momentos sua postura, da passividade para
a atividade e autonomia. Ele guiava a ordem das
atividades nas visitas: primeiro a aula de xadrez,
depois a aula de dança e, entre elas, assistir um
filme sobre dança. Isso foi marcante, pois Felipe
anteriormente apresentava certa indefinição sobre
as coisas, por mais simples que fossem. E, a partir deste processo, ele começou a se posicionar
mais, expondo com antecedência o que queria
fazer nas nossas visitas futuras.
A partir das visitas em que jogamos xadrez,
além de perceber sua iniciativa de organização,
observamos também uma delimitação maior de
seu espaço através de palavras firmes em diversos momentos: a exemplo de quando uma amiga
bem próxima de sua família quis que Luane ficasse com ela conversando, enquanto ele precisava
dela para apóiá-lo na partida de xadrez que jogava com Vera, e ele não permitiu. No jogo, observamos que Felipe aprendeu com rapidez o significado de cada peça, bem como seus movimentos
específicos e, após certa hesitação, pôde também
mostrar iniciativa e enfrentamento, “matando” as
figuras do adversário para tentar ganhar.
Um outro ponto que surgiu a partir desse semestre foram as constantes desmarcações em nosso
horário de visita, fixado em dia e hora específicos,
por escolha do próprio paciente. Teve alguns momentos em que não sabíamos como interpretar
essas desmarcações no dia da visita, mas, através
de sua voz alegre ao telefone, confiamos em suas
explicações sobre saídas inadiáveis para aniversários e festas acompanhando sua antiga professora
de dança e percebemos que ele também passou
a organizar, de certa forma, a freqüência de seus
encontros conosco. Além disso, compreendemos
que o processo de mudanças em curso mobilizou
o paciente de diversas maneiras, e seguindo um
dos princípios da clínica psicossocial, de tensionar
e destensionar as questões, decidimos respeitar o
seu espaço.
Refletindo posteriormente, percebemos também um outro ponto significativo neste contexto:
as desmarcações de Felipe, em geral, referiam-se
às visitas marcadas para assistir filmes ou para as
aulas de dança. Além disso, ele desmarcou duas
visitas posteriores às aulas de dança. Acrescentase a isso que, no final do semestre, Felipe nos relatou que vinha repensando se seu desejo e seus
planos continuariam a incluir a dança e que sentia recorrer à televisão como uma fuga, utilizando
esse recurso às vezes na tentativa de entender o
que acontecia com ele. Podemos perceber, assim,
que Felipe desenvolveu conosco um “projeto”
(termo utilizado por ele) que buscava novas experimentações e que foi permeado também por
reflexões sobre o direcionamento que dará à sua
vida, a partir das vivências anteriores.
Quanto às aulas de dança, o resultado foi
surpreendente. Na primeira visita que ele marcou para este fim, chegamos à sua casa e encontramos um ambiente novo: ele já tinha esvaziado a pequena sala, elaborado um roteiro de
aula bem estruturado, posicionado o pai numa
cadeira atrás da cortina que separa a cozinha da
sala e desligado a TV; reconfigurando o espaço
para sua necessidade naquele momento. Podemos considerar, a partir das contribuições teóricas
de Winnicott, retomadas por Safra (2006), que
a atitude de Felipe modificando o ambiente segundo suas necessidades pode ser compreendida
como um placement, que produziu novas tensões
no ambiente, além de proporcionar a revivência
de memórias. Quanto ao roteiro elaborado por
ele, as aulas iniciavam e terminavam com alongamento, perpassando cerca de quatro estilos de
dança de salão e, no fim ele nos trazia pipoca
e suco para um relaxamento; destacando que o
lanche foi feito por ele para nós. Esse momento
173
final foi especialmente importante, por propiciar
um espaço em que ele pôde reviver algumas de
suas lembranças da época de dançarino profissional e elaborá-las junto a nós.
Durante as aulas, Felipe demonstrou bastante profissionalismo e paciência, feedback dado a
ele por nós também. Podemos compreender essa
vivência junto ao paciente como uma experiência
estética e de satisfação. Segundo Safra (2005),
nestes momentos, tanto o paciente quanto os
terapeutas experienciam vivências de encanto,
de alegria ou de beleza. Winnicott (1967, apud
Safra, 2005) acrescenta que, nestas ocasiões, o
reflexo especular fornecido pelo outro abre a possibilidade do paciente encontrar a si mesmo e, ao
mesmo tempo, ao outro.
Uma grande questão trazida nos relatos das
estagiárias anteriores sobre Felipe e também percebido por nós nas primeiras visitas era que ele
costumava fazer muitos planos, mas apresentava
pouca iniciativa para realizá-los. Neste sentido, as
aulas de dança funcionaram como oportunidade
de reviver, na prática, essa posição antes ocupada com orgulho, de ser um professor de dança.
Além disso, através de nossas dificuldades nas aulas, pudemos lhe demonstrar como expressar e
lidar com vulnerabilidades, erros, vergonhas e vivenciamos algumas saídas possíveis. Rimos muito
nesses momentos. Considerando as intervenções
e a convivência com a família, no caso de Felipe, retomamos as teorizações de Barretto (1998)
ao esclarecer que, através do trabalho em nível
dramático-vivencial, o paciente aprende modos
diferentes de atuar e reagir frente às vicissitudes
174
da vida cotidiana. De maneira semelhante, aconteceu com o jogo de xadrez, em que a necessidade de avançar frente aos campos desconhecidos
(campo do outro) constituiu-se em ato, ao invés
de somente palavras. O autor supracitado acrescenta ainda que o jogo de xadrez pode ser utilizado também como espelho da vida.
Durante as aulas de dança, percebemos mais
vitalidade e graciosidade em seu corpo, resgatando um pouco da flexibilidade e auto-regulação
(Lowen, 1982), o que se refletiu, posteriormente,
em algumas intervenções na família e em suas
ações e reações. Segundo Pitiá e Santos (2005),
é possível inferir que a consciência do limite corporal proporcionada pelo toque constante, na
dança de salão, pôde ajudar Felipe a delimitar
seu espaço dentro da família, fato observado na
prática. Além disso, os referidos autores destacam
que o trabalho corporal proporciona mudanças
de pensamento e atitudes, ao facilitar uma maior
integração mente-corpo; podendo ter como conseqüência uma diminuição da ansiedade. Por
tudo isso, notamos que a inter-relação entre oferecermos as aulas de xadrez para Felipe e ele nos
ofertar as aulas de dança permitiram uma alternância na posição de saberes (aquele que doa e
aquele que recebe) e podemos perceber, então, o
fortalecimento da autonomia de Felipe.
Em nossas visitas regulares, fornecemos holding – processo pelo qual uma pessoa se disponibiliza para outra, utilizando da presença do seu
corpo simbólico e habitado de forma constante,
tanto física quanto psíquica, com vistas a oferecer
sustentação. Para tanto, são necessários tranqüi-
lidade e um referencial teórico bem integrado, no
caso de terapeutas (Barretto, 1998). No decorrer
do trabalho, sentimos que Felipe desenvolveu uma
maior confiança no vínculo conosco e segurança
para, em ato, planejar seu futuro, conduzindo-se,
agora, não somente em idéias, mas também em
ações: decidiu se matricular novamente no 3o ano
do Ensino Médio e, por isso, foi até a escola saber informações sobre a matrícula para o próximo
ano. Interessante que, nesta visita, ele passou um
bom tempo falando, animadamente, sobre a escola que visitou e suas idéias para o próximo ano:
combinou com sua antiga professora de dança
de receber aulas pela manhã, ministrá-las com
ela pela tarde e estudar à noite. A partir desses
fatos, inferimos que sua falta de reatividade relatada pelas estagiárias anteriores diminuiu. Destaca-se, também, que ele já consegue demonstrar
para nós, de modo mais claro, seus sofrimentos e
mágoas.
Notamos, contudo, que para a efetividade na
execução dos planos desenvolvidos por Felipe
para sua própria vida, serão necessárias muitas
mudanças, as quais incluem desde um novo posicionamento do paciente diante da vida até uma
reformulação na visão da família sobre suas potencialidades de se autogerir a partir das crises
psicóticas; visto que o cuidado pode também se
revestir em controle. Na tentativa de compreender
e lidar melhor com o fenômeno da psicose, alguns de seus familiares explicam o surgimento da
doença mental em decorrência da mente trabalhar muito rápido e do excesso de atividades. Esta
visão equivocada é comum a alguns familiares de
usuários de saúde mental, sendo inclusive difundida anteriormente pela psiquiatria.
Devido a tais concepções, um de seus familiares preocupa-se em delimitar o horário de Felipe
voltar para casa, quando este sai, por exemplo.
Ele destaca que Felipe tem de voltar a fazer as
coisas devagar e ter um tempo para “descansar
a cabeça” (sic). De fato, o processo de mudança de Felipe deve ser gradual para que ele possa
adaptar-se às mudanças de maneira saudável,
contudo, o ritmo e o desejo dessa readaptação
só podem ser determinados pelo próprio paciente, e não pelo ambiente externo. Considerando
o surgimento de seu desejo de mudança, Felipe
avançou ao verbalizar que se percebe cristalizado e segregado na função de doente mental e
o quanto isto é doloroso; fazendo-o sentir-se incompreendido. Neste sentido, compreendemos
ter sido muito importante para o paciente poder
constituir junto conosco um espaço de escuta, em
que suas experiências puderam ser compartilhadas, simbolizadas e elaboradas; fenômeno exposto por Barretto (2005) como continência.
Em um de nossos últimos encontros em 2006,
Felipe, pela primeira vez desde o seu ingresso
no programa, falou para nós de si e de maneira
bastante mobilizada. Neste encontro, o ambiente
estava diferente, além das pessoas estarem deslocadas de suas posições habituais. Felipe parecia
sentir-se oprimido e sufocado. Começou dizendo que não queria mais ser acompanhado pelo
programa e que não queria estagiárias novas,
pois estava bem e existiam outros pacientes que
precisavam mais de tratamento do que ele. Ele
175
retomou que entrou no programa por que quis
e agora queria sair, pois não queria lembrar das
coisas que já passou. Sentimos que, por trás dessa fala de querer sair do programa, havia outras
coisas que ele precisava externalizar, mas não sabia como. Por isso, perguntamos-lhe o que estava
sentindo e o porquê desse desejo de deixar de
participar do PIC, sinalizando que era importante
para nós ouvir o que ele tinha a dizer.
Foi então que Felipe começou a falar várias
coisas, dizendo que iria abrir o jogo. Começou dizendo que ninguém sabe o que ele passou quando internado e que ele iria morrer sem aceitar o
que aconteceu com ele. Relatou que não gosta
nem de passar pelo Mário Leal para não recordar isso e que não queria mais ser acompanhado,
pois não queria mais este rótulo de doente mental. Retomou sua mágoa, dizendo que sua família
não soube apoiá-lo e, ao invés de dar as mãos
para juntos caminharem, o internou mais de uma
vez. Esse momento foi muito rico, pois o fato de
poder ter nos contado o que sentia quando foi
internado, traduzindo a experiência numa linguagem, significou certa elaboração/simbolização
por parte do paciente e, conseqüentemente, desenvolvimento psíquico. Ele destacou não querer
mais acordar e somente arrumar a casa, que ele
quer mais. Valorizamos muito seu desejo de mudar, destacando que ele tem muitos potenciais.
Discutimos bastante sobre o estigma da doença, temática trazida também em visitas anteriores, e sobre o desconforto que esse sentimento de
ser taxado de “maluco” produz, destacando que
é preciso aprender a lidar com esses desconfor176
tos para não se paralisar diante do preconceito
do outro. Neste sentido, Goffman (1982) postula
que, diante do estigma, expressões emocionais
mais fortes ou atitudes menores (a exemplo de
uma briga na família) podem ser interpretados
de forma errônea, associando tais processos aos
atributos diferenciais estigmatizados, neste caso,
a patologia mental. Enquanto isso, nas pessoas
consideradas normais, não se interpreta tais acontecimentos como expressão sintomática. Compreendemos também que, na postura diferenciada
do terapeuta, é possível aliviar os impactos que
a visão estigmatizante produz. Segundo Barretto
(1998), estar junto como pessoa real e não apenas como profissional ajuda a evitar um lugar
excessivamente institucionalizado, embora exija
bastante discriminação, capacidade de análise e
reflexão.
Refletindo sobre as mudanças vivenciadas e
aquelas que Felipe deseja empreender, reforçamos
que tudo isso só foi possível por ele estar aberto
e que a própria idéia do xadrez partiu dele. Neste
momento, ele nos disse que tem se questionado
sobre o que quer de fato, inclusive repensando
a dança em sua vida. Vera falou um pouco de
como as mudanças, de modo geral, nos afetam
e afetam os outros ao nosso redor, relatando sua
experiência ao sair da Alemanha para o Brasil, o
que implicou no afastamento de sua tradição familiar, e as dificuldades de sua família em aceitar
as diversas quebras de padrões. Felipe concordou,
e sentimos que ele se identificou com isso, representando, de algum modo, o que também sente,
diante de todas as diferenças que vivencia com a
sua família. Para Barretto (1998), nestas ocasiões,
o terapeuta age como pessoa real, inserido numa
cultura em que elaborou suas experiências.
Referindo-se ao desejo de sair do programa,
por não querer mais se ver como doente mental,
Felipe relatou que não está tomando a medicação psiquiátrica há cerca de cinco meses e não
está sentindo nada. Foi muito importante estarmos atentas a esse caso, pensando clinicamente
sobre o mesmo, para não cairmos na cilada de
priorizar os remédios ao invés do sujeito, pois,
neste sentido, perderíamos toda chance de dialogar com a experiência que ele estava vivenciando,
que era justamente a de não se posicionar como
doente. Destaca-se, neste sentido, a importância
de estabelecer junto ao paciente um lugar que
sustenta ser depositário de suas angústias (Rivière, 2000). Discutimos que a medicação, o programa, a psicoterapia, dentre outras coisas, são
possibilidades, as quais ele pode ter acesso para
sentir-se bem e que poderia articular-se diante delas de diversas maneiras. Ele acrescentou que não
queria mais se consultar com os médicos, enfim,
rejeitou essa rotina que o faz sentir-se cristalizado
na posição de doente, ao invés de um sujeito com
potencialidades.
Destacamos para Felipe a necessidade de realizar um processo de mudança gradual e que respeite o seu ritmo interno, para não sentir o peso
de uma transição brusca; mas, na realidade, essa
mudança já vem ocorrendo há muito tempo dentro dele e agora eclodiu. Ele falou, também, da
noção de projeto que nossos encontros tiveram
e aproveitamos para falar que estávamos dispo-
níveis para desenvolver novos projetos com ele,
assim como as novas estagiárias, segundo suas
necessidades. Felipe demonstrou bastante implicação no processo, centrando nele a responsabilidade de mudar: falou da necessidade de perder
peso, que somos os nossos maiores psicólogos e
que ele precisava lutar contra si mesmo, para se
controlar.
Barretto (1998) destaca que, uma vez estabelecida a confiança, o paciente pode apresentar
algo de sua realidade psíquica, sendo que, ao
compartilhar a angústia com o outro, esta se torna
suportável e humanizada. A experiência de investir confiança em Felipe e acreditar que ele pode
ser capaz de dar conta de sua liberação dentro
e fora da família, respeitando seu desejo de ficar
sem contato conosco durante o período de festas
de final de ano e nas situações em que as visitas
foram desmarcadas, nos trouxe muitas inseguranças. Contudo estamos conscientes de que, para
chegar a um certo grau de autonomia, é necessário passar por desafios. Outro aspecto central
observado na situação do desabafo é que esta
proporcionou a oportunidade de Felipe direcionar
certas questões também para a família, e isso, de
algum modo, mobilizou a todos: fosse na maior
movimentação de seu pai na cadeira, na saída de
seu irmão de casa ou nas panelas que sua mãe
deixou cair.
Ao final desta visita, fomos nos despedir da
mãe de Felipe, e ela já havia separado os ovos de
codorna para levarmos. Como combinado anteriormente entre nós, dissemos-lhe que não levaríamos os ovos essa semana, ao que ela insistiu
177
enfaticamente. Felipe fez sinal para seguirmos, o
que fortaleceu a nossa decisão de não cedermos,
com a intenção de modificar a relação com a
mãe. Mais do que nunca, depois de tudo que ele
trouxe nessa visita, não podíamos nos submeter
à força do desejo de sua mãe; terapeuticamente
precisávamos nos posicionar diante dela também.
Percebemos a beleza deste encontro e como esta
experiência foi capaz de liberar um acúmulo interno de suas necessidades, aliviando a tensão e
também o libertando de alguma forma das exigências externas. Keleman (1992, p. 140) aborda bem esta questão ao explicitar que “o corpo
inchado grita para ser deixado em paz, sem ser
abandonado”.
Segundo Safra (1995, apud Barretto, 1998),
uma experiência, para ser integradora e constitutiva deve ter início, meio e fim, em que o ritmo
da criança (e da vida – nascimento, constituição
do sujeito – morte) deve ser respeitado até chegar
a um gesto espontâneo. Expandindo essa visão
para o processo terapêutico, o paciente, após
uma fase de hesitação, começa a estabelecer um
vínculo de confiança com a figura e a pessoa real
do terapeuta. Depois, o setting terapêutico precisaria ser destruído aos poucos pelo paciente,
até que a relação dos dois (paciente – terapeuta)
possa se encerrar, construindo a possibilidade do
sujeito vir a exercer sua autonomia frente ao terapeuta. Será que Felipe agora expressou o gesto
espontâneo?
Muitas outras questões podem vir a ser trabalhadas nesse caso, a exemplo da relação do paciente com a mãe biológica, pois, compreenden178
do de outra forma a sua origem e ressignificando
as circunstâncias de sua adoção, ele poderá se
localizar com mais sustentação no mundo, e, dessa forma, desenvolver mais segurança e autoconfiança. Ademais, Marinho (2006) destaca que o
psicótico apresenta dificuldade em achar o seu
lugar diante da história familiar, necessitando reconstruir as origens de sua vida, o que se expressa no delírio. Contudo, compreendemos que esta
necessidade deve partir do próprio paciente, para
que sejam as necessidades dele, e não as dos estagiários ou da família a serem trabalhadas.
Um ponto central para o desenvolvimento
adotado neste caso foi o fato de a intensificação
de cuidados ser realizada em dupla. Isso permitiu que pudéssemos tomar consciência, discutir e
elaborar as questões em nós suscitadas pelo paciente e também adotar os direcionamentos que
consideramos mais adequados. Depararmo-nos
com nossos pré-conceitos e imaginários sobre a
saúde mental e o investimento no fazer clínico foi
de fundamental importância para que pudéssemos sustentar essa posição de troca, que exigia
um grande envolvimento e disponibilidade, inclusive física, para o processo. Neste sentido, revelase não apenas o cuidado para com o paciente,
mas também entre as próprias estagiárias que,
no processo da clínica, formularam, para além
de um conhecimento sobre o paciente, um maior
conhecimento sobre si mesmas.
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São Paulo: Escuta.
179
O solitário na multidão: a solidão da diferença
Ana Paula Miranda da Hora*
Resumo: O presente artigo tem como objetivo
dar visibilidade a um sentimento de solidão peculiar aos psicóticos a partir de uma reflexão sobre o tema. Para tanto, utiliza-se da experiência
de acompanhamento a um paciente inserido no
PIC (Programa de Intensificação de Cuidados a
pacientes psicóticos). A solidão psicótica é um assunto de grande relevância clínica e social. Entre
os fatores que contribuem para a presença desse
sentimento estão o processo histórico de exclusão
do diferente do convívio social e a própria relação
frágil do psicótico com o outro. Durante a discussão do caso, são levantados pontos importantes,
assim como comentadas as intervenções realizadas com vistas à criação e fortalecimento dos laços sociais do acompanhado.
A
solidão é um fenômeno pungente em nossa
sociedade. Na Modernidade, análises sócioantropológicas já apontavam para uma tendência
à alienação e ao isolamento do indivíduo, principalmente nas grandes metrópoles. A passagem
do modo de produção coletivo, sociedades holísticas, para as sociedades de consumo, capitalistas
e individualistas trouxe o embrião para a experiência do sentir-se só de cada um. Nas grandes
cidades, o sentimento de solidão se torna cada
vez mais intenso.
Imersos na multidão indiferenciada, os indivíduos andam alheios uns aos outros, cada qual
em busca dos seus interesses particulares. Se voltarmos um pouco da atenção para o nosso comportamento durante o transcurso de um dia, não
raro nos flagraríamos a planejar o próximo comQuem é esse que perambula pela es- promisso, a pensar na discussão com o colega
trada sem rumo em meio à multidão? O de trabalho ou a fantasiar um possível encontro
que ele busca? O que deseja? É um so- amoroso para o final de semana. Ou seja, vivelitário, absorto em seus delírios: a última
mos um tempo em que a nossa rotina tende a
chance de se livrar do insuportável sentinos levar para um ensimesmamento que não nos
mento de solidão.
permite olhar a nossa volta. Como Brentano traduziu: “Todos os que eu via andavam na mesma
* psicóloga graduada pela UFBA e ex-estagiária do PIC
180
rua, uns ao lado dos outros e, no entanto, cada
um parecia seguir seu próprio caminho solitário,
ninguém se cumprimentava, cada um ia atrás de
seu interesse pessoal (...)” (BRENTANO apud TANIS, 2003, p.57).
Atualmente, observamos o fracasso da profundidade das relações, que estão cada vez mais superficiais e fugazes. Estamos experimentando uma
carência de substância que pode ser observada
nos padrões de comportamento das pessoas. Os
relacionamentos virtuais ganham espaço e vão,
passo a passo, substituindo o contato físico. Os
encontros ficam a cargo da fatalidade ou coincidência, e as promessas de reencontros, aos
poucos, vão sendo esquecidas com o passar dos
dias. Não fazemos muita questão do outro, de estarmos com o outro, embora este outro seja fundamental para nossa sobrevivência enquanto humanos. Normalmente, quando este é procurado,
é por um motivo pontual, claro e objetivo. Seja
como uma companhia para diversão seja como
um confidente de nossas conquistas e desilusões.
A celebração do encontro e o prazer de estar com
o outro são cada vez mais raros na nossa cultura.
As análises mais pessimistas (ou realistas?) diriam
que viver de forma isolada e alienada é uma tendência do homem urbano contemporâneo (TANIS, 2003, p. 55).
Para Tanis (2003), este comportamento tem a
ver com a atomização da sociedade, com a incapacidade de comunicação e uma certa falência da linguagem (TANIS, 2003, p. 13). Podemos
falar também do surgimento de um novo tipo de
comunicação e linguagem quando pensamos na
Internet. E por que não dizer de uma certa condenação à solidão? O mundo das virtualidades, ao
qual o homem contemporâneo se encontra submerso, de certa forma, anuncia a sua condenação a ser solitário (KATZ, 1996, p.63).
De acordo com Katz (1996), a presença do
outro é insuficiente para que a solidão se finde.
Esse autor afirma que é na busca pelo outro que
o homem se depara com a solidão. O “ir em busca”, para este autor, desvela a constatação do
“ser só” que não é sanado no encontro com o
outro. Ao contrário, “quando o indivíduo busca
mais desesperadamente a procura do outro, é
nesta procura que ele encontra a solidão” (KATZ,
1996, p. 29). A concepção universalizante de que
o homem deve viver em sociedade faz com que a
solidão seja vista como uma anormalidade, como
um sentimento negativo que todos devem evitar
(KATZ, 1996, p.29).
Contudo há quem visualize uma positividade
na experiência do sentir-se só. Katz (1996) fala
da solidão positiva, o que vai de encontro à norma geral da solidão como algo negativo (KATZ,
1996, p. 30). O autor defende que momentos de
solidão podem nos permitir experiências inalcançáveis quando se está na vida social. Ele chega a
defender o asilamento como uma forma de estar
com os seus pares, libertados das regras sociais
ou psíquicas ditas normais (KATZ, 1996, p.141).
Para Tanis (2003), esta solidão diz algo sobre a
capacidade de estar só e de usufruir a experiência
de agir apenas de acordo com o que nos manda
a nossa vontade. (TANIS, 2003, p. 151). É compreensível que, muitas vezes, queiramos nos isolar,
181
fugir da correria das cidades grandes, estarmos
sós com nós mesmos. No entanto esta decisão
deve ser voluntária, não imposta pela sociedade.
De acordo com Tanis (2003), vivemos de forma defensiva a todo instante. É que, para o autor,
se configura como uma ameaça o contato com o
outro e com seus próprios conflitos internos, pois
nos remete a nossos próprios conflitos. Isso leva o
indivíduo a voltar-se para si mesmo, a escapar do
contato com o mundo e a estar, permanentemente, alerta e precavido, embora não se saiba muito
contra o quê. Esta é a solidão dos neuróticos, que
todos nós, ditos normais, vivemos (TANIS, 2003,
p.99).
Desta forma, a solidão se faz presente como
uma produção social da qual todos fazem parte. A
solidão também pode desorganizar psiquicamente o neurótico. O “sentir-se só” ou, simplesmente, a ausência da presença do outro pode levar
a uma desestruturação, podendo chegar a uma
alteração do estado de consciência, desorganização espaço-temporal e vivências alucinatórias
(TANIS, 2003, p.139). O “sentir-se só” é denominado pelo mesmo autor como a solidão da diferença (TANIS, 2003, p.29). Esta solidão é engendrada pela exclusão da diferença. É a solidão do
não pertencimento, freqüentemente experimentada pelos indivíduos à margem da sociedade. Esse
sentimento se aproxima da sensação de estranhamento do mundo no qual se está inserido, como
nos conta Tanis (2003):
pensavam em abrir caminho na multidão.
Outros, de faces coradas, também numerosos, andavam com movimentos inquietos (...), como se a densidade da massa
que os rodeava lhes fizesse sentir mais a
própria solidão (TANIS, 2003, p. 68).
Para Tanis (2003), há uma diferença entre
“estar só” e “sentir-se só”. Esta solidão é experimentada mesmo na presença de muitas pessoas. O sentir-se só é uma experiência próxima ao
desamparo em nossa sociedade. Para o autor, a
solidão resulta do “esvaziamento do papel do outro” e dos vínculos do sujeito com este. De acordo com o autor, o que está nas bases da solidão
são as relações entre o eu e o objeto. Para ele,
não existe solidão sem referência ao outro (TANIS,
2003, p.168). Nesse sentido, merece destaque a
experiência vivida pelo psicótico, uma vez que sua
relação com o outro é estabelecida de forma precária, ou seja, a posição que este ocupa não está
bem definida nas relações de objeto. A psicose
desenvolve uma relação especial com o objeto
(TANIS, 2003, p. 123).
O “louco” compõe um grupo específico, no
qual a solidão existe de forma impactante e concreta. Esta é a solidão da exclusão, considerada
aqui como imposta. Nossa sociedade exclui aquelas pessoas que não teriam condições de compartilhar das mesmas regras sociais da maioria. No
dizer de Katz (1996), são os solitários naturais,
“pois não teriam condições naturais de se comunicar e conviver com outros de modo natural”.
A maior parte tinha um modo de andar satisfeito e prático e evidentemente só O ser “natural” significa, para o autor, possuir
182
a capacidade de atender às variadas exigências
produtivas dos grupos sociais. Para ele, o “louco”
se expressa numa linguagem impossível de ser socializada (KATZ, 1996, p. 43). Esta solidão tem
um aspecto negativo, por ser marcada pela impossibilidade do indivíduo de compartilhar algum
projeto grupal ou social.Como se não bastasse
tamanho determinismo “natural”, o psicótico ainda se insere em um outro grupo: o grupo dos solitários sociais. Neste grupo, estão aquelas pessoas
destinadas ao isolamento social, pois não conseguem acompanhar o sistema educacional, entrar
no mercado de trabalho, além de serem isoladas,
muitas vezes, pela própria família.
Os “loucos” estão aí incluídos por possuírem
características que os tornam incapazes perante
as exigências sociais (KATZ, 1996, p. 45). Segundo Katz (1996), “a solidão desses grupos é da
ordem geográfica ou física e corresponde mais
estritamente a um isolamento” (KATZ, 1996, p.
46). Essa idéia vem combater o isolamento como
algo voluntário, fruto de um desejo interno do homem. “A solidão que se recusa à inscrição social
é produzida pelos saberes socialmente organizados, vivida e pensada como um processo negativo” (KATZ, 1996, p.111).
O psicótico vivencia a experiência da solidão
de forma muito particular. Este sujeito é a própria
solidão, uma vez que o outro, para ele, é sempre
um enigma. Essa forma particular de ser no mundo encontra a intolerância e indiferença das pessoas que, perturbadas com a diferença, afastam a
loucura da sociedade, temendo modos de subjetividade que perturbem “uma dita continuidade e
coerência do mundo da vida, uma expectativa de
felicidade e harmonia” (KATZ, 1996, p.45). Desse
modo, esta solidão deve ser afastada da sociedade dos ditos normais sob risco de contaminá-la
com a loucura que está em cada um de nós.
O louco recusa-se a ficar sozinho. Angústia
desesperada do indivíduo na multidão solitária.
Mesmo - o outro - não estando estruturado psiquicamente para o psicótico, ele procura a sua
presença. “A simples proximidade física parece
lhe conferir uma tênue sensação de pertinência”
(TANIS, 2003, p.72). Segundo o autor, seria uma
forma de criar uma familiaridade, maneira concreta de suportar a dor de sentir-se só.
A solidão como fenômeno psicótico “parece
referir-se a pessoas e objetos fragmentados, assim como é a própria noção de si” (TANIS, 2003,
p.89). Na psicose, a formação de laços sociais
é uma questão crítica, ou seja, esse sujeito não
criou vínculos ou esses são muito frágeis. Assim
sendo, o psicótico precisa de alguém que gerencie suas relações, pessoas que se importem com
sua questão, proporcionando o fortalecimento de
suas redes sociais.
Neste sentido, este artigo tem como objetivo
refletir sobre a temática da solidão psicótica a
partir da experiência de um acompanhamento terapêutico a um paciente psicótico. A importância
do tema pela sua presença na prática contrasta
com a carência de estudos. Pretendemos dar visibilidade a um sentimento particular de solidão
vivida pelos psicóticos o qual julgamos de extrema relevância clínica e social. Não é fácil abordar
um tema que estamos vivenciando. Falar sobre
183
a solidão nos faz pensar sobre a nossa própria.
Pessoas como nós, especificamente, que fazem
do lidar com o sofrimento do outro seu trabalho,
têm ainda a oportunidade de ver uma outra face
da experiência do sentir-se só. Isso nos obriga a
não negligenciar ou camuflar a solidão através
dos nossos mecanismos de defesa. Ao contrário,
temos o compromisso ético de divulgá-la e assim
tornar pública a dor, dor de que nenhum de nós
está livre.
Cenário da Solidão
A experiência de acompanhamento terapêutico
aqui relatada parte das atividades do Programa
de Intensificação de Cuidados a pacientes psicóticos (PIC), o qual tem como foco a reinserção
social do sujeito, ao lançar mão do recurso do
acompanhamento terapêutico para formação de
redes do acompanhado.
O PIC tem como objetivos a criação e o fortalecimento de redes sociais dos pacientes mediante a intensificação de cuidados realizada pelas
duplas de estagiários que ficam mais próximos de
cada caso, podendo intervir nas interações desses
pacientes junto a familiares, amigos e cuidadores.
Caso V.
V. tem 33 anos, é solteiro, natural de Feira de
Santana-Ba, residente de um bairro popular da cidade de Salvador-Ba, mora sozinho, de aluguel. É
responsável por todas as suas despesas, as quais
arca com o salário mínimo que recebe por conta
184
de sua aposentadoria por invalidez. Foi deixado
num orfanato pela mãe aos três anos de idade,
onde viveu até os nove. Para lá também foram
suas duas irmãs.
V. morou até os 19 anos com “sua patroa”,
modo como se refere à mulher para quem trabalhou como servente, e suas irmãs como babá e
cozinheira. Ele sofreu um acidente de carro, aos
16 anos, em que estavam presentes sua patroa
com filha e genro. Sofreu princípio de traumatismo craniano e, por conta disso, interrompeu os
estudos na 6ª série do ensino fundamental. Morou por um período com sua irmã mais velha, ajudando-a nas despesas.
Nessa época, ele trabalhou em diversas funções, entre elas, vigilante e vendedor de picolé,
ocupação que tinha na época da primeira internação, em abril de 1997. Na ocasião, alegou-se
desgaste físico e mental. Depois desta internação,
V. passou ainda por vários hospitais. Ao sair de
alta, passou a morar sozinho numa casa alugada
pela irmã mais nova, responsável por sua última
internação. Desta vez, os motivos alegados foram:
ausência do uso das medicações, falta de higiene
pessoal, perambulação pelas ruas, dejeções em
público e risos imotivados. Em março de 2005, V.
passou a ser acompanhado pelos estagiários do
Programa de Intensificação de cuidados.
A primeira visita das estagiárias a V. se deu em
julho de 2005 num momento de passagem do
caso. O encontro aconteceu num bar. Esse estabelecimento se localizava numa residência da
qual a proprietária alugava quartos. Era num
deles que morava V. Ele já tinha conhecimento
da mudança de duplas e, ao ser apresentado
às novas estagiárias, voltou-se para o antigo e
perguntou: “Você já passou tudo para elas?”. O
acompanhamento das andanças de V. possibilitou a seus acompanhantes um entendimento da
questão desse sujeito. A atenção dispensada a V.
era freqüente e contínua. A nossa insistente presença fez com que V. nos depositasse a confiança
necessária para que compartilhássemos dos seus
conflitos, angústias e solidão.
O homem só na multidão:
a diferença excluída
Durante o período de um ano em que acompanhamos V., fomos observando o quanto era pungente o seu sentimento de solidão. Sabemos que
a experiência do sentir-se só parece ser uma tendência do homem contemporâneo. Contudo, na
psicose, esta solidão existe e insiste anteriormente
aos fatores que contribuíram para a emergência
da sociedade individualista. É evidente que se faz
necessário levar em consideração o fato de que a
solidão do “louco”, nas grandes cidades, só tende a aumentar. Isto porque o homem urbano está
muito voltado para si, para seus interesses pessoais. Não há muito lugar para o outro em nossas
vidas, principalmente, quando esse outro se apresenta como diferença. V. é esta diferença.
A sensação de estar só entre muita gente foi
experimentada por V. a todo instante. No decorrer
dos acompanhamentos, pudemos compreender
como a solidão se impôs na vida do acompanhado de uma maneira muito peculiar, tendo em vista
a sua condição psíquica. Ela - a solidão - estava
por toda parte: em seu discurso, em sua moradia, na disposição dos seus pertences domésticos.
A presentificação desse sentimento foi produzida
pelo processo de isolamento sofrido por V. por
parte dos seus vizinhos, família e comunidade.
O programa do qual fazíamos parte tinha
como objetivo reinserir o paciente socialmente,
bem como secretariá-lo nas suas ações, buscando pessoas dispostas a ajudá-lo. Afetamo-nos
com a presença e recorrência, no discurso de V.,
da sua questão: “Morar sozinho e não fazer nada
é muito enjoativo”, “Estou cansado de morar sozinho, quero uma mulher para me fazer companhia”. Começamos, então, a suprir a solidão de
V. com a nossa presença e atenção, ao mesmo
tempo em que nos sentíamos no dever de fazer
algo para mudar a sua situação. A solidão de V.
nos incomodou a ponto de utilizarmos, “inconscientemente”, de estratégias para saná-la. Ficávamos horas em sua casa, passeando pelo bairro
etc. Era angustiante e muitas vezes insuportável
nos depararmos com tamanha sensação de estar
sozinho, uma vez que nos deparávamos com a
nossa própria solidão.
V. era realmente só, não havia ninguém interessado por ele. Só mais tarde percebemos, com
a ajuda das supervisões e discussões, o quanto as
práticas que estávamos implementando eram assistencialistas, ao irem de encontro ao objetivo do
nosso trabalho. Ou seja, o que precisávamos era
encontrar formas, buscar pessoas que se sensibilizassem com a questão do nosso acompanhado e
se dispusessem a colaborar, ao trazê-lo para mais
185
próximo da convivência em sua comunidade.
Na tentativa de buscar moradores do bairro interessados por V., vislumbramos D. Maria (nome
fictício), proprietária do quartinho alugado pelo
paciente. Em cada visita, a procurávamos para
conversar, no intuito de explicar a situação do
acompanhado e solicitar a sua colaboração. D.
Maria, sempre muito atenciosa, disponibilizava
seu telefone e seu bar para entrarmos em contato com V. Era, até então, a única pessoa com
que podíamos contar. Aos poucos, percebemos o
quanto a intolerância à convivência com o acompanhado se fazia presente. V. tinha um modo peculiar de ser e de agir, o qual provocava muito
incômodo nas pessoas.
Em uma das visitas, fomos surpreendidas com o
semblante preocupado de D. Maria, ao nos alertar quanto à insatisfação do vizinho de quarto de
V. para com algumas de suas atitudes. Conversamos com Sr. José (nome fictício), o qual nos disse
que, se dependesse dele, o paciente já teria sido
expulso de sua casa e internado. Sr. José se justificou, afirmando não gostar do cheiro de V. nem
do seu comportamento em relação a sua filha e
esposa, aparecendo em trajes íntimos diante delas. A proprietária, apesar de saber da existência,
por parte de Sr. José, de uma intencionalidade
em relação à saída de V., concordou com sua retirada, alegando estar em atraso seu pagamento
do aluguel. Isso nos mostra o engendramento da
solidão do acompanhado pelo seu afastamento
da sociedade.
Como vimos, é muito comum excluirmos o diferente do nosso convívio, principalmente, quando
186
este diferente nos diz algo sobre a nossa própria
fragilidade psíquica. Entre os fatores que contribuíam para a solidão de V. estava o incômodo
gerado nas pessoas diante da sua presença e na
convivência com ele. V. desafiava o nosso equilíbrio, a nossa razão, questionava a nossa integridade psíquica com o seu modo particular de
ser no mundo. Era expulso do convívio social, e,
junto a isso, sua solidão se acentuava cada vez
mais com o freqüente afastamento das pessoas
da comunidade onde morava.
A solidão de V. era a solidão da exclusão, imposta pela sociedade. Primeiramente, pela sua
condição psíquica, e, em segundo lugar, pela sua
condição socioeconômica, a qual acentuava o
seu sentimento de solidão. V. era louco, pobre e
negro, ou seja, reúnia características que só acentuavam a sua condição de solitário no mundo e
que o excluíam do mundo dos sócios da nossa
sociedade. Esta solidão tem um aspecto negativo,
por ser marcada pela impossibilidade do indivíduo de compartilhar algum projeto social e de se
enquadrar no repertório das exigências sociais.
V. era visto pelas pessoas como “o louco”,
aquele indivíduo que nada entendia, nem era capaz de entender. Era o incapaz, o doente, o desajuizado. Desse modo, ninguém lhe dava crédito ou lhe depositava confiança. V., devido a sua
condição psíquica, não conseguia compartilhar
de projetos ou grupos sociais, ou, pelo menos,
era visto desse modo.
Da mesma forma, ele também era excluído por
não conseguir seguir os padrões sociais exigidos.
Ou seja, não conseguia estudo, trabalho, o que
era reforçado pela sua situação social precária.
Chegou a se matricular numa escola do bairro
anterior, onde morava. Todavia não chegou a cursar, porque entrou em crise. Ele também procurava trabalhar. Dizia-nos passar sempre pela oficina
mecânica do seu bairro e perguntar se havia trabalho para ele, mas a resposta era sempre negativa. Quem daria trabalho a um louco? Quem
acreditaria que este poderia estudar e aprender?
Esses preconceitos arraigados em nossa sociedade aumentavam a condição solitária de V.
A solidão de V. era amplificada ao ser excluído,
também, pela família. Uma das irmãs do paciente
era moradora do seu bairro. Era o único membro da família com o qual o nosso acompanhado
mantinha contato, ainda que este fosse objetivo e
esporádico. Sônia (nome fictício) funcionava como
uma espécie de fiadora do irmão, a exemplo da
casa alugada por V., a qual negociou, garantindo
honrar com o compromisso, caso ele não o fizesse. O paciente quase não encontrava sua irmã e
contava, ocasionalmente, que esta estava “sempre com pressa”, e o portão estava sempre fechado quando ia visitá-la.
Sônia nos contou que V. “é uma pessoa difícil
de se conviver, é insuportável, é para viver sozinho”. Disse ter informado a todos do bairro sobre
a doença de seu irmão, a fim de lhe avisarem caso
acontecesse algo com ele. A irmã de V. acreditava
ainda defendê-lo porque “o sangue ainda puxa”,
mas recusava-se a abrigá-lo em sua casa, mesmo
sabendo e dizendo entender a sua solidão. Sônia
disse não levar V. à casa da sua mãe, para que
não aprendesse o caminho. Uma das vezes em
que isso aconteceu, a mãe “precisou” mudar de
casa. V. era completamente excluído do convívio
da família. Ele foi rejeitado pela mãe e irmãos, os
quais desveladamente disseram não querer estar
na sua presença e convivência. Essa rejeição só
acentuou a condição de V. como um ser solitário,
abandonado à própria sorte pela família, vizinhos
e comunidade.
A solidão de V. estava presentificada em sua
vida. Sua casa era a moradia da solidão. Esta era
sentida, até mesmo, na carência de objetos domésticos, assim como na disposição dos mesmos.
O nosso acompanhado possuía apenas duas cadeiras, que ficavam dispostas em sua sala, a qual
se tornava ampla pela carência de móveis. Quando chegávamos, únicas visitas, esses objetos eram
utilizados para sua verdadeira função, uma vez
que, usualmente, serviam de guarda-roupas ou
suporte para outros objetos.
V. comparava o isolamento no qual ficava em
sua casa ao de um exílio. Dizia passar a maior
parte do tempo em sua residência, ouvindo rádio,
afirmando estar esperando o tempo passar, sem
trabalhar, sem estudar, só a comer uma refeição
ao dia e dormir. V. dizia não achar certo ficar em
casa o dia todo sem fazer nada. Ele utilizava um
ditado popular, corriqueiramente, para referirse a sua angústia: “mente parada é oficina do
diabo”. O paciente fez uma comparação da sua
casa à internação. Nela, V. sentia-se distanciado
do mundo, das pessoas, assim como se sentia,
quando estava internado.
Contudo, em alguns momentos, quando a solidão se fazia mais presente, V. referia o desejo de
187
voltar para o hospital. Ainda que os aspectos negativos de uma internação fossem incontestáveis
para o nosso acompanhado, ele a cogitava como
uma alternativa para livrar-se do sentimento insuportável de sentir-se só. O Hospital aparecia
como último recurso, e não como um desejo de V.
O paciente se justificava, ao dizer que lá encontraria pessoas com as quais fez amizades, como o
vigilante do hospital, o auxiliar de enfermagem, e
conversaria com elas, passaria o tempo...
Entre uma andança e outra na busca de parceiros sensíveis à questão de V., encontramos Celeste, a proprietária do bar onde o acompanhado
almoçava. Ela surgiu em momentos conturbados
da vida do nosso acompanhado e se mostrou
sensível a sua questão. Quando a intolerância
dos vizinhos se fez mais forte e concreta, V. não
suportou e entrou em crise. Estava na iminência
de ser despejado, sem ter para onde ir, além de
estar sendo pressionado pela proprietária para
pagar as contas em atraso. Antes disso, já vinha
há algumas semanas sem tomar as medicações,
alegando que queria descansar.
medicações do acompanhado e dar-lhe nas horas certas. É interessante notar o local emergencial que Celeste conseguiu para abrigar V. Era a
casa do seu empregado que tinha uma leve deficiência mental e morava só. Isso nos fez pensar
sobre a atitude histórica da humanidade de reunir
os diferentes e afastá-los do seu meio.
Por outro lado, Celeste, de certa forma, contribuía para a manutenção do diferente na comunidade, fazendo do seu bar um ambiente de socialização e inclusão. V. passava todas as tardes nesse
estabelecimento. Lá ele conversava com alguns
freqüentadores, enquanto outros diziam o que ele
devia ou não fazer. O paciente comentava com
impaciência que todos ficavam perguntando se
ele havia tomado os remédios, até quem ele não
conhecia. Não obstante este contato de V. com
as pessoas, sua posição na comunidade era bem
demarcada, visto sempre como aquele “louco”,
pois não se enquadrava nas normas sociais estabelecidas. Desta forma, V. continuava sozinho,
marcado pela diferença.
Eram as ocasiões em que V. se encontrava em
crise os momentos em que a sua exclusão se fazia
Nestas condições, a rejeição do paciente pela mais evidente. O paciente em crise descuidavacomunidade se fez ainda mais presente. Ninguém se da higiene pessoal, perambulava pelo bairro,
queria alugar uma casa para um “louco”. Celeste mexia com as mulheres na rua, dizia o que peno abrigou na casa do seu empregado. Era, na sava. Desse modo, despertava o incômodo dos
verdade, um casebre situado um pouco afastado moradores do bairro, os quais queriam expulsá-lo
da área central do bairro. V. apenas dormia nesta da comunidade. Freqüentemente, eles se dirigiam
casa e fazia todas as suas refeições, apenas duas, a nós, acompanhantes, a fim de que tomássemos
no bar. Ele havia feito um acerto com Celeste de uma atitude: “tem que encher de remédio até o
pagar, mensalmente, pelas refeições. A dona do teto e internar”.
bar também resolveu, ela mesma, ficar com as
Algumas vezes, flagramo-nos tomando partido
188
de V., ou seja, ficávamos intolerantes e indignadas com a atitude das pessoas. Percebemos, mais
uma vez, mediante orientações dos supervisores,
que oportunidades como estas deveriam ser aproveitadas para conquistar mais parceiros interessados em colaborar para a melhora da situação do
acompanhado.
Busca pelo outro dilacerado:
encontro da solidão
A experiência do sentir-se só vivenciada por V.
se fazia presente no seu encontro com o outro. A
solidão vivida pelo paciente lhe era peculiar. Ele
era a própria solidão, uma vez que o outro não se
encontrava bem estabelecido psiquicamente para
ele. A solidão como fenômeno psicótico é a solidão da ausência de algo que não se sabe bem o
que é. Todavia V. procurava a presença do outro,
buscava estar próximo das pessoas, o que parecia lhe conferir uma certa familiaridade, ou seja,
uma sensação de pertencimento: única maneira
de suportar a dor de sentir-se só.
V. continua a sua solitária luta. Luta não se sabe
bem contra o quê ou contra quem, mas que se faz
incessante, pois deseja livrar-se do sentimento insuportável da solidão. A experiência de sentir-se
só do paciente nos disse muito sobre a sua capacidade de ficar sozinho. Perguntávamos até onde
V. suportava sua solidão. Qual o seu limite? O
que o fazia suportá-la?
V., em sua busca por livrar-se do insuportável
sentimento de solidão, procurava o bar de Celes-
te, a igreja, a escola, os vizinhos e, até mesmo, o
hospital. Sabemos que o psicótico tem uma forma
particular de estar no mundo e vincular-se às pessoas. Portanto entendemos as atitudes do acompanhado como esta tentativa de busca, uma vez
que era freqüente o seu discurso de insatisfação
quanto a sua situação.
O paciente cumprimentava a maioria dos moradores do seu bairro. Conversava com o pastor da igreja, com o rapaz da mercearia, com o
mecânico da oficina. Todos sabiam quem era V.,
conheciam seus hábitos e sua condição de “doente mental”, porém não passava disso. Para o
acompanhado, viver nesta aparente proximidade
parecia lhe abrandar o sentimento de completa
solidão. O paciente recusava-se a ficar sozinho,
não obstante a fragilidade vincular que lhe era
constitutiva. Devido a tal característica, seus vínculos sociais, quando existiam, eram muito frágeis, como a sua relação com a dona do bar e
seu empregado.
Agimos em direção ao fortalecimento dos laços sociais de V. A sua situação econômica não
permitia que freqüentasse os grupos semanais realizados pelo programa, bem como participasse
de alguns passeios promovidos pelo mesmo. Todavia, constantemente, o paciente fazia perguntas sobre tais atividades. V. nos perguntava quem
dos demais participantes havia comparecido,
que atividades haviam sido realizadas etc. Freqüentemente, buscávamos alternativas para que
o acompanhado participasse das programações,
pedindo uma contribuição financeira junto a sua
irmã ou mesmo tirando do nosso próprio bolso.
189
No intuito de corroborar com esta busca de
V., tentávamos sensibilizar as pessoas quanto a
sua situação, de modo a conseguirmos parceiros
para a luta que nos propomos travar. Conseguimos aliados como Celeste, a dona do bar, que se
configurou como a nossa principal aliada, pois
era sensível à questão de V., e ele estabeleceu um
vínculo de confiança com a mesma. Outra pessoa
importante foi o pastor da igreja, que se propôs a
ajudar no que fosse necessário, inclusive disponibilizando o espaço do centro comunitário do bairro para realizarmos reuniões informativas sobre o
lidar com o “louco” na comunidade.
Procuramos durante o período em que acompanhamos o paciente criar uma rede social de
apoio, a fim de reinserí-lo na comunidade e, dessa forma, abrandar o seu sentimento de completa
solidão. Obtivemos alguns êxitos como expomos
anteriormente. Ao término do acompanhamento,
não deixamos de sentir com pesar a separação de
V. Talvez esta tenha sido sentida muito mais forte
por nós que nos vinculamos ao paciente ao modo
neurótico. Ele, em contrapartida, nos disse: “Foi
bom enquanto durou”. Disse-nos que sentiria saudades, ao mesmo tempo em que se preocupou
em passarmos tudo para as próximas estagiárias,
o que nos diz algo sobre o lugar que ocupamos
em sua vida. V. continua sendo acompanhado
pelo programa.
Considerações Finais
A solidão é um sentimento negativo em nossa cultura. Algo que todos devem evitar. Contudo
190
caminhamos a passos largos para um estado de
ensimesmamento, no qual o outro se torna prescindível para a nossa existência. Ou, pelo menos,
a sua presença, uma vez que os relacionamentos
virtuais dominam o nosso cotidiano e o aprisionamento da rotina não nos deixa tempo para os
encontros casuais, os quais são cada vez mais raros.
A concepção universalizante de que o “louco”
não possui capacidade de compartilhar das regras sociais, aliada a idéia de ele ser detentor de
uma linguagem impossível de ser socializada está
nas bases do processo de exclusão da loucura em
nossa sociedade. Diante desse contexto, assistimos à presença de um modo particular de solidão
que é anterior, embora amplificado, pelo processo vivido ao modo contemporâneo. É a solidão
da diferença, solidão do não pertencimento ao
mundo dos sócios.
A nossa experiência enquanto estagiárias do
PIC – Programa de Intensificação de Cuidados a
pacientes psicóticos – nos possibilitou entender
o engendramento de uma solidão que tem suas
principais bases no processo histórico de exclusão
do diferente do convívio entre os ditos normais. O
“louco” como o diferente, o estranho, o incapaz,
o alienado é colocado à margem da sociedade.
Tudo em função da preservação da homogeneidade do comportamento e do enquadramento do
psiquismo às exigências sociais.
Compreender a solidão do psicótico só nos
foi possível mediante a ampliação do cenário da
clínica tradicional, ou seja, acompanhamos o
paciente em outros âmbitos da sua vida, como
comunidade, família e pudemos observar como
pôde ser produzida a sua solidão, assim como
ter acesso a um discurso só possível a partir do
estabelecimento de uma relação de confiança entre acompanhante e acompanhado. Essa relação
de confiança só foi estabelecida, porque insistimos com a nossa presença na vida de V. A nossa
presença contínua e incondicional foi condição
fundamental para o estabelecimento do vínculo,
o que permitiu fazermos intervenções importantes
em sua vida.
Neste trabalho, buscamos contribuir para dar
visibilidade ao tema da solidão psicótica, uma vez
que este é de grande relevância clínica e social,
além de muito recorrente em nossa prática. Uma
segunda contribuição deste artigo reside na desmistificação da idéia do isolamento como algo
voluntário. Ao contrário, destacamos e buscamos
identificar o que está por trás da solidão na psicose. Tal solidão também é chamada de solidão
imposta, produzida pelo processo de exclusão sofrido pelo psicótico.
Este artigo trata de um tema muito caro à reforma psiquiátrica, uma vez que toca em questões relativas à reinserção social dos pacientes
psicóticos. A reflexão sobre a solidão imposta ao
dito louco leva a um entendimento sobre as bases
do processo de exclusão sofrido por este. Desse
modo, fazem-se necessárias mais intervenções clínicas pautadas no acompanhamento do paciente
na família, comunidade, a fim de que o sentimento de sentir-se só seja mais bem compreendido e
aliviado.
Tendo em vista tamanha importância, novos
estudos fazem-se necessários, visando um aprofundamento do assunto. Sugerimos mais estudos
que abordem a busca peculiar do psicótico, não
obstante a sua fragilidade vincular, bem como trabalhos que versem sobre intervenções sociais e
comunitárias baseadas no manejo das relações
com este público.
Referências
BARRETTO, Kleber Duarte. Ética e Técnica no acompanhamento terapêutico. São Paulo: Unimarco, 1998.
KATZ, C. H. O Coração Distante: ensaio sobre a solidão
positiva. Rio de janeiro: Revan, 1996.
PICHON-RIVIÉRE, Enrique. Teoria do Vínculo. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
TANIS, B. Circuitos da Solidão: entre a clínica e a cultura. São Paulo: Casa do Psicólogo: FAPESP, 2003.
191
Transbordamento psicótico:
Desafios e possibilidades de intervenção
Lygia Freitas*
Mabel Jansen**
Resumo: O presente estudo trata de um caso
desenvolvido durante o Programa de Intensificação de Cuidados a Pacientes Psicóticos, programa de extensão universitária que constitui parceria entre a UFBA, a FBDC e o HEML e efetiva-se
por meio de atendimentos domiciliares, encontros
grupais com os pacientes, reuniões com cuidadores, acompanhamento a consultas, supervisão
grupal, dentre outras atividades. Este texto busca
descrever o acompanhamento realizado durante
nove meses com um indivíduo do sexo masculino portador de transtorno mental, solteiro, 35
anos, com longa carreira manicomial e precária
condição sócio-econômica. Durante o acompanhamento do caso, pôde-se perceber que investir
ativamente na constituição e fortalecimento do
vínculo com o paciente ocasionou mudanças em
suas formas de vinculação social. As internações,
antes freqüentes, sofreram significativa redução.
Tornou-se flagrante a concepção de que, para
*Psicóloga graduada pela UFBA e ex-estagiária do PIC
**Terapeuta ocupacional graduada pela FBDC e ex-estagiária do PIC
192
ser cuidado, o paciente pode e deve permanecer
em sua comunidade, já que a reclusão em hospitais psiquiátricos só contribui para fragilizar os já
tão vulneráveis laços sociais desse sujeito. Outra
questão relevante refere-se aos desafios impostos
pela aproximação com a pobreza e todas as repercussões que ela pode gerar no psiquismo do
sujeito. Sem dúvida, os bancos das universidades
ainda não preparam seus alunos para lidarem
com as classes menos favorecidas e com as diferenças culturais que a convivência com esse tipo
de clientela faz aflorarem. O sujeito psicótico não
“fica ou está em crise”, mas é a expressão da crise do ideal, do ideal do homem contemporâneo,
racional, autônomo, dono de si. E tratá-lo requer
muito mais do que sua mera inclusão em serviços
de assistência ao portador de sofrimento psíquico.
É premente que, ao tempo em que são constituídos serviços substitutivos em saúde mental, sejam
construídas também novas formas de lidar com o
louco, que possibilitem seu cabimento no seio da
sociedade.
1- Introdução
O
presente trabalho trata de um caso desenvolvido durante o Programa de Intensificação
de Cuidados a Pacientes Psicóticos (PIC). Compreende a descrição da trajetória particular de
um indivíduo do sexo masculino (Emerson ) portador de transtorno mental, solteiro, 35 anos, com
longa carreira manicomial. Busca ainda abordar
os recursos terapêuticos disponíveis, bem como
o processo de aprendizagem ocorrido durante os
nove meses em que o paciente foi acompanhado.
2- Fundamentação Teórica
2.1 – Sobre o desenvolvimento do sujeito
A entrada do ser humano no mundo da cultura
se dá, sempre, por intermédio de um outro, um
outro que cuida dele. Toda produção de significação depende, num primeiro momento, de introduzir o outro como ponto de referência . Segundo
Winnicott (apud BARRETTO, 2000), o homem, no
início de seu desenvolvimento enquanto sujeito,
passa por um período de indiferenciação primitiva, de não-integração com o mundo externo,
quando, a partir da convivência e experiências
com a mãe, são constituídos núcleos de eu, marcas notadamente sensoriais, mas que guardam
traços de alguma humanização por intermédio
justo desse contato com um ser da cultura.
A constituição do sujeito enquanto tal dependerá, fundamentalmente, da capacidade de o
ambiente fornecer ao bebê uma experiência de
constância e continuidade, através da qual ele
poderá, gradativamente, ir integrando os diferentes núcleos de eu. Em outras palavras, a mãe
deve modular os períodos em que está ausente
de acordo com a capacidade de o recém-nascido
suportá-los.
Quando a personalidade adulta organiza-se a
partir da persistência de núcleos dessa fase inicial, tem-se o surgimento de uma personalidade
ambígua que inclui, ao mesmo tempo, traços de
simbiose e autismo (BLEGER, 1977). Nesse sentido, a postura autista caracteriza-se por um isolamento do mundo externo e predomínio relativo
ou absoluto da vida interior, refletindo uma conduta defensiva diante de situações persecutórias.
O vínculo, nesse caso, é, fundamentalmente, de
caráter narcísico, visto que prevalece uma relação
com objetos internos.
A conduta simbiótica, por sua vez, é marcada
por um vínculo de dependência intensa com um
objeto externo, ocorrendo uma projeção de parte
do ego do indivíduo nesse objeto. Há, em verdade, uma identificação projetiva entre o psicótico e
o objeto, cuja finalidade é manter um certo nível
de organização e satisfazer as necessidades do
âmbito mais primitivo da personalidade do sujeito
(BLEGER, 1977). Cabe salientar que tanto o autismo quanto a simbiose coexistem no modo de
funcionamento psicótico, havendo constante variação entre a ascendência de um sobre o outro.
193
2.2 – A questão do vínculo na psicose
Segundo Pichon-Rivière (2000) o vínculo pode
ser definido como uma relação particular com um
objeto, que pressupõe uma “conduta mais ou menos fixa com este objeto, formando um pattern,
uma pauta de conduta que tende a se repetir automaticamente, tanto na relação interna quanto
na relação externa com o objeto”.
Uma teorização útil para compreender melhor
as nuances de relação vincular concernentes ao
sujeito psicótico diz respeito à que trata do tripé
formado pelos conceitos de depositante, depositado e depositário, formulados por Pichon Rivière
(apud BLEGER, 1977). Essa tríade compõe-se de
um sujeito (depositante) que projeta determinado conteúdo (material depositado) sobre o outro
ou si mesmo (depositário), já que a introjeção do
mesmo pode originar desestabilização psíquica
(BLEGER, 1977).
Em se tratando do sujeito psicótico, pode-se
dizer que o vínculo é constituído de modo bastante frágil, levando o indivíduo a se relacionar
com o outro ora como se este fosse uma extensão
de si mesmo ora como se fosse uma ameaça na
iminência de invadi-lo.
Diante desse arranjo em que se sustenta o sujeito psicótico, o outro é tido como implacável:
exige, prescreve, condena sem discussão, tornando-se, dessa forma, o separado e o separante,
papéis que o próprio psicótico acaba por realizar
(CASTORIADIS, 1999). Isso, sem dúvida, contribui decisivamente para a visível dificuldade de
vinculação experimentada por esse indivíduo no
194
convívio social e afetivo.
2.3 – Vulnerabilidade social e gestão do sujeito
Do exposto, cabe ressaltar que a dificuldade
vincular do sujeito psicótico se expressa como desorganização psíquica, e, para enfrentar a vulnerabilidade social a que está exposto o portador de
transtorno mental, algumas formas de intervenção
se fazem necessárias, dentre as quais podemos
destacar a de continência e a de holding. Tais
funções foram desenvolvidas por Barretto (2000)
como sendo inerentes ao trabalho de acompanhamento terapêutico.
2.3.1. – Sobre a continência
O sujeito psicótico, por vivenciar, com freqüência, situações de transbordamento psíquico que
podem traduzir ultrapassagem de limites, necessita de um intermediário para suas experiências
afetivas e pulsionais. Transformar as experiências
de um sujeito por meio da imaginação – eis a
principal finalidade da função de continência.
A promoção de acolhimento, permitindo que
vivências notadamente marcadas pela sensorialidade possam ser passíveis de simbolização é, de
fato, o que melhor configura a continência. Analogicamente, segundo Barretto (2000), essa situação pode ser comparada à de um poeta, que
consegue expressar, por meio de palavras ou imagens, experiências e sentimentos que permeiam a
vivência humana, mas os quais, muitas vezes, não
somos capazes de explicitar.
Em meio a uma crise, a continência é o que se
impõe, a partir da alteridade representada pelo
técnico em saúde mental, como produtora de
uma sensação de contorno, limite, possibilitando
ao sujeito se sentir um pouco mais organizado e
integrado, ao inscrever suas vivências no universo
simbólico.
O lugar que o agenciador do caso passa a
ocupar em sua teia de significações, por intermédio do vínculo desenvolvido com o paciente,
contribui, portanto, para uma aproximação maior
entre o mundo interno do sujeito e sua realidade
circundante.
É disso que irá se falar no decorrer do presente
artigo, da importância do vínculo como elemento
mediador da relação entre acompanhante terapêutico e acompanhado e favorecedor da possibilidade de se fazer continência.
Foram momentos em que simplesmente estivemos
ali, situações em que percebemos que não havia o que fazer ou dizer, e o fato de estarmos ali,
nossa presença já era muito importante. O valor
dessa experiência estava não só na aproximação
de dois corpos, um corpo junto ao do paciente,
mas por ser um corpo atento, capaz de testemunhar e compartilhar as experiências do portador
de transtorno psíquico.
3 - Introdução ao Caso
Emerson tem 35 anos e uma história de recorrentes internações, iniciada aos 18, durante sua
entrada no Exército. Quando criança, morou com
os pais e os cinco irmãos, até que sua mãe veio
a falecer, ainda durante a infância do paciente, e
seu pai foi morar em outra cidade, deixando os
filhos aos cuidados da vizinhança.
Hoje o paciente mora com uma irmã, Joana
2.3.2 – Sobre o holding
em condições precárias, numa casa dada pelo
pai. Não há nem luz nem água no recinto, e amO holding caracteriza-se como uma função de bos têm como fonte de renda o recolhimento de
amparo, suporte, um estar-junto que possibilita papelão e material reciclável.
ao acompanhado uma experiência de constânNo andar superior da casa, mora outro irmão,
cia, continuidade, tanto física quanto psíquica.
Jonas . Casado, tem dois filhos e um relacionaDurante o acompanhamento de Emerson, essa mento bastante conturbado com Joana, demonsfunção precisava ser “acionada” na maior parte trando indiferença aos problemas por que passam
do tempo, uma vez que, freqüentemente, o pa- os irmãos do andar inferior. Esse fato evidencia
ciente mostrava-se psiquicamente desorganizado, que, na questão da exclusão social, em sujeitos
carecendo de um suporte que favorecesse uma psicóticos, não se trata apenas de pobreza, mas
sensação de acolhimento e segurança.
de desvinculação sócio-afetiva, uma vez que esEm muitos momentos do percurso com o pa- ses indivíduos possuem um arranjo psíquico que
ciente, essa função exerceu um papel marcante. restringe sua sociabilidade, suas possibilidades
195
de criarem vínculos sociais. Sem falar no difícil
manejo da desfiliação psicótica, no que tange à
questão de quem vai cuidar, quem vai se responsabilizar por esses sujeitos.
Joana é portadora de epilepsia, e um terceiro
irmão, Juvenal , que mora próximo à casa deles,
alcoolista. A relação dos três é bastante conflituosa, sobretudo a de Emerson com Joana, que é
com quem ele tem maior contato e proximidade.
Os dois estão sempre às turras, e a situação piora quando o paciente está na iminência de uma
crise. Nesses momentos, invariavelmente, ele é
encaminhado para internação por ela ou por Juvenal, o que acabou se tornando algo freqüente
em seu cotidiano.
Por conta de todas essas questões ilustrativas
da grave precariedade social a que Emerson estava exposto, em meados de 2004, ele foi selecionado para participar das atividades desenvolvidas
pelo Programa de Intensificação de Cuidados a
Pacientes Psicóticos. O acompanhamento do caso
durou cerca de cinco meses com uma dupla de
estagiários, até que os presentes estagiários assumissem o caso, dessa vez por aproximadamente
nove meses.
siva e hostil ora como se, de fato, necessitasse
de sua presença, expressando, assim, a coexistência de autismo e simbiose na relação vincular.
Ao mesmo tempo em que ele se mantinha distante, tentando impedir uma aproximação dos
responsáveis pelo caso, estabelecia outro tipo de
vínculo, em que fazia destes depositários de uma
intensa projeção, visando um vínculo simbiótico
que também lhe era necessário ou imprescindível
(BLEGER, 1977). Nesse sentido, vale salientar que
o papel de depositário exercido pelos estagiários
aponta para a possibilidade de que o sujeito integre suas vivências no tempo e, desse modo, resignifique-as.
Eram comuns as brigas e discussões entre
Emerson e Joana, assim como ameaças à integridade física dos estagiários, o que corroborava
sua dificuldade de vinculação aos mesmos. Além
disso, outro obstáculo à aproximação dos estagiários dizia respeito ao fato de Joana, quando
ia se ausentar de casa, manter sempre Emerson
trancado.
O paciente costumava escrever histórias com
temas dos mais diversificados possíveis: desde terror e Segunda Guerra, que também serviam de
fonte inspiradora para seus delírios, até temáticas
4- O processo de vinculação de Emerson ao bucólicas e infantis. As construções delirantes giraPrograma
vam em torno de sentimentos de perseguição, em
geral, relacionados a soldados e policiais que o
No início do acompanhamento, a maior parte ameaçavam, bem como aos estagiários, demonsdas visitas a Emerson era feita em hospitais psi- trando que, para o sujeito psicótico, “a lei surge
quiátricos onde ele estava internado. Nos raros sempre como persecutória” (LOBOSQUE, 2001).
momentos em que o paciente era encontrado em Está presente de forma atormentadora, mas numa
casa, tratava os estagiários ora de forma agres- posição constante de exterioridade, visto que, na
196
própria estruturação de tal arranjo psíquico, a lei
não é inscrita no registro simbólico, permanecendo como uma presença exterior.
Durante o período inicial de acompanhamento, os diálogos entre os estagiários e Emerson
eram travados com a porta da casa servindo de
intermediária, o que dificultava uma maior aproximação dele e do caso, de modo geral. Com o
passar do tempo, houve a percepção de que era
necessário estabelecer algum tipo de relação com
Joana, pois, do contrário, Emerson permaneceria
trancado em casa quando ela estivesse ausente.
Inicialmente, os contatos com Joana eram estabelecidos nas proximidades de onde morava.
Ela sempre tratava os estagiários de forma seca
e hostil, questionando o porquê de estarem ali e
se o trabalho que realizavam daria, de fato, algum resultado. À medida que o tempo foi passando, foi-se percebendo que era importante escutar mais Joana, compartilhar de seu sofrimento
e suas angústias, não mais centrando a atenção
apenas em seu irmão, mas dividindo-a com ela.
“Quando um membro de uma família enlouquece, isto perturba seriamente o grupo familiar; com
certeza, a família precisa de apoio e auxílio para
lidar com esta perturbação” (LOBOSQUE, 2001).
Aos poucos, Joana foi se tornando mais flexível
não só na relação com os estagiários como em
seu relacionamento com o irmão.
Cuidar de Joana acabou se tornando uma estratégia para cuidar do próprio Emerson, uma vez
que as precárias condições que afetavam-no também eram prejudiciais a ela, e isso não poderia ser
ignorado durante o acompanhamento do caso.
Desenvolver uma vinculação com Joana facilitou
o estabelecimento de um vínculo com Emerson
que, no período inicial do acompanhamento,
também tratava os estagiários de forma agressiva
e ameaçadora, questionando, a todo momento,
o papel que ali ocupavam. A insistência da presença dos Ats sustentava-se na idéia de que era
necessário entrar em contato com as angústias do
paciente, através de uma atitude empática, para
que fosse possível uma efetiva aproximação, tanto
física como afetivamente (BARRETTO, 2000).
Vale salientar que, mesmo tendo sido facilitado
o acesso aos dois, as dificuldades com o caso
persistiram, visto que a crença de que o internamento era a única solução para seus problemas já
estava enraizada na família. Sem falar que, para
Emerson, o hospital psiquiátrico constituía um refúgio. Lá, além da possibilidade de se alimentar e
higienizar, ele se sentia útil, auxiliando os profissionais do local em tarefas rotineiras como forrar
as camas e limpar os banheiros. Também é digno
de nota o escambo realizado por Emerson com os
demais internos, que era mais um elemento sustentador de sua presença naquela instituição.
Apesar de todas essas aparentes “vantagens”,
não se pode fechar os olhos para as condições
sub-humanas a que os pacientes psiquiátricos
estão submetidos nos manicômios, locais de violência, superlotação, abandono, desvalorização
do sujeito, que foram e continuam sendo alvo de
denúncias. No caso de Emerson, principalmente,
as freqüentes internações contribuíam não apenas para intensificar seu isolamento social, como
dificultavam seu posterior retorno à comunidade
197
e a criação de vias alternativas ao manicômio que passou-se a intensificar os cuidados com o padessem sentido a sua existência.
ciente, por meio de um incremento na freqüência
das visitas domiciliares, uma vez que, para inse5- A ampliação das redes de suporte social
ri-lo em tal serviço, seria preciso, primeiramente,
mantê-lo fora do hospital psiquiátrico.
No decorrer do acompanhamento, foi-se noO trabalho de convencimento para a plena
tando que a forma mais eficaz de quebrar o ciclo capacidade de Emerson ter uma vida digna fora
de internações vivenciado por Emerson seria ofe- do internamento foi sendo desenvolvido gradarecer a ele uma outra possibilidade de existência, tivamente, tanto com ele, como com Joana e o
longe dos hospitais psiquiátricos. Para tanto, co- entorno social em que viviam. O uso correto da
meçou-se a pensar em inseri-lo num CAPS. Esta medicação passou a ser incentivado, tendo em
idéia baseou-se na necessidade de que o pacien- vista que o paciente ou tomava os remédios de
te fosse acolhido em um espaço articulador de forma equivocada ou se desfazia deles na expecuma rede social de cuidados, que promovesse tativa de que fosse internado. Passou-se a orientar
sua integração comunitária e familiar, ao passo Joana quanto aos efeitos da ausência de medique estimulasse suas iniciativas em busca de au- cação, fazendo-a discriminar os comportamentos
tonomia.
que Emerson manifestava quando a usava correOs CAPS constituem uma tentativa de substi- tamente daqueles que emitia quando não a usatuição do modelo hospitalocêntrico, como com- va. Além disso, buscou-se trabalhar a relação dos
ponentes estratégicos de uma política destinada dois, uma vez que os desentendimentos entre eles
a diminuir a significativa lacuna assistencial que sempre haviam constituído motivos suficientes
ainda persiste no atendimento a pacientes com para Joana interná-lo.
transtornos mentais graves. As práticas realizadas
Numa ocasião, saímos com ele para convernessas instituições ocorrem em ambientes aber- sar com o dono de um estabelecimento no qual
tos e acolhedores, inseridos na cidade, no bairro. Emerson tinha demonstrado interesse em trabaSeus projetos, muitas vezes, ultrapassam a pró- lhar. Tratava-se de uma ocupação de carregador
pria estrutura física, em busca da rede de suporte de sacos de arroz numa cerealista. Nessa oporsocial, potencializadora de suas ações, preocu- tunidade, pôde-se, a partir da posição que suspando-se com o sujeito e sua singularidade, sua tentamos, dar validade ao desejo do paciente e
história, cultura e vida cotidiana (Ministério da amenizar o embaraço que a postura e expressão
Saúde, 2004).
de Emerson causava no responsável pelo estabeDiante da identificação de que inserir Emerson lecimento e até em nós mesmas.
nessa perspectiva de serviço substitutivo seria funNo decorrer do percurso, a idéia de encontrar
damental para ampliar sua rede de suporte social, um emprego para o paciente acabou não indo
198
avante, pois ele carecia de maior preparo para
encarar um projeto de tal magnitude. Nesse período, as crises de Emerson não cessaram, e as visitas domiciliares passaram a ser diárias. A seguir,
serão detalhadas situações específicas, ocorridas
dentro do espaço de tempo de cerca de uma semana, que ilustram momentos de crise do paciente e como se deu o manejo terapêutico do caso
nessa conjuntura.
Numa ocasião específica, quando os estagiários chegaram, o paciente estava bastante agitado e agressivo. Mandou que fossem embora e
saiu andando pela rua. Os estagiários, após um
breve momento de indecisão, resolveram seguí-lo,
chamando por seu nome. Quando, finalmente, o
paciente decidiu parar, pôde-se iniciar uma comunicação com ele. A disponibilidade e firmeza
demonstradas pelos estagiários fizeram com que,
aos poucos, Emerson fosse ficando mais calmo e
passasse a aceitar interagir com eles. Nesse episódio, ficou claro que um elo estava começando
a ser constituído entre o paciente e os estagiários,
ratificando o poder do vínculo social como elemento fundamental da continência psíquica.
No dia seguinte, os responsáveis pelo caso retornaram à casa de Emerson, cujo quadro não
havia se alterado. Após vários chamamentos, o
paciente saiu, abruptamente, de casa, com um
grande pedaço de madeira nas mãos. Avançou
contra um dos estagiários, empurrando-o e ameaçando-o e, em seguida, fez o mesmo com o outro, retornando para dentro de casa e fechando
a porta. Após se refazerem do susto, os estagiários resolveram esperar um pouco para tomar
uma decisão quanto à melhor estratégia a ser
adotada naquela situação, levando em conta a
grande possibilidade de o paciente ser internado
pela irmã ou mesmo por algum vizinho se fosse
encontrado naquele estado.
A primeira tática foi acionar o SAMU (Serviço
de Atendimento Móvel de Urgência) para que
Emerson pudesse ser levado a alguma emergência psiquiátrica e, então, medicado. Após mais
de três horas de espera, os estagiários resolveram
contatar a equipe do CAPS mais próximo, como
forma também de diluir a depositação vincular
maciça que o paciente estava realizando sobre
eles. Além disso, buscava-se contribuir para que
se formasse um elo inaugural com aquela instituição, ampliando as redes de suporte social de
Emerson. Dois funcionários do CAPS, um auxiliar
de serviços gerais e uma enfermeira, acompanharam os estagiários à casa do paciente, levando
medicação injetável. Depois de muita insistência
para que Emerson aceitasse tomar a medicação,
os estagiários acabaram sendo vencidos pelo
cansaço e decidiram, após mais uma “porta na
cara”, retornar no dia seguinte.
Nessa nova tentativa, os profissionais do CAPS
acompanharam os estagiários levando a medicação em forma de comprimido, pelo fato de se ter
concluído que, assim, seria mais provável que o
paciente aceitasse tomá-la. Depois de muita negociação, Emerson cedeu.
O CAPS ainda precisou ser acionado algumas
vezes antes que o paciente passasse a freqüentá-lo. Sua inserção naquele serviço foi dificultada
não apenas por ele se opor a essa nova forma de
199
investir ativamente na atenção ao paciente e ao
caso, de modo geral, ocasionou mudanças nas
formas de vinculação social de Emerson. As internações, antes freqüentes, sofreram significativa
redução, ao passo que sua relação com a irmã
melhorou sensivelmente no que tange aos cuidados que um passou a ter em relação ao outro e
ao companheirismo que surgiu entre eles.
Evidencia-se, assim, a importância da intensificação de cuidados como dispositivo essencial no
trato com o paciente psicótico, tendo em vista as
graves ressonâncias sociais que a loucura pode
gerar no seio da sociedade, comunidade, bairro,
núcleo familiar. É preciso, sem dúvida, apostar no
vínculo e, antes de qualquer coisa, trabalhar de
forma ativa para favorecer sua constituição e fortalecimento. No caso apresentado, tornou-se flagrante a concepção de que, para ser cuidado, o
paciente pode e deve permanecer imerso em sua
comunidade, uma vez que a reclusão em hospitais psiquiátricos só contribui para fragilizar os já
tão vulneráveis laços sociais desse sujeito.
Outra questão que ficou patente durante o
acompanhamento do caso diz respeito aos desafios impostos pela aproximação com a pobreza e
todas as repercussões que ela pode gerar no psiquismo do sujeito. De fato, os bancos das universidades ainda não nos preparam para lidar com
6- Considerações finais
as classes menos favorecidas e com as diferenças culturais que a convivência com esse tipo de
Durante o acompanhamento do caso, pôde- clientela faz aflorarem. Afinal, “onde é que se rese perceber que, apesar de o vínculo de Emerson aliza a vida social do pessoal de classe baixa ? É
com o CAPS não ter sido tão fortalecido quanto na rua. Onde é que se dão as trocas, onde é que
necessário para sua continência psíquica e social, as pessoas enriquecem os seus conhecimentos ? É
cuidado, mesmo antes de conhecê-la, como por
alguns entraves institucionais.
Era muito difícil fazer com que o paciente aceitasse ir ao CAPS, e, no dia em que se conseguiu
levá-lo até lá, não havia profissionais disponíveis
para fazer o acolhimento. Quando, finalmente,
Emerson foi entrevistado, outros obstáculos se sobrepuseram. A equipe da instituição não pôde se
reunir na semana prevista para discutir os casos
que seriam admitidos, e o paciente não pôde freqüentar o CAPS antes que isso fosse feito. Tal fato,
de certo, contribuiu para a posterior dificuldade
de vinculação de Emerson àquele estabelecimento.
Além disso, havia uma espécie de mal-estar
causado pela presença dos estagiários na instituição. Era como se houvesse uma disputa tácita
pelo controle do cuidado com o paciente, que,
com o passar do tempo e as tentativas de esclarecimento dos papéis que cabiam a cada uma das
partes, foi sendo amenizada.
Com a admissão de Emerson no CAPS, a atuação dos estagiários passou a ser pautada na
tentativa de tornar aquela instituição um espaço
de referência para ele. As visitas domiciliares continuaram, e o acompanhamento paralelo à Joana
também.
200
na rua. A possibilidade de refúgio no privado, no
particular da classe baixa, é muito menor, muito
pequena” (Cesarino, 1991).
Ao contrário do que se costuma dizer em algumas situações, o sujeito psicótico não “fica ou
está em crise”, mas é a expressão da crise do ideal, do ideal do homem contemporâneo, racional,
autônomo, dono de si. E tratar esse tipo de sujeito
requer muito mais do que sua mera inclusão em
serviços de assistência ao portador de sofrimento
psíquico, que, da forma como vêm se configurando, ao menos em algumas instituições do Estado
da Bahia, se constituem numa mera transferência
de lugar, do hospital psiquiátrico, em que o paciente sofria maus tratos e era obrigado a ficar
internado; para o serviço substitutivo, onde há liberdade de ir e vir, mas o portador de transtorno
mental continua excluído do convívio social preso
às tão propaladas oficinas terapêuticas. É premente que, ao tempo em que são constituídos serviços
substitutivos em saúde mental, sejam construídas
também novas formas de lidar com o louco, que
possibilitem seu cabimento no seio da sociedade,
sua real inserção social.
Vale salientar, ainda, a importância da articulação dos serviços de atendimento em saúde
mental como forma de ampliar as possibilidades
de cuidado e potencializar os vínculos que dão
sustentação ao sujeito na sociedade. A criação
de dispositivos coletivos de acolhimento e convivência que “grupalizem” não apenas os sujeitos
como seus familiares contribui significativamente
para a auto-regulação e autonomia desses indivíduos.
Por fim, compete valorizar a atenção domiciliar como dispositivo essencial no trato com a
loucura, principalmente quando se consideram as
grandes possibilidades de trocas sociais e afetivas que os profissionais de saúde mental podem
intermediar entre os pacientes e os membros da
comunidade.
Referências
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Alves, 1977.
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LOBOSQUE, A.M. Experiências da Loucura. Rio de Janeiro: Garamond, 2001.
PICHON – RIVIÉRE, E. Vínculo e teoria dos três D (depositante, depositário e depositado). Papel e Status. In: Teoria
do Vínculo. 6 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
201
Acompanhamento Terapêutico: Que relação é essa?
Maria Clara Guimarães*
Resumo: A Reforma Psiquiátrica possibilitou o
surgimento de novas clínicas que buscam atendimento alternativo aos manicômios. O Acompanhamento Terapêutico (AT) é uma prática que
coopera com essas diretrizes da reforma. Nesta
prática, exposições do profissional a afetações
que ultrapassam o enquadre terapêutico produzem algumas questões entre o acompanhante e
paciente, como “que relação é essa?”. A relação
se baseia no vínculo e coloca o profissional em
situações intimistas de mão dupla, adquirindo teor
afetivo e profissional, como uma espécie de amizade política.
D
e acordo com as diretrizes da Reforma Psiquiátrica em busca de um atendimento mais
humanizado os pacientes psiquiátricos, especialmente psicóticos, novas clínicas se fazem necessárias. Uma delas foi utilizada pela autora em sua
prática clínica – e serviu de base para a construção deste artigo – e engloba algumas técnicas
(acompanhamento terapêutico, visitas domiciliares, terapia ocupacional, formação de grupos,
etc.) com finalidade de oferecer um atendimento
integral, intensificando o cuidado e fornecendo
uma nova forma de atendimento que não seja a
manicomial.
Dentro das técnicas utilizadas neste tipo de
atendimento, destaca-se a prática do Acompanhamento Terapêutico (AT). Ela ocorre no espaço
extra-muros por meio de visitas domiciliares aos
pacientes, permitindo a entrada em contato com
seu meio particular, passeios com eles, intervenções nas relações familiares e atuação junto à comunidade.
*Estudante de Psicologia (UFBA) e ex-estagiária do PIC
202
No formato desta prática, as relações vinculares se estabelecem de forma particular, em que
profissional e paciente afetam-se mutuamente.
Diante disso, algumas dúvidas surgem: que tipo
de relação é essa que se estabelece com o paciente? Até que ponto essa relação não ultrapassa
a relação terapêutico-profissional? Ela não pode
se tornar uma relação de amizade? Não será um
misto de profissionalismo e amizade?
Questionamentos como esses atingem especialmente iniciantes. Não há regra que direcione
as ações de um acompanhante terapêutico. Ela
parte de sua sensibilidade e olhar terapêutico. Dúvidas como essas afetam a relação e o modo de
intervenção. Este artigo busca refletir e responder
como essa questão pode ser gerada e afetar a intervenção. No caso clínico que será apresentado,
a questão levantada tem um recorte que gira em
torno de uma relação profissional e de amizade.
Para conquistar essa confiança, o terapeuta
deve passar por esses testes e ter uma postura
“desapreensiva”, sendo capaz de aceitar qualquer
coisa que o paciente deposite nele “seja boa ou
má, materna ou paterna, feminina ou masculina,
etc.” (PICHON-RIVIERE, 1998, p. 110).
Em alguns momentos, o AT não consegue apresentar esta postura, afetando-se com as transferências que são trazidas pelo paciente, tais como:
as transferências maternas, de namoradas (os), de
amigos (as) etc. Como lidar com elas? Como torná-las terapêuticas?
São questões que permeiam os iniciantes de AT
e que abrem espaço para uma formação vincular
particularizada em cada caso de acordo com a
transferência e a postura assumida pelo AT.
Quanto à amizade: como se dá?
Em muitos casos de Acompanhamento TeraSobre relações vinculares:
pêutico, observa-se o estabelecimento de uma
como se estabelecem?
relação de “amizade”. Que amizade é essa? Será
uma relação de igualdade? Há trocas mútuas?
Dentro da relação AT e paciente, o mecanismo Terá um sentimento de “irmandade”? Como será
que viabiliza uma ação terapêutica é o vínculo. esta relação?
Uma vez constituído, o paciente torna-se aberto
O AT é um profissional com uma equipe de
a intervenções, bem como passa a confiar no te- apoio que possui um suporte teórico sustentador
rapeuta.
desta atividade e das propostas de intervenção.
O vínculo se estabelece com o tempo, após Há um objetivo nessa relação que direciona o
algumas provas de que o profissional é confiá- acompanhante. A relação oferecida pelo AT é
vel, de que não vai sumir da vida do paciente de assimétrica; é ele quem direciona as atividades
uma hora para outra, quando testes de seu amor apesar de acordar com o paciente as ações que
(interesse) por ele já foram realizados e compro- serão desenvolvidas.
vados.
Quanto às trocas, elas existem, mas não são o
203
foco da relação entre AT e paciente. Elas ocorrem,
independentemente, a partir das afetações ocorridas e das questões que paciente e acompanhante provocam entre si. De qualquer forma, não é
uma troca igualitária, afinal a disponibilidade do
AT para o paciente é o que existe; o contrário não
se espera.
Diante de aspectos da postura de um AT, não
parece estranho que os pacientes o tomem, minimamente, como um “amigo”, como aquela pessoa com quem podem contar, como um “irmão”
para toda hora.
No entanto não é apenas um sentimento fraterno que é gerado; a alteridade ocorre. É esperado
pelo AT que este sentimento seja despertado no
paciente independentemente do que ocorra na
relação. A alteridade é um mecanismo que se usa
na clínica como meio de intervenção e que não
pode ser controlado, ocorrendo espontaneamente. Afinal o acompanhante é uma pessoa diferente
do paciente; há uma estranheza que é causada
reciprocamente. Quando o vínculo é estabelecido, toda essa disparidade é aceita por ambos, os
abalos e a desestruturação causados pelo diferente são acolhidos.
Na relação entre AT e paciente, um misto de
sentimentos pode ser gerado. A própria postura
do profissional promove muitos sentimentos, questões e abalos. As reações que o acompanhante
assume diante de tais produções é o que configura a relação. Dentre essas produções, observa-se
uma maior freqüência na construção da “amizade”, seja ela permeada por sentimentos fraternos
seja pela alteridade em todos os envolvidos na
204
relação.
Resultados e discussões
Caso: uma relação terapêutico-profissional e
de amizade.
Alguns pacientes do PIC foram acompanhados
pela autora. Dentre eles, um caso foi escolhido
para ser discutido e refletido. Os demais também
são igualmente importantes, contudo não são tão
afins ao tema quanto este. É importante salientar
que um recorte será dado, deixando para outro
momento informações que também mereceriam
destaque. Portanto informações quanto ao vínculo e formação da amizade serão focadas e discutidas.
A dupla que atendia anteriormente este caso
já havia comunicado da mudança de terapeutas.
No dia marcado, meu colega e eu fomos apresentados a Carlos (nome fictício do paciente) e a
sua família. Foi afirmado que nós, a nova dupla,
iríamos atendê-lo a partir do próximo mês e que
nas semanas seguintes participaríamos das visitas
juntamente aos antigos terapeutas.
Conhecemos Carlos na casa de sua avó. Apesar de morar com a mãe, próximo dali, ele passa
muitas tardes com a avó. “Ela [mãe] sempre larga
ele aqui pra ir à igreja.”, nos conta a avó. “Ela
não deixa ele lá, porque ele sai e deixa a casa
sozinha e aberta ... É perigoso, né? Ladrão pode
entrar ...”.
Na casa da avó, moram um tio, duas tias com
os maridos e primos de Carlos. Ele também tem
um irmão e uma irmã que já são independentes
e moram próximos dali, cada um em sua casa.
Seu pai mora longe e tem outra família. A rede
de apoio de Carlos se resume à avó, à mãe e ao
pai, eventualmente, quando Carlos vai visitá-lo.
No entanto a avó é muito idosa, “queria poder
ajudar mais” conta ela, já a mãe vive ameaçando
internar Carlos, dizendo para ele e todos ouvirem
“Não agüento mais Carlos!! Qualquer dia desses, interno ele!”. A família o enxerga como um
peso que não querem ter.
Apesar de sua educação em nos receber, Carlos não interagia conosco. O diálogo era quase
inexistente, ele mostrava-se incomodado com a
nossa presença, demonstrando uma ansiedade
bem evidente. Não parava um segundo, andando
de um lado para o outro da sala. Às vezes, saía
sem falar nada, sumindo por minutos ou meia
hora, depois voltava com um cigarro na mão ou
pedindo um para alguém da família. Quando
não conseguia cigarro e ninguém dava dinheiro
para ele comprar, dava uns “tragos” no charuto
da avó.
O nível de ansiedade foi aumentando com o
passar das visitas, até que chegou num ponto em
que ele foi se tornando agressivo frente aos familiares e principalmente conosco. Um dia, Carlos
não quis nos receber, pedindo para que a mãe
não abrisse a porta para a gente e ameaçando
jogar água em nós. Conversamos com a mãe
dele ali mesmo, na porta, com a grade fechada.
Ouvimos suas queixas e intolerância com Carlos,
tentamos dar apoio a ela para que segurasse o
momento e não o internasse.
Na visita seguinte, a agressividade de Carlos
foi mais intensa e direta, recebendo-nos com um
cabo de vassoura na mão levantado para o alto e
gritando “aqui não entra ninguém não, só família
e amigo”. O clima ficou muito tenso, a família
intervindo para que nossa entrada fosse permitida, até que a avó, com autoridade, afirmou que
a casa era dela e permitiu nossa entrada. Mesmo contra sua vontade, Carlos respeitou a decisão. Não conseguimos nada além disso e fomos
embora em seguida. Após isso, soubemos que o
paciente havia sido internado no sanatório São
Paulo (próximo dali) devido a uma briga que tivera com a mãe no fim de semana.
Durante o período em que ficou internado,
Carlos construiu o vínculo conosco. Este vínculo
ocorreu quando nos mostramos abertos a ele e
dispostos a ajudá-lo no que ele precisava; momento em que a família, inclusive a mãe dele,
desapareceu. “Aí então vi que vocês eram meus
amigos”, afirma Carlos. Foi o momento que o
apoiamos e, em seguida, cobramos esse papel
da família. Depois disso, ele gravou nossos nomes e não mais esqueceu. Nossas figuras físicas
passaram a ser semelhantes com outras que ele
conhecia. Ele passou a ter atenção quando falávamos, interagindo conosco numa postura mais
afetiva do que meramente formal.
Carlos passou a confiar em nós, contando tudo
o que ele pensava: os delírios, as idéias de produção artísticas (músicas e poesias) e de engenharia
(o design de skate, de biquíni, etc.) de objetos que
passou a desenvolver e construir, entre outros assuntos.
Na relação dele com a mãe, Carlos adotou
205
uma postura mais crítica, menos dependente,
questionando-a com relação ao dinheiro que ela
recebe para sustentá-lo (recebe pensão do pai
e do governo). Ele passou a exigir da mãe que
atendesse alguns desejos de consumo seus, como
tênis e skate que queria. A criatividade dele imperava, e a crítica às relações interpessoais (principalmente familiares) também. Considero que sua
vida se tornou mais saudável e independente.
Considerações Finais
Observa-se que, no AT, a relação entre profissional e paciente é construída a partir dos sentimentos e abalos produzidos por ambos. O vínculo
é uma conquista do acompanhante que luta por
essa posição de depositário fiel de seu paciente,
passando por todos os testes, inclusive os mais
agressivos, desde esperar um balde d’água na
cabeça até uma cadeirada ou paulada caso entre
na casa sem ser convidado, justamente por não
ser da família nem amigo.
Tem-se de provar que essa posição de confiança será sustentada independente das intempéries
da vida, principalmente as provocadas pelo próprio paciente. A partir do momento em que o AT
conquista isso, a transferência afetiva do paciente
é inevitável, tornando-se amigo dele, como exemplificado no caso, alguém com quem Carlos passou a esperar por considerar como um “irmão”,
contando para o que precisar.
Apesar da psicose, o paciente teve ciência das
diferenças entre nós. Inicialmente, estranhamonos em muitos aspectos e nos abalamos; poste206
riormente, houve uma aceitação dessas diferenças. Aliado a isso, um sentimento de amizade se
desenvolveu, afetando não somente a Carlos,
mas a nós também. Nossos sentimentos para com
ele não foram num grau que poderia considerar
amizade fraterna, mas uma afetividade de cuidado desigual, como aquele que é responsável pela
relação e bem estar do outro (em certa medida).
A relação construída tinha um intuito terapêutico, uma finalidade de promover qualidade de vida
a Carlos. Após a construção do vínculo, nossas
intervenções passaram a surtir maior efeito, o paciente tornou-se mais crítico e independente. Isso
se deve não somente à amizade que se desenvolveu, mas também à alteridade que foi produzida
nele pela nossa presença, nossas diferenças.
Passado esse momento de estabelecimento do
vínculo e de configuração do formato do relacionamento, o profissional pode ficar confuso de que
relação é essa. Afinal, ela torna-se extremamente
intimista. Não se deve nunca esquecer do próprio papel, a fim de promover um avanço na vida
do paciente, mantendo-se numa postura profissional. No entanto não há como não se afetar
com o paciente e sentir-se mais próximo, como
um “cúmplice” dele.
Questionei-me se não era outro tipo de relação que havia construído com Carlos, se era algo
além de profissionalismo, se éramos alguma espécie de amigos, como uma amizade política que
prevê assimetria e desigualdade, baseando-se
na alteridade. Contudo observo que a alteridade
produzida tinha um fim, e era previsto que ocorresse dentro dessa nova clínica, como também a
amizade, o carinho e cuidado que tenho por Car- em psicologia da UFRGS, orientadora Dra. Rosane Azevedo
los fazem parte da construção vincular que se dá Neves da Silva, Porto Alegre, 2005, 144 p.
numa mão dupla. A relação é profissional sim,
mas também tem uma afetividade que ultrapassa os limites de um consultório, tendo um viés de
amizade, de cuidado, como uma relação profissional e de amizade política (afetiva e desigual).
Referências
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PICHON-RIVÈRE, E. Teoria do vínculo. Martins Fontes,
6a ed., São Paulo, 1998.
TAVARES DA SILVA, A. S. A emergência do acompanhamento terapêutico: o processo de constituição de uma clínica. Dissertação de mestrado, área de concentração: Psicologia Social e Institucional, Programa de Pós-Graduação
207
Derrubando Muros, Construindo Vínculos:
Intensificação de Cuidados no HCT/BA
Carolina Brandão Vieira Lima*
Larisa Andrade e Castro**
Tatiana Lacerda Medeiros***
Resumo: Este artigo visa promover um diálogo
entre as diretrizes da Reforma Psiquiátrica e o sistema prisional brasileiro. Em decorrência das experiências, ao longo do trabalho de intensificação
de cuidados a um paciente que se encontra no
Hospital de Custódia e Tratamento/BA, pudemos
constatar a incompatibilidade entre os princípios
propostos pela Lei 10.216, que vem assegurar os
direitos dos portadores de transtorno mental, e o
atual modelo de assistência regido pelos saberes
psiquiátricos e jurídicos nesta instituição. Serão
abordadas algumas conceituações da literatura
jurídica criminal que, ao longo do nosso percurso,
tornaram-se necessárias à compreensão e conseqüente intervenção nesse caso. Além de discutilas, pretendemos apresentar a idéia de como estas
colaboram para a manutenção do aparelhamento
institucional que aprisiona os portadores de sofrimento mental, privando-os dos direitos de cidadania e convívio social. Ao acompanhar este pa-
ciente, pudemos testemunhar a suposta forma de
tratamento oferecida pela referida instituição que
atua tendo em vista os princípios de alienação e
exclusão dos portadores de sofrimento mental em
conflito com a lei. Por fim, discutiremos a importância da intensificação de cuidados em relação
aos pacientes em conflito com a lei, como propulsora de novas possibilidades referentes a uma assistência que priorize a cidadania e subjetividade,
apontando para a impossibilidade de conciliar os
princípios da Reforma Psiquiátrica e a permanência dos loucos atrás dos muros. Esta proposta de
cuidado intensivo aos loucos infratores aposta na
substituição das barreiras (dos muros) pelo vínculo, sendo este último aqui compreendido como
uma ferramenta de trabalho que permite uma intervenção no cotidiano do sujeito, considerando
suas necessidades, sua história e a cultura na qual
está inserido.
Uma Breve Apresentação
*Psicóloga graduada pela UFBA e ex-estagiária do PIC
**Psicóloga graduada pela UFBA e ex-estagiária do PIC
***Estudante do curso de Psicologia (UFBA) e estagiária do PIC
208
O
objetivo deste artigo é promover um diálogo entre as diretrizes da Reforma Psiqui-
átrica e o sistema prisional brasileiro que aprisiona os portadores de sofrimento/transtorno mental
em conflito com a lei. Em decorrência das nossas
experiências, ao longo do trabalho de intensificação de cuidados a um paciente que se encontra
“em tratamento” no Hospital de Custódia e Tratamento, localizado na cidade de Salvador - BA,
pudemos constatar a incompatibilidade entre os
princípios propostos pela Lei 10.216, que vem assegurar os direitos dos portadores de transtorno
mental, e o atual modelo de assistência regido
pelos saberes psiquiátricos e jurídicos.
Pretendemos abordar algumas conceituações
da literatura jurídica criminal que, ao longo do
nosso percurso, se tornaram necessárias à compreensão e conseqüente intervenção no caso. Os
conceitos que serão desenvolvidos posteriormente
- medida de segurança, periculosidade, imputabilidade e inimputabilidade - colaboram para a
manutenção do aparelhamento institucional que
confina e segrega grande número de portadores
de sofrimento mental infratores, privando-os dos
direitos de cidadania e convívio social.
Torna-se relevante trazer a nossa experiência
enquanto cuidadoras de um sujeito que, desde a
sua entrada no HCT, vivencia situações cotidianas
de opressão impostas pela normatização inerente
a este sistema manicomial. Assim, pudemos testemunhar a suposta forma de tratamento oferecida
pela instituição que, mesmo tendo o seu nome reformulado de Manicômio Judiciário para Hospital
de Custódia e Tratamento, segue atuando a partir
dos mesmos princípios: alienação e exclusão dos
sujeitos.
Por fim, discutiremos a importância da intensificação de cuidados em relação a estes sujeitos,
como propulsora de novas possibilidades referentes a uma assistência que priorize a cidadania e
a subjetividade; subjetividade compreendida aqui
enquanto um conceito que abarca a ordem dos
afetos, ou seja, o afetar e ser afetado. Assim, poderemos concluir, diante do exposto, a impossibilidade de conciliação entre tais perspectivas e a
permanência dos loucos atrás dos muros.
Quem está atrás dos muros...
O paciente aqui referido vem sendo acompanhado desde 2004 pelo Programa de Intensificação de Cuidados para psicóticos (PIC) enquanto
ainda estava em liberdade, morando com a sua
avó materna. N. ingressou no PIC por ter sido
internado três vezes em hospitais psiquiátricos e
necessitar de cuidados intensivos. A família relata que, ainda quando trabalhava, N. apresentou
comportamentos que provocaram a interrupção
de suas atividades. Com a permanência desta
condição, a mãe deu entrada na aposentadoria
por invalidez junto ao INSS, buscando a curatela
para o filho.
Desde o início do acompanhamento, o PIC tinha conhecimento de que N., antes da mudança
de bairro, tinha sido surpreendido por policiais
que o levaram a um módulo policial e posteriormente para uma delegacia onde fora acusado de
ter cometido um crime pelo qual responde até o
presente momento. Durante o período que antecedeu a sentença, a justiça solicitou um laudo psi209
quiátrico, realizado no manicômio judiciário, no
qual o paciente não foi considerado um portador
de sofrimento mental, o que acarretou no seu julgamento como imputável – responsável pelos seus
atos no momento do delito – sendo assim condenado a uma pena privativa de liberdade. Após
o habeas-corpus, solicitado por uma advogada
contratada pela família, N. foi solto e mudou-se
para outro bairro. No entanto, segundo a família
e o próprio sujeito, a advogada não acompanhou
devidamente o caso, tendo ocorrido o julgamento
à revelia.
N. só teve conhecimento da sua sentença
quando foi abordado no mesmo dia em que havia ido ao Fórum para ser avaliado a respeito da
sua curatela. Nesta ocasião, foi levado à Polinter
e tratado como um fugitivo da justiça, mesmo sob
as contestações da mãe que afirmava ter informado a mudança de endereço. Após um período,
foi conduzido à Penitenciária Lemos Brito, onde
permaneceu por seis meses, sendo acompanhado
ainda de forma mais intensiva pelas estagiárias. Ao
longo desses meses, observou-se o agravamento
do quadro psiquiátrico do paciente, necessitando
uma intervenção ativa das estagiárias, família e
alguns funcionários da penitenciária mobilizados
com a situação. Estava evidente que aquele local
não era o mais adequado para um portador de
sofrimento mental cumprir sua pena, já que, nos
seus últimos dias neste local, o paciente, que estava desorganizado, foi colocado em uma “solitária” com a justificativa institucional de proteger
N. e os outros detentos. Procurou-se uma transferência imediata para o HCT, local considerado
210
“mais adequado”, nas atuais condições e dentro
das possibilidades de assistência a estes sujeitos
na cidade de Salvador, para acolher o paciente.
Desde agosto de 2005, ele está na referida
instituição, sendo possível observar melhoras no
seu quadro clínico, em comparação ao tempo
que permaneceu na penitenciária, ainda que tenha passado por um período de desorganização
psíquica quando completou um ano de internamento no HCT.
Atualmente, o paciente encontra-se “organizado” psiquicamente e recebe visitas constantes das
estagiárias e de sua mãe. O PIC tem trabalhado
no sentido de possibilitar um acompanhamento
deste paciente em liberdade, a partir do questionamento dos modelos de tratamento atuais para
os pacientes com sofrimento mental em conflito
com a lei. Recentemente, foi elaborado um novo
laudo psiquiátrico pelo diretor do Manicômio Judiciário, atestando que N. é um portador de transtorno mental que já deveria estar sendo assistido
em liberdade. O juiz da Vara de Execuções Penais
está com o processo em mãos e afirmou para as
estagiárias que a pena de N. será, então, convertida para Medida de Segurança.
Reforma Psiquiátrica e Medida de Segurança:
é possível conciliar?
Após tramitar durante 12 anos no Congresso
Nacional, no ano de 2001 a Lei Paulo Delgado
(Lei Federal 10.216) é sancionada no Brasil. Esta
lei se caracteriza pelo redirecionamento da assistência em saúde mental, propondo a construção
de uma rede de atenção substitutiva ao modelo
hospitalocêntrico – reforçador da internação em
leitos psiquiátricos.
Com a promulgação da referida lei, um novo
ritmo se impôs para o processo de Reforma Psiquiátrica no Brasil, efetivando – a curtos passos
– a desinstitucionalização, que vem sendo colocada em prática pelo desmonte do antigo aparato
institucional e pelo engendramento de um novo
modelo de assistência de caráter extra-hospitalar e comunitário. A partir de então, lugares de
grande tradição hospitalar vêm experimentando a
expansão significativa da rede de atenção diária
à saúde mental. No entanto, é possível constatar
um abismo entre aquilo que foi proposto e o que
foi, de fato, efetivado a partir dos pressupostos da
Lei 10.216.
No que se refere às instituições prisionais responsáveis pelo recolhimento dos loucos infratores
– rotuladas de Hospitais de Custódia e Tratamento – ainda é muito pouco o que se observa em relação ao princípio antimanicomial, disposto no §
1º do art. 4º (Lei 10.216), em concordância com
o direito assegurado ao portador de transtorno
mental no inciso II do Parágrafo Único do art. 2º,
que garante o tratamento visando, com finalidade
permanente, a reinserção social do sujeito, com a
garantia de recuperação junto ao convívio familiar, o trabalho e a livre circulação na comunidade. Diante de tal perspectiva, a internação só se
torna admissível, em consonância com o art. 4º,
na medida em que os recursos extra-hospitalares
se mostrarem insuficientes para prestação de assistência integral à pessoa portadora de sofrimen-
to mental. Sendo assim, caso a internação, em
quaisquer de suas modalidades, se coloque como
um recurso necessário em uma situação específica, não se deve perder de vista que esta deve
ser encarada como uma medida excepcional,
temporária e de curta duração, no intuito de garantir a continuidade do tratamento, tendo como
perspectiva não o isolamento, mas a permanente
inserção social do portador de sofrimento mental
(NETTO & MATTOS, 2004).
Entretanto uma outra realidade se faz presente
nos Hospitais de Custódia e Tratamento, onde se
encontram muitos ‘moradores’, com longo período de permanência, extrapolando o tempo de
cumprimento da pena. Na realidade, o louco infrator corre um grande risco de, ao ser considerado inimputável e conduzido ao Manicômio Judiciário para realizar “tratamento”, cumprir pena em
caráter perpétuo – inconstitucional – e viver em
um regime de internação que, além de compulsório, é, muitas vezes, sem fim. Entendemos que
esta situação perversa tem sido explicada tanto
pela ausência de alguém que os acolha fora da
instituição (discurso largamente utilizado pela Defensoria Pública), mas também através de entraves impostos pelo caráter subjetivo do conceito de
periculosidade.
A periculosidade é compreendida no âmbito
da justiça penal como o equivalente da culpabilidade em relação às penas privativas de liberdade. Enquanto a culpabilidade recai sobre aquele
que agiu por vontade própria, com capacidade e
consciência plena para reconhecer a ilicitude de
seu delito, a periculosidade compreende a pró211
pria natureza do agente, quando este não apresenta a referida capacidade ou não consegue se
desvencilhar da natureza que o conduz ao ato
delituoso.
Dessa forma, apenas através da perícia psiquiátrica é possível determinar se o sujeito, plena ou
parcialmente, possui ou não capacidade de compreender a ilicitude de seu ato ou de praticá-lo
por sua livre vontade, ou seja, se ele é considerado inimputável ou não.
Portanto, a imputabilidade do sujeito pode ser
explicada através da compreensão do agente em
perceber o caráter ilícito do ato praticado, sendo
considerado responsável pelo crime cometido e,
só assim, submetido a uma pena. Já a inimputabilidade é determinada quando o agente é interpretado como incapaz de entendimento e de autodeterminação, no ato da prática delituosa, por
conta de doença mental, desenvolvimento mental
incompleto ou retardado, sendo considerado perigoso e irresponsável, e assim submetido a uma
medida de tratamento, ou seja, a Medida de Segurança.
Esta última pode ser compreendida como recurso judicial em que o sujeito considerado inimputável fica detido ou recluso em instituições que
funcionam sob forma de regime fechado, por oferecer perigo a si mesmo e a outrem. Neste sentido, a medida de segurança, segundo Jacobina
(2003), pode ser pensada como:
Um instituto que pune a loucura, sob o fundamento, nem sempre explícito, de a desmascarar,
arrancar do ser humano essa doença. E que, de
resto, acaba restringindo a liberdade do portador
212
da doença, por via de um internamento que, se
no discurso é não punitivo, na prática lhe arranca
a liberdade e a voz. (...) Neste sentido, a medida
de segurança, mais do que uma defesa social,
seria uma paradoxal defesa da pessoa portadora
de doença mental contra a sua própria loucura.
(p. 21 e 22).
Torna-se claro, então, que estes princípios (periculosidade, medida de segurança, imputabilidade e inimputabilidade) são manejados de forma
a corroborar e legitimar a exclusão social da loucura, tanto por meio do discurso médico, como
através do aparato jurídico. A Psiquiatria se interessou em trazer para si a responsabilidade pelos
loucos, cerceando, assim, a liberdade dos que
ela considera perigosos para a sociedade – afirmando ser capaz de reconhecê-los. Esta instituição emprestou seu modelo de tratamento como
mecanismo de punição ao direito penal, uma vez
que os portadores de sofrimento mental não devem permanecer no manicômio judiciário tempo
suficiente para serem “curados”, mas sim aquele
que a justiça e a psiquiatria impõem com base na
sua periculosidade.
A definição do destino deste louco em conflito com a lei se dá através de parâmetros muito questionáveis, já que avalia de forma objetiva
ao desconsiderar a amplitude e a subjetividade
relacionadas ao conceito de periculosidade. Afinal, é admissível definir quem oferece perigo ou
não? Para a Psiquiatria é possível: basta avaliar a
condição de sanidade mental, baseando-se nos
seguintes quesitos encontrados nos laudos anexados aos processos:
O sujeito, ao tempo da ação, era portador de
doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado? No momento do delito
era capaz de discernir inteira ou parcialmente o
caráter ilícito do fato? Sendo capaz, poderia se
determinar de acordo com esse entendimento?
Respondendo à pergunta que introduziu esta
seção, podemos afirmar que a Medida de Segurança e as diretrizes da Reforma Psiquiátrica não
podem caminhar de mãos dadas, na medida em
que a primeira deslegitima a noção de cuidado,
inserção social, individualidade, livre-arbítrio,
etc., ou seja, os fundamentos norteadores da luta
daqueles que vêm construindo uma nova forma
de atenção e cuidado aos sujeitos com sofrimento
mental.
Em tempos de movimento antimanicomial, só
um louco defenderia a internação compulsória
como terapia bastante e suficiente para a reintegração do inimputável. Não há como ocultar,
portanto, que essa medida não se dá em benefício do portador de transtornos mentais, mas que
se dá tão-somente em benefício da sociedade que
se considera agredida e ameaçada pelo inimputável que cometeu um fato descrito pela lei como
típico. (JACOBINA, 2003, p.91).
nimo – priva o louco infrator de sua liberdade,
afastando-o do convívio social.
Sentimo-nos aprisionadas, no que se refere
às possibilidades de proporcionar a este sujeito
um contato diferenciado com o outro e com o
mundo, já que através da intensificação de cuidados, possibilitada pelo estabelecimento do vínculo ocasionado pelos “alicerces de uma presença,
alicerces de singularidades jamais generalizáveis”
(ZYGOURIS, 2002, p.11), é possível viabilizar,
além de uma ressignificação subjetiva, a ampliação da rede social junto com o sujeito.
Os muros nos contêm, restringindo a nossa atuação enquanto acompanhantes de uma pessoa
que está privada do direito de ir e vir, logo, este
trabalho torna-se submetido às poucas possibilidades oferecidas pelo manicômio. Sendo assim,
o nosso ponto de partida – presença enquanto
alteridade – é o que prevalece como recurso tanto no que se refere ao sujeito objeto de cuidado
quanto aos profissionais que fazem parte desta
instituição, no caso aqui tratado, o HCT.
Este sujeito supracitado passa a viver apenas
à mercê do cotidiano normatizador desta instituição, tendo inclusive seu ritmo biológico alterado
para se enquadrar na rotina imposta. Os horários
estabelecidos são seguidos de forma rígida por
As experiências do cuidar entre os muros
todos, submetendo esses indivíduos a uma padronização que os aliena enquanto sujeitos constranAo nos dispormos a intensificar os cuidados gidos na sua organização singular da experiência
a um portador de sofrimento mental em conflito social. Tomamos como exemplo o horário fixado
com a lei, nos deparamos com as peculiaridades para o jantar: todos os pacientes são chamados
dessa atenção, que se torna limitada por estar para o refeitório às 16 horas, já que às 17 horas
sendo realizada em uma instituição que – no mí- eles são recolhidos para as suas respectivas alas,
213
onde são trancafiados e de onde só podem sair
no dia seguinte.
Há também, no que diz respeito ao uso da medicação, uma prescrição quase inquestionável,
pois, na relação com os profissionais de saúde, a
palavra do sujeito não é levada em consideração
(ou a ausência de palavras dos que estão dopados). No caso dos internos do HCT, a medicação
receitada permanece inalterada por um longo período de tempo, o que é questionável por se tratar de uma instituição com fins terapêuticos. Vale
considerar que vivenciamos uma situação na qual
o indivíduo apresentava desconforto em relação
ao uso da medicação injetável, o que só foi reavaliado pelas equipes de enfermagem e médica
após dez meses.
Outra situação que negligencia a condição de
sujeito é a forma de tratamento por parte de alguns agentes penitenciários que destratam e muitas vezes humilham os internos, como tem sido
presenciado por nós nas visitas. Entendemos que
existem diversos fatores associados a esta falta
de cuidado como: as vivências subjetivas destes
profissionais que estão imersos numa sociedade
que julga e desumaniza o louco e, mais ainda, o
“louco criminoso”, o despreparo no que diz respeito à formação para exercer uma atividade que
pressupõe uma delicadeza na relação com o outro e a desvalorização profissional, na medida em
que estes não são reconhecidos socialmente pelo
trabalho que realizam. No entanto, apesar desta
situação ser facilmente observada no HCT, pouco
ou nada tem sido feito para transformar este modelo de atenção.
214
No meio deste “caos”, a família surgiria como
um sustentáculo para estas pessoas, ora permitindo a relação destas com a realidade extra-muro,
ora atualizando a sua condição de sujeito social.
Isto pode ser observado claramente no caso que
acompanhamos, onde a presença da família, principalmente da figura materna, é essencial para
que este indivíduo possa suportar a exposição a
tais mecanismos que conduzem a sua anulação
enquanto sujeito. Em um lugar onde manter-se organizado psiquicamente é um desafio permanente, a família exerce um papel primordial, porém
no caso do HCT prevalece muito mais a ausência
do que a presença da mesma.
É preciso ousar...
Diante da nossa experiência e do contato com
novos olhares sobre o louco infrator, entendemos
que é necessário devolver-lhe a voz, combater a
exclusão e conseqüentemente resgatar sua autonomia e dignidade - direito inalienável de todo
cidadão.
Contudo, ao expormos a realidade do HCT,
constatamos que é preciso ousar: rompendo com
a lógica segregadora e violenta do manicômio
que invoca com seus muros a ruptura dos laços
de convivência social. Um modelo que cria uma
instituição para abrigar, em sua maioria, pessoas submetidas à medida de segurança: “(...) um
tratamento cuja alta não se dá em razão pura e
simples da recuperação do paciente, mas pela
sua submissão à ‘perícia da cessação de periculosidade’(...)” (JACOBINA, 2003, p.90), precisa
ser urgentemente reformulado, tendo como norteadores os princípios propostos pela Reforma
Psiquiátrica.
Tendo em vista que o isolamento social perdeu
a sua legitimidade legal como uma possível forma
de tratamento destes sujeitos, torna-se imprescindível que os profissionais envolvidos com os portadores de sofrimento mental em conflito com a
lei estejam dispostos a transformar as práticas até
então vigentes, em conformidade com um novo
modelo de atenção e cuidado, tendo em vista que
cada sujeito é capaz de construir um projeto de
vida com cabimento na sociedade.
A partir da experiência proporcionada pela
participação no Programa de Intensificação de
Cuidados, onde acompanhamos um paciente que
se encontra no HCT, acreditamos que é possível
vislumbrar novos fazeres que partam das necessidades concretas dos sujeitos sociais.
Com o fim dos muros, o cuidado intensivo a
estes pacientes torna-se uma alternativa interessante, por apostar na substituição das barreiras,
que se sustentam por conferir proteção à sociedade, pelo vínculo, aqui entendido como uma
ferramenta de trabalho que permite uma intervenção no cotidiano do sujeito considerando suas
necessidades, sua história e a cultura na qual está
inserido.
Referências
JACOBINA, P. V. Saúde Mental e Direito: um diálogo
entre a reforma psiquiátrica e o sistema penal. 2003. 99 f.
Monografia (Especialização em Direito Sanitário) - Faculdade de Direito, Universidade de Brasília, Brasília, 2003.
MENEZES, A. L. É possível conciliar as diretrizes da reforma psiquiátrica ao cumprimento das medidas de segurança? 2006. 109 f. Monografia (Graduação em Direito)
- Faculdade de Direito, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2006.
ZYGOURIS, R. O vínculo inédito. São Paulo: Escuta,
2002, 80 p.
215
Psicose Negra: A Imagem de si e a Recusa do Corpo
Gisele Vieira Dourado Oliveira Lopes*
Mônica Machado de Matos**
Resumo: A relação do sujeito com seu próprio
corpo inicia-se e sofre influência do outro que o
toca e com quem se relaciona. É a partir do olhar
do outro que o sujeito se percebe, relaciona-se
consigo mesmo e com os outros. Na psicose,
existe a impossibilidade de apropriar-se do corpo
com suas marcas singulares, de percebê-lo como
formando certa unificação. Um aspecto que a clínica das psicoses evidencia é a freqüente relação
de estranhamento que os psicóticos mantêm com
seu corpo. Pacientes psicóticos muitas vezes vêem
o corpo de forma fragmentada, o que é revelado
inclusive por vontade de modificações físicas, uma
vez que, na sua percepção, seria possível modificar a cor a partir de mudanças em partes do corpo. Durante o acompanhamento de uma paciente
no Programa de Intensificações de Cuidados a
Pacientes Psicóticos, pôde-se observar que esta
paciente psicótica expressava grande sofrimento
psíquico e angústia advindos do fato de ser negra,
assim como revolta contra aquele ou aqueles que
lhe impunham uma posição inferior devido à cor.
*Estudante de Psicologia (UFBA) e ex-estagiária do PIC
*Estudante de Psicologia (UFBA) e ex-estagiária do PIC
216
A questão racial surgiu como foco de trabalho e
projeto terapêutico apenas nos últimos meses do
acompanhamento, possivelmente, por dificuldades
e resistências pessoais terem ocasionado a aceitação tardia do tema como foco do acompanhamento. Tais dificuldades estão relacionadas com a
questão da suposta neutralidade do branco. Para
os indivíduos considerados brancos na sociedade
brasileira, a cor nunca é algo a ser questionado e
não se constitui como fonte de discriminação; portanto, não é um empecilho para se relacionar.
“Vem você dizer que eu sou preta,
que eu sou a macaca da sala”.
“Eu pareço urubu é?...”.
“Eu não sou negra, quem é negra é
aquela prostituta que se vendeu”.
A
relação do sujeito com seu próprio corpo inicia-se e sofre influência do outro que o toca
e com quem se relaciona. É a partir do olhar do
outro que o sujeito se percebe, relaciona-se consigo mesmo e com os outros.
O corpo humano se constitui a partir de um
processo de simbolização, da inscrição de marcas
deixadas por uma história, pela constante interação com o Outro, por recortes do desejo. Na psicose, existe a impossibilidade de apropriar-se do
corpo com suas marcas singulares, de percebê-lo
como formando uma certa unificação (Goidanich, 2003).
De acordo com Goidanich (2003), um aspecto
que a clínica das psicoses evidencia é a freqüente
relação de estranhamento que os psicóticos mantêm com seu corpo. Relacionam-se com ele como
se fosse um outro, um objeto estranho.
No período de crise, os sujeitos psicóticos são
quase esmagados pela enxurrada de estímulos
que os aflige e sobre a qual não mantém controle
- escutam vozes, vêem imagens, sentem empurrões, beliscões e puxões que os dominam totalmente. Evidencia-se que não há nenhum tipo de
barreira ou censura, nenhum amortecimento para
a torrente de sensações produzidas e percebidas
pelo sujeito. A alteridade o esmaga, o domina e
aniquila a possibilidade de existir enquanto um
sujeito que impõe algum tipo de corte separador
(Goidanich, 2003).
As frases citadas no início deste trabalho são
de M. – uma mulher negra, de 25 anos, classe
média, estudante de administração hoteleira. Na
presença de estagiárias do Programa de Intensificação de Cuidados, durante um surto psicótico,
M. expressa seu sofrimento psíquico e sua angústia advindos do fato de ser negra, mas também
sua revolta contra aquele (ou aqueles) que lhe
impõem uma posição inferior devido a sua cor.
Segundo Andrade e Silva (2006), o desenvolvi-
mento do sujeito negro, de sua subjetividade e de
sua identidade, é marcado por vivências sistemáticas de discriminação e ofensa em relação a suas
características étnicas. Essa experiência, por sua
vez, gera uma série de questões identificatórias,
a partir das quais o sujeito não pode reconhecer
a si próprio de forma serena e não conflituosa, o
que permite produzir tanto o sofrimento quanto
constrangimento da sua expressão subjetiva.
O primeiro surto de M. ocorreu no último ano
da escola. Fora desencadeado após uma apresentação de trabalho, na qual ela teria que representar o papel principal numa dança sobre o
Ilê-Ayê, por ser negra. Entretanto, ela foi substituída por uma colega branca que, segundo M., era
“mais bonita, prostituta e aidética”. Esta experiência foi muito marcante na vida da paciente.
Andrade e Silva (2006) salientam que a violência racial e o sofrimento gerado por esta são
frequentemente relatados por pacientes psiquiátricos negros, chegando, em alguns casos, a serem
centrais na construção do delírio. No caso de
M., o sofrimento psíquico advindo da sua cor está
sempre presente nas suas falas, não só em momentos de delírios ou em suas fantasias.
A questão racial é bastante forte e presente na
vida da paciente. A cor é sempre fonte de questionamento sobre si mesma e lhe confere uma
aparência que ela rejeita. M. sente-se inferior, inclusive entre seus familiares, por acreditar que é
mais “escura do que eles”. Isso pode interferir no
sentimento de pertença, de filiação e, portanto,
na relação com os outros e na sua auto-estima.
Não conseguindo negar sua cor e não poden217
do modificá-la, M. encontra meios para não ressaltá-la. Assim, restringe suas atividades – não vai
à praia, clube ou qualquer lugar que possa bronzear a sua pele, evita sair de casa a pé ou ficar em
ponto de ônibus em horários em que o sol esteja
muito forte. É possível afirmar que M. organiza
sua vida em função da preocupação constante
com a sua cor.
“Eu prefiro ficar assim... amarela”.
Em quase todas as visitas, M. observa e nos
questiona sobre a nossa aparência. Comenta sobre nosso cabelo, sobre nosso corpo, repara se
emagrecemos ou se estamos mais bronzeadas.
“Você foi à praia?... Você era mais branquinha”.
Na relação da paciente com o próprio corpo,
os aspectos que lhe remetem a sua negritude lhes
são os mais inquietantes.
Estagiária: “Você está sempre preocupada com
sua aparência...”.
M.: “É, Sempre.”
Estagiária: “O que mais lhe incomoda na sua
aparência?”.
M.: “A cor”
Estagiária: “Por quê?”
M.: “Porque eu sou negra, né? Na escola diziam que eu era negra. Eu via que tinha diferença.
218
Os meninos só achavam as brancas bonitas. As
morenas e as negras ninguém achava bonita.”
Nota-se uma percepção negativa de M. sobre
seu corpo e uma busca constante de transformação. Ao ser questionada sobre seus desejos e planos para o próximo ano, M. responde:
“Quero mudanças! Mudar de casa, de curso,
fazer plástica no nariz, mudar meu cabelo,
meu corpo.”
M. expressa, costumeiramente, o desejo de mudar. Desde mudar de curso até mudar a si mesma,
naquilo que a incomoda: a cor e seus traços étnicos. Rejeitar em si o que o outros rejeitam nela
promove uma procura constante por meios que
possam torná-la mais aceita socialmente e, portanto, sofrer menos. A forma mais fácil, portanto,
seria adaptar-se ao ideal de beleza branco, socialmente mais aceito e até mesmo cultuado.
Carone (2002), discorrendo sobre o conceito
de ideologia do branqueamento, salienta que tal
conceito pode ser entendido, inicialmente, como
o ideal de “clareamento” da população brasileira
resultante da intensa miscigenação entre brancos
e negros no período colonial. Entretanto, ressalta
que o branqueamento também pode ser entendido como uma pressão cultural exercida pela hegemonia branca, para que o negro negasse a si
mesmo, no seu corpo e na sua mente, como uma
espécie de condição para se “integrar” à nova
ordem social pós abolição.
Neste sentido, a maioria da população introje-
tou o ideal de branqueamento, o que deixou marcas invisíveis no imaginário e nas representações
coletivas. Inconscientemente, estas marcas interferem no processo de construção da identidade do
negro, bem como na formação da auto-estima
geralmente baixa da população negra e na supervalorização idealizada da população branca
(Munanga, 2002).
O ideal do branqueamento é constantemente
percebido no discurso de M.:
relação à questão racial podem ter ocasionado a
aceitação tardia do tema como foco do acompanhamento.
É importante ressaltar duas dificuldades encontradas por nós durante esse processo. Uma delas
é o fato de sermos estagiárias brancas e como
tais, termos herdado a neutralidade do branco.
A nossa cor nunca foi algo a ser questionada por
nós, nunca se constituiu como fonte de discriminação e, portanto, não é um empecilho para nos
relacionarmos.
“Eu vou fazer cirurgia no nariz, pra puxar a
Silva Bento (2003) ressalta que o branco semcor, quero ficar igual à Sandy”.
pre aparece como modelo universal de humanidade, alvo de inveja e desejo dos outros grupos
Fazer cirurgia no nariz simboliza o desejo de raciais não brancos. Dessa forma, o foco de disbranqueamento de M. Na sua percepção, seria cussão é sempre o negro e há um silêncio sobre
possível modificar a cor a partir da modificação o branco. Para a autora, parece haver uma esde partes do corpo, o que revela uma fragmenta- pécie de pacto entre os brancos, de não se recoção do mesmo e um dado real de preocupação nhecerem como parte essencial da permanência
com a sua identidade étnica.
das desigualdades raciais no Brasil. Assim, evitar
De acordo com ela, as mudanças físicas (nariz focalizar o branco é evitar discutir as diferentes
e cabelo) promoveriam uma melhor auto-estima dimensões de privilégio simbólico da brancura.
uma vez que a aproximariam do ideal de beleza
A outra dificuldade encontrada por nós é a de
branco. Assim, haveria também uma mudança de responder as perguntas que M. nos direciona. Ela
posição, sentida como inferior diante da sua con- nos convoca, costumeiramente, a opinar e dar
dição estética.
respostas sobre ela que possam “solucionar” suas
Durante seis meses acompanhando M., a demandas, inclusive sobre sua cor.
questão racial surgiu para nós como foco de trabalho e projeto terapêutico apenas nos últimos
M.: “Eu sou negra, não sou?
meses. A partir de então, realizou-se uma revisão
O que você acha?
dos relatórios de estagiários anteriores que, apesar de citarem o sofrimento psíquico de M., não
Quero saber como as pessoas de fora, na rua,
tiveram como objetivo de trabalho essa questão.
As nossas dificuldades e resistências pessoais em me vêem.”
219
Esses questionamentos provocam em nós certo desconforto, pois nos levam a indagar sobre
nós mesmas e sobre nossa condição de brancas.
Além disso, M. constantemente se compara conosco e nos coloca em uma posição “superior”
a ela, devido a nossa cor, o que aumenta nosso
desconforto.
Aceitar nossa branquitude e as implicações
culturais, políticas e socioeconômicas de sermos
brancas é o primeiro passo para podermos desenvolver um bom trabalho com M.
Implicar-nos em estudos e discussões sobre o
tema possibilita a construção de um arcabouço teórico que possa embasar uma atuação mais ética
e próxima da realidade de M. Entretanto, é também uma dívida social, uma vez que “o problema
do negro é também o problema do branco”.
Bento (2003) aponta que foi a elite branca brasileira quem criou o problema do negro brasileiro. A primeira fez uma apropriação simbólica que
reforça o autoconceito do branco e sua (suposta)
supremacia econômica, política e social. Além
disso, construiu um imaginário negativo sobre o
negro, o que solapa sua identidade racial, danifica sua auto-estima, culpa-o pela discriminação
que sofre e, por fim, justifica as desigualdades raciais (Santos, 2003, p. 32).
É importante salientar que os delírios de M. sobre a questão racial são fundamentados em suas
experiências sociais e relações estabelecidas com
o outro. Supõe-se que essas experiências promovam muito sofrimento psíquico para ela, bem
como para outros negros, uma vez que, na socie220
dade brasileira, o preconceito é constitutivo das
relações sociais.
O mundo pesa sobre os sujeitos impondo seu
tempo, seu andamento, seu modo de funcionar,
e, com isso, marca o corpo, configurando gestos,
velocidades, modos de se comportar. (Goidanich,
2003).
Referências
BENTO, MARIA APARECIDA SILVA, Branqueamento e
Branquitude no Brasil. Psicologia Social do Racismo, estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Petrópoles: Vozes, 2003.
CARONE, IRAY. Breve histórico de uma pesquisa psicossocial sobre a questão racial. Psicologia Social do Racismo,
estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Petrópoles: Vozes, 2003.
MUANGA, KABENGELE. Psicologia Social do Racismo,
estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Petrópoles: Vozes, 2003.
GOIDANICH, MÁRCIA. Configurações do corpo nas
psicoses. Psicologia e Sociedade: 15 (2): 65-73, jul.dez.
2003.
ANDRADE, N. C.; SILVA, M. V. O. Violência Racial: A
Subjetividade em discussão. In: Représentatiosn dês Noir(e)s
dans lês pratiques discursives et culturelles em Caraïbe.Ed.
Victorien Lavou Zoungbo, Marges 29, Université de Perpignan Via Domitia.
Ressonâncias
Ela não pode ser mãe!
Quando maternidade e loucura se cruzam
Mariana Carteado*
H
avia cerca de quatro meses que nós acompanhávamos Alice. O vínculo vinha sendo
construído e reconstruído a duras penas: ela não
conseguia compreender como duas pessoas poderiam estar ali disponíveis para ela sem nenhum
interesse escuso por trás. Sua trajetória de vida
já havia lhe provado que não se deve confiar em
ninguém. Antes de conhecê-la, as únicas informações que tínhamos era de que ela reagia sempre
muito mal à presença dos estagiários, alegando
que iriam lá vigiá-la, investigar alguma coisa errada em sua vida para infligir-lhe algum tipo de
punição.
No entanto, ainda que essa recusa de Alice
em participar do Programa de Intensificação de
Cuidados já fosse motivo de tensão suficiente, a
informação que mais se destacava para as pessoas que me relataram o caso era o fato de ela
ser mãe. Mãe de duas crianças pequenas e grávi*Psicóloga graduada pela UFBA e ex-estagiária do PIC
da de um terceiro filho. Essas foram as primeiras
informações que tive sobre a paciente e, no decorrer do seu acompanhamento, pude perceber
o quanto a escolha desses dados pelos antigos
estagiários para apresentá-la a mim foi reveladora de como Alice se relaciona com o mundo e,
principalmente, de como o mundo - nós, os outros – se relaciona com ela.
A simples presença de Alice nos espaços pelos
quais ela transita já costuma ser o suficiente para
mobilizar as pessoas, no entanto o fato de ser
mãe emerge sempre como uma espécie de provocação, algo que gera perplexidade aos olhos
do outro. De fato, ao se impor ao mundo como
mulher e mãe, ela rompe com o contrato tácito
segundo o qual os papéis sociais que lhe são reservados devem respeitar os limites impostos pela
sua condição de pobreza e de loucura.
De acordo com a psicanalista argentina Marie Langer (1981), a sociedade atual se configura como anti-instintiva e anti-maternal, na qual o
nascimento de um filho tende a ser visto como
223
um estorvo econômico-social, e não uma alegria.
A maternidade é encarada como um empecilho
para a realização profissional da mulher, principalmente se essa quiser competir em paridade
com os homens. Ser mãe implica sempre uma
disponibilidade para o cuidar do outro, o que
muitas vezes está associado a uma dimensão de
sacrifício pessoal. Isso, obviamente, se contrapõe
ao discurso individualista, tão comum na sociedade contemporânea, de que a mulher deve pensar
primordialmente nos seus projetos de sucesso e
bem-estar pessoais.
Ainda que o ideal de mulher moderna, que
subsidia as reflexões de Langer, esteja um tanto
distante da realidade da nossa paciente, um olhar
mais apurado pode captar sinais de convergência. Alice é percebida como alguém que precisa
de cuidados intensos de saúde, tanto física quanto
psíquica, além de viver numa situação sócio-econômica extremamente precária. Se o cuidar de si
já é tão escasso, como ela conseguiria cuidar dos
filhos? E por que ela não recorre ao planejamento
familiar e vai cuidar de si mesma?
Certo dia, caminhávamos com ela perto de
sua casa, quando uma de suas vizinhas gritou
“Doutora, dá uma injeção em Alice pra ela parar
de ter filho!”. Na mesma hora, veio a resposta
“A barriga é minha e se eu quiser ter dez filhos,
você não tem nada com isso!”. Langer considera
que, em contraposição ao imperativo anti-maternal da sociedade, a biologia da mulher mantém
as suas funções de procriação em pleno exercício
e o instinto maternal prossegue influenciando o
comportamento feminino. Seria tentador atribuir
224
à relação de Alice com a maternidade um triunfo
do instinto maternal sobre as normas sociais, no
entanto a complexidade do caso nos aponta outras perspectivas de análise.
Desde muito cedo, Alice convive com experiências radicais de desamparo e fragilidade vincular. Sua mãe, psicótica com extensa carreira
manicomial, desapareceu por algumas semanas
e retornou para casa já grávida dela. Do seu nascimento, não tivemos informações, mas sabemos
que sua avó assumiu os seus cuidados e a registrou legalmente como filha, contudo nunca a
considerou efetivamente como tal. O conceito de
vínculo elucidado por Pichon-Riviére (1998) como
interjogo de papéis complementares adjudicados
e assumidos numa relação permite-nos inferir
possíveis repercussões dessa circunstância em seu
processo de individuação: não sabendo ao certo
quem era a sua mãe, como poderia Alice reconhecer-se integralmente no papel de filha?
Os papéis subseqüentes ocupados pela paciente na sua teia relacional vieram a reificá-la
numa posição social regida pelo imperativo
“NÃO SEJA”. De fato, desde a primeira infância,
quando foi diagnosticada como “doente mental”,
qualquer expressão sua que escapasse (ou não)
à norma passou automaticamente a ser considerada como sintoma de sua “doença”. Também
seu destino já estava traçado, pois, com o tempo,
ela estaria fadada a assumir o papel que fora de
sua mãe, de bode-expiatório da família e da comunidade. Os estigmas da loucura e da pobreza
impendiam-na de assumir qualquer outro papel
social de valoração positiva.
Frente a uma realidade com recursos tão parcos de construção identitária, a maternidade pode
ter-se tornado para ela o ponto de ancoragem
psíquica capaz de lhe garantir lugar minimamente
digno na cultura. Alice, ao gerar um filho, gera
também um outro para quem ela é uma mãe. E
é a partir desse lugar de mãe que ela passa a
circular pelas instituições que, de certa forma, a
confirmam nesse lugar: creche, escola, cartório,
pediatra, CAPS infantil.
Assumir o papel de mãe e se relacionar com
o mundo a partir desse papel talvez tenha sido a
forma encontrada por Alice para escapar da posição alienada que lhe foi imposta pelo estigma
da loucura. Essa saída, entretanto, fez emergir
uma nova gama de tensões. O imperativo “NÃO
SEJA” para pessoas como ela não admite exceções. Quando se é louco e pobre, não se pode
ser mais nada, muito menos mãe!
Como dizia no início do relato, fazia aproximadamente quatro meses que acompanhávamos
Alice, quando, certo dia, chegamos a sua casa e a
encontramos com um bebê nos braços. A menina
havia nascido há apenas três dias e Alice estava
radiante e cumprimentava orgulhosa a caravana
de vizinhos que iam ver a criança. Saímos de lá
surpreendidas com sua reação diante da chegada
da filha, pois estávamos apreensivas com a possibilidade de ela se desorganizar ou até entrar em
crise diante dos desafios que viria a enfrentar para
cuidar de um bebê. Pelo contrário, Alice, ainda
que meio desengonçada, nos parecia tranqüila e
confortável no lugar de mãe.
Retornamos três dias depois e ela comentou co-
nosco que havia estado com a filha, pela manhã,
em uma organização do judiciário, para solicitar
um documento exigindo que o pai reconhecesse a
paternidade da criança. Quando lá chegou, com
a menina nos braços, a assistente social perguntou-lhe como ela estava alimentando o bebê, ao
que ela respondeu que estava preparando papas
com leite em pó e arrozina. Segundo o relato de
Alice, a assistente social lhe disse que ela não teria a menor condição de cuidar da criança e que
o melhor seria entregá-la a um abrigo. Tentamos
tranqüilizá-la esclarecendo que devia ter ocorrido
um mal entendido, a assistente social só deveria ter ficado preocupada porque arrozina é um
alimento muito ‘forte’ para a criança. Alice disse
que sabia da existência de um leite próprio para
recém-nascidos, mas a lata custava quinze reais
e ela não tinha condições de comprá-lo. Saímos
de lá então com a incumbência de buscar meios
para que ela conseguisse o leite apropriado ou
até mesmo o materno num banco de leite.
No dia seguinte, ao chegarmos à casa da
paciente, sua avó veio em nossa direção e me
abraçou chorando e dizendo que haviam levado
a menina. Alice apareceu em seguida e, muito
agitada, começou a mostrar o enxoval que havia
feito para o bebê, as fraldas que comprou, e a explicar que sabia cuidar da sua filha, que “fervia a
água, passava os panos com ferro”, etc. Após esse
primeiro momento de muita tensão, conseguimos
acalmá-la para que ela nos contasse o que havia ocorrido. Naquele dia, algumas horas antes,
representantes daquela organização do judiciário
Estadual estiveram em sua casa e “constataram”
225
que a criança se encontrava em situação de risco.
Sendo assim, alguém teria que assumir a responsabilidade pelos cuidados da criança ou ela seria
levada a um abrigo. A solução encontrada para o
impasse foi colocar a menina sob os cuidados de
uma vizinha, que também era madrinha da criança. O clima na casa era tenso. A qualquer barulho de carro na rua, imaginava-se que poderia ser
alguém da Justiça que, ao ver Alice próxima a sua
filha, iria levá-la ao tal abrigo.
No dia seguinte, fomos a organização judiciária para tomar conhecimento do que estava de
fato acontecendo. O relato de Alice remetia a
procedimentos que nos pareciam no mínimo inadequados para técnicos de um órgão público no
trato direto com a população. Lá, em conversa
com as assistentes sociais responsáveis pelo processo, pudemos compreender alguns dos critérios
utilizados na avaliação do caso. Um dos aspectos
levantados com bastante ênfase referia-se à condição de extrema pobreza de Alice e sua família.
A ausência de reboco na casa, a proximidade entre a cozinha e o banheiro, a sujeira, os insetos, a
alimentação incorreta do bebê, tudo corroborava
a constatação de que aquele não era o ambiente
adequado para se cuidar de uma criança recémnascida. Diante dessa situação, a resolução adotada pelas autoridades foi a de retirar a criança
da casa e entregá-la aos cuidados de outrem, o
mais rápido possível, afastando-a assim da mãe.
Estranho... Não seria mais justo e mais condizente com o bem-estar da criança auxiliar essa mãe
economicamente para que ela pudesse oferecer
melhores condições à sua filha? De fato, a po226
breza em si não seria suficiente para justificar a
tal intervenção. Sobrepondo-se ao fato de ser pobre, Alice também era louca, o que, por si só, já
se configurava como um risco à integridade da
criança, percepção baseada no estereótipo que
associa loucura à violência.
Langer ajuda-nos a pensar um pouco sobre
essa questão ao refletir sobre um mito argentino,
uma espécie de lenda urbana, na qual a personagem principal é uma “empregada má” que assassina as crianças. De acordo com a autora, todos
nós levamos em nosso psiquismo, junto à imagem
da mãe boa e devotada, uma imagem da mãe
terrível, que destrói, mata e devora os seus filhos.
Essas imagens, reminiscências da relação ambígua que estabelecemos com as nossas próprias
mães nos primeiros anos de vida, tendem a ser
projetadas no futuro de acordo com a valoração
social da pessoa objeto da projeção. Para exemplificar a sua tese, Langer nos remete a uma espécie de arquétipo de seu país, no qual a faceta
cruel e destruidora da mãe é projetada na figura
de uma “empregada má” que maltrata os filhos
da patroa. Certamente, essa reflexão elucidada
por Langer pode nos ajudar a pensar um pouco
sobre as possíveis fantasias que povoam a mente
das pessoas que lidam diariamente com a noção
de crianças em situação de risco.
Com o intuito de dirimir possíveis preconceitos,
argumentamos que a maternidade não era uma
novidade na vida de Alice, que ela havia criado
duas crianças saudáveis, mesmo com todas as dificuldades impostas pela sua condição psíquica e
social. Além disso, sua qualidade de vida iria me-
lhorar significativamente quando ela recebesse o
Benefício de Prestação Continuada do INSS, pelo
qual vinha esperando há alguns meses. Quando toquei nesse ponto, para minha surpresa, a
assistente social mencionou que o processo de
requerimento desse benefício, na verdade, vinha
a corroborar a avaliação de que ela não tinha
condições de criar sua filha. Na verdade, um dos
requisitos para a concessão do BPC consistia na
interdição judicial do requerente, ou seja, na declaração pública de que o requerente não possuía discernimento para reger os próprios atos,
necessitando para isso de um curador. Sendo assim, como uma pessoa que não era responsável
por si própria poderia se responsabilizar por três
menores? Tratava-se de uma armadilha legal. Alice estava prestes a abrir mão de todos os seus
direitos de cidadã em troca de um auxílio financeiro governamental. A ingerência do imperativo
“NÃO SEJA” em sua vida chegara a limites impensáveis: a inacessibilidade a seus direitos civis estava prestes a ser oficializada juridicamente. Essa
constatação incidiu significativamente sobre nós,
pois percebemos que, a partir daquele momento,
nossa intervenção clínica só faria sentido se assumíssemos um posicionamento político ativo, no
sentido de exigir a garantia à cidadania plena dos
nossos pacientes.
A exigência da interdição judicial para a concessão do Benefício de Prestação Continuada não
possui respaldo legal, ou seja, é baseada unicamente no estereótipo reducionista de que ser louco
implica necessariamente uma incapacidade total
para a vida civil. Àqueles tocados pelo estigma
da loucura, resta apenas ser loucos, e mais nada.
Alice, ao seu jeito, vem tentando escapar dessa
posição alienante. Até hoje, o papel de mãe talvez tenha sido o único que ela tenha encontrado
para SER em sociedade. Esperamos, com a intensificação de cuidados, poder acompanhá-la por
novos caminhos, experimentando novos papéis
que, integrados à sua personalidade, lhe permitam SER no mundo com a dignidade que lhe é de
direito.
Referências
LANGER,M. (1981). Maternidade e Sexo. Porto Alegre:
Artes Médicas
PICHON-RIVIÈRE, E. (1998). Teoria do Vinculo. São
Paulo: Martins Fontes
227
Encontros e desencontros com a psicose
Lorena de Almeida Oliveira*
Thiago Lima Melo**
Resumo: Este artigo é fruto da experiência de
Estágio Supervisionado no Programa de Intensificação de Cuidados a Pacientes Psicóticos. Procuramos desenvolver, neste texto, como o encontro com o paciente psicótico pôde nos remeter a
questionamentos sobre sua presença no mundo,
como sujeito em si ou como sujeito da própria psicose. Os encontros, mais do que certeza acerca
da psicose, remeteram-nos a questionamentos
sobre quem é o sujeito psicótico, seu estado de
isolamento, exclusão e solidão, o efeito de nomeação (diagnóstico) da psicose e as formas de intervenção que podem ser delineadas a partir disso.
Os encontros, muitas vezes, revelaram-se, então,
“desencontros” com a psicose.
A
os 18 anos, no ano de 1985, João acorda
no meio da noite agitado, dizendo que algo
havia caído em sua cabeça. Um dos seus irmãos,
*Psicóloga graduada pela UFBA e ex-estagiária do PIC
**Psicólogo graduado pela UFBA e ex-estagiário do PIC
228
que dormia numa cama debaixo da dele, acendeu a luz do quarto e o encontrou na cama, pronunciando palavras em baixo som. Questionado
sobre o que estava fazendo, João responde que
estava orando. Ele relata que, antes deste episódio, começou a se sentir “vazio por dentro, pragmático”.
No dia 11 de junho de 1986, ainda aos dezoito anos, João é levado por uma de suas irmãs
pela primeira vez a um sanatório. Segundo ela, o
paciente dizia que “via um navio, ficava lendo a
bíblia dia e noite, parecia que estava pregando”.
João dizia não saber o que estava fazendo naquele local, que não sentia nada e nem entendia
o motivo de terem lhe aplicado uma injeção. É
provável que, neste mesmo dia, com uma “boa”
anamnese e entrevista clínica, tenham sido identificados alguns sinais que indicavam a presença
não só de algo errado, mas de uma doença mental. É provável que, neste dia, João tenha recebido
uma nomeação além daquela que já carregava
desde o dia de seu nascimento; João agora era
esquizofrênico e, como a maioria, sujeito a alucinações, delírios, discurso confuso, um comportamento também desorganizado, diminuição da
vontade, da fala e demonstrações de afeto concomitantes com a perda de habilidades sociais e
interpessoais.
João, paciente do sexo masculino, 38 anos,
diagnosticado como esquizofrênico, é residente
de um bairro popular da cidade do Salvador, o
último dos seis filhos de pais já falecidos. Em seu
prontuário, há registros de hetero-agressividade,
delírios de perseguição, desinibição sexual e inquietude. Segundo informações de seus familiares, ele era estudioso, inteligente, chegou a completar os estudos do segundo grau e a realizar
estágios como auxiliar em laboratórios de patologia. Demorou a falar, (somente aos quatro anos
de idade), não tinha muitos amigos e sempre foi
muito quieto; gostava de desenhar, escrever e ler.
Não falava muito com as pessoas de sua casa,
gostava mais de ficar sozinho. Após ter sido identificada a doença, a família constata que havia
algo errado desde o início.
No ínicio de julho de 2005, 20 anos após o
primeiro episódio que a psicopatologia denomina de “surto”, aos 37 anos, conhecemos João.
Ele nos chega através do programa de estágio de
Intensificação de Cuidados a Pacientes Psicóticos,
com 20 anos de “carreira” na esquizofrenia, na
psicose, e é através dela que entramos em contato com ele. Antes mesmo de conhecê-lo, de olhar
em seus olhos, já sabíamos que ele era psicótico;
antes mesmo de nosso primeiro encontro, já trazíamos em nós o nome “psicótico”. E é assim que
se iniciam os nossos encontros, pela psicose.
Eram encontros semanais, nas tardes de quinta-feira, em um município da região metropolitana de Salvador. João se encontrava em regime de
asilamento há quase um ano, em uma instituição
de cunho religioso que se propunha à recuperação de seus “alunos”. Nessa instituição, não havia médicos, psicólogos, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais ou qualquer indivíduo que se
encaixasse na categoria de profissional de saúde
mental. Mas, assim como em outras instituições
asilares, nesta, havia também a presença do outro que garante que a alienação é de alguns, e
suas atribulações podem ser depósitos das mais
variadas atuações.
Guardadas as dificuldades próprias dos primeiros encontros com João, devido a suas respostas hostis à possibilidade de vinculação com
os acompanhantes terapêuticos, (afinal, é difícil
receber qualquer um propondo ajuda a males
que nem ele mesmo suporta por inteiro), conseguimos, numa tarde desses encontros, mas não
muito tarde ainda, sentarmos ao seu lado. Cada
um de nós sentado, em seus lugares, numa pequena calçada, onde batia sombra naquela tarde
quente. E, dentro de nós, não dele, procurávamos
em nossas histórias pregressas algo que garantisse um conforto maior e silenciasse nossos medos.
Refazíamos o caminho de nossa formação pelos
corredores abertos da faculdade de psicologia
procurando por informações claras, mas, mesmo
com o nome da psicose em nossas mãos, ainda
nos encontrávamos do outro lado de João.
Mesmo sentados tão próximos, sendo olhados
229
por aqueles olhos grandes, aquele olhar estranho
que só os psicóticos (“os loucos”) possuem, olhos
que parecem atravessar os corpos, desvelar as almas alheias, deixando trêmulos e assustados estes
acompanhantes terapêuticos, João parecia guardar para si todo o impossível a ser descoberto por
nós e nossa psicologia. Para nossa surpresa, ele
era mais que um psicótico e, sendo assim, escondia muito bem essa parte.
O encontro estava dado, a psicose estava
dada, e todos os pré-requisitos para ser realizado
o encontro entre nós, acompanhantes terapêuticos, e a psicose estavam ali presentes: as teorias
esquecidas nas nossas memórias, alguns sinais
vagos e característicos do que seja a psicose (delírios, alucinações...), o nome de João vinculado a
um hospital especializado em atendimento a pessoas acometidas por transtornos mentais e o Programa de Intensificação de Cuidados; os desejos
individuais de cada acompanhante terapêutico,
o estado de asilamento, garantindo encontros
“confortáveis”, e, finalmente, a disponibilidade
ou indisponibilidade de alguns que permitem a
realização de tais encontros e o assentamento dos
lugares de psicótico e de acompanhante terapêutico.
Mas não sabemos se pela psicose ou por ser
próprio de João, os lugares tinham de ser tocados
e apontados como denúncia na fala dele: “isso
que vocês chamam de transtorno mental, de delírio persecutório, de embotamento afetivo, esses
nomes que vocês dizem; isso na verdade sou eu,
sou eu que sinto; e isso que sinto, isso que vivo é
também realidade, o que vivo aqui dentro é tam230
bém real”.
E, se assim se faz, “me responda uma pergunta: o que é a esquizofrenia? Me responda uma
outra pergunta: se a psicologia não é igual à psiquiatria, o que é então a psicologia? Como surge
a esquizofrenia? E esses medicamentos anti-psicóticos, o que eles fazem?”, e por fim: “Por que
eu tenho que ficar aqui nesta instituição?”.
Se João toca, balança e troca os lugares, proferindo seus questionamentos, decretando-os, juntamo-nos a ele em seus questionamentos: como
é este momento (como num efeito de magia) de
nomeação da psicose? A psicose aparece como
efeito isolado, a partir de um episódio estranho
de alucinações, delírios ou esvaziamento do sujeito? E, num desconforto maior nosso: como é
essa “coisa” de, um dia, de repente, ter se tornado psicótico? A vida do sujeito é a psicose ou a
experiência própria, radical e enigmática que é
nomeada anos seguintes? “Por que tal evolução
de determinados sujeitos, conduzindo-os à psicose?” (Castoriadis, 1999. p. 123 ) e por fim, a
quem pertence a psicose?
A partir desses questionamentos e de outros
que, certamente, surgirão, tentaremos apresentar um ensaio que tem como objetivo apreender,
em algum nível, nossa gratificante experiência de
encontros e desencontros com o sujeito João, tomando sua história como exemplo do que pode
acontecer com pessoas acometidas de algum tipo
de transtorno mental.
Quem é o sujeito psicótico?
Pela história de vida de João, podem-se perceber alguns indícios da dificuldade que ele apresentava ao se relacionar com o “outro”, dificuldade
que se apresenta como um enigma para o sujeito
psicótico. Sempre tímido e quieto, João não tinha muitos amigos e, mesmo em casa, sempre
fora muito sozinho. Mas como essa “solidão” se
apresenta para ele? Indo mais além, como essa
solidão é percebida e “nomeada” pelo “outro”?
Na sociedade contemporânea, o homem solitário é visto como “anormal”; a solidão é concebida como uma patologia, e, assim, o sujeito “solitário” é excluído de alguma forma das relações
com o outro. Segundo Katz (1996):
“... desde seus primeiros movimentos, o infante
humano estaria sempre em sociedade, em situação de socius, existente apenas como necessidade dos outros. O que determinaria, para um
certo registro do pensamento, a impossibilidade
da solidão do humano; que, se manifesta, deve
ser tratada, curada enquanto afastamento carente
de normalidade social.” (KATZ, 1996. p. 29)
Desse modo, atualmente, é impossível se conceber a solidão como possibilidade intrínseca de
um sujeito; mesmo cabendo à solidão um importante e essencial papel na constituição da subjetividade humana, sua existência se tornou uma
patologia a ser tratada. Apesar da existência de
todos os conceitos explícitos ou não sobre a solidão, João não deixava de ser solitário, ou melhor,
ele não via essa possibilidade. Inicialmente, isso
não era visto como incômodo às pessoas próxi-
mas dele; talvez para João esse incômodo fosse
sentido ou talvez não fizesse diferença para a vida
dele enquanto um sujeito “normal”. Sim! João,
antes de ter a nomeação de “psicótico”, era um
sujeito normal; um pouco “estranho”, mas normal. Então, o que, afinal, aconteceu para que ele
deixasse de pertencer à “categoria” da normalidade e passasse a fazer parte de uma outra categoria, a dos “anormais”? Talvez se possa tomar
a questão do incômodo como determinante para
essa classificação; o incômodo que João passou
a sentir com mais intensidade ou que passou a
produzir nos outros.
Assim, existe uma aproximação entre o “sujeito solitário João” e o “sujeito psicótico João”.
Tanto a solidão quanto a psicose começam a ter
existência a partir do momento em que passam a
provocar algum incômodo no sujeito e no meio
em que vive. Voltando a Katz (1996):
“É verdade que, inúmeras vezes, especialmente
para o homem burguês contemporâneo, a solidão
só se deixa escutar quando atinge um modo insuportável: quando, no ser humano, não encontra
mais lugar para ela, eis o momento em que ela
emerge para a experiência, insiste em se afirmar.”
(KATZ, 1996. p. 29)
Da mesma forma que a solidão, a psicose e
suas ”desorganizações psíquicas” só são percebidas no momento em que “transbordam” do sujeito; aí passam a ter existência, quando não é mais
possível administrá-las dentro dele.
Assim como a solidão, a psicose é algo de difícil entendimento tanto para as pessoas ditas “normais” quanto para as “psicóticas”. Desse modo,
231
“... A loucura é uma experiência humana cujas
questões se colocam para os loucos ou não loucos, situando problemas para a razão; (...) reconhecemos as experiências da loucura não como
aberração ou déficit, mas como experiências legítimas e pensáveis do corpo, da existência, do
pensamento. Experiências perturbadoras, sim,
porque podem rasgar o sentido; mas podem também, em certos casos, imprimir ao sentido outros
cortes, possibilitando inimagináveis refazendas.”
(LOBOSQUE, 2001. p. 22)
Dada sua vida solitária, ocupando os espaços
das sobras no silêncio dos diálogos de sua família, na sua qualidade de “calado, quieto”, descrita
pelos seus, João se fazia; e tal quietude, tal solidão, tal monólogo de sensações pôde ser nomeado no agravamento de suas ações. É quando o
estado de estranheza, de esvaziamento e angústia
desemboca numa completa loucura, que o mórbido pode ser descrito e nomeado, neste caso,
por psicose. O mundo privado que é revelado pelos “devaneios” e, dessa forma, exposto aos olhos
alheios está apto a ser analisado e classificado
como doença mental, sendo revelado então sua
“história psicológica” (Foucault, 1984. p. 67-69)
susceptível ao casuísmo e efeitos no presente e
futuro.
Mas, enfim, o que é a psicose? O que a define
enquanto tal? Tomadas as devidas dificuldades
em se nomear essa “experiência desorganizadora”, tentaremos defini-la, ainda que saibamos da
impossibilidade de apreendê-la em sua totalidade. Tomando Katz (1996) como referência: “Irrupções, cortes abruptos, violência psíquica perma232
nente, reclamos insistentes pela mera indicação
da ausência de outra coisa, pela presença equivocada destes outros que se podem perder num
momento ou de um só golpe. Aflições, recordações de realidades nunca existentes, perdidas lembranças de uma memória a se criar, intervenções
de pensamentos não-reclamados, não-esperados
pelo ‘pensador’, infiltração de idéias terríveis e
inesperadas (contra as quais nada se pode fazer,
a não ser, no melhor dos casos, suportá-las com
angústia).” (KATZ, 1996. p. 44). A partir disso,
pode-se tomar a psicose a partir da complexidade
que assume para todos, psicóticos ou não.
Aquilo que era quietude durante anos seguidos
e construídos a fio lentamente, irrompe-se no estranho, na loucura, na doença mental. Não pretendemos afirmar que sua história, agora, justifica
sua psicose, depois que João assim é nomeado,
mas sim considerar, a título de reflexão, que ato
de “magia” é este que o nomeou como tal. O que
parecia ser experiência de vida individual, restrita, solitária e talvez angustiante, parece ter sido
absorvido completamente pela doença, e tudo, a
partir daquele fato de irrupção do estranho, seguido da nomeação (alucinações, delírios), fez
desaparecer o João de antigamente ou justificar
de vez aquele João. Agora as fronteiras entre João
e os outros estavam de vez alargadas, dito agora
a qualquer um que passe na rua, apontado pelos outros, justificando sua presença nos lugares
de forma excluída. João agora sai de seu mundo
de solidão, de quietude, e adentra na estranheza
da pura atuação concreta e vista até mesmo por
quem anda de olhos fechados.
Psicose: morte ou ressurgimento
visível do sujeito?
“A loucura é a ameaça e a presença viva da
morte, e os loucos são a morte aí, espreitando
na sua disrupção não-anunciada mas esperada.”
(Chaim Samuel Katz)
Voltando novamente à história de João, outros
questionamentos surgem: por que ele teve de ser
isolado do seu meio? O que legitima essa forma
de “tratamento” dispensada a esse sujeito? Algumas respostas podem aparecer. Analisemos, sob
o ponto de vista do social, deste social que ajuda
a constituir, mas também “exclui” o sujeito.
Segundo a família de João: “não havia outra
forma de lidar com ele, nossa mãe, que era quem
cuidava dele em casa, tinha acabado de morrer.
Não sabíamos o que fazer, a única alternativa foi
interná-lo”. E assim João está privado de aproveitar sua vida em casa, de fazer as coisas que
sempre gostou, de estar próximo das pessoas conhecidas e da sua família.
Nota-se que a atitude de interná-lo por um período prolongado deu-se a partir da presença da
morte; da morte da mãe e “cuidadora” de João.
Antes de tudo, da morte de uma pessoa importante para a família, da morte presentificada.
Pensando de uma forma mais ampla, a psicose, assim como a morte, é vista como algo a
ser afastado das discussões cotidianas e, dessa
forma, é excluída das relações entre as pessoas.
Não que não tenham existência; mas são fontes
de tão grandes sofrimentos, que não merecem ser
pensadas ou faladas. Tomando a aproximação
feita por Katz (1996): “... É que a loucura é a
presença da morte, morte feita a cada instante,
sem respeitar condições fisiológicas e biológicas,
etárias e de saúde.” (KATZ, 1996. p. 44). Assim,
a aproximação entre a psicose e a morte talvez
possa se dar pela imprevisibilidade: não se sabe
como serão os acontecimentos posteriores à “instalação” da psicose, da mesma forma que a morte é um grande enigma e, como tal, não tem lugar
dentro das relações cotidianas “normais”.
Mas, assim como a morte, a psicose também
existe. Mesmo sendo afastada das relações cotidianas dessa família, a psicose está aí. Não há
como ignorá-la. Então, por que não aceitá-la?
Segundo os próprios familiares de João, “não
sabemos como agir quando ele entra em crise.
Temos a nossa própria vida, nossos trabalhos,
não podemos nos dedicar exclusivamente ao cuidado dele. Ficamos mais tranqüilos com ele lá,
internado”. E, dessa forma, João continua institucionalizado; mesmo expressando claramente o
desejo de voltar à sua casa, ao convívio com seus
familiares e sua comunidade. A sua voz emudece, assim como seus desejos e planos são sempre
postergados e vistos pelos familiares como sem
importância. E, assim como a morte, são ignorados por eles.
233
Por efeito de nomeação
Agora João é psicótico. Muitas vezes, fora
levado às pressas aos centros de internamentos
psiquiátricos por seus familiares, quando se encontrava em momentos de exasperação de sua
angústia, quebrando todos os móveis de sua casa.
Lá, nestes centros, em suas salas e corredores,
as estranhezas de João foram sendo descritas e
classificadas. Devemos, então, ao isolamento de
pessoas como João o desenvolvimento de classificações semiológicas daquilo que se concebe
como doença mental, afinal são nas salas especializadas que se pode debruçar com mais visibilidade sobre as estranhezas comportamentais
e estabelecer em seguida uma lógica (Lobosque
2001, pg. 56-57).
Mas a qual lógica João e a sua psicose obedecem? A lógica da desrazão e a perda do sentido ou à lógica da produção de sentido através
de sua psicose? Vamos situar: quando João se
torna psicótico, é nomeado como tal, suas demonstrações estranhas, ou seja, delírios e alucinações, compõem um rompimento em sua vida,
e daí se faz sujeito a análises descritivas? Ou suas
demonstrações estranhas, acima de qualquer delírio, são dotadas de um sentido que afirma seu
caráter singular?
Podemos referenciar este tipo de análise nos
textos de Lobosque (2001), pontuando a perspectiva psicanalítica e a psiquiatria clássica de Jaspers. Para a autora, este último modelo de análise
tende a ressaltar as características do comportamento de pessoas que sofrem de transtorno men234
tal “a título de ilustração de um desarranjo, utilizável para uma identificação diagnóstica, mas
não como material para seu próprio trabalho de
cura” (Lobosque 2001, p. 50); enquanto que, na
psicanálise, é devolvido ao sujeito psicótico o sentido dos seus atos, “a psicose, questão do sujeito”
responde, vamos dizer dessa forma: “(...) a posição subjetiva do psicótico enquanto sujeito de
um pensamento inconsciente que só pode ser o
seu... mas que se apresenta a ele como fora de
si” (Lobosque 2001, p. 52). Então, no modelo psiquiátrico, haveria a ruptura da cadeia do sentido
a partir da entrada em suas manifestações sintomáticas, aliás, o indivíduo só aparece quando se
exaltam seus sintomas, e, neste momento, o sujeito desaparece, pois perde sua lógica de sentido;
enquanto na psicanálise, é ali onde parece não
haver mais sentido algum que o inconsciente se
enuncia; nas produções delirantes teríamos então
uma reconstrução do sentido .
Ficamos, então, com a discussão se houve um
rompimento na vida de João após o seu surto e
daí ele se fez psicótico ou se João continua com
sua vida enigmática e agora radical após o episódio. Tentamos responder a este questionamento, retirando da psicanálise a condição de lógica
na produção do sentido na psicose, pois é o que
temos de mais próximo que afirme uma continuidade na vida de João após o episódio de surto,
considerando que a teoria psicanalítica se alimenta de tal sentido nessa produção e se afirma aí
onde se diz não haver sentido algum (Castoriadis,
1999. p. 119).
Se os sintomas psicóticos são invasivos, vêm
de fora do sujeito conforme sua estruturação, tais
sintomas poderiam ser a justificativa radical de
uma existência angustiante ou da própria experiência de João como sujeito. Poderíamos pensar
assim, a partir dos questionamentos dele: “isso
que não compreendo, mas que me angustia e
me faz sofrer; essas coisas que tenho, que sinto,
só pode ser por algum motivo. E este motivo só
pode se encontrar nos outros, então são eles os
responsáveis por tudo o que sinto, não eu”. E,
como confirmação máxima de tal certeza, vítima
e algoz, temos o internamento psiquiátrico ou o
atual asilamento (isolamento) de João na instituição. Com isso, ele constrói uma justificativa para
esse fato, ainda que tal justificativa não seja reconhecida pelo outro. Aquilo que parece ser falta de
sentido, através dos sintomas psicóticos, parece
revelar ou exaltar a experiência subjetiva de João.
Melhor ainda, os delírios e as alucinações são a
forma de sua fala, e quem quiser entender ou dar
significado, assim o faça, ou o tranque de vez o
mais distante possível de sua própria vida.
Consideramos a produção de sentido na psicose como estritamente, ou estreitamente, implicada no valor representativo e singular do sujeito.
A produção do sujeito psicótico apresenta, então,
por mais estranho que seja, coerência com sua
experiência e seu valor, sem compromisso visível com a representação do grupo social. Como
quando João, em um de seus dias, rasga suas
roupas e resolve passear nu pela instituição, como
se avisasse: “a mim não interessa seus bens, sua
categoria de possuidor de coisas; aliás, a mim
não importa a condição de possuidor de coisa
alguma”. João, então, produz para si mesmo!
Antes da lógica “psi”, da lógica orgânica ou de
qualquer outra, ele produz, no final da história,
para “si-mesmo” (Castoriadis, 1999).
Então, de qual João estamos falando, daquele de antes do surto e suas estranhezas ou deste
com suas peculiaridades? É possível considerar a
existência de duas entidades diferentes numa só
pessoa, ou João sempre foi o mesmo, mas com
o nível de sofrimento bem mais intenso do que
quando vivia calado dentre os seus irmãos? Considerar sua vida como ruptura radical a partir de
seu adoecimento beira, para nós, uma incoerência de análise, que se aproxima mais das categorias diagnósticas, sejam elas referentes à estrutura
preconcebida ou à descrição do fenômeno, do
que da experiência do sujeito João. E, se a nomeação por diagnóstico acaba confirmando de vez
a separação dele em relação a sua vida, parece
que, neste âmbito, João é somente ele, como psicótico, não como outro, e é assim que ele se faz
e é feito por ela, a psicose. Já considerando que,
em sua produção psicótica, há sentido (como vislumbrado pela psicanálise), e que seu sentido só
se dá agora, dessa forma, pela estranheza, não
haveria então dois viventes de João, um antes e
outro depois do surto; este é um só, que produz
realmente sentido, de forma singular, mas que assim o conhecemos como “João Psicótico”, concebido por uma condição estruturante.
Teríamos então de escolher entre duas opções:
conceber o João rompido, desfigurado, nomeado
e justificado a partir do seu primeiro surto; ou o
235
João organizado, “arranjado”, nomeado e justificado também a partir do seu primeiro surto, só
que agora com uma história pregressa desde o
seu nascimento. Situando mais uma vez: psiquiatria, psicanálise ou uma boa combinação entre
as duas? E João, em qual lugar se encontra? A
quem pertenceria João ou a quem pertence João?
À psicose, aos pressupostos da psicose, ao “psi”,
ao orgânico, à técnica, aos técnicos, à desorganização, aos muros fechados da instituição, ao pastor, ao seu irmão (que o representa civilmente)?
A quem pertence João, e, se à psicose, a quem
pertence a psicose?
“A quem pertence a psicose?”
Mas, se formos para bem distante de sua estrutura ou para bem longe da descrição de seus
sintomas, que João encontraríamos? Este que se
apresentou a nós, negando que ele fosse qualquer destes que dizíamos que era em seus questionamentos e replicações. Dessa forma, entre
o João que nos chega e que nos é apresentado
pela instituição, existe uma distância considerável,
não sei se por nós, mas afirmada por ele próprio.
Nessas dúvidas, nesses anseios daqueles encontros que promovem, sempre, a dúvida, não sabemos então em qual lugar João se encontra, se do
lado dos “alunos”, dos psicóticos e, dessa forma,
também da psicologia, psiquiatria e psicanálise
ou em seu lugar ou em lugar algum. Enfim, qual é
o lugar de João, quais são os lugares dos loucos?
Os lugares dos loucos são na “casa das psicoses”
e, porventura, nas formas culturais de determina236
ção da psicose.
Seja qual for o lugar de João, dele próprio ou
na “casa das psicoses”, este tende a ser um lugar
de isolamento e exclusão, pois assim nossa cultura determina: “a loucura (...) situa-se aí: neste
nível de sedimentação nos fenômenos de cultura
(...)” (Foucault, 1984. p. 89). As estranhezas que
chegam ao seu limite no “surto” são, assim, consideradas como doença, como psicose, cumprindo
um papel social que lhe é próprio em nossa história. Para se formarem muros, para se formarem
quartos, varandas e lugares de psicótico, temos
de considerar para que finalidade se erigem as
“casas de psicótico”; e, no nosso mundo, mesmo
que se derrubem os muros dos manicômios, ou
que os reforme, louco ainda é louco, e, por assim
ser, “dá trabalho aos outros”, desvirtua a lógica
racionalista do dia-a-dia das construções, e “(...)
dizer: este é um louco, não é um ato simples nem
imediato. Repousa, de fato, num certo número de
operações prévias (...) segundo as linhas da valorização e da exclusão (Foucault, 1984. p. 89). E,
para que vivamos tranqüilos, para que sua família
viva tranqüila, para que o pastor e sua instituição
vivam tranqüilos, para que as instituições vivam
tranqüilas, para que a psicologia viva tranqüila e
para que João também viva tranqüilo, é melhor
que ele continue sendo louco, ainda que louco
seja apenas louco para alguns e próprio de intervenções para outros.
Consideramos que João é psicótico, e sua psicose pertence a sua própria cultura. Então, quais
são os espaços (lugares) que se renovam para
abrigar os psicóticos? Os loucos retornarão para
suas casas quando não hospitalizar e absorver as
peripécias da loucura em suas famílias passa a ser
a regra? E, se assim é, que tipo de técnicas sofisticadas e “capilares” entrará no dia dos psicóticos,
e como estas “comportarão” a loucura? Precisaríamos delimitar, dessa forma, o que pretendemos
com a loucura, com a psicose, com João? Quais
são as novas regras?
Assumindo o lugar de profissionais “psi”, nossa
argumentação sobre o modo de cuidado dispensado aos portadores de transtorno mental se baseia em uma clínica que leve em consideração o
sujeito; sujeito que sofre que é excluído e rotulado
pela sociedade como incapaz, como “perturbador da ordem”. É exatamente esse sujeito “diferente” que nos interessa; e essa clínica deve ser
estruturada de modo a dar conta dessa diferença
do outro, e mais além, deve ser capaz de fazer o
sujeito sustentar sua diferença, sem aceitar sua exclusão social. Não se trata de propostas prontas,
cabíveis a qualquer situação e utilizadas como se
fossem um “manual de técnicas” preconcebidas;
mas sim, de algo a ser construído cotidianamente
nas práticas de cada profissional. Esses sim, devem saber os propósitos de suas práticas; devem
procurar, nelas, meios que façam minimizar o
sofrimento dos sujeitos atendidos, além de os
colocarem em primeiro plano.
Entendemos que, no cuidado dispensado aos
psicóticos, eles devem ter a relevância, e não os
rótulos a eles atribuídos. Assim, a psicose, o transtorno mental ou qualquer outra designação dada,
deve ser apenas o pano de fundo de uma prática comprometida com a verdade de cada sujeito
atendido. Pensamos também que essa clínica aqui
proposta tem o papel de reflexão sobre a sociedade em que está inserida, de forma que a loucura seja aceita socialmente; isso se dá através de
profundas discussões sobre práticas clínicas que
têm, em sua base, a interlocução com variadas
espécies de práticas e pensamentos.
Referências
CASTORIADIS, Cornelius. A construção do mundo na
psicose. In: Feito e a ser feito. (pp. 117-131) Rio de Janeiro:
DP & A, 1999.
FOUCAULT, Michel. (1926) Doença mental e psicologia. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984.
KATZ, Chaim Samuel. O coração distante: ensaio sobre
a solidão positiva. (pp. 27 - 63). Rio de Janeiro: Revan,
1996.
LOBOSQUE, Ana Marta. A experiência da loucura: da
questão do sujeito à presença na cultura. In: Experiências
da Loucura. (pp. 13-35) Rio de Janeiro: Garamond, 2001.
__________. Neuroses X Psicoses: uma primeira abordagem quanto ao diagnóstico diferencial. In: Experiências da
Loucura (pp. 54-70). Rio de Janeiro: Garamond, 2001.
__________. A psicose, questão do sujeito. In: Experiências da Loucura. (pp. 41-53) Rio de Janeiro: Garamond,
2001.
237
O incrível poder do vínculo
Lygia Freitas*
D
epois de muita insistência por parte de Marta
, resolvi acompanhar Thiago na visita domiciliar que ele, costumeiramente, lhe fazia. Marta fora “minha” paciente logo quando iniciei no
estágio, mas, com os freqüentes remanejamentos
das duplas de estagiários, deixara de ser. Isso,
contudo, não evitava que ela, sempre que ia aos
grupos que realizávamos no Mário Leal, questionasse quando eu iria a sua casa, alegando que
seus pais sempre perguntavam por mim.
Naquela tarde de sexta-feira, atendi seu pedido e fui visitá-la com o estagiário responsável por
seu caso. No caminho, fomos conversando; eu,
à vontade como sempre, como se fora moradora daquele bairro; e Thiago, mais sério como de
costume, mas também relaxado. Foi então que
aconteceu algo que nunca nos havia passado
pela cabeça acontecer, sobretudo quando íamos
visitar os pacientes do Programa, já que o fato
*Psicóloga graduada pela UFBA e ex-estagiária do PIC
238
de os visitarmos com freqüência nos tornava meio
membros das comunidades em que estavam inseridos: fomos assaltados.
Um homem nos seguiu na descida de uma
ladeira e, quando chegamos ao beco que nos
levaria à casa da paciente, abordou-nos, supostamente com uma arma escondida embaixo da
camisa, exigindo que lhe déssemos nossos pertences, minha bolsa e a mochila de Thiago. Meu
parceiro ainda tentou dialogar com o rapaz, mas
ele não estava para conversa. Entregamos-lhe
nossas coisas, e o rapaz mandou que voltássemos
por onde tínhamos vindo, sem olharmos pra trás.
E foi isso que fizemos.
Fiquei descontrolada e comecei a chorar, não
sei se porque aquela era a primeira vez em que eu
era assaltada, se pelo susto do inesperado ou se
pelo fato de terem me roubado justo quando eu
ia fazer uma “boa ação”. Talvez pela conjunção
desses fatores!
Fomos para o Mário Leal, que ficava no topo
da ladeira que tínhamos descido para ir à casa de
Marta. Meu choro provocou uma comoção geral
entre os funcionários do HEML, e fomos conduzidos para a diretoria da instituição. Ainda tivemos de ouvir algumas críticas ao Programa, pois
“era muito perigoso fazermos as visitas em bairros
como os que os pacientes moravam, e ainda por
cima sem seguro de vida!” (sic).
E, em meio a essas sutis ressalvas ao funcionamento do PIC, quando eu menos esperava, aparece Marta, trazendo nossos pertences de volta!
Eu, que já estava mais calma, quando vi minha
bolsa, com a carteira e tudo que nela havia antes
do assalto, voltei a chorar. Marta, bastante emocionada, pediu-me desculpas por haver insistido
para que eu fosse visitá-la, o que acabou sendo
até bom para que eu me acalmasse, retomasse
a postura de estagiária e deixasse um pouco de
lado a emoção que me tomava naquele momento. Disse-lhe que assaltos acontecem a toda hora
e em todo lugar, que não havia razão para ela se
sentir culpada, etc.
Saímos da sala da diretoria para conhecer o
benfeitor que havia recuperado nossas coisas. Era
um homem alto, magro, negro, com “seios” de
silicone e trejeitos bastante femininos, conhecido
como Bida. Foi então que Marta nos contou que
havia visto o assaltante passar e reconhecera a
mochila de Thiago. Como já estava esperando
nossa visita, ligou as peças daquele quebra-cabeça e concluiu que o rapaz, seu vizinho, havia nos
roubado. Foi, então, à casa de Bida e pediu que
ele fosse buscar o que nos havia sido tirado. Nosso herói nos disse que ficou com medo, pois o assaltante era viciado em drogas e parecia bastante
nervoso, mas atendeu ao pedido da vizinha e foi
à casa dele recuperar minha bolsa e a mochila de
Thiago. Chegando lá, mandou que o rapaz devolvesse o que roubara, e o dito cujo jogou tudo
em cima da cama.
No fim das contas, perdemos apenas nossos
celulares, pois o assaltante já tinha dado sumiço
neles antes que o herói da história chegasse a sua
casa.
E foi assim que vivi um dos dias mais emocionantes de minha vida, em que tive a certeza
de que o trabalho que realizamos no Programa
de Intensificação de Cuidados, propiciador da
criação de vínculos com os pacientes, pode gerar
bons frutos não apenas para eles, como para os
estagiários que os acompanham. Afinal de contas, se o elo entre Thiago e Marta não houvesse
sido bem estabelecido, ela jamais teria reconhecido sua mochila em mãos alheias e essa história
não teria o desfecho fantástico que teve! Até hoje,
quando lembro desse fato, fico impressionada ao
me dar conta de como as relações que cultivamos
com os pacientes podem ir muito além do que
postulam as teorizações acerca dos “modos de
vinculação do sujeito psicótico”...
239
Entre amores, quase-amores e não-amores
Fernanda Rebouças*
Resumo: Este artigo tem como objetivo tecer
uma discussão a respeito da transferência e do
vínculo no acompanhamento de pacientes em
intensificação de cuidados. O artigo transcorre dentro de uma pequena revisão sobre o que
pensava Freud quanto à relação com o paciente,
ao mesmo tempo que traz as idéias de Radmila
Zygouris, em seu “O vínculo inédito”, onde ela se
nega a reduzir o vínculo estabelecido à repetição.
É a contraposição – e complementação – dessas
duas posições que permitirá compreender, ao longo do artigo, o conjunto das manifestações que se
inauguram - ao se repetirem - na relação com os
pacientes. Assim, considerando o que é próprio de
cada sujeito, os sentires, o sensível e a subjetividade, é feita uma analogia entre a intensificação de
cuidados e a dança, tomando-as ambas como arte
e como vida. O artigo, dentro dessa discussão,
traz a análise de um caso em acompanhamento,
*Estudante de Psicologia (UFBA) e estagiária do PIC
240
sobre o qual se tem uma hipótese não exatamente de amor transferencial, mas ao menos de uma
depositação mais maciça. A partir daí, discute-se
como manejar as relações vinculares, no caso do
paciente, e como lidar com o que ele adjudica a
quem o acompanha, reconhecendo que o crescimento dentro dessas vivências é recíproco.
P
ontos de convergência. É sabido que há milhões deles entre a intensificação de cuidados
e a própria vida, embora, entre enlaces e entrelaces, ambos se misturem. Mas, então, arriscar-meei a puxar pelas artes – que são tão vida quanto
qualquer outra coisa - enquanto teço comentários
sobre o conjunto das manifestações que se inauguram - ao se repetirem - na relação com os pacientes. Não aspiro novidades, strictu sensu, mas,
não menos audaciosa...
“(...) Aquilo que revelo
e o mais que segue oculto
em vítreos alçapões
são notícias humanas,
simples estar-no-mundo,
e brincos de palavra,
um não-estar estando
mas de tal jeito urdidos
o jogo e a confissão
que nem distingo eu mesmo
o vivido e o inventado.
Tudo vivido? Nada.
Nada vivido? Tudo.”
(Drummond, 1991)
Freud anunciava nuances de nossos modos de
existir com as discussões sobre transferência, e
inaugura uma nova possibilidade de fazer com a
saúde mental, uma experiência inédita do ponto
de vista social e subjetivo. Assim, em sua Conferência XXVII (1916/1917), ele fala sobre o sujeito
transferir para a pessoa do médico intensos sentimentos de afeição ou de hostilidade, sendo que
estes não podem ser explicados pela conduta do
profissional nem justificados pela situação que se
criou durante o tratamento. Por isso é que Freud
suspeitou de que esse arsenal de endereçamentos
proviesse de outro lugar, já estando preparado no
paciente e pronto a emergir tão logo surgisse uma
oportunidade (Freud, 1916/1917).
Parte das idéias de Radmila Zygouris já aparecia indiretamente nos escritos psicanalíticos de
1914, quando Freud, em “Recordar, repetir, elaborar”, fala da transferência como um fragmento
de experiência real, tornado possível por condições favoráveis. De certa forma, essa posição é
concordante com Zygouris em seu “O vínculo inédito” (2002), embora ele ainda se mantenha na
idéia pouco abrangente de doença artificial.
Zygouris vai mais além dessa posição ao falar
“de um encontro, seja de duas estruturas, seja de
duas falhas, seja de duas demandas em abismo”,
deixando a céu levemente mais aberto a subjetividade de ambos os dançarinos, bem como os
aspectos pessoais inconscientes (Santos, 2006);
ambos se apresentam nesse ínterim. A arte apareceu sem que eu decidisse o momento. Mas aí está
a dança, posta, como a música, que invade os
sentidos mesmo quando não fomos nós a ligarmos a vitrola. Como a dança, essa “modalidade”
sobre a qual falamos da intensificação de cuidados deixa à mostra que tipo de dançarinos somos
nós, que ritmo nos é mais confortável, que espécime de parceiro nos faz bambearmos na pista,
que momento vacilamos pedir para que a dança
se interrompa. Mas, enfim, como sujeitos que se
propõem a acompanhar e muito mais, tornamonos também dançarinos dispostos a ouvir a música em alto volume e a dançar, com o parceiro
que vier, a música que nos convocar. Com muita
sorte (leia-se trabalho, implicação, arte e técnica),
na manhã seguinte, poderemos descansar os pés
ao som de um cool jazz, até que a vitrola toque
outra batida.
Dessa forma, respeitando o que há de único
em cada dança e em cada parceiro, é que Zygouris se nega a reduzir o vínculo estabelecido à repetição, pois “a transferência remete também ao
241
novo em virtude de sua eterna falha”. Essa relação, para a autora, é feita de “sentires”, de emoções conscientes e inconscientes, da presença, do
que é único em cada um, do que é próprio, das
“singularidades jamais generalizáveis” e que não
podem exatamente se repetir. E como toda dança e encontro de corpos que desejamos ou não
manter, o vínculo, para Zygouris, é algo que pode
durar ou não, é algo da vida. “Essa aceitação
do vínculo fundamental, ao mesmo tempo que a
procura de um fim possível para a transferência,
constitui uma relação social e íntima verdadeiramente inédita em nossas sociedades.” (Zygouris,
2002).
Para fugir ao medo do inesperado e à inevitabilidade de que o incrível, o obscuro, o desconhecido irrompa, profissionais da saúde mental procuram ao máximo seguir enquadres específicos
e modelos de atuação pré-determinados e, para
tanto, se arriscam inadvertidamente, na tentativa
de impedir que a complexidade das relações humanas contamine o seu trabalho (Zygouris, 2002).
Tentativa vã e, muitas vezes, inconseqüente. Isso
porque o profissional, dessa forma, não estará
realizando sua tarefa terapêutica no sentido de,
através do manejo das situações transferenciais e
vinculares, ajudar o sujeito a lidar posteriormente
com as relações na sua vida de uma forma geral.
Com suposta neutralidade ou não, há vida em
movimento, circularidade nas relações e emergência do que já existe.
A clínica da intensificação de cuidados não nos
permite almejar tal posição discutida acima. A irrupção do novo a que estamos sempre subme242
tidos é tão incisiva que, à maioria dos acompanhantes, não resta esta alternativa. O processo é
vivido a todo tempo conjuntamente e, para pensar
a relação usuário-estagiário, há de se estar aberto para olhar para o encontro que se estabelece,
para pensar a união no “entre” do que se cria e se
recria nessa “trama de tempo presente” (Barbosa,
2006), que, como a dança, depois de formado o
par, é impossível de ser sozinha. Quando se olha
para um, já está olhando-se para o outro ou outros, e para ver de que dança se fala, não há outro jeito a não ser sentir o todo. Dança de dois, de
três, ou de grupo, os envolvidos são muitos.
Problema está dado quando um dos dançarinos – nesse caso, o que acompanha – acaba
tomando o palco, não por seus atributos pessoais de leveza e graça, mas porque assim o possibilitou a situação. E, para tanto, não falemos
apenas de impulsos instintuais reprimidos, mas
do que contribui sendo próprio de cada um, do
que chama Zygouris de “plano do sensível”. Há
uma maneira bem particular do dançarino se movimentar na pista, que não se sabe muito bem
de onde vem, mas que interfere de forma fundamental no vínculo que se cria entre os parceiros
e em como serão as danças a partir de então. É
nesse paradoxo de lógica e imprevisibilidade que
ficamos susceptíveis às surpresas que virão pela
frente, aos sentimentos que surgirão, ao amálgama que encobrirá usuário e estagiário (Santos,
2006). Este último, como o primeiro, “é posto em
configurações transferenciais em que imperam os
mais distintos e intensos conflitos e ansiedades”,
algo que precisa ser cuidado, “pois o tratamento
seguirá após esse encontro e a crise que se enfrenta” (Santos, 2006).
Falamos de crise, falemos de psicose, desses
sujeitos que “são” em crise, muito mais do que
estão, para que ela não pareça por demais desavisada sobre as particularidades transferenciais.
Lembremos também dos aspectos simbíoticos
e autísticos (Bleger, 1991), os quais existem independentes da estrutura psíquica ser neurótica
ou psicótica, para que assumamos que a mesma
matéria que constitui uma constitui a outra. Segundo Gilsa Tarré de Oliveira, “a psicose exibe
claramente como o rigor de uma lógica bivalente
comanda uma relação inteiramente fusional com
o semelhante que fomenta o amoródio.”, podendo o sujeito apresentar tanto condutas autísticas
quanto simbióticas alternadamente, bem como a
coexistência desses dois tipos (Bleger, 1977). Pichon (apud Bleger, 1977) acrescenta que “a tendência a estabelecer contato com outras pessoas
é tão intensa quanto a tendência ao isolamento
como defesa”.
Uma diferença crucial e estrutural, entretanto,
é o fato de que essa experiência de ambivalência
– simbiose e autismo – emerge, nos psicóticos, na
sua parte desorganizada, estando eles submetidos a um controle menor quanto a uma instância
de gestão, por ocuparem uma “posição menos
estruturada” a partir das experiências como sujeitos que tiveram. Bleger (1977) propõe haver um
lado desorganizado em todos nós, uma “parte
psicótica da personalidade”, mais imatura e mais
primitiva e que “permaneceu segregada do ego
mais integrado e adaptado”. Essa parte, dentro
do pensamento lacaniano, é condicionada pelo
mecanismo da foraclusão do Nome-do-Pai, o
que, segundo Gilsa Tarré de Oliveira, “acarreta
uma profunda perturbação da relação do sujeito
com o Outro, terceiro simbólico e suporte de nosso pertencimento ao mundo humano”.
A não-discriminação entre eu e não-eu, mundo
externo e mundo interno, depositário e projetado,
é decorrente da ausência da lei e característica
fundamental da parte psicótica da personalidade
e da transferência psicótica. Ela faz com que o Outro perca seu lugar de alteridade para este sujeito,
tornando-se opressor e não dando possibilidade
de que se inscreva a troca. Segundo Gilsa Tarré
de Oliveira, “esse corpo a corpo mortal denuncia o quanto a relação topológica entre externo
e interno torna-se eminentemente problemática,
provocando um apagamento do lugar subjetivo,
pois obriga o sujeito a uma resposta no campo
do real”.
Mas, se estão os sujeitos psicóticos fora-do-discurso, fora do simbólico e, portanto, fora do laço
social por estrutura (Quinet, 2006), poder-se-ia
pensar numa impossibilidade lógica e estrutural
de fazê-los circular por esses laços, com a hipótese de que jamais entrariam em relação com um
outro sujeito. Entretanto, dando os devidos descontos pelas características da transferência psicótica, estudadas por Bion (apud Bleger, 1977)
– prematura, precipitada, maciça, tenaz e frágil
-, a vida cotidiana e a clínica com a psicose nos
mostram que esses sujeitos têm as suas tentativas
particulares de laço social e de vínculo, pois, “embora fora do significado, o psicótico não está, de
243
modo algum, fora do sentido” (Juranville, 1987).
E isso fica mais claro quando dividimos a dança.
Passo então a fala para a parte de mim que
cuida dos casos clínicos e que se mistura a todo
tempo com as outras partes.
Falarei de V., 25 anos, usuário do Programa de
Intensificação de Cuidados (PIC) desde o início
deste. E, embora tudo tenha começado quando
tenha começado, situarei o nosso início na supervisão em que eu mesma disse: “Ele sempre foi o
paciente que a gente pediu a Deus e, por isso,
sabíamos que havia algo errado”. O significante
soou forte, além de se repetir, e eu e minha dupla
fomos arrebatadas pela seguinte questão: “Não
teriam sido vocês as estagiárias que ele pediu a
Deus?”. Engolindo seco, pensei em que medida
conseguimos ser Outro para esse sujeito. Isso
porque descobrimos que V. estava “encenando”
todo o tempo para nós uma vida extremamente
equilibrada, camuflando uma série de desorganizações e conflitos. Confesso, deixamo-nos enganar. Mas, cometida tal falha, nos apoderamos
da posição de depositárias que descobrimos, de
algum modo, já ocuparmos (principalmente pelo
seu investimento e preparo pessoal para nos receber), na tentativa de produzir a tão falada alteridade e, assim, viabilizar que ele também se
situasse no lugar de outro.
A partir desse momento, o comportamento de
V. foi sutilmente se modificando. Ele começou a
nos confiar mais suas inquietações e a nos permitir
ir entrando, com muito cuidado, nos seus âmbitos
mais profundos, para que pudéssemos ajudá-lo a
dar sentido a suas experiências. Acho que, enfim,
244
algo estava caminhando, mesmo que a passos
curtos. Mas, como em campos transferenciais estamos sempre sujeitos a shows abrilhantados e a
quedas bruscas, a nossa história não acaba aí. O
que venho relatar agora ainda constitui impressões muito iniciais e aparecerá mais a título de
ilustrar a nossa discussão do que de propriamente
oferecer uma análise precisa do caso.
Uma hora da manhã. V. liga para o meu celular, o que nunca havia ocorrido anteriormente
nesse horário. Isso me preocupa, não exatamente
pelo caráter pouco convencional da situação em
si – embora também - mas porque tal comportamento, extremamente comum em outros pacientes, fugia à maneira como ele vinha se portando
conosco. Mais curioso ainda foi o motivo expresso para a ligação: entre rodeios, segundos de
silêncio e frases entrecortadas, ele disse-me que
estava a fim de uma menina e que não tinha coragem de contar, falar com ela. Soou, no mínimo,
estranho, a ligação em plena madrugada para
comunicar tal fato. Junto a isso, há as inúmeras
ligações de V. para mim diariamente (estas em
horário comercial), dentre as quais a maioria não
tinha um motivo específico ou dizia ele estar se
sentindo sozinho, bem como o seu comportamento sempre muito observador sobre minhas roupas,
cabelo, vida pessoal, seus olhares fixos para mim,
entre outras coisas. Enfim, o que se visa aqui não
é confirmar se a “menina” para a qual ele endereçava seus sentimentos era, de fato, eu, mas
colocar na pista a hipótese, esta mais embasada
em percepções sutis do cotidiano do acompanhamento do que em declarações propriamente ditas.
Entretanto, ainda assim, tal suposição não indica
exatamente um caso de amor transferencial, mas,
pelo menos, uma depositação mais maciça.
Interessante notar que a intensificação de
comportamentos mais erotizados de V. em relação a mim começou a surgir quando passamos
a caminhar no sentido de produzir continência;
provavelmente, o “ver-se contido” tenha sido
complicado por demais para esse sujeito. Lembramos novamente de Freud, quando em seu
texto “Observações sobre o amor transferencial”
(1914/1915), falou sobre as ocasiões nas quais
se está tentando levar o paciente a “admitir ou recordar algum fragmento particularmente aflitivo e
pesadamente reprimido da história da sua vida”,
e, nesse sentido, remeto nossas reflexões, mais
uma vez, à importância da delicadeza nas nossas
intervenções. No que se refere a V., vê-se que, a
partir de um dado momento, ele estava entrando
em contato com conteúdos novos e que talvez isto
estivesse sendo muito penoso, levando-o a fazer
uso da transferência como arma forte de resistência. Dando-se conta de que “as deformações do
material patogênico não podem, por si próprias,
oferecer qualquer proteção contra sua revelação”
(1914/1915), a utilização de tal “artimanha” mudaria o foco do tratamento e desviaria seu interesse sobre o trabalho, concluindo Freud que, de
fato, “a intensidade e persistência da transferência constituem efeito e expressão da resistência”
(1914/1915).
Perguntamo-nos então: “O que fazer com
isso tudo?”. Diria, a priori, que a palavra-chave
é suportar, palavra com a qual nos defrontamos
tantas vezes quando ousamos escorregar. Píchon
(2000), em “Teoria do Vínculo”, nos auxilia bastante nessa empreitada ao falar sobre a teoria dos
três D (depositante, depositário e depositado). Segundo ele, a comunicação entre o usuário e o
acompanhante se produz na medida em que o
primeiro adjudica um papel ao segundo e este
o assume, sendo tal fenômeno fundamental para
que a clínica aconteça. Isso é especialmente importante quando lembramos a ambigüidade que
constitui tais sujeitos em sua relação conosco, em
um misto de repulsa e endereçamento, introspecção e alienação. Acrescentamos à posição
de Pichon a de Ferenczi (apud Zygouris, 2002)
que, analogamente, fala sobre a importância de
o estagiário participar da dança sugerida pelo
usuário, enquanto parceiro “desapreensivo, com
pouca ansiedade e capaz de aceitar em depósito qualquer coisa que o paciente queira colocar
nele”, “deve se colocar de um modo particular
(...) disposto a controlar e cuidar daquilo que foi
depositado nele” (Pichon, 2000). Entretanto, não
fiquemos nessa posição unilateral. O próprio Pichon acrescenta: “Para que se estabeleça uma
boa comunicação entre dois sujeitos, ambos devem assumir o papel que o outro lhe adjudica”,
o acompanhante sempre se questionando sobre
estar ou não na posição devida de depositário,
sobre as afetações que estão permeando a relação. Isso só será possível se não nos limitarmos
à questão sobre “o que faço para produzir efeito
no outro”, colocando à mostra, ao menos para
si, a pergunta “quem sou eu?”, pois, é a partir
disso, que se produz efeito no outro. Nós somos a
245
matéria-prima da nossa clínica. Assim, sabendose necessário dialogar com a experiência psíquica
do sujeito, dando lugar à sua significação e estando atento aos olhares e dizeres, aportamo-nos
no que há de arte e no que há de técnica dentro
da clínica; no que há de novo e no que há de
repetido.
Não podemos negar que o manejo das relações vinculares representa grande dificuldade,
mas também excelente instrumento. Segundo
Freud (1916/1917), seria impossível ceder às exigências do paciente, decorrentes da transferência, mas, ao mesmo tempo, “seria absurdo se as
rejeitássemos de modo indelicado e, o que seria
pior, indignados com elas”. Dessa forma, seria
tão desastroso para a clínica que os anseios do
paciente fossem satisfeitos, quanto que fossem suprimidos; o estagiário deve se lembrar que está
lidando com um vínculo inédito e que deve seguir
“um caminho para o qual não há modelo na vida
real” (1914/1915). Ele precisa ter cuidado para
não se afastar do vínculo que foi estabelecido,
nem repeli-lo ou torná-lo desagradável para o
usuário, mas também deve recusar retribuição.
Pensaremos agora, mais especificamente, sobre V., sobre o acompanhar a sua solidão, ao
mesmo tempo em que movimentávamos sua imobilidade (Barbosa, 2006). Em primeiro lugar, é
preciso ter claro que não devemos “julgar se uma
conduta é boa ou má (...), [observando] simplesmente qual é a finalidade da comunicação, conscientes de que aquilo que o paciente está fazendo
é a única coisa que ele pode fazer nesse momento
e nessa situação particular” (Pichon, 2000). Isso é
246
importante inclusive para que a resistência não se
torne do estagiário!
Em relação a V., era muito pouco provável que
ele declarasse qualquer coisa palpável, caso a
nossa hipótese sobre o amor transferencial esteja
correta. Isso porque, durante o acompanhamento,
percebemos que as situações com V. mantinhamse muito no campo do não-dito, do enigmático,
e muitas informações que tínhamos sobre o caso
eram provindas da sua família ou de suposições
nossas. Justamente por isso, não seria fácil - e
nem deveríamos - exercer corte ou colocar limites, mas sim produzir, dia após dia, através de
pequenas intervenções, a citada continência, já
que os limites, por serem externos, não costumam
ser suficientes para surtir efeito em pacientes psicóticos, por estes, geralmente, estarem totalmente
fora do registro simbólico e da experiência psíquica que permite a normatização. Junto a isso,
é importante pensar que efeito teria isso para o
sujeito a partir da maneira como seria feito, pois
uma grande questão dos pacientes é como serão
alguém no mundo, de que maneira poderão existir, e uma intervenção inadequada pode prejudicar o sujeito com relação ao sentido que atribui
a si mesmo: “Ela rejeita meu amor porque sou
pobre, ou porque sou negro, ou porque uso drogas, etc?’. Devemos tentar fazê-lo entender que o
que ele endereça está sendo aceito, embora não
correspondido, mas isso não se deve à falta de
atributos pessoais.
Iniciamos a nossa intervenção com V. dialogando sobre o telefonema da madrugada, no sentido
de ir fazendo-o entender que não somos uma ex-
tensão dele mesmo. Nesse sentido, discorremos
sobre a possibilidade de certos assuntos esperarem até a próxima visita ou até um horário mais
viável, sem, com isso, invalidar a sua importância;
falamos também sobre o fato de termos outras atividades e vida pessoal, e, por isso, não estarmos
sempre aptas a atender os telefonemas. Apresentado dessa forma, talvez tenhamos a impressão
de termos sido rudes ou firmes em demasia, mas
vale ressaltar que essas atitudes foram tomadas
com bastante cuidado e sutileza. O “a partir daí”,
receio informar que não haverá como dar muitas
informações, assim como os dançarinos se abstém
de explicar as milhares de pequeninas movimentações que formam um passo de dança. Primeiro,
porque o caso está em andamento e os acontecimentos citados são muito recentes, não havendo,
de fato, grandes considerações a serem feitas sobre atitudes tomadas. Segundo, porque, como já
havia dito, este sujeito, como muitos outros, não
pede exatamente como ferramenta intervenções
enérgicas; quase tudo é construído na base da
delicadeza, de intervenções mínimas. Dessa forma, pensar e agir através do vínculo constitui um
desafio constante, pois não se trata de descobrir
como ocorre a depositação e não se preocupar
mais com isso; “ora estamos colocados aqui, ora
ali” (Metzger, 2006); a luta é incessante, o show
tem que continuar.
Ao final dessa discussão, mas certamente não
ao fim da dança, algumas considerações podem
ser feitas, talvez muito mais poéticas do que teóricas. Confesso que, se sei um pouco sobre V.
hoje através do que ele tem me mostrado, sei
muito mais do que sabia antes sobre mim mesma. Os pacientes, a todo tempo, fazem com que
nos “olhemos no espelho”, e o que vemos nada
mais é do que o reflexo do que já existe em nós. A
riqueza do encontro está justamente nas criações
e recriações que surgem a partir dele, “aquilo que
lhes dará forma, contorno e a possibilidade de
movimento emocional, físico e psíquico” (Santos,
2006). O vínculo este estará sempre a “desdobrar-se nos movimentos que produzimos e nos
detemos a pensar, interpretar, compreender, encarnar” (Santos, 2006).
A arte nos ensina que se dança para si mesmo e para a música, mas com o outro. É nesse momento que as pernas precisam ficar firmes
para que se possa dançar no ritmo instalado. Não
demore demais para não sair do compasso, não
se apresse demais para não acabar no chão! Assim como a dança, a intensificação de cuidados
sempre nos trará ambigüidade nos sentimentos,
a depender do contexto. Termino, por isso, com
perguntas do Drummond (1991), que nos farão
contradição, que nos permitirão a complexidade
e que nos trarão, possivelmente, nada mais do
que respostas-perguntas.
“Que metro serve
para medir-nos?
Que forma é nossa
e que conteúdo?
Contemos algo?
Somos contidos?
Dão-nos um nome?
247
Estamos vivos?
A que aspiramos?
Que possuímos?
Que relembramos?
Onde jazemos? (...)”
Referências
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sua relação com o processo de projeção-introjeção. In:
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ZYGOURIS, R. O vínculo inédito. São Paulo: Escuta,
2003.
Dados e eventos
O BPC e a Banalização
da Interdição Judicial: um exemplo de atuação clínico-política
Mariana Ferreira Santos Carteado*
Tatiana Lacerda Medeiros**
A
Constituição Federal de 1988 introduziu um
novo patamar de cidadania para os brasileiros. As mudanças na legislação propiciaram o
resgate da cidadania e a ampliação dos direitos
dos portadores de transtorno mental. Mais especificamente, o Art. 5º da Constituição que se refere aos Direitos e Garantias Fundamentais dos
cidadãos brasileiros, a Lei 10.216/01 e o Art. 3º
do Novo Código Civil produziram conseqüências
relativas à proteção dos direitos de cidadania
destes sujeitos. Entretanto, apesar da força destas
legislações, suas conseqüências não têm sido suficientemente apreendidas e operacionalizadas.
A partir do movimento da Reforma Psiquiátrica,
a assistência em saúde mental no Brasil tem sido
alvo de importantes transformações. Alguns setores da sociedade civil lutam por um novo modelo
de atenção que priorize a dignidade, autonomia e
a reinserção na família, no trabalho e na comunidade dos usuários dos serviços de saúde mental.
Com a promulgação da Lei Federal 10.216, os
*Psicóloga graduada pela UFBA e ex-estagiária do PIC
** Estudante do curso de Psicologia (UFBA) e estagiária do PIC
direitos dos portadores de transtorno mental foram reconhecidos legalmente.
Na experiência de acompanhamento de pacientes no Programa de Intensificação de Cuidados (PIC) a psicóticos, cuja atuação está em
conformidade com as novas diretrizes políticas de
atenção à saúde mental, constatamos uma falta
de sensibilidade por parte de certos órgãos públicos em incorporar à sua cultura institucional os
paradigmas da Reforma Psiquiátrica. Diante disso,
pode-se perceber que tais instituições, ao operacionalizarem as políticas públicas relacionadas a
esta parcela da população, tendem a interpretar
as leis sem ter em perspectiva tais paradigmas, já
que as mesmas são passíveis de julgamento subjetivo.
Tendo em vista o redirecionamento da atenção
aos portadores de transtorno mental, a partir de
uma concepção ampliada de clínica que impõe
aos profissionais de saúde uma prática profissional comprometida com os aspectos psicossociais
destes sujeitos, faz-se urgente um debate em torno
da mediação das práticas burocráticas por partes
dos mesmos, já que, ao modo tradicional de fazer
251
clínica, os diálogos com as instituições públicas
e os trâmites burocráticos que as caracterizam e
que se apresentam eventualmente para os nossos
pacientes são compreendidos como “extraclínicos”.
No acompanhamento a psicóticos no referido
programa, uma situação específica envolvendo o
requerimento de um benefício assistencial – o Benefício de Prestação Continuada, previsto na Lei
Orgânica de Assistência Social (LOAS) – revelouse como uma questão de pouca visibilidade e extrema relevância, devido à prática inconstitucional
de exigência, por parte de determinados órgãos
públicos, da declaração de que os requerentes
são totalmente incapazes para o exercício dos
atos da vida civil, o que acarreta a banalização
da interdição judicial. Esse procedimento, indicado apenas para casos em que haja prejuízo grave
da capacidade de discernimento para a prática
destes atos, ao ser imposto como condição para
o recebimento do benefício, traz como conseqüência a amputação desnecessária da cidadania de
inúmeros portadores de sofrimento mental. O direito a esta renda mínima, que poderia significar
um avanço na conquista da autonomia por parte
destes sujeitos, torna-se assim uma “armadilha da
pobreza”.
Com base na interpretação tendenciosa de um
critério expresso na LOAS, que restringe a concessão do benefício à comprovação de “incapacidade para a vida independente e para o trabalho”, criou-se uma cultura no interior do INSS de
encaminhamento dos requerentes ao Ministério
Público Estadual para darem entrada no processo
252
de interdição. O Ministério Público, por sua vez,
acata estes pedidos e os encaminha ao Judiciário,
que finaliza o processo, desabilitando a cidadania
do sujeito.
Diante de recursos tão escassos de sobrevivência, o psicótico facilmente abre mão da sua cidadania em troca de um benefício financeiro, o que
se justifica pelo fato de que a discussão da cidadania e dos direitos humanos se apresenta para
tais sujeitos de maneira muito sofisticada, contrapondo-se à concretude das dificuldades financeiras do cotidiano. Tendo em vista uma clínica psicossocial das psicoses que opera no registro do
respeito à autonomia e à dignidade do portador
de transtorno mental, faz-se urgente atentar para
as dinâmicas institucionais que vão de encontro a
estes princípios e que impedem a evolução clínica
dos nossos pacientes. Assim, o profissional de psicologia comprometido com o modelo assistencial
defendido pela Reforma Psiquiátrica deve assumir
um posicionamento político ativo, manejando
junto ao paciente as situações críticas emergentes
da sua relação com as instituições, assumindo um
papel questionador dos paradigmas que norteiam
as ações dos atores institucionais e atuando em
consonância com a defesa dos direitos dos portadores de transtorno mental previstos nas legislações.
Tendo essa perspectiva em vista, o PIC, unido
à Comissão de Direitos Humanos da OAB-BA,
ao Conselho Regional de Psicologia e ao Conselho Regional de Serviço Social, promoveu um
seminário com o tema “Direitos dos Portadores de
Transtorno Mental: atualizações legais”, realizado
no dia 9 de Março de 2007 no auditório da OABBA, contando com a participação de representantes das instâncias envolvidas com a problemática
da banalização das interdições judiciais no Brasil:
Ministério Público Estadual, INSS, Defensoria Pública e Associação Psiquiátrica da Bahia. O debate, além de lançar luz sobre o incremento da
Interdição Judicial e oferecer os devidos esclarecimentos acerca dos reais critérios para a concessão do Benefício de Prestação Continuada aos
portadores de transtorno mental, teve como principal intuito o comprometimento de cada um dos
envolvidos na interface desta temática, em ações
efetivas que visem à transformação da cultura e
das práticas institucionais.
253
O PIC em letra e número
O
Programa de Intensificação de Cuidados a
Pacientes Psicóticos teve início em janeiro
de 2004 e, desde então, já atendeu cerca de 40
pacientes e recebeu e preparou, entre estagiários
e extensionistas, 71 de Psicologia, 41 de Terapia
Ocupacional e 3 de Medicina, sendo que muitos
em regime semestral; outros, anual e alguns, inclusive, permanecendo por três semestres consecutivos.
“Acompanhamento Terapêutico - uma tecnologia
na atenção psicossocial”.
O PIC tem inspirado a realização de alguns
trabalhos de conclusão de cursos de graduação e
pós-graduação:
O PIC também esteve presente, como programa assistencial ou discutindo alguns dos seus aspectos relevantes, através de apresentações orais
e pôsteres, em importantes eventos tais como:
• Monografia de conclusão de curso de Terapia
Ocupacional de Larissa Figueiredo Santos, na
época ainda estagiária do programa, que teve
como tema “Redes sociais em saúde mental: uma
experiência com o Programa de Intensificação de
Cuidados a Pacientes Psicóticos”.
• Monografia de conclusão de curso de Terapia
Ocupacional de Fernanda Abreu Rodrigues, na • Congresso Norte Nordeste de Psicologia (Salépoca ainda estagiária do programa, que teve vador, 2005)
como tema “Programa de Intensificação de Cuidados – um caminho para a qualidade de vida”, • Congresso Latinoamericano de Extensão Universitária (Rio de Janeiro, 2005)
• Monografia da terapeuta ocupacional Noêmia de Aragão Casais para conclusão do curso • Oficina sobre Atenção Domiciliar no Enconde Especialização em Saúde Mental do Depto de tro Nacional de Saúde Mental (Belo Horizonte,
Neuropsiquiatria da UFBA, que teve como tema 2006)
254
■ Curso de Extensão “Elementos Teóricos para
• Congresso Internacional de Direitos Humanos e uma Clínica Psicossocial das Psicoses”, realizado
Saúde Mental (Buenos Aires, 2006)
nos períodos de setembro a dezembro de 2005
e março a junho de 2007, na UFBa, que contou
com 50 alunos na primeira turma e 40 na segun• V Congresso Norte-Nordeste de Psicologia da.
(Maceió, 2007), em que foram apresentados os
seguintes trabalhos:
■ Curso de Extensão “A ética e a técnica do Acompanhamento Terapêutico”, realizado em dois pe■ “Transbordamento psicótico: desafios e possibi- ríodos, novembro e dezembro de 2006, com 30
lidades de intervenção”
alunos em cada turma, que contou com o Prof.
■ “A formação de díades no trato com a loucura: Kleber Barretto, prof. doutor da Unip, como miacompanhando os acompanhantes”
nistrante.
■ “Intensificação de cuidados a pacientes psicó- ■ Disciplina optativa: “Atenção Psicossocial em
ticos: uma clínica ampliada”
Saude Mental.” Departamento de Psicologia UFBA,
■ “Interdição judicial de pacientes psicóticos: a 2007.2.
amputação da cidadania”
■ “Psicose, maternidade e papéis sociais”
■ “Dança e xadrez: o papel da intensificação de
cuidados no fortalecimento da autonomia de Felipe”
■ “A abordagem da crise na psicose”
■ “O vínculo e a transferência na clínica psicossocial das psicoses”
■ II Fórum Internacional de Saúde Mental e D. H.
no Rio de Janeiro (maio,2008).
Também foram realizados cursos no formato
de atividades de extensão, visando oferecer aos
estagiários e ao público externo uma complementação dos aprofundamentos teóricos específicos
vinculados ao nosso universo de trabalho teórico:
Encontro Nacional de Saúde Mental (Belo Horizonte, 2006)
255
Relação de estagiários/extensionistas
treinados pelo PIC
Psicologia
Àdem Ramos
Adriana Bitencourt
Aline Freire de Carvalho Frey
Allan Jeffrey Vidal Maia
Allann da Cunha Carneiro
Amanda Muniz Caetité
Amon Requião de Castro
Ana Luisa Marques Fagundes
Ana Margarete Freitas
Ana Paula Miranda da Hora
Ana Paula Silva Pereira
Andréa Pato
Antônio Marcos Santana Barreira
Carla Silva Fiaes
Carolina Brandão Vieira Lima
Caroline Barbosa Tanajura
Charlene Gomes de Souza
Clotildes Silva Sousa
Cristiane Batista da Silva
Daphne Soares
Emanuelle Teixeira
Érica Almeida Coelho
Fernanda Rebouças
Fernanda Vidal
Fernando Luiz Failla
Filipe Soares Rodrigues
Flavia Bomfim Hasselman
Flora Albuquerque Matos
256
Gabriela Pena Cal
Gabriela Souza de O. Sampaio
Gelly Costa
Gisele Lopes
Isadora de Andrade Pinheiro
Ivana Maciel Cangussu
Jaqueline Vitoriano
Jamili Calixto
João Batista Pereira Neto
Júlia Mignac dos Santos
Juliana de Andrade Passos
Kátia Cordélia Cunha Carneiro
Lara Hardman
Larisa Andrade e Castro
Leila Reis Leal
Leíza Nazareth
Lívia Gomes de Vasconcelos
Lorena de Almeida Oliveira
Luane Neves
Lucineide Santiago de Souza
Lygia Silva Pedreira de Freitas
Maria Anunciação Brites Guimarães França
Maria Clara Guimarães
Mariana de Castro Brandão Cardoso
Mariana Ferreira Santos Carteado
Marianna Luiza Alves Soares
Marilia de Azevedo Alves Brito
Marines Oliveira
Milena Gonçalves Sobral
Milena Silva Lisboa
Mônica Machado de Matos
Naiara Oliveira
Nara Cortês Andrade
Polyana P. Mendonça
Sandra Assis Brasil
Sheila Silva Lima
Tatiana Medeiros
Thiago Lima Mello
Vanessa Nobre Vilas Bôas
Vera Christiane Rittel
Wellington Carlos
Terapia Ocupacional
Adriana Balaguer (Supervisora substituta)
Adelly Rosa Orselli Moraes Sodré
Adriana Bitencourt
Alanda Ribeiro Dos Santos Andrade
Ana Claudia Silva Braga
Ana Cristina Oliveira Nogueira
Ana Patrícia Oliveira Souza
Ana Paula Silva Pereira
Carol Silva Andrade
Clarissa Brito Barbosa
Daniela Maria Ribeiro Astolpho
Dayane Boa Ventura Lima
Eitha Milena Teixeira Araújo
Ester Bonfim Góes
Fernanda Abreu Rodrigues Nascimento
Fernanda Gonçalves de Moura
Flávia Conceição Borges Matos
Gisele Duarte Lordelo
Hélvia Vieira Aguiar
Itatiara Nascimento
Jamile Oliveira Menezes
Kátia Luzia de Camargo Jesus
Larissa Figueiredo Santos
Leni Lima Silva
Lívia Maria dos Santos Cerqueira
Luciana Principe de Oliveira Galheigo
Luiana Lima Fernandes
Luíza Viana Ferreira
Mabel Dias Jansen Silva
Magnovanda Martins D. Oliveira
Manuela Gagliano Ferreira
Maria Eduarda Nunes Correia Lima
Naama Correia Lima Pires
Patricia Barreto da Silva Rocha
Patricia Freitas Lima
Sharlene Bawes
Silvânio Silva Souza
Tâmara Silva Cedraz
Thalita de Figueiredo Taboada
Thyena Oneida Carneiro Rios
Yandra Magalhães C. Marques
Medicina
Diego Espinheira da Costa Bomfim
Allana Silva
Lucas Nascimento
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A Clínica Psicossocial das Psicoses